Rábano
Mauro e o Significado Místico dos Números
Jean Lauand
1. Introdução
Discípulo de Alcuíno, Rábano Mauro (c.784-856) foi
abade de Fulda. Pelo seu trabalho de educador e escritor, recebeu o epíteto
de Praeceptor Germaniae, o mestre da Germânia. Rábano Mauro
não teve a intenção de ser um autor original, mas a
de ensinar e formar seus monges.
Uma de suas principais obras é o De universo (em 22 livros) que,
como o próprio nome indica, é trabalho amplo e enciclopédico.
O subtítulo é: Sobre a natureza das coisas, as propriedades
das palavras e o significado místico das realidades.
Nessa obra, Rábano Mauro distingue dois sentidos na Sagrada Escritura:
o literal e o figurado. Este divide-se em alegórico (revela verdades
sobrenaturais ocultas para os profanos), tropológico (ou moral, move
a agir bem) e anagógico (conduz ao fim último e revela a razão
de ser da vida).
Rábano Mauro está convencido de que, para decifrar o sentido
figurado, é muito útil conhecer a natureza das coisas e as
etimologias das palavras. Para ajudar seus leitores a alcançar esse
significado místico, presente em tudo, escreveu o De universo, do
qual apresento aqui a tradução do Capítulo III do Livro
XVIII: De numero (PL CXI, 489-495).
2. A alegoria e o pensamento medieval
Em várias línguas há expressões ou frases feitas
para indicar que sobre aquilo que é evidente não se precisa
gastar uma palavra: goes without saying, va sans dire, selbstverständlich,
per se notum etc. Essa observação tão simples (e, também
ela, evidente) explica uma das maiores dificuldades de compreensão
[1] de um autor antigo: o que era evidente para ele e para os leitores de
sua época (e, precisamente por isso, ficou oculto) freqüentemente
não é evidente para nós, que sequer suspeitamos dos
"óbvios ululantes" escondidos no autor antigo.
Nesse sentido, há no Tratado de Rábano Mauro diversas passagens
lacônicas e enigmáticas para o leitor contemporâneo,
que não está nem um pouco preocupado em saber o que significa
o número 153 (se é que tem algum significado...) quando o
Evangelho diz que os apóstolos, na pesca milagrosa após a
ressurreição de Cristo, apanharam justamente 153 peixes. S.
Agostinho, por exemplo, teólogo e pregador genial, de perene atualidade,
tratava do significado dos números em vários sermões,
pois considerava o simbolismo numérico um elemento a mais para a
compreensão da Revelação:
"Estes 153 são 17. 10 por quê? 7 por quê? 10 por
causa da lei, 7 por causa do Espírito. A forma septenária
é por causa da perfeição que se celebra nos dons do
Espírito Santo. Descansará - diz o santo profeta Isaías
- sobre ele, o Espírito Santo (Is 11,23) com seus 7 dons. Já
a lei tem 10 mandamentos (...). Se ao 10 ajuntarmos o 7, temos 17. E este
é o número em que está toda a multidão dos bem-aventurados.
Como se chega, porém, aos 153? Como já vos expliquei outras
vezes, já muitos me tomam a dianteira. Mas não posso deixar
de vos expor cada ano este ponto. Muitos já o esqueceram, alguns
nunca o ouviram. Os que já o ouviram e não o esqueceram tenham
paciência para que os outros, ou reavivem a memória, ou recebam
o ensino. Quando dois são companheiros no mesmo caminho, e um anda
mais depressa e o outro mais devagar, está no poder do mais rápido
não deixar o companheiro para trás (...). Conta 17, começando
por 1 até 17, de modo que faças a soma de todos os números,
e chegarás ao 153. Por que estais à espera que o faça
eu? Fazei vós a conta" [2] .
O cristão de hoje sorri ao ver o autor medieval, munido de calçadeira,
explicar que o número 120 é soma da progressão aritmética:
1+2+3...+14+15, e que isto representa misticamente aquelas passagens dos
Atos dos Apóstolos em que se descreve a vinda do Espírito
Santo (cfr. 2,1) quando estava reunida a assembléia de 120 pessoas
(cfr. 1,15), "todos num mesmo lugar" (a soma simboliza essa reunião).
Precisamente nessas diferenças é que se capta a mentalidade
da época. O homem medieval está seriamente convencido de que
não há palavra ociosa na Sagrada Escritura e que tudo o que
está revelado "é inspirado por Deus, e útil para
ensinar, para repreender, para corrigir e para formar na justiça"
(II Tim 3,16). E o próprio apóstolo Paulo afirma o caráter
alegórico de algumas passagens bíblicas: "Na lei de Moisés
está escrito: 'Não atarás a boca ao boi que debulha'
(Deut 25,4). Mas, acaso Deus se ocupa dos bois? Não é, na
realidade, em atenção a nós que Ele diz isto?"
