NO UMBRAL DO MISTÉRIO
por
Stanislas de Guaita

Cansado de buscar, em vão, a substância sob o véu das formas que ela assume, e de chocar-se incessantemente contra a muralha das aparências formais, consciente de um enorme além, o menos místico dos pensadores quis, certo dia, sondar os arcanos do mundo extrasensível. Assim, subiu a montanha até o templo do mistério, chegando a seu limiar. Ora, as gerações anteriores a ele assediaram o santuário sem jamais descobrir nele uma única porta. Renunciando a esse sol interior que faz florir, nos vitrais, rosáceas de luz, não conservaram nada além do ofuscamento de sua miragem eterna. Os solicitadores degraus do templo terminam no granito inóspito das muralhas. No frontão, acham-se gravadas duas palavras que provocam o calafrio das coisas desconhecidas: "SCIRE NEFAS".
Um subterrâneo cuja chave está perdida abre-se em algum ponto do vale. Costuma-se dizer que, no decorrer dos séculos, alguns raros audaciosos souberam forçar o segredo do subterrâneo, onde se cortam inúmeras galerias entrelaçadas: lá jaz o inexorável ministro de uma lei incontestável. O antigo guardião dos mistérios, a Esfinge simbólica, ergue-se sobre o umbral e propõe o enigma oculto: "Treme, Filho da Terra, se tuas mãos não são brancas diante do Senhor! Iod-Heve aconselha apenas aos seus. Ele próprio conduz o adepto pela mão até o tabernáculo de sua glória. O temerário profano, porém, afasta-se infalivelmente e encontra a morte nas trevas do bárathro. Que aguardas? Recuar é impossível. Deves escolher teu caminho pelo labirinto. Cabe-te decifrar ou morrer..."
Acautelai-vos, para não verdes nesses símbolos temíveis vãs ameaças. A alta ciência não poderia ser objeto de uma curiosidade frívola. O problema é sagrado, e sobre ele empalideceram muitas frontes privilegiadas. Assim, questionar a Esfinge por capricho é um sacrilégio nunca impune, pois uma tal linguagem traz em si o verbo de sua própria condenação. À vossa pergunta indiscreta, o Desconhecido formula uma resposta inesperada, tão perturbadora, que a obsessão permanece em vós para sempre. O véu do mistério incitava vossa curiosidade? Ai de vós se o levantas! Ele cai imediatamente de vossas mãos trêmulas e o desatino se apodera daquilo que julgaste ver. Não sabe quem deseja distinguir o raio divino do reflexo mil vezes refratado nos densos meios da ilusão terrestre. Esse arcano será elucidado mais tarde. O que quer que ele seja, os fantasmas da alucinação assombram o umbral do mistério, e perguntai ao livro do doutor Brière de Boismont(24) que passo escorregadio separa a alucinação da loucura. Como veremos, trata-se de uma porta que não podemos transpor sem entrarmos em contato com certas forças das quais nos tornamos senhor ou escravo, governante ou joguete. Trata-se de poderes que a Mística Cristã simbolizou com a imagem da serpente que reduz o homem à escravidão, caso este não a submeta primeiro, esmagando sua cabeça com os pés. Os leitores de Zanoni(25) - o belo romance de Bulwer Lytton - talvez já tenham descoberto, no "monstro inominável" que Glyndon evoca de modo tão desastroso, um mito análogo ao da Gênese. A "coisa horrível e velada", o "guardião do umbral", é a alma fluídica da terra, o gênio inconsciente do nascimento e da morte, o agente cego do Eterno Devir: é a dupla corrente de luz mercurial de que logo falaremos. O autor inglês assinala com grande precisão a reversibilidade da luz astral, de que se tornam vítimas aqueles que não a souberam dirigir: Glyndon é livre para fugir, para debater-se contra a obsessão, mas a influência nefasta o acompanha e o fará tropeçar, de fatalidade em fatalidade, até o dia da catástrofe suprema, até o dia em que Zanoni, delirando na embriaguez do sacrifício voluntário, condenar-se-á, salvando-o.
