O RECIPIENDÁRIO
DISCIPLINA - ENSOPH - KETHER
Dogma e Ritual da Alta Magia
POR
ELIPHAS LÉVI
Segunda parte


Aquele que aspira a ser um sábio e a saber o grande enigma da natureza deve ser o herdeiro e o espoliador da esfinge; deve ter a sua cabeça humana para possuir a palavra, as asas de águia para conquistar as alturas, os flancos de touro para cavar as profundezas, e as garras de leão para preparar lugar para si à direita e à esquerda, adiante e atrás.
Vós, pois, que quereis ser iniciado, sois tão sábio como Fausto? Sois impassível como Jô? Não, não é verdade? Mas vós o podeis ser, se o quiserdes. Vencestes os turbilhões dos pensamentos vagos? Sois sem indecisões e sem caprichos? Não aceitais o prazer só quando o quereis, e não o quereis só quando o deveis? Não, não é verdade? Não é sempre assim? Mas isso pode ser, se o quiserdes.
A esfinge não tem somente uma cabeça de homem, ela tem também seios de mulher; sabeis vós resistir às atrações da mulher? Não, não é verdade? E dais risada ao responder, e vos vangloriais de vossa fraqueza moral para glorificar em vós a força vital e material. Seja, permiti-vos dar essa homenagem ao asno de Sterno e de Apuleio; que o asno tenha seu mérito, não discuto, era consagrado a Príapo como o bode ao deus de Mendes. Mas deixemo-lo pelo que é, e saibamos somente se é vosso senhor ou se podeis ser o dele. Pode verdadeiramente possuir a voluptuosidade do amor, somente quem venceu o amor da voluptuosidade. Poder usar e abster-se, é poder duas vezes. A mulher vos prende pelos vossos desejos: sede senhor dos vossos desejos e prendereis a mulher. A maior injúria que se possa fazer a um homem é chamá-lo de covarde. Ora, que é um covarde? Um covarde é aquele que negligencia o cuidado da sua dignidade moral, para obedecer cegamente aos instintos da natureza.


Em presença do perigo é, com efeito, natural ter medo e procurar fugir: por que, pois, é uma vergonha? Porque a honra nos dá a lei de preferir nosso dever às nossas atrações e aos nossos temores. Que é, neste ponto de vista, a honra? É o pressentimento universal da imortalidade e a avaliação dos meios que podem levar a ela. A última vitória que o homem pode obter sobre a morte, é triunfar do gosto da vida, não pelo desespero, mas por uma esperança maior, que está contida na fé, por tudo o que é belo, honesto e do consentimento de todos.


Aprender a vencer-se é, pois, aprender a viver, e as austeridades do estoicismo não eram uma vã ostentação de liberdade!
Ceder às forças da natureza é seguir a corrente da vida coletiva, é ser escravo das causas segundas. Resistir à natureza e domina-la é fazer para si uma vida pessoal e imperecível, é libertar-se das vicissitudes da vida e da morte.
Todo homem que está pronto a morrer ao invés de abjurar a verdade e a justiça, é verdadeiramente vivente, porque é imortal na sua alma.
Todas as iniciações antigas tinham por fim achar ou formar tais homens. Pitágoras exercitava seus discípulos pelo silêncio e as abstinências de todo gênero; no Egito, os recipiendários eram experimentados pelos quatro elementos; na Índia, é sabido a que prodigiosas austeridades os faquires e brâmanes se condenavam, para chegar ao reino da vontade livre e da independência divina.


Todas as macerações do asceticismo são tiradas das iniciações aos antigos mistérios e elas cessaram, porque os iniciáveis, não achando mais iniciadores, e os diretores de consciência tendo-se tornado, com o tempo, tão ignorantes como o vulgo, os cegos cansaram-se de seguir os cegos, e ninguém quis passar provas que só levavam à dúvida e ao desespero: o caminho da luz estava perdido. Para fazer alguma coisa é preciso saber o que se vai fazer, ou, ao menos, ter fé em alguém que o sabe.
Mas como arriscarei minha vida à aventura e seguirei ao acaso aquele que nem mesmo sabe aonde vai? No caminho das altas ciências, não convém empenhar-se temerariamente, mas, uma vez em caminho, é preciso chegar ou perecer. Duvidar é ficar louco; parar é cair; voltar para trás é precipitar-se num abismo.
Vós, pois, que começastes a leitura deste livro, se vós o compreendeis e quereis ler até o fim, ele fará de vós um monarca ou um insensato. Quanto a vós, fazei deste volume o que quiserdes, não podereis nem despreza-lo nem esquece-lo. Se sois puro, este livro será para vós uma luz; se sois forte, ele será vossa arma; se sois santo, será vossa religião; se sois sábio, ele regulará a vossa sabedoria. Mas, se sois malvado, este livro será para vós como que uma tocha infernal; ele despedaçará vosso peito, rasgando-o como um punhal; ficará na vossa memória como um remorso; ele encherá vossa imaginação de quimeras, e vos levará pela loucura ao desespero. Procurareis rir dele, e só podereis ranger os dentes, porque este livro é para vós como a lima da fábula que uma serpente tentou morder e que lhe quebrou todos os dentes.