(I Cor 9,9-10). Ou, em outro momento, ao considerar alegórico (cfr.
Gál 4,24) o fato de que Abraão teve dois filhos: um da escrava
e outro da livre.
O mestre S. Isidoro de Sevilha, pouco anterior a Rábano Mauro, tinha
escrito um capítulo das Etimologias (III,4) dedicado à importância
dos números: "Não se deve desprezar os números.
Pois em muitas passagens da Sagrada Escritura se manifesta o grande mistério
que encerram. Não foi em vão que se escreveu o louvor de Deus
no livro da Sabedoria (11,20): 'Dispusestes tudo com medida, número
e peso'".
Daí que, ao contrário da Teologia contemporânea, Rábano
Mauro dê, por exemplo, extraordinária importância simbólica
aos números indicados por Deus para a construção do
tabernáculo [3] . Também neste ponto ele segue Agostinho:
"Grande é o mistério simbolizado nas ordens dadas para
a instalação do tabernáculo. Muitos mistérios
estão nelas representadas" [4] .
A própria fala de Cristo apresenta alguns simbolismos numéricos
próprios das tradições semitas, como o 7, que indica
plenitude. Naquela pergunta de Pedro (cfr. Mt 18,22), "quantas vezes
devo perdoar a meu irmão? Até 7 vezes?", o 7 é
claramente simbólico; como também o "setenta vezes sete"
da resposta de Cristo. Tomás de Aquino, bem mais próximo de
nossa mentalidade, na Suma Teológica (I,1,10) põe as coisas
no devido lugar [5] : após reconhecer a legitimidade dos sentidos
tropológico e anagógico, diz: "Não se segue daí
nenhuma confusão na Sagrada Escritura, pois todos os sentidos se
apóiam sobre um, o literal, que é o único a proporcionar
argumentos, como diz Agostinho. Por isso, nada se perde da Escritura, pois
não há nada que seja dito em sentido espiritual que não
seja dito em sentido literal em alguma passagem".
Os números, através de alegorias, mostram-nos muitos aspectos
do mistério que devemos venerar.
O número 1
Já o primeiro número, o um, indica a unidade da divindade.
Dele se escreveu no Deuteronômio (6,4): "Ouve, ó Israel!
O Senhor teu Deus, é o único [6] Senhor" [7] . O um expressa
também a unidade da Igreja e da fé. Daí que nos Atos
dos Apóstolos (4,32) se tenha escrito: "Eram um só coração
e uma só alma" [8] . E o número um diz respeito ainda
à unidade da fé e à perfeição de uma
obra. Por isso se diz no livro do Gênesis (6,16) sobre a arca de Noé:
"Farás no cimo [9] da arca uma abertura com a dimensão
de um côvado". E até a unidade dos maus é expressa
pelo um, como se lê em Mateus (22,11): "E viu ali um homem que
não trazia a veste nupcial" [10] .
O número
2
Já o dois diz respeito aos dois testamentos. Daí que em I
Reis (6,23) esteja escrito: "E fez dois querubins que tinham dez côvados
de altura". Dois também são os mandamentos da caridade
[11] : "Estes dois mandamentos resumem toda a lei e os profetas"
(Mt 22,40). O dois expressa ainda as duas dignidades: a régia e a
sacerdotal, figuradas por aqueles dois peixes que acompanhavam os cinco
pães naquela passagem do Evangelho [12] . O dois significa ainda
os dois povos: os judeus e os gentios. Daí que em Zacarias (6, 13)
se diga: "E haverá paz entre eles dois". Também
o dois significa a união da alma e do corpo. Daí que o Senhor
diga no Evangelho (Mt 18,19): "Se dois de vós estiverem reunidos
sobre a terra...". Sobre isso também fala o profeta Amós
(3, 3): "Acaso podem dois [13] andar juntos se não estão
em união?" O dois prefigura também a separação
entre os eleitos e os condenados, como diz o Senhor no Evangelho (Mt 24,
40): "Estarão dois no campo: um será tomado; o outro,
deixado" [14] .
O número
3
O número três é próprio do mistério da
Santíssima Trindade, tal como se diz na Epístola de João
(I Jo 5,7): "Três são os que dão testemunho".
O três também representa o mistério da Paixão,
Sepultamento e Ressurreição do Senhor [15] . Daí que
Oséias (6,2) diga: "Dar-nos-á de novo a vida em dois
dias; ao terceiro dia ressuscitar-nos-á e viveremos". O três
exprime ainda a fé, a esperança e a caridade [16] , figuradas
também por aquelas três cidades do Deuteronômio (cap.