Penetremos o sentido esotérico dessas alegorias, reservando o outro para depois. Uma coisa são os males do coração, que habitualmente sucedem emoções violentas; uma coisa é a morte iminente por congestão cerebral; outra coisa são os perigos de natureza mais estranha, que mencionaremos oportunamente. A prática imprudente do hipnotismo, a fortiori da magia cerimonial, não deixa de inspirar ao experimentador um insuperável desgosto pela vida. O próprio Eliphas(26) - adepto que foi, e de ordem superior - confessa que sentiu, depois do curioso experimento de necromancia que fez em Londres em 1854, uma profunda e melancólica atração pela morte, ainda que sem a tentação ao suicídio. O mesmo não se passa com os ignorantes que se lançam, de corpo e alma, ao magnetismo, campo cujas leis desconhecem; ou ao espiritismo, algo que por si só constitui uma aberração e uma loucura. "Felizes", proclama o célebre Dupotet, "aqueles que morrem de uma morte rápida, de uma morte que a Igreja reprova! Tudo o que há de generoso se mata..."(27)
A história está repleta de exemplos de fatos como esse. Tendo anunciado profeticamente o dia de sua morte, Jérôme Cardan suicidou-se (l576) para não desmentir a Astrologia. Schröppfer de Leipzig, no auge de sua glória como necromante, provocou sua morte com um tiro na cabeça (1774). O espírita Lavater morreu misteriosamente (1801). Quanto ao sarcástico abade de Montfaucon de Villars, que tanto ridicularizou o conde de Gabalis(28), talvez nem se saiba a última palavra de seu trágico fim (1673).
Assim, sobre os entusiastas do maravilhoso e os temerários amadores de revelações de além túmulo, sopra um vento de ruína e de morte. Como seria fácil estender a lista necrológica! Mas pouco importa. Inacessíveis à louca curiosidade, bem como rebeldes às emoções doentias, somente podem afrontar impunemente as operações da ciência aqueles que sabem distinguir um fenômeno de uma prestidigitação e que encouraçam os seus sentidos contra toda e qualquer ilusão. Merece o nome de adepto aquele experimentador que tranqüilamente diz a si mesmo: "Meu coração não há de bater mais depressa: a força invisível que desloca esses móveis com estrépito é uma corrente ódica submissa à minha vontade. A forma humana que se condensa e se avoluma nos vapores desses perfumes nada mais é do que uma coagulação fluídica, reflexo colorido do sonho de meu cérebro, criação azótica do verbo de minha vontade..." Quem fala assim não corre, é claro, nenhum perigo; merece o nome de adepto.
Todavia, bem poucos podem reivindicar esse título. Tais homens, se outrora eram raros, hoje é ainda mais difícil encontrá-los. Pouco inclinados, aliás, a aparições públicas, vivem e morrem ignorados. É para os mais ruidosos que correm os néscios; é aos mais pretenciosos que cabe a fama. Taumaturgos teatrais, doentes excêntricos, é a esses que a celebridade sorri e consagra: era feiticeiro Simão, ao tempo de São Pedro: no século passado, eram Etteilla, o cartomante, e o extático Théot; ontem, eram Home, o médium, e Vintras, o profeta!... Alguns outros - esses verdadeiros sábios - também causam furor, mas graças a certos traços equívocos ou charlatanescos de seu caráter: assim, o conde de Saint-Germain e o divino Cagliostro; Pierre le Clerc, o beneditino fatídico, e o espiritualíssimo quiromante Desbarrolles.
Todas as vezes que um charlatão despontou cingido por uma aura de magicidade, com um cetro grotesco na mão, tudo o que tinha de odioso recaiu sobre verdadeiros adeptos. Na verdade, estes beneficiaram-se do escárnio, enquanto aqueles se beneficiaram do dinheiro. Essa, indubitavelmente, foi a causa maior das calúnias que tanto sofreram - sobretudo na Idade Média - os discípulos de Hermes, de Zoroastro e de Salomão: os magos eram acusados das práticas criminosas, obscenas e blasfematórias que os feiticeiros e feiticeiras realizavam no sabbat. Todos os delitos desses monstros de ambos os sexos - violações, malefícios, envenenamentos, sacrilégios foram imputados a iniciados superiores, sobre cuja vida privada pairavam as mais abomináveis maledicências; e sua doutrina reputada como uma trama de intensa inépcia e de grosseiras injúrias contra o Cristo e a Virgem Maria, tornou-se espantalho das almas piedosas e objeto de escárnio das pessoas de espírito.
