Esoterismo Sacerdotal
DOGMA DA ALTA MAGIA
Eliphas Levy
Segunda parte


O livro secreto da antiga iniciação não era ignorado por Homero, que traça o seu plano e as principais figuras no século de Aquiles, com minuciosa exatidão. Mas as graciosas ficções de Homero parecem fazer esquecer logo as simples e abstratas verdades da revelação primitiva. O homem prende-se à forma e deixa em esquecimento a idéia; os sinais, multiplicando-se, perdem o seu poder; a magia também, nesta época, se corrompe e vai descer, com os feiticeiros da Tessália, aos mais profanos encantamentos. O crime de Édipo trouxe seus frutos de morte, e a ciência do bem e do mal erige o mal em divindade sacrílega. Os homens, fatigados da luz, se refugiam na sombra da substância corpórea: o sonho do vácuo que Deus enche, logo lhes parece maior que o próprio Deus, e o inferno foi criado. Quando, no curso desta obra, nós nos servimos das palavras consagradas Deus, Céu, Inferno, saiba-se bem, uma vez por todas, que nós nos afastamos tanto do sentido dado a essas palavras pelos profanos, como a iniciação está separada do pensamento vulgar. Deus, para nós, é o Azoth dos sábios, o princípio eficiente e final da grande obra. Explicaremos mais tarde o que estes termos têm de obscuros. Voltemos à fábula de Édipo. O crime do rei de Tebas não é de ter compreendido a esfinge, é de ter destruído o flagelo de Tebas, sem ser assaz puro para completar a expiação em nome do seu povo; por isso, logo a peste vinga a morte da esfinge, e o rei de Tebas, forçado a abdicar, sacrifica-se aos manes terríveis do monstro, que está mais vivo e mais devorador do que nunca, agora que passou do domínio da forma ao da idéia. Édipo viu o que é o homem, e arranca os seus olhos para não ver o que é Deus. Divulgou a metade do grande arcano mágico, e para salvar seu povo, é preciso que leve consigo ao exílio e ao túmulo a outra metade do terrível segredo.


Depois da fábula colossal de Édipo, encontramos o gracioso poema de Psiquê, de que Apuleio certamente não é o inventor. O grande arcano mágico reaparece, aqui, sob a figura da união misteriosa entre um deus e uma fraca mortal abandonada, sozinha e nua, num rochedo. Psiquê deve ignorar o segredo da sua beleza ideal, e se olhar para o seu esposo, ela o perderá. Apuleio comenta e interpreta aqui as alegorias de Moisés; mas os Elohim de Israel e os deuses de Apuleio não saíram igualmente dos santuários de Mênfis e de Tebas? Psiquê é a irmã de Eva, ou antes, é Eva espiritualizada. Todas as duas querem saber, e perdem a inocência para ganhar a honra da prova. Ambas merecem descer aos infernos, uma para levar a antiga caixinha de Pandora, a outra para procurar esmagar a cabeça da antiga serpente, que é o símbolo do tempo e do mal. Ambas cometem o crime que deve ser expiado pelo Prometeu dos tempos antigos e o Lúcifer da lenda cristã, um libertado, outro submetido por Hércules e pelo Salvador. O grande segredo mágico é, pois, a lâmpada e o punhal de Psiquê, é o pomo de Eva, é o fogo sagrado roubado por Prometeu, é o cetro ardente de Lúcifer, mas é também a cruz santa do Redentor. Sabê-lo bastante para abusar dele ou divulgá-lo, é merecer todos os suplícios; sabê-lo como se deve saber para servir-se dele e ocultá-lo, é ser senhor do absoluto.