19) nas quais o involuntário homicida encontrava refúgio [17]
. O três significa ainda os três tempos: o primeiro, antes da
lei; o segundo, sob a Antiga Lei, e o terceiro, sob a graça. É
por isso que se lê na parábola evangélica (Lc 13, 7):
"Eis que já são três anos que venho buscar fruto
da figueira e não o encontro". O três representa também
as três formas do agir humano para o bem ou para o mal: pensamentos,
palavras e obras. Como diz o Apóstolo (I Cor 3,12): "Se alguém
edifica sobre este fundamento: com ouro, ou com prata, ou com pedras preciosas;
com madeira, ou com feno, ou com palha" [18] . O três mostra
ainda o tríplice modo de os fiéis professarem sua fé:
como clérigos, monges ou no casamento. Dessa tríplice profissão
na Igreja fala o Senhor por Ezequiel (14,20), dizendo: "Se estes três
homens, Noé, Daniel e Jó, estivessem no meio deles não
poderiam salvar por sua justiça nem seus filhos nem suas filhas,
mas somente a si próprios" [19] .
O número
4
O número quatro é próprio dos quatro Evangelhos, como
diz Ezequiel (1,4): "E no centro havia a semelhança de quatro
animais" [20] . O quatro também significa misticamente as quatro
virtudes dos santos: Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança
[21] ; que, pela liberalidade de Deus, revigoram as almas dos santos. Daí
que o Evangelho (Mc 8,9) diga: "E os que comeram eram cerca de quatro
mil pessoas. Em seguida, Jesus os despediu" [22] . Quatro também
diz respeito às quatro partes do mundo [23] a partir das quais a
Santa Igreja se reunirá. Daí que afirme o profeta (Is 43,5):
"Do Oriente conduzirei a tua descendência e do Ocidente eu te
reunirei. Direi ao setentrião: 'Devolve-os!' e ao meio-dia: 'Não
impeças!'". Do mesmo modo, o quatro pode simbolizar os quatro
elementos [24] dos quais é formado o corpo humano, pois principalmente
deles depende a força e a subsistência do corpo. Com efeito,
no Evangelho está escrito que o paralítico no leito era transportado
por quatro [25] .
O número
5
O cinco traz o significado dos cinco livros da lei de Moisés, dos
quais diz o Apóstolo (I Cor 14,19): "Quero dizer cinco palavras
de sentido"; ou para os cinco sentidos do corpo: visão, audição,
paladar, olfato e tato [26] . Daí que esteja escrito no Evangelho
(Mt 25,1): "O reino dos céus é semelhante a dez virgens,
cinco das quais eram fátuas e cinco prudentes" [27] . E também
(Mt 25,15): "E deu a um cinco talentos". E diz o Senhor à
samaritana (Jo 4,18): "Cinco maridos tiveste".
O número
6
O número seis significa os seis dias nos quais Deus criou as criaturas,
como diz o Êxodo (20, 11): "Em seis dias criou Deus o céu
e a terra". Significa também as etapas do tempo deste mundo,
que comporta seis eras [28] . Daí que Deus, que perfaz [29] todas
as suas obras, tenha vindo a este mundo na sexta era, tenha padecido na
sexta-feira, no sábado tenha repousado no sepulcro, e no domingo
ressuscitado dos mortos.
O número
7
O número sete é um número de múltiplos significados.
Pode significar o sétimo dia, no qual, concluída sua obra,
Deus repousou. Daí que também as almas dos santos, após
as fadigas das boas obras, repousem de todas as suas obras na felicidade
eterna do Céu. Pode significar também a septiforme graça
do Espírito Santo [30] , do qual diz o Apocalipse (5,6): "Tinha
ele sete chifres e sete olhos, sete são os espíritos enviados
por Deus por toda a terra". Também sete são as Igrejas
de que fala o Apocalipse (cfr. cap. 1), simbolizadas por sete candelabros
e por sete estrelas. Nelas se representa a totalidade dos santos [31] ,
como ali mesmo se declara: que os sete candelabros são as sete Igrejas
e, do mesmo modo, as sete estrelas. Também por sete se designa todo
o tempo presente deste mundo, que se desenvolve em ciclos de sete dias [32]
. Também os males se representam pelo sete; sete é o número
da plenitude do pecado, isto é, o sete representa todos os principais
[33] vícios. Daí que o Senhor, no Evangelho (Lc 11,26), diga
do espírito imundo: "Então ele vai e toma consigo outros
sete piores do que ele e entram e estabelecem-se lá e a última
situação do homem é pior do que a anterior". Por
isso também Salomão (Prov 26,25) diz: "Não te
fies nele, pois há sete abominações (isto é,
diabos) na alma dele". Sete é também a plenitude dos
flagelos de Deus, como diz o Levítico (26,24): "Castigar-vos-ei
sete vezes pelos vossos pecados". E, além disso, sete e oito
simbolizam a Antiga Lei e o Evangelho. Por isso diz o Eclesiastes (11,2):
"Faze sete partes e também oito". Do mesmo modo o sete
e o oito representam o repouso definitivo e a ressurreição.
