Os malfeitores e uma chegada ao Egito
ELIPHAS LÉVI
Escrevemos mais longamente essa lenda: eis em toda a sua simplicidade, tal
como a encontramos nos evangelhos da Santa-Infância. A santa família
do Salvador, proscrita por Herodes, encontrou dois ladrões no deserto.
Esses ladrões chamavam-se, segundo alguns, Titus e Dumachus, e, segundo
outros, Dismas e Gestas; seguimos os costumes dos hebreus denominando-os,
em nossa lenda, Johanan e Oreb, isto é, o Misericordioso e o Homem
de sangue. Um deles, Oreb, queria degolar a santa família. Mas Johanan
se opôs e, servindo ele próprio de guia aos três viajantes,
deu-lhes hospedagem em sua caverna.
Ora, Deus lembrou-se da misericórdia e da hospitalidade do ladrão:
Jesus, na cruz, perdoou-lhe todos os pecados e prometeu dar a ele, por sua
vez, hospedagem no céu no mesmo dia. Assim os fariseus deveriam um
dia crucificar três malfeitores, e entre esses três deveriam
encontrar o justo por excelência e o culpado arrependido. Para que
se saiba que a justiça dos homens será apenas um açoite
que baterá para punir e não para curar, que todo pecador que
coopera com uma sentença de morte talvez aceite a responsabilidade
do deicídio. Vós todos que estais sem dúvida isentos
de pecado, visto que ousais atirar a primeira pedra no culpado, lembrai-vos
dos três malfeitores e acautelai-vos para não bater no meio
ou à direita, quando quiserdes bater à esquerda!
Como, na chegada do Salvador ao Egito, caíram os ídolos de ouro e de prata, e os seres depravados morreram. Está escrito nos evangelhos da Infância e nas crônicas antigas que ao nascer o Salvador muitos milagres se realizaram. Assim, primeiramente, os oráculos calaram-se em Delfos e por toda a terra, o que significava que as antigas religiões já tinham tido seu tempo e que tendo o Verbo divino penetrado mais profundamente na humanidade e estando ele resumido em Jesus, os antigos oráculos nada mais tinham a dizer, a não ser para lhe render testemunho, como ocorreu no Egito e em outros lugares.
O segundo milagre
simbólico da chegada do Salvador foi a morte de todos os seres depravados
que ultrajavam a natureza desviando-a de seus desejos; isso deve ser entendido
apenas no sentido moral, porque a pureza e a castidade acabavam de revelar-se
ao mundo e reabilitar a geração humana. Acrescenta-se também
que todas as águas amargas tornaram-se doces e potáveis, para
fazer entender que a doutrina de fraternidade deveria adoçar
todos os pensamentos e servir como que de refrigério às almas
fatigadas de ódio e de cólera. Os velhos evangelistas dizem
ainda que Jesus, quando seus pais se levantaram de sob a palmeira milagrosa
da lenda precedente, abreviou-lhes o resto da viagem, e eles se encontraram
às portas de Mênfis; então todos os ídolos do
Egito caíram prosternados, e a estátua de Ísis, deixando
escapar de seus braços a imagem de Horus, desceu de seu pedestal.
Todas essas imagens poéticas são fáceis de compreender.
A doutrina do Cristo abrevia, para a humanidade, o longo tempo do exílio,
os cultos terminam desde que são substituídos por um culto
mais perfeito e as imagens confusas cedem lugar às imagens mais exatas,
como essas últimas cederão lugar, finalmente, à realidade.
Como, quando
Jesus voltava do Egito, os prisioneiros romperam suas algemas. As verdades
nascentes não encontram asilo seguro em lugar nenhum. Jesus tinha
que deixar a Judéia para escapar às suspeitas homicidas de
Herodes, e eis que o ressentimento dos sacerdotes ia perseguilo no Egito.
José ficou sabendo que Herodes estava morto e partiu com Maria e
seu filho para voltar a Nazaré. Lê-se, no capítulo décimo
terceiro do evangelho da Infância, um dos mais antigos entre os evangelhos
apócrifos, que a santa família, na volta do Egito, passou
perto de uma caverna onde ladrões mantinham presos seus cativos.
Com a aproximação da santa criança os ladrões
acreditaram ouvir o barulho de um grande exército e os clarins dos
arautos que anunciavam a aproximação de um grande rei; então
fugiram aterrorizados.
Os cativos, ficando sós,quebraram as algemas uns dos outros e recuperaram
tudo o que lhes havia sido roubado; e saindo"para ir ao encontro do
grande rei e de seu exército, viram apenas uma criança, uma
jovem mulher
e um velho, e lhes perguntaram: Afinal onde está o grande rei que
aterrorizou nossos inimigos e nos fez quebrar nossas algemas? - Ele vem
depois de nós, respondeu José. Com efeito, a idéia
cristã aterroriza os ladrões do velho mundo. Não os
expulsamos mais, eles fogem diante da luz do cristianismo que avança
e os pobres prisioneiros quebram mutuamente suas algemas. O grande rei e
o grande exército que os ladrões ouviram é o povo justo
cujo reino deve chegar após o do cristianismo simbólico, e
é por isso que José dizia: Ele virá depois de nós.
É estranho encontrar tais idéias em lendas tão antigas.
Mas sabemos que, na humanidade, o sentimento precede sempre a concepção
e é por esse motivo que a religião se formula antes da filosofia.
As fábulas precedem os dogmas, aos dogmas sucedem os princípios,
e é sempre a mesma verdade que germina, floresce e frutifica, e se
desenvolve sucessivamente sob a influência de suas diferentes estações.