Por
que o Homem se envergonha de seu estado e de sua natureza?
Louis Claude de Saint Martin
Independentemente destas calamidades opressivas, temos vergonha de nosso
estado natural porque somos obrigados a prover nossas necessidades de forma
contrária a dignidade de nosso ser; porque nosso desejo não
é suficiente para tanto e nosso verbo efetivo (ativo) não
é mais sensível; porque todos os cuidados temporais e as vantagens
efêmeras que buscamos incessantemente, são sinais de nossa
reprovação e, ao mesmo tempo, de nossa dúvida com relação
ao nosso Princípio, cujo auxílio criativo e vivificante nós
perdemos desde a Queda; por fim, temos vergonha porque, de certa forma,
ofendemos a Suprema Verdade na medida em que não trabalhamos em conjunto,
pois para este fim é que foram criados o movimento, a existência
e a vida; eles procedem e são mantidos pelo seu foco generativo universal,
através do poder vivo.
Mas, o que é pior, embora não se perceba, é que permitimos
que aquelas influências destrutivas (ações), aqueles
germens dos poderes desorganizadores e criminosos, penetrem em nossas essências
por todos os poros e sentidos; permitimos que tomem conta de nossos órgãos,
tornando nossos corpos receptáculos e instrumentos de todos os tipos
de abominações que atingem quase toda humanidade; isto é
o mais deplorável, porque possuímos tanto o direito como o
poder sobre nossas debilitadas essências que se encontram contaminadas
por tais influências; não podemos evitar a sua dissolução,
não podemos evitar que nos dê a morte enquanto nos dá
a vida.
As causas de nossa sedução, lições a serem tiradas.
Qual é causa deste falso prestígio que começa por nos
seduzir e termina por nos lançar nestes precipícios fatais?
É que, infelizmente, ele tem origem numa fonte que se torna salutar
apenas porque deve ter constituído nossa glória, se a tivéssemos
mantido em seu devido lugar. É por esta razão que ainda é
o espírito que opera em nós, embora seja de uma ordem inferior,
quando ouvimos a voz ou a atração de um falso sentimento.
Este espírito atua sobre os nossos e representa para nós,
sensivelmente, regiões onde temos a ilusão de encontrar todos
seus prometidos deleites. É por esse caminho que se insinua em nossas
essências e causa sensações que nos cativam e nos ludibriam.
É apenas porque tudo é espírito que achamos tudo isto
tão encantador. Contudo não nos damos tempo para discernir
que espírito é este. Temos pressa de transmitir esta imagem
viva que nos encantou, a um objetivo terrestre, que está sempre pronto
para se associar a este sentimento. Neste ponto, a ação do
espírito desaparece e a ação da Natureza toma o seu
lugar; e, como ela é limitada, logo nos faz sentir sua limitação
e sua futilidade. De tudo isto, podemos tirar três lições:
Primeiro, que o espírito inferior nos ilude duplamente, ao nos mostrar,
espiritualmente, deleites que não conhecemos exceto pela matéria,
naturalmente e quando esta matéria nos desaponta. Nada senão
um espírito desordenado é capaz de produzir tal desordem e
contra-senso. Um espírito regulador nos mostraria, através
de imagens, grandes satisfações, próprias de nosso
espírito, em nossas relações terrestres e, ao mesmo
tempo, a natureza ilusória dos prazeres da matéria; não
se deve abusar nem da matéria, nem do espírito, a ordem deve
reinar em ambos.
A segunda lição mostra a razão pela qual os homens
de idade avançada, que se tornaram escravos ou joguetes de seus sentidos,
ainda desfrutam, em seus espíritos depravados, os deleites que sua
matéria não mais pode realizar; isto nada mais é do
que uma prolongação daquele primeiro sentimento, a ação
do espírito inferior.
A terceira lição mostra a causa do desgosto que sucede nossas
ilusões; não é através da matéria que
devemos encontrar o êxtase.
A mente e o ser central do Homem estão escravizados;
ele se tornou seu próprio inimigo.
Se observarmos o Homem com relação ao seu conhecimento e à
sua mente, encontraremos mais razões para a lamentação;
o veremos como um escravo do sistema e da conjectura; escravo de contínuos
esforços no sentido de compor uma mera nomenclatura para suas ciências;
escravo de nuvens de idéias conflitantes, que geram em sua mente
mil vezes mais tormentas do que nossa atmosfera em suas mais violentas tempestades.
O que, então, não encontraremos se observarmos o mais íntimo
de seu ser? O encontraremos mergulhado, não só no inferno
divino, mas, com freqüência, em um outro ainda mais ativo, esperando
unicamente pela ruptura de seus laços terrestres, para se unir completamente
com este inferno, do qual é visivelmente o órgão e
o ministro sobre a Terra.