O número
8
O oito representa o dia da ressurreição do Senhor e também
a futura ressurreição de todos os santos [34] . Daí
que nas indicações junto ao título do salmo 6 conste:
"Para o oitavo".
O número
9
O número nove representa misticamente a Paixão do Senhor:
porque o próprio Senhor, na hora nona, tendo dado um forte brado,
expirou. Lê-se também que nove são as categorias dos
anjos: anjos, arcanjos, tronos, dominações, virtudes, principados,
potestades, querubins e serafins. E o nove está presente nas noventa
e nove ovelhas [35] que, na parábola evangélica, são
deixadas no deserto ou nos montes. Nove pode indicar ainda imperfeição
em relação aos mandamentos de Deus, ou a insuficiência
dos bens: como está escrito no Deuteronômio a respeito do leito
de Og - rei de Basan e tipo do diabo - que media nove côvados de comprimento
[36] .
O número
10
O dez é o número do Decálogo. Por isso o Salmista (Sl
32,2) diz: "Entoar-Te-ei hinos na harpa de dez cordas". É
também o número da perfeição das obras e da
plenitude dos santos, o que é simbolizado por aquelas dez cortinas
que, por ordem do Senhor [37] , foram feitas no tabernáculo do testemunho
[38] .
O número
11 [39]
O número onze é figura da transgressão [40] da lei
e também dos pecadores, tal como mostra o salmo 11 (cujo número
de per si já é símbolo) quando diz: "Salvai-me
Senhor, pois desaparecem os homens santos". Daí que também
Deus tenha ordenado [41] que se instalassem no tabernáculo da Aliança
esse mesmo número de cortinas de peles de cabra para representar
os que pecam.
O número
12
O número doze é próprio dos apóstolos, como
se evidencia no Evangelho: "Os nomes dos doze apóstolos são..."
(Mt 10,2) e o próprio Senhor diz a seus discípulos: "Não
vos escolhi eu doze?" (Jo 6,70). O número doze também
representa a totalidade dos santos que, eleitos das quatro partes do mundo
pela fé na Santíssima Trindade, formam uma só Igreja.
Esses eleitos são figurados por aquelas doze pedras preciosas com
as quais, no Apocalipse [42] , se descreve a construção da
cidade do grande Rei. São as doze tribos de Israel, que vêem
a Deus.
O número
13
Já o número treze diz respeito à plenitude da lei [43]
junto com a fé na Santíssima Trindade, como se lê em
Ezequiel (40,11): "E mediu a extensão do pórtico: treze
côvados" [44] .
O número
14
O número quatorze simboliza misticamente as gerações
que antecederam o Senhor, como suficientemente se mostra no início
do Evangelho de Mateus: "De Abraão a David, quatorze gerações".
O número quatorze também diz respeito ao tempo presente e
futuro, tal como se mostra no Levítico (cfr. 12,5), onde se indica
que a mulher que der à luz uma menina será impura por duas
semanas, isto é, o presente e o futuro.
O número
15
O número quinze representa misticamente o repouso e a ressurreição,
a Antiga Lei e o Evangelho, tal como se lê nos Atos dos Apóstolos
[45] , que Paulo passou quinze dias com Pedro [46] .
O número
17
O número dezessete [47] representa misticamente a totalidade dos
profetas [48] , pois os dez mandamentos da lei operam pela septiforme graça
do Espírito Santo.
O número
20
O número vinte diz respeito à perfeição das
obras que se realizam pela caridade, pois o decálogo, multiplicado
pelos dois mandamentos da caridade, totaliza vinte. Daí que se tenha
escrito que a medida da altura dos dois querubins [49] , isto é,
a plenitude da ciência, dá esse número.
O número
22
O número vinte e dois representa misticamente os livros divinos,
correspondentes às letras dos hebreus [50] .
O número
24
O número vinte e quatro representa os vinte e quatro livros do Antigo
Testamento, segundo a tradição dos hebreus. Outros, por este
número, entenderam os patriarcas do Antigo e do Novo testamento:
"E, sentados sobre os tronos, vinte e quatro anciãos" (Apoc
4,4).
O número
25
O número vinte e cinco é um símbolo místico
derivado da multiplicação do cinco (dos 5 sentidos) por si
mesmo evidente em Ezequiel [51] .
O número
28
O número vinte e oito representa misticamente a Antiga Lei e o Evangelho:
esse número de côvados de extensão deveriam ter [52]
as cortinas do tabernáculo.
O número
30
O número trinta é o número dos frutos dos fiéis
casados [53] , como diz o Evangelho: "E produzirão fruto: cem
por um, sessenta por um, trinta por um" (Mt 13,23).
