A visão de Aaswerus
ELIPHAS LÉVI
Também, quando Aaswerus reencontrou depois os judeus perseguidos pelos
cristãos, ele os incitava a morrer ao invés de abjurar as crenças
de seus pais, e ele próprio, com seu bastão secular na mão,
a barba e os cabelos eriçados ao vento, os conduzia de exílio
em exílio... E no entanto, melhor que ninguém, ele
compreendia que Jesus é o filho único de Deus! Mais tarde ele
viu caírem as cruzes e se levantarem os cadafalsos, ouviu falar da
santa guilhotina e não ficou surpreendido; os inquisidores não
haviam ainda inaugurado as festas da morte em nome da Cruz santa? O culto
era o mesmo e só o altar estava mudado.
Falava-se então também de humanidade, de progresso; era justo:
o machado é mais diligente e menos cruel que o pelourinho sangrento
do Gólgota. Ele viu em
seguida recomeçarem as solenidades do bezerro de ouro; há muito
tempo sabia como terminavam tais orgias, e quando lhe perguntam: Que faz a
esta hora o filho do carpinteiro? - ele responde, meneando a cabeça:
Um ataúde! Porque ele sente que o tempo está próximo
e seu andar parece tornar-se mais lento; olha por sua vez o século
que passa e os acontecimentos que se precipitam.
No dia em que o sucessor de Pedro caiu por se ter apoiado num cetro, e saiu
da cidade eterna por sua vez amaldiçoado e exilado, Aaswerus entrou
no Vaticano deserto, e, com o cotovelo apoiado na cadeira vazia dos papas,
deixou a cabeça cair sobre sua mão, parecendo cochilar por um
instante.
Reviu em sonho o campo de Jerusalém revestido de sua fertilidade primeira:
a vinha com gigantescas uvas da Terra prometida, as oliveiras carregadas de
frutos cobriam as colinas e os vales estavam cheios de loendros e de roseiras
em flor.
A montanha de Mória estava coberta de um povo inumerável, formado
por deputados de todos os povos da terra, e no cimo do monte sagrado elevava-se
um imenso altar. No meio do altar, subia até as nuvens um gigantesco
candelabro de ouro, encimado por um sol radioso, e no meio desse sol aparecia,
branca e transparente, a divina hóstia do sacrifício do amor,
a síntese do trigo, o símbolo da unidade divina e humana, o
pão da união social e da comunhão universal. Em frente
ao altar, um velho estava em pé, segurando numa das mãos um
pão branco e leve, como o da alfaia, e na outra um cálice. Uma
música celeste se fez
ouvir e da fronte de todas as falanges elevaram-se nuvens de incenso. Muitos
homens, vestidos com hábitos esplêndidos, trouxeram um quadro
que cobriram com um pano branco. Um desses homens usava a roupa dos soberanos
pontífices da lei cristã, um outro, a do chefe dos iman, um
terceiro estava vestido como os grandes sacerdotes da lei judaica, um quarto
portava os ornamentos do grande Lama e todos os quatro agiam e oravam combinados
e pareciam amar-se como irmãos. Era o dia em que Cristo saiu outra
vez do túmulo e já mais de duas mil vezes o mundo havia celebrado
o aniversário, mas nenhum fora tão esplêndido como aquele.
A música cessou; o silêncio se fez na multidão e todos
os olhos se voltaram em direção ao Ocidente.
Então, viu-se aparecer um outro velho cujos cabelos e a barba cobriam-lhe
o peito e os ombros; ele jogou seu bastão de viagem, endireitou-se
com um grande suspiro e se deixou vestir com uma túnica branca, levantando
em direção ao céu os olhos cheios de lágrimas.
Ele olhou a hóstia e exclamou chorando: É ele! Olhou o sacerdote
que, escolhido pelo sufrágio de todos, fazia nesse dia o ofício
de pontífice universal, e repetiu: É ele! Olhou a multidão
silenciosa e recolhida, e estendeu os braços em ação
de graças, dizendo ainda: É ele! é ele vivo em tudo,
é ele só em todo lugar e sempre! Então o sacerdote do
povo desceu do altar, uma cadeira foi colocada diante da Mesa santa sobre
a qual depositou-se a hóstia e o cálice, e o pastor disse, dirigindo-se
ao velho:
Repousa, Aaswerus! Em seguida os pontífices de todos os cultos passados
vieram, após o sacrificador da associação universal,
dar o beijo de paz na barba branca do maldito reconciliado. Depois, todos,
em pé ao redor da mesa, comungaram com ele. Aaswerus então sentiu-se
viver uma vida nova, pareceu-lhe que
era o próprio Cristo e que, dividindo ele mesmo os pães que
se multiplicariam sobre a Mesa santa, ele os distribuiria à multidão.
Assim acabou o sonho do Judeu Errante; um barulho de armas e de gritos de
angústia o acordou: eram os salteadores das nações que
dividiam entre si a cidade santa. Ele saiu do palácio dos papas que
oscilava sobre os túmulos entreabertos e voltou a caminhar para continuar
a volta ao mundo que, talvez brevemente, ele não mais recomeçará.
Não o lastimeis, vós todos que o encontrareis curvado, ofegante
e poeirento; ele é mais feliz que todos os grandes políticos
de nosso século e que os últimos reis desse mundo; ele sabe
para onde vai.