A visão de Aaswerus

ELIPHAS LÉVI



Anda! dissera o judeu Aaswerus a Cristo oprimido sob sua cruz. - Anda! respondeu-lhe o Salvador do mundo, até que eu volte aqui e te diga: Repousa! Desde esse tempo, Aaswerus não pára de fazer a volta ao mundo; e todos os anos, em meados da Páscoa, ele volta para onde foi sua casa maldita para ver se ali reencontra Jesus. Ele anda, anda, chega quebrado, ofegante, prestes a cair morto de cansaço; chega e não encontra ninguém. Ele eleva os olhos e vê no céu sempre implacável uma mão que lhe mostra o Ocidente! Anda! grita-lhe uma voz que parece ser um eterno eco da sua, no dia do crime, e o velho Aaswerus curva a cabeça; o soluço de salvação que cresce em seu coração recai silencioso e sem lágrimas; ele recomeça sua viagem eterna. Na época em que os cruzados tomaram Jerusalém, o Judeu Errante tinha ouvido dizer que Cristo havia retomado à montanha santa; ele só encontrou ali um padre cercado de soldados. - Um judeu! um judeu! gritaram alguns homens com mãos sangrentas...
Anda! Anda! disseram os soldados batendo no velho com seus bastões e o aguilhoando com a ponta de suas lanças. Aaswerus meneou a cabeça e voltou a caminhar, em meio às maldições da multidão. - Ai de mim! murmurou ele, a cruz ainda não me pode absolver, visto que ela não ensinou ainda o perdão a seus defensores. Os homens só a adoram como um instrumento de suplício e uma lembrança de vingança! Insensatos,querem vingar aquele que os salvava perdoando, e não sentem que se condenam eles mesmos ao destruírem o perdão do Homem-Deus! Eles não sabem que a perseguição exercida pelos cristãos é a negação dos mártires e a reabilitação de seus algozes.


Também, quando Aaswerus reencontrou depois os judeus perseguidos pelos cristãos, ele os incitava a morrer ao invés de abjurar as crenças de seus pais, e ele próprio, com seu bastão secular na mão, a barba e os cabelos eriçados ao vento, os conduzia de exílio em exílio... E no entanto, melhor que ninguém, ele
compreendia que Jesus é o filho único de Deus! Mais tarde ele viu caírem as cruzes e se levantarem os cadafalsos, ouviu falar da santa guilhotina e não ficou surpreendido; os inquisidores não haviam ainda inaugurado as festas da morte em nome da Cruz santa? O culto era o mesmo e só o altar estava mudado.
Falava-se então também de humanidade, de progresso; era justo: o machado é mais diligente e menos cruel que o pelourinho sangrento do Gólgota. Ele viu em
seguida recomeçarem as solenidades do bezerro de ouro; há muito tempo sabia como terminavam tais orgias, e quando lhe perguntam: Que faz a esta hora o filho do carpinteiro? - ele responde, meneando a cabeça: Um ataúde! Porque ele sente que o tempo está próximo e seu andar parece tornar-se mais lento; olha por sua vez o século que passa e os acontecimentos que se precipitam.


No dia em que o sucessor de Pedro caiu por se ter apoiado num cetro, e saiu da cidade eterna por sua vez amaldiçoado e exilado, Aaswerus entrou no Vaticano deserto, e, com o cotovelo apoiado na cadeira vazia dos papas, deixou a cabeça cair sobre sua mão, parecendo cochilar por um instante.
Reviu em sonho o campo de Jerusalém revestido de sua fertilidade primeira: a vinha com gigantescas uvas da Terra prometida, as oliveiras carregadas de frutos cobriam as colinas e os vales estavam cheios de loendros e de roseiras em flor.


A montanha de Mória estava coberta de um povo inumerável, formado por deputados de todos os povos da terra, e no cimo do monte sagrado elevava-se um imenso altar. No meio do altar, subia até as nuvens um gigantesco candelabro de ouro, encimado por um sol radioso, e no meio desse sol aparecia, branca e transparente, a divina hóstia do sacrifício do amor, a síntese do trigo, o símbolo da unidade divina e humana, o pão da união social e da comunhão universal. Em frente ao altar, um velho estava em pé, segurando numa das mãos um pão branco e leve, como o da alfaia, e na outra um cálice. Uma música celeste se fez
ouvir e da fronte de todas as falanges elevaram-se nuvens de incenso. Muitos homens, vestidos com hábitos esplêndidos, trouxeram um quadro que cobriram com um pano branco. Um desses homens usava a roupa dos soberanos pontífices da lei cristã, um outro, a do chefe dos iman, um terceiro estava vestido como os grandes sacerdotes da lei judaica, um quarto portava os ornamentos do grande Lama e todos os quatro agiam e oravam combinados e pareciam amar-se como irmãos. Era o dia em que Cristo saiu outra vez do túmulo e já mais de duas mil vezes o mundo havia celebrado o aniversário, mas nenhum fora tão esplêndido como aquele. A música cessou; o silêncio se fez na multidão e todos os olhos se voltaram em direção ao Ocidente.
Então, viu-se aparecer um outro velho cujos cabelos e a barba cobriam-lhe o peito e os ombros; ele jogou seu bastão de viagem, endireitou-se com um grande suspiro e se deixou vestir com uma túnica branca, levantando em direção ao céu os olhos cheios de lágrimas. Ele olhou a hóstia e exclamou chorando: É ele! Olhou o sacerdote que, escolhido pelo sufrágio de todos, fazia nesse dia o ofício de pontífice universal, e repetiu: É ele! Olhou a multidão silenciosa e recolhida, e estendeu os braços em ação de graças, dizendo ainda: É ele! é ele vivo em tudo, é ele só em todo lugar e sempre! Então o sacerdote do povo desceu do altar, uma cadeira foi colocada diante da Mesa santa sobre a qual depositou-se a hóstia e o cálice, e o pastor disse, dirigindo-se ao velho:


Repousa, Aaswerus! Em seguida os pontífices de todos os cultos passados vieram, após o sacrificador da associação universal, dar o beijo de paz na barba branca do maldito reconciliado. Depois, todos, em pé ao redor da mesa, comungaram com ele. Aaswerus então sentiu-se viver uma vida nova, pareceu-lhe que
era o próprio Cristo e que, dividindo ele mesmo os pães que se multiplicariam sobre a Mesa santa, ele os distribuiria à multidão. Assim acabou o sonho do Judeu Errante; um barulho de armas e de gritos de angústia o acordou: eram os salteadores das nações que dividiam entre si a cidade santa. Ele saiu do palácio dos papas que oscilava sobre os túmulos entreabertos e voltou a caminhar para continuar a volta ao mundo que, talvez brevemente, ele não mais recomeçará. Não o lastimeis, vós todos que o encontrareis curvado, ofegante e poeirento; ele é mais feliz que todos os grandes políticos de nosso século e que os últimos reis desse mundo; ele sabe para onde vai.