O número
32
O número trinta e dois refere-se misticamente à idade que
Nosso Senhor cumpriu na carne, daí que (como parece a alguns) diga
o Apóstolo (Ef 4,13): "Até que todos tenhamos chegado
à unidade da fé e do conhecimento do Filho de Deus, até
atingirmos a idade de homem feito, na medida da idade da maturidade de Cristo".
O número
40
O quarenta é número que representa misticamente a Antiga Lei
e o Evangelho. Daí que no Evangelho (Mt 4,1) [54] se escreva do Senhor:
"E foi conduzido pelo Espírito ao deserto por quarenta dias".
Representa misticamente também a Ressurreição do Senhor,
pois está escrito em Atos (1,3): "E apareceu-lhes durante quarenta
dias". E, além disso, o número quarenta figura ainda
o tempo deste mundo. Pois quatro são as partes do mundo e quatro
são também os elementos de que está constituída
toda criatura visível; já o dez indica plenitude: tanto a
do bem como a do mal. E dez por quatro dá quarenta. Daí que
o salmista (Sl 94,10) diga: "Durante quarenta anos desgostou-me aquela
geração"; e no dilúvio foi por esse número
de dias e de noites que Deus fez chover sobre a terra. E no livro de Jonas
(3,4) está escrito: "Daqui a quarenta dias Nínive será
destruída", o que não chegou a ocorrer com aquela cidade,
mas ocorrerá com o mundo por ela figurado. Quarenta é o número
da permanência no deserto [55] e o das gerações de Abraão
a Jesus Cristo.
O número
50
O número cinqüenta é Pentecostes [56] , o do advento
do Espírito Santo. Daí que se diga em Atos (2,1): "Chegando
o dia de Pentecostes..." É também o número da
penitência dos pecadores: esse é o número do salmo penitencial
por excelência.
O número
60
Sessenta é o número que representa misticamente todos os perfeitos.
Por isso se diz no Cântico dos Cânticos (3,7): "É
a liteira de Salomão - isto é, a Igreja de Cristo - escoltada
por sessenta guerreiros, sessenta valentes de Israel". Também
sessenta é o fruto dado pelas viúvas e continentes. Daí
que se leia no Evangelho (Mt 13,23): "E prooduzirão fruto: cem
por um, sessenta por um, trinta por um".
O número
70
O número 70 é o que representa misticamente os antigos pais,
figurados pelos setenta mil operários carregadores [57] que Salomão
escolheu para edificar o templo. Pois setenta e oitenta são figura
da Antiga Lei e do Evangelho, conforme diz o salmo (Sl 89,10): "Setenta
anos é o total de nossa vida, os mais fortes chegam aos oitenta".
O setenta [58] é também o número dos presbíteros
de Moisés. E setenta e dois são os discípulos enviados
pelo Senhor [59] para pregar o Evangelho. Setenta é o número
das almas que desceram com Jacó ao Egito como se narra no Gênesis
(46,27) [60] .
O número
80
Oitenta são certas almas cristãs que estão unidas ao
Senhor somente pela fé, mas não pelas obras. Delas se escreve
no Cântico dos Cânticos (6,8): "Há sessenta [61]
rainhas - isto é, as almas dos perfeitos - e oitenta concubinas".
O número
100
O cem refere-se ao fruto dos mártires ou das virgens como diz o Evangelho
(Mt 13,23): "E prooduzirão fruto: cem por um..."
O número
120
Cento e vinte é o número que figura a perfeição
da Antiga Lei e do Evangelho. Daí que Moisés, legislador,
tenha vivido cento e vinte anos e que o Espírito Santo, no dia de
Pentecostes, tenha descido sobre as almas de cento e vinte fiéis
que estavam congregados no Cenáculo. Pois lê-se que antes do
dilúvio foi decretado cento e vinte anos de penitência para
os homens [62] . E a altura do templo de Salomão era de cento e vinte
côvados, o que tem o mesmo significado místico que o recebimento
do Espírito Santo por cento e vinte homens da primitiva Igreja em
Jerusalém, em virtude da Paixão, Ressurreição
e Ascensão do Senhor aos céus. E, também, estabelecendo
a seqüência natural de números e somando-os de 1 a 15
[63] , o que equivale a "reuni-los no mesmo lugar", obtém-se
120. Pois o 15 é composto pelo 7 e pelo 8, que costumam significar
a vida futura que é incoada nesta vida pelo Batismo nas almas dos
fiéis, mas que atingirá sua plenitude na ressurreição
e imortalidade no final dos séculos.
O número
153 [64]
O cento e cinqüenta e três é representação
mística do número dos que se salvam, pois é o número
de peixes apanhados pelos Apóstolos após a ressurreição
do Senhor (Jo 21,11).