Tudo está contido numa palavra e numa palavra de quatro letras: é o Tetragrama dos Hebreus, e o Azot dos alquimistas, é o Thot dos Boêmios e o Tarô do Cabalistas. Esta palavra expressa de tantos modos, quer dizer Deus para os profanos, significa o homem para os filósofos, e dá aos adeptos a última palavra às ciências humanas e a chave do poder divino; mas só sabe servir-se dela aquele que compreende a necessidade de a não revelar nunca. Se Édipo, em lugar de fazer morrer a esfinge, a tivesse dominado e atrelado ao seu carro para entrar em Tebas, teria sido o rei sem incesto, sem calamidade e sem exílio. Se Psique, à força de submissão e carícias, tivesse induzido o Amor a revelar a si próprio, ela nunca o teria perdido. O Amor é uma das imagens mitológicas do grande segredo e do grande agente, porque exprime, ao mesmo tempo, uma ação e uma paixão, um vácuo e uma plenitude, uma flecha e uma e uma ferida. Os iniciados devem compreender-me, e, por causa dos profanos, não devo dizer muito. Depois do maravilhoso asno de ouro de Apuleio, não achamos epopéias mágicas. A ciência, vencida em Alexandria pelo fanatismo dos assassinos de Hipatia, se faz cristã, ou antes, se oculta sob véus cristãos com Amônios, Sinésio e o pseudo-autor dos livros de Diniz, o Areopagita. Era preciso, naquele tempo, fazer perdoar os seus milagres pelas aparências da superstição, e a sua ciência por uma linguagem ininteligível. Ressuscitaram a escrita hieroglífica e inventaram os pantáculos e caracteres que resumem uma doutrina inteira num sinal, uma série inteira de tendências e revelações numa palavra. Qual era o fim dos aspirantes à ciência? Procuravam o segredo da grande obra, a pedra filosofal, o movimento perpétuo, a quadratura do círculo, ou a medicina universal, fórmulas que, muitas vezes, os salvava da perseguição e do ódio, fazendo-os tachar de loucura, e todas as quais exprimiam uma das faces do grande segredo mágico, como demonstraremos mais tarde. Esta falta de epopéias dura até o nosso romance da Rosa; mas o símbolo da rosa, que exprime também o sentido misterioso e mágico do poema de Dante, é tirado da alta Cabala, e é tempo de entrarmos nesta fonte imensa e oculta da filosofia universal.

A Bíblia, com todas as alegorias que contém, só exprime de um modo incompleto e obscuro a ciência religiosa dos Hebreus. O livro de que falamos e cujos caracteres hieráticos explicaremos, este livro que Guilherme Postello chama o Gênese de Henoque, existia certamente antes de Moisés e dos profetas, cujo dogma, fundamentalmente idêntico aos dos antigos Egípcios, tinha também seu esoterismo e seus véus. Quando Moisés falava ao povo, diz alegoricamente o livro sagrado, punha um véu na sua cabeça, e tirava este véu para falar a Deus: tal é a causa das pretensas absurdidades da Bíblia, que tanto exercitaram a verve satírica de Voltaire. Os livros eram escritos para lembrar a tradição, e escreviam-nos em símbolos ininteligíveis para os profanos. Aliás, o Pentateuco e as poesias dos profetas eram somente livros elementares, quer de dogma, quer de moral, quer de liturgia: a verdadeira filosofia secreta e tradicional só foi escrita mais tarde, debaixo de véus ainda menos transparentes. É assim que nasceu uma segunda Bíblia desconhecida, ou antes não entendida pelos cristãos; uma compilação, dizem eles,de numerosas absurdidades (e aqui os crentes, confundidos numa idêntica ignorância, falam como os incrédulos): um monumento, dizemos nós, que reúne tudo o que o gênio filosófico e o gênio religioso jamais fizeram o imaginaram de sublime; tesouro rodeado de espinhos, diamante escondido numa pedra bruta e obscura; os nossos leitores já terão adivinhado que queremos falar do Talmude. Estranho destino o dos judeus! Os bodes emissários, os mártires e os salvadores do mundo!Família vivaz, raça corajosa e dura, que as perseguições sempre conservaram intacta, por que ainda não realizou sua missão! As nossas tradições apostólicas não dizem que, depois do declínio da fé entre os gentios, a salvação virá da casa de Jacó, e que então o Judeu crucificado, que os cristãos adoraram, porá o império do mundo entre as mãos de Deus seu Pai?