Comecemos, agora, a série das iniciações.
Disse que a revelação é o verbo. Com efeito, o verbo ou a palavra é o véu do ente e o sinal característico da vida. Toda forma é véu de um verbo, porque a idéia, mãe do verbo, é a única razão de ser das formas. Toda figura é um caráter, todo caráter pertence e volta a um verbo. É por isso que os antigos sábios, cujo chefe é Trismegisto, formularam o seu dogma nestes termos:
"O que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está em cima". Em outros termos, a forma é proporcional à idéia, a sombra é a medida do corpo calculada com sua relação ao raio. A bainha é tão profunda como o comprimento da espada, a negação é proporcional à afirmação contrária, a produção é igual à destruição, no movimento que conserva a vida, e não há um ponto no espaço infinito que não seja centro de um círculo cuja circunferência se engrandece e estende indefinidamente no espaço.
Toda individualidade é, pois, indefinidamente perfectível, porque o moral é análogo à ordem física, e porque não é possível conceber um ponto que não se possa dilatar, engrandecer e lançar raios num círculo filosoficamente infinito.
O que se pode dizer da alma inteira, deve-se dizer de cada faculdade da alma.


A inteligência e a vontade do homem são instrumentos de um valor e de uma força incalculáveis. Mas a inteligência e a vontade têm por auxiliar e por instrumento uma faculdade muito pouco conhecida e cuja onipotência pertence exclusivamente ao domínio da magia: quero falar da imaginação, que os cabalistas chamam o diáfano ou o translúcido. Efetivamente, a imaginação é como que o olho da alma, e é nela que as formas se desenham e se conservam, é por ela que vemos os reflexos do mundo invisível, ela é o espelho das visões e o aparelho da vida mágica: é por ela que curamos doenças, que influímos sobre as estações, que afastamos a morte dos vivos e que ressuscitamos os mortos, porque é ela que exalta a vontade e que lhe dá domínio sobre o agente universal. A imaginação determina a forma da criança no ventre materno e fixa o destino dos homens; ela dá asas ao contágio e dirige as armas na guerra. Estais em perigo numa batalha? Crede-vos invulnerável como Aquiles e o sereis, diz Paracelso. O medo atrai os pelouros, e a coragem faz retroceder as balas. É sabido que os amputados muitas vezes se queixam dos membros que não têm. Paracelso operava no sangue vivo, medicamentando o produto de uma sangria; curava as dores de cabeça à distância, operando em cabelos cortados; ele tinha excedido muito, pela ciência da unidade imaginária e da solidariedade do todo e das partes, todas as teorias ou antes todas as experiências dos nossos mais célebres magnetizadores. Por isso, as suas curas eram milagrosas, e ele mereceu que ajuntassem ao seu nome de Filipe Teofrasto Bombast o de Aureolo Paracelso, acrescentando-lhe ainda o epíteto de divino! A imaginação é o instrumento da adaptação do verbo.
A imaginação aplicada à razão é o gênio.
A razão é una, como o gênio é uno na multiplicidade das suas obras.
Há um princípio, há uma verdade, há uma razão, há uma filosofia absoluta e universal.
O que está na unidade considerada como princípio, volta à unidade considerada como fim.
Um está em um, isto é, tudo está em tudo.
A unidade é o princípio dos números, é também o princípio do movimento e, por conseguinte, da vida.
Todo o corpo humano se resume na unidade de um só órgão, que é o cérebro. Todas as religiões se resumem na unidade de um só dogma, que é a afirmação do ser e da sua igualdade a si mesmo, o que constitui o seu valor matemático.
Não há mais do que um dogma em magia, e ei-lo: o visível é a manifestação do invisível, ou, em outros termos, o verbo perfeito está nas coisas apreciáveis e visíveis, em proporção exata com as coisas inapreciáveis aos nossos sentidos e invisíveis aos nossos olhos. O Mago eleva uma das mãos para o céu e abaixa a outra para a terra, e diz: Lá em cima a imensidade! Lá em baixo a imensidade ainda; a imensidade é igual à imensidade é igual à imensidade. Isto é verídico nas coisas visíveis, como nas coisas invisíveis.


A primeira letra do alfabeto da língua sagrada, Aleph, a representa um homem que eleva uma das mãos ao céu, e abaixa a outra para a terra.
É a expressão do princípio ativo de todas as coisas, é a criação no céu, corresponde à onipotência do verbo aqui. Esta letra é, por si só, um pantáculo, isto é, um caráter que exprime a ciência universal. A letra a pode suprir aos signos sagrados do macrocosmo e do microcosmo, ela explica o duplo triângulo maçônico e a estrela brilhante de cinco pontas; porque o verbo é um e a revelação é uma. Deus, ando ao homem a razão, deu-lhe a palavra; e a revelação múltipla nas suas formas, mas una no seu princípio, está inteira no verbo universal, intérprete da razão absoluta. É o que quer dizer a palavra tão mal compreendida do catolicismo, que, na língua hierárquica moderna, significa infalibilidade.
O universal em razão é o absoluto, e o absoluto é o infalível.
Se a razão absoluta leva a sociedade inteira a crer irresistivelmente na palavra de uma criança, esta criança será infalível, da parte de Deus e da parte da humanidade inteira. A fé não é outra coisa senão a confiança razoável nesta unidade do verbo. Crer é anuir ao que não se sabe ainda, mas que a razão nos certifica adiantadamente de saber ou ao menos reconhecer um dia.

São, pois, absurdos os pretensos filósofos que dizem: "Não creio no que não sei".
Pobres homens! Se soubésseis, haveria necessidade de crerdes? Mas posso eu crer ao acaso e sem razão? - Não certamente! A crença cega e aventurada é a superstição e a loucura. É preciso crer nas coisas cuja existência a razão nos força a admitir conforme o testemunho dos efeitos conhecidos e apreciados pela ciência.
A ciência! Grande vocábulo e grande problema! Que é a ciência?...
Responderemos a esta pergunta no segundo capítulo deste livro.