O número
300
Trezentos representa o número dos perfeitos que, pela cruz de Jesus,
obtêm vitória sobre o mundo, e que foram prefigurados por aqueles
trezentos soldados escolhidos para combater ao lado de Gedeão (Jz,7).
O número
600 [65]
Quinhentos diz respeito às 6 idades do mundo (como alguns consideram)
que precisam passar para que o Salvador se digne visitar o mundo. Em prefiguração
disso, Noé, com a idade de seiscentos anos [66] , por inspiração
divina construiu a arca para a salvação de sua família.
O número
1.000
O número mil é o da plenitude da bem-aventurança. Daí
que se leia no Cântico dos Cânticos (8,11): "Pacífico
[67] tinha uma vinha e confiou-a aos guardas. Cada um recebeu mil moedas
de prata pelos frutos colhidos". A vinha é a Igreja, abundante
em frutos da fé; o Senhor Jesus [68] entregou-a aos guardas, isto
é, aos profetas, aos apóstolos e às dignidades angélicas;
pelos frutos colhidos o homem recebe mil moedas de prata, isto é,
a plenitude da retribuição.
O número
1.200
Mil e duzentos é figura dos doutores apostólicos que, espalhados
pelo mundo, se dedicam a pregar a palavra. Estes recebem remuneração
dupla, o que é representado pelo duzentos: "Mil siclos para
ti, Pacífico, e duzentos para esses que velam pela colheita"
(Cânt 8,12).
O número
7.000
O sete mil representa misticamente o número de todos os eleitos que,
repletos do Espírito Santo, pela semana deste mundo reúnem-se
no Reino dos Céus. Daí que diga I Reis (19,18): "Reservarei
em Israel sete mil homens que não dobraram o joelho diante de Baal".
Já seiscentos mil é o número dos filhos de Israel que
saíram do Egito, como diz o Êxodo [69] .
O número
10.000
Dez mil é o número para o decálogo da Lei, como se
lê no Evangelho (Mt 18,24): "Trouxeram-lhe um que lhe devia dez
mil talentos".
O número
144.000
O cento e quarenta e quatro mil é representação mística
dos eleitos, judeus que no fim do mundo hão de crer em Cristo (como
afirmam alguns). É também, como diz o Apocalipse (cap. 14),
o número dos que não se corromperam: "Cantavam como que
um cântico novo diante do trono. E ninguém podia cantar aquele
cântico, a não ser os cento e quarenta e quatro mil que foram
resgatados da terra, os quais não se contaminaram e em cuja boca
não se achou mentira, pois são irrepreensíveis".
[1] . Cfr. a respeito, p. ex., PIEPER, J., Unaustrinkbares Licht, p. 13
e ss.
[2] . Sermão 250, em Agostinho, Sermões para a Páscoa,
trad. de António Fazenda, Lisboa, Verbo, 1974.
[3] . Cfr. Êx 26.
[4] . Agostinho, Sermão 83,7.
[5] . Veja-se também I,1,9.
[6] . Unus, em latim, pode significar: um, um só, único ou
uno. Assim, traduzimos: Dominus unus, que literalmente seria "Senhor
um", por único Senhor.
[7] . O original, em Migne, diz, provavelmente equivocado, Deus unus e Êxodo,
em vez de Dominus unus e Deuteronômio.
[8] . O livro dos Atos dos Apóstolos, que na Bíblia se segue
aos quatro Evangelhos, foi escrito pelo evangelista S. Lucas e narra o que
fizeram os apóstolos após a Ressurreição de
Cristo e a vinda do Espírito Santo. Descreve também a vida
dos primeiros cristãos. O conhecido versículo citado diz que
a multidão dos fiéis era cor unum et anima una, literalmente,
um coração e uma alma. Cabe aqui a mesma observação
da nota 6.
[9] . Uma das instruções de Deus a Noé sobre o modo
de construir a arca. No original latino até a forma das palavras
deixa transparecer a relação entre fazer "o cimo"
(summitatem) e a perfeição, consumar (consummabis) uma obra.
[10] . Trata-se da parábola em que Cristo compara o Reino dos Céus
a um banquete que um rei oferece a várias pessoas que se recusam
a comparecer. O rei ordena então a seus servos que convidem a todos
que acharem pelos caminhos: "e a sala do banquete ficou repleta de
homens maus e bons". Rábano Mauro pretende explicar o enigmático
singular, "um homem que não trazia veste nupcial" pela
unidade dos maus.
[11] . Ao doutor da lei que lhe pergunta qual é o maior mandamento,
Jesus responde: "<<Amarás o Senhor teu Deus de todo o
teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito>>.
Este é o maior e o primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a
este, é: <<Amarás o teu próximo como a ti mesmo.
Estes dois mandamentos resumem toda a lei e os profetas>>."