Ficamos cheios de admiração, ao penetrar no santuário da Cabala, à vista de um dogma tão lógico, tão simples e, ao mesmo tempo, tão absoluto. A união necessária das idéias e dos sinais; a consagração das realidades mais fundamentais por caracteres primitivos; a trindade das palavras, das letras e dos números; uma filosofia simples como o alfabeto, profunda e infinita como o Verbo; teoremas mais completos e mais luminosos que os de Pitágoras; uma teologia que se resume contando pelos dedos; um infinito que se pode fazer conter na cova da mão de uma criança; dez algarismos e vinte e duas letras, um triângulo, um quadrado e um círculo: eis todos os elementos da Cabala. São os princípios elementares do Verbo escrito, reflexo deste Verbo falado que criou o mundo! Todas as religiões verdadeiramente dogmáticas saíram da Cabala e voltam a ela; tudo o que há de científico e grandioso nos sonhos religiosos de todos os iluminados, Jacob Boheme, Swedenborg, Saint-Martin, etc., é tirado da Cabala; todas as associações maçônicas lhe devem os seus segredos e seus símbolos. Só a Cabala consagra a aliança da razão universal e do Verbo divino; ela estabelece, pelo contrapeso das duas forças em aparência opostas, a balança eterna do ente; só ela concilia a razão com a fé, o poder com a liberdade, a ciência com o mistério: ela tem a chave do presente, do passado e do futuro!

Para iniciar-se na Cabala, não basta ler e meditar os escritos de Reuchlin, Galatino, Kircher e Pico de Mirandola; é preciso ainda estudar e entender os escritores hebreus da coleção de Pistório, principalmente o Sepher Yetzirah, depois a filosofia de amor, de Leão Hebreu. É preciso também estudar o grande livro de Zohar, ler atentamente, na coleção de 1684, intitulada Kabbala Denudata o trabalho da pneumática cabalística e da revolução das almas; depois entrar ousada e corajosamente nas luminosas trevas do corpo dogmático e alegórico do Talmude. Então se poderá entender Guilherme Postello, e confessar em voz baixa que, pondo de parte os seus sonhos bem prematuros e muito generosos da emancipação da mulher, este célebre e sábio iluminado podia não ser tão louco como o pretendem os que o não leram.

Acabamos de esboçar rapidamente a história da filosofia oculta, indicamos as suas fontes e analisamos, em poucas palavras, os seus principais livros. Este trabalho só se refere à ciência; mas a magia, ou antes o poder mágico, se compõe de duas coisas: uma ciência e uma força. Sem a força, a ciência nada é, ou antes, é um perigo. Dar à ciência só a forma, tal é a lei suprema das iniciações. Por isso, o grande revelador disse: O reino de Deus sofre violência e são os violentos que o arrebatam. A porta da verdade está fechada como o santuário de uma virgem; é preciso ser um homem para entrar. Todos os milagres são prometidos à fé; mas que é a fé, senão ousadia de uma vontade que não hesita nas trevas e caminha para a luz através de todas as provações e vendendo todos os obstáculos? Não repetiremos aqui a história das antigas iniciações; quanto mais eram perigosas e terríveis, tanto mais tinham eficácia; por isso , o mundo tinha, então, homens para governá-lo e instruí-lo. A arte sacerdotal e a arte real consistiam principalmente nas provas de coragem, da discrição e da vontade. Era um noviciado semelhante ao destes padres tão impopulares nos nossos dias, sob o nome de Jesuítas, que ainda governariam o mundo se tivessem ma cabeça verdadeiramente inteligente e sábia. Depois de ter passado a nossa vida na investigação do absoluto em religião, ciência e justiça; depois de ter girado no círculo de Fausto, chegamos ao primeiro dogma e ao primeiro livro da humanidade. Aí paramos, aí achamos o segredo de onipotência humana e progresso indefinido, a chave de todos os simbolismos, o primeiro e o último de todos os dogmas. E entendemos o que querem dizer estas palavras muitas vezes repetidas no Evangelho: o reino de Deus.