Por fim, o que acontecerá quando o Homem se vir rodeado por domínios
de todas as espécies, que nunca lançaram sequer um olhar para
sua fonte do mal, e estes impediram a busca do medicamento? O que posso
dizer a quem neutralizar os mais específicos medicamentos, substituindo-os
por meros paliativos que podem até estar infectados ou serem prejudiciais?
E o Homem, ainda pode ser insensível com relação a
sua miséria e não tomar cuidado com os perigos que o rodeia!
Mas o que mais, que outro resultado ele poderia esperar após retribuir
com ingratidão todos os ricos presentes que tem recebido da Generosidade
Eterna?
Este Homem, que foi feito para apaziguar a ira de Deus, é o mesmo
que a provoca continuamente, ao substituir a luz pelas trevas e as inumeráveis
falsas influências pela verdadeira que carrega consigo. O Homem não
tinha amigo mais próximo, neste plano, do que seu eu interior, para
se inclinar a Deus, ouvi-lo e participar do fruto e maravilhas da admiração.
Ao invés de poupar cuidadosamente este recurso, fez de si próprio
o mais próximo e mortal inimigo; o Homem tem se confundido com as
bestas e cometido as maiores atrocidades decorrentes desta doutrina que
acabou criando para si um inferno ativo, uma mera percepção
de tudo o que deveria ter tido e que dura somente este tempo de provação.
É que, temporariamente, ele é rodeado senão por auxílios:
a Natureza lhe oferece suas abundantes colheitas; os elementos, suas reações
salutares; o Espírito do universo, sua respiração e
sua luz; os animais domésticos, seus serviços e dedicação;
o Homem tem até mesmo os meios de desinfetar os venenos, subjugar
bestas selvagens e ele só trabalha para se infectar cada vez mais.
Oh, rei do mundo! olhe para si em tão odioso e infernal estado em
que não é rei nem de si mesmo; e de tudo o que compõem
seu império, a única coisa que deves temer é a ti próprio;
tu não podes olhar para ti mesmo sem horror! Pois está é
a transposição de sua vontade, que desordenou todas as coisas;
tudo sofre de forma universal só porque o Homem coloca suas falsas
e mutáveis vontades no lugar da verdadeira e eterna lei, continuamente;
e porque, não só governa as questões universais a seu
modo mas também porque tenta compô-las para si, ao invés
de simplesmente receber suas influências.
Sofrimento, o portão estreito pelo qual o Homem
de Desejo agora deve passar.
Se, sob estas circunstâncias, um homem de fé (desejo) aspira
ser um servo do Senhor, que meios poderia encontrar a fim de ajudar seus
semelhantes nesta angústia espiritual e terrível perigo que
ameaça o ser espiritual constantemente? Ele não teria nada
a oferecer senão lágrimas, estremeceria diante da lamentável
situação de seus irmãos e só poderia ajudar
com seus soluços.
Oh, Homem de Desejo! lembre-se de que se a essência fundamental do
Homem fosse trazida de volta a seus elementos primitivos, pronunciaria de
forma natural e alimentaria continuamente a sublime palavra: Santo, Santo,
Santo, para a glória de seu Princípio, sem interrupção,
por todas as eternidades.
Em nossos dias, a linguagem do Homem, assim como o próprio Homem,
sofreu uma espantosa mudança; contudo aquela linguagem primitiva,
a linguagem da santidade e felicidade, pode ser recuperada, mesmo que as
essências do Homem estejam reduzidas a não pronunciarem nenhuma
palavra senão aquela do sofrimento (dor), que é sua sensação
predominante e a qual estão mais suscetíveis. Ouça
a esta palavra "sofrimento" com muita atenção quando
ela falar em você; ouça-a como a primeira voz de auxílio
que se pode fazer ouvir no deserto: junte este precioso e específico
medicamento com muito cuidado, como o único bálsamo que pode
curar as nações.
Desde a grande mudança, a vida da Natureza repousa apenas nesta base.
Desde a degradação do Homem, não temos outro meio de
sentir nossa existência espiritual e divina; tampouco temos outro
meio de fazer nossos semelhantes senti-la. Este sofrimento é diferente
daquela dor dos místicos que têm sustentado o amor até
ao ponto de tirarem deleite de aflições; desta maneira acreditaram
apenas em sua própria salvação e felicidade. Aqui,
não há tempo de pensar em sua própria santidade, uma
vez que estarás constantemente aflito e, por assim dizer, oprimido
pelo peso desta cruz de poderes, que faz a vida se manifestar em todas as
criaturas.