[12] . A multiplicação dos pães e dos peixes, cfr.
Jo 6,9; Mt 14,17 ou Mc 6,41. Nesta interpretação dos dois
peixes representando os dois poderes, Rábano Mauro segue Agostinho
(cfr. Sermão 130, 1).
[13] . O caráter elíptico do latim, que prefere dizer "dois"
ao invés de explicitar os "dois homens",,,, dá margem
ao pensamento alegórico: o "dois" passa a representar corpo
e alma.
[14] . Sentença proferida por Cristo ao descrever o fim do mundo.
[15] . A Ressurreição de Cristo deu-se no terceiro dia.
[16] . Fé, esperança e caridade são as três virtudes
teologais, isto é, aquelas que têm por objeto a Deus e são
infundidas no homem por Deus.
[17] . Deus ordenou que se reservassem três cidades como asilo onde
quem tivesse matado o próximo por inadvertência e sem ódio
prévio pudesse refugiar-se e escapar à injusta vingança.
[18] . Rábano Mauro associa respectivamente ouro, prata e pedras
preciosas/madeira, feno e palha, aos bons/maus pensamentos, palavras e obras.
[19] . O texto de Migne equivocadamente diz Ezequiel, cap. 1. Trata-se,
porém, do cap. 14 de Ezequiel, dedicado à responsabilidade
individual. Rábano Mauro está mais interessado em encontrar
nessa passagem uma confirmação (no mínimo, obscura)
da tríplice divisão que estabeleceu para os fiéis:
como clérigos, monges ou no casamento.
[20] . O paralelismo entre as visões dos quatro seres vivos de Ezequiel
e do Apocalipse (cfr. 4,7) é tomado como símbolo dos quatro
Evangelhos.
[21] . Prudência, Justiça, Fortaleza e Temperança são
as virtudes indicadas classicamente como as quatro virtudes cardeais. A
relação com a passagem do Evangelho é, como tantas
outras de Rábano Mauro, muito forçada.
[22] . Esta interpretação de Rábano Mauro é
especialmente forçada.
[23] . Os quatro pontos cardeais.
[24] . Os quatro elementos que compõem tudo que há no mundo
e, particularmente, o corpo humano. No tratado de Isidoro de Sevilha sobre
o homem lê-se: "O corpo vivo é integrado pelos quatro
elementos: a terra está na carne; o ar, no hálito; o liquído,
no sangue; e o fogo, no calor vital" (Etym. XI,16).
[25] . Cfr. Mc 2,3. O latim diz quatro e subentende quatro homens.
[26] . Tal como nossa palavra "sentido", sensus em latim tanto
pode ser aplicada a um discurso dotado de "sentido", como para
os cinco "sentidos" corporais.
[27] . Esta interpretação e as seguintes parecem-nos especialmente
forçadas.
[28] . Isidoro dedica um dos livros de suas Etimologias (o livro V) às
leis e aos tempos. No cap. 39, Sobre a divisão dos tempos, afirma
que há seis eras: 1) A que vai da criação do mundo
até o dilúvio; 2) Do dilúvio até Abraão;
3) De Abraão a Davi; 4) De Davi ao cativeiro na Babilônia;
5) Do cativeiro da Babilônia a Júlo César e 6) Do nascimento
de Cristo a... - "quanto tempo resta nesta era, só Deus sabe".
[29] . Deus, Perfector, escolhe o número 6 que, como se sabe, é,
já desde a Matemática grega, um número perfeito (é
igual à soma de seus divisores: 6 = 1 + 2 + 3).
[30] . Os dons do Espírito Santo são: Sabedoria, Ciência,
Entendimento, Conselho, Fortaleza, Temor de Deus e Piedade (cfr. Isaías
12,2).
[31] . Rábano Mauro às vezes utiliza a palavra "santos"
como sinônimo de "fiéis", como também é
freqüente nas epístolas de S. Paulo.
[32] . "O número sete costuma simbolizar a totalidade, pois
o tempo se desenvolve em ciclos de sete dias, e, completados esses sete
dias, começa de novo etc." (Agostinho, Sermão 83,7).
[33] . Os 7 vícios capitais (soberba, avareza, luxúria, inveja,
gula, acídia e ira), fonte de todo o mal.
[34] . O número oito - ensina Agostinho - simboliza o mundo futuro.
Pois o oito sucede o sete, número que representa o tempo. Após
a mutabilidade desta vida (simbolizada pelo sete) o oitavo dia é
o do juízo. Daí, conclui Agostinho, o título do salmo
6: "Para o oitavo", onde se diz: "Não me repreendas,
Senhor, em tua indignação; em teu furor não me castigues"
(Agostinho, Sermão 260 C,3).