Dar um ponto fixo para apoio à atividade humana é resolver o problema de Arquimedes, realizando o emprego da sua famosa alavanca. É o que fizeram os grandes iniciadores que deram abalos no mundo, e só puderam fazê-lo por meio do grande e incomunicável segredo. Aliás, para garantia da sua nova juventude, a fênix simbólica só reapareceria aos olhos do mundo depois de ter consumido solenemente os restos e as provas da sua vida anterior. É assim que Moisés faz morrer no deserto todos os que teriam conhecido o Egito e seus mistérios; é assim que São Paulo, em Éfeso, queima todos os livros que tratavam de ciências ocultas; é assim, enfim, que a revolução francesa, filha do grande Oriente de Johannita e da cinza dos Templários, espolia as igrejas e blasfema contra as alegorias do culto divino. Mas todos os dogmas e todos os renascimentos proscrevem a magia e votam seus mistérios ao fogo ou ao esquecimento. É que todo culto ou toda filosofia que vem ao mundo é um Benjamim da humanidade que só pode viver dando a morte à sua mãe; é que a serpente simbólica gira sempre devorando a sua cauda; é que é preciso, para sua razão de ser, a toda plenitude um vácuo, a toda grandeza um espaço, a toda afirmação uma negação; é a realização eterna da alegoria da fênix. Dois sábios ilustres já me precederam no caminho que sugo, mas, por assim dizer, passaram nele à noite e sem luz. Quero falar de Volney e Dupuis, principalmente de Dupuis, cuja imensa erudição só pode produzir uma obra negativa. Ele viu na origem de todos os cultos a astronomia, tomando assim o Ciclo simbólico pelo dogma, e o calendário pelas lendas. Um único conhecimento lhe faltava, o da verdadeira magia, que contém os segredos da Cabala. Dupuis passou nos antigos santuários como o profeta Ezequiel na planície coberta de ossos, e só compreendeu a morte, por não saber a palavra que reúne a virtude dos quatro ventos do céu, e que pode fazer um povo vivo deste imenso ossuário, exclamando aos antigos símbolos: Levantai-vos, revesti uma nova forma e caminhai.

O que ninguém, pois, pode ou ousou fazer antes de nós, chegou o tempo em que teremos a ousadia de ensaiar. Queremos como Juliano, reconstruir o templo, e nisso não cremos dar um desmentido a uma sabedoria que adoramos, e que o próprio Juliano teria sido signo de adorar, se os doutores odiosos e fanáticos do seu tempo lhe tivessem permitido compreendê-la. O templo, para nós, tem duas colunas, em uma das quais o cristianismo escreveu o seu nome. Não queremos, pois, atacar o cristianismo; longe disso, queremos explicá-lo e realiza-lo. A inteligência e a vontade, exerceram alternativamente o poder no mundo; a religião e a filosofia lutam ainda nos nossos dias e devem acabar por concordar-se. O cristianismo teve, por fim provisório, estabelecer, pela obediência e a fé, uma igualdade sobrenatural ou religiosa entre os homens, e imobilizar a inteligência pela fé, a fim de dar um ponto de apoio à virtude que vinha destruir a aristocracia da ciência, ou antes substituir esta aristocracia, já destruída. A filosofia, pelo contrário, trabalhou para fazer os homens voltarem pela liberdade e a razão à desigualdade natural, e para substituir, fundando o reino da indústria, a habilidade à virtude. Nenhuma dessas duas ações foi completa ou suficiente, nenhuma conduziu os homens à perfeição e à felicidade. O que sonha agora, sem quase ousar espera-lo, é uma aliança entre estas duas forças por muito tempo consideradas como contrárias, e temos razão de desejar esta aliança: porque as duas grandes potências da alma humana não são mais opostas uma à outra do que o sexo do homem é oposto ao da mulher; sem dúvida, elas são diferentes, mas as suas disposições, em aparência contrárias, só vêm da sua aptidão a encontrarem-se e a unirem-se.

- Não se trata nada menos do que de uma solução universal de todos os problemas? Sem dúvida, pois que se trata de explicar a pedra filosofal, o movimento perpétuo, o segredo da grande obra e a medicina universal. Tachar-nos-ão de louco como ao divino Paracelso, ou de charlatão como ao grande e infeliz Agrippa. Se a fogueira de Urbano Grandier está extinta, restam as surdas proscrições do silêncio ou da calúnia. Nós não as desafiamos, mas nos resignamos a elas. Não procuramos por nós mesmos a publicação desta obra e cremos que, se chegou o tempo de produzir-se a palavra, ela se produzirá por si mesma, por nós ou por outros. Ficaremos, pois, calmos e esperaremos. A nossa obra tem duas partes: numa, estabelecemos o dogma cabalístico e mágico na sua totalidade; a outra é consagrada ao culto, isto é, à magia cerimonial. Uma é o que os antigos sábios chamavam a clavícula; a outra, o que as pessoas do campo chamam ainda hoje o engrimanço. O número e o assunto dos capítulos, que se correspondem nas duas partes, nada têm de arbitrário, e se achavam indicados na grande clavícula universal de que damos, pela primeira vez, uma explicação completa e satisfatória. Agora, que esta obra vá aonde quiser e venha a ser o que a Providência quiser. Ela está feita, e a cremos durável, porque é forte como tudo o que é razoável e consciencioso.