[35] . É a parábola da ovelha perdida em que Jesus quer mostrar
a solicitude de Deus pelo pecador: "Quem de vós, tendo cem ovelhas
e perdendo uma delas, não deixa as noventa e nove no deserto e vai
em busca da que se perdeu até encontrá-la?" (Lc 15,3
e ss.)
[36] . Deuteronômio (3, 11). O cubitum, côvado como unidade
de medida, é a distância do cotovelo (cubitum) até a
ponta do dedo médio (algo em torno de 50 cm.). Por aí se vê
o gigantesco porte de Og; o que nada lhe valeu na batalha contra o povo
eleito, a quem Deus diz: "Não vos assusteis; não tenhais
medo deles (os povos de estatura mais alta). O Senhor, vosso Deus, que marcha
diante de vós, combaterá Ele mesmo em vosso lugar etc."
(Deut 1,29).
[37] . Êxodo 26,1 e ss.: "Farás o tabernáculo com
dez cortinas etc."
[38] . O testemunho é o texto do Decálogo (cfr. Êx 25,16).
[39] . Curiosamente não é mencionada passagem do Gênesis
(37,9), em que José suscita a inveja e o ódio de seus irmãos
ao narrar-lhes o sonho no qual via simbolicamente o pai, a mãe e
os 11 irmãos prostarem-se diante dele: "o sol, a lua e onze
estrelas prostravam-se diante de mim".
[40] . Trans-gredir, etimologicamente, é ultra-passar, dar um passo
além da lei, que é figurada pelo número dez. "A
lei é o número dez; o pecado, o onze. Mal ultrapassas o dez,
cais no onze. Portanto, grande é o mistério simbolizado nas
ordens dadas para a instalação do tabernáculo. Muitos
mistérios estão nelas representadas. Entre outras coisas foi
mandado que se fizessem não dez, mas onze cortinas de pele de cabra,
pois no pêlo de cabra se simboliza a confissão dos pecados"
(Agostinho, Sermão 83,7).
[41] . Cfr. Êx 26,7.
[42] . Cfr. Apoc 21,19 e ss.
[43] . A Antiga Lei (10) + a Trindade (3) = 13.
[44] . Esta interpretação de Rábano Mauro é
especialmente forçada.
[45] . Na verdade, Gál 1,18.
[46] . Como diz o próprio Paulo (cfr. Gál 2, 8), Pedro é
o apóstolo da lei e ele, Paulo, o dos gentios. Em todo caso, a interpretação
de Rábano Mauro é muito forçada.
[47] . Em Migne, este parágrafo é precedido da sentença:
"Sedecim ad numerum sedecim prophetarum".
[48] . Isaías, Jeremias, Baruc, Ezequiel, Daniel, Oséias,
Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuc, Sofonias,
Ageu, Zacarias e Malaquias.
[49] . Mencionados no capítulo referente ao número 2.
[50] . Diz Isidoro: "Os hebreus se valeram das 22 letras (de seu alfabeto)
para indicar os livros do Antigo Testamento" (Etym. I,3,4).
[51] . Provavelmente em Ez 11,1 e ss. Em todo caso, a interpretação
de Rábano Mauro é muito forçada.
[52] . Cfr. Êx 26,2.
[53] . Como se verá adiante, para Rábano Mauro o fruto de
sessenta por um é dado pelos viúvos, e o de cem por um, pelos
mártires e pelas virgens.
[54] . E Mc 1,9.
[55] . O povo escolhido passou 40 anos no deserto.
[56] . Pentecostes em grego significa qüinquagésimo.
[57] . Cfr. I Re 5,15.
[58] . Cfr. Núm 11,16. O texto de Migne equivocadamente diz setenta
e dois.
[59] . Cfr. Lc 10,1.
[60] . O texto de Migne equivocadamente diz 75, em vez de 70, e refere-se
ao livro dos Atos dos Apóstolos, ao invés do Gênesis.
[61] . O texto de Migne equivocadamente diz setenta.
[62] . Rábano Mauro interpreta Gên 6,3 ("e serão
os seus dias cento e vinte anos") como tempo de penitência.
[63] . Passagem ininteligível em Migne que, erradamente, diz doze.
Na verdade, Rábano Mauro propõe que a soma 1 + 2 + 3 ... +
14 + 15 = 120 simbolize (Atos 2,1) a "reunião num mesmo lugar"
(soma) dos 120 fiéis.
[64] . Migne equivocadamente diz 154.
[65] . Migne equivocadamente diz 500 e 5, ao invés de 600 e 6.
[66] . Cfr. Êx 7,6.
[67] . Pacífico, o rei Salomão, figura de Cristo. Segundo
os etimologistas da época, Salomão significa pacífico.
"Pois - diz por exemplo Agostinho -, o nome Salomão significa
em latim Pacífico" (Sermão 10,4).
[68] . Prefigurado em Salomão.
[69] . Cfr. Êx 12,37.