Deve-se confessar, aliás, que o simbolismo esotérico dos livros de Hermetismo e de Cabala não deixou de acentuar o desprestígio das altas ciências entre os espíritos superficiais. Para isso contribuía a visão de conjunto: os complicados sinais de planetas, as letras hebraicas dos hierogramas, os caracteres árabes dos grimórios, a alta fantasia aparente dos pantáculos e a bizarria mística das parábolas, coisas extremamente diabólicas no entender dos parvos e ignaros, à primeira vista pueris, no entender dos espíritos lógicos, e, de qualquer forma, excitantes da curiosidade de cada um. Em todos os tempos, os sábios escreveram e falaram a língua dos mitos e das alegorias, mas a obscuridade da forma jamais se fez sentir tão densa e misteriosa como na Idade Média, até o século passado; a intolerância dos inquisidores, a constante ameaça da fogueira e o fanático desatino da população diante da simples menção da palavra feiticeiro justificam suficientemente a precaução dos adeptos. A ciência oculta assemelha-se a esses saborosos frutos protegidos por cascas espessas e duras: agrada-nos retirar laboriosamente a casca; a polpa suculenta do fruto com certeza ressarcirá o nosso sofrimento.
Foi a alquimia vilipendiada muito cruelmente e a transmutação dos metais ridicularizada à vontade? Não se trata, aqui, de fazer apologia ou, mesmo, uma exposição da arte espagírica. Exultamos, porém, ao transcrever, para a confusão dos parvos difamadores, a recente apreciação daquele que é, talvez, o maior químico da França contemporânea, Berthelot, em suas Origens da Alquimia: "Reconheci não somente a filiação das idéias que os (os alquimistas) levaram a almejar a transmutação dos metais, como também a teoria, a filosofia da natureza que lhes servira de fundamento, teoria essa fundada na hipótese da unidade da matéria E, NA REALIDADE, TÃO PLAUSÍVEL QUANTO AS TEORIAS MODERNAS QUE HOJE GOZAM DO MAIOR PRESTÍGIO... Ora, que estranha circunstância! As opiniões a que os sábios tendem a voltar suas atenções, sobre a constituição da matéria, não deixam de ser análogas às profundas visões dos primeiros alquimistas"(29).
Vê-se com isso como nosso ilustre contemporâneo revela as filosofias herméticas. Sua admiração talvez fosse bem maior se, plenamente iniciado no espagirismo esotérico, penetrasse o triplo sentido dessas locuções especiais que seu gênio só pôde adivinhar de modo imperfeito(30).
Mas a alquimia é apenas uma parte mínima da ciência, ensinada nos santuários da antiguidade. Não é revoltante pensar que, ainda hoje, os espíritos lúcidos ainda não aprenderam a distinguir entre as orgias sanguinolentas do sabbat legendário, os monstruosos priapismos da magia negra e os faustos dessa ciência tradicional dos iniciados do Oriente, síntese gigantesca e esplêndida que traduz em imagens grandiosas augustas verdades apenas vislumbradas pelos pensadores de todos os tempos, e luminosas hipóteses, deduzidas por analogia, que hoje a ciência, mais esclarecida e mais racional, tende a confirmar.
Qual Valmiki da Europa cantará as civilizações tirânicas do mundo primitivo, os grandes ciclos intelectuais testemunhados pela Alta Magia? E, para celebrar dignamente esta mãe de todas as filosofias, quem nos dirá a epopéia de sua glória resplandecente sobre as nações antigas, e o recente drama do martírio de seus adeptos, perseguidos pela Igreja e alvejados pelas calúnias do mundo inteiro?... Assim se apresenta para nós a alta Ciência através da humanidade, maldita e desprezada desde a traição dos gnósticos dissidentes; confundida, na imaginação aterrorizada das massas, com a imunda feitiçaria; desacreditada pelos falsos sábios cujos sonhos fúteis ela solapa, desatinando a escolástica em delírio; crivada, enfim, de anátemas de um presunçoso sacerdócio, desprovido de sua iniciação primitiva!... De tal forma se nos apresenta esta ciência ao longo de pelo menos quinze séculos de história, que, mergulhando fundo no passado, hesitamos em reconhecê-la, resplandecente e sagrada nos santuários do mundo antigo e, mais tarde, conferindo um puro esplendor ao cristianismo oculto dos primeiros Papas.
Não é que a antigüidade não tivesse seus feiticeiros - e, sobretudo, feiticeiras. A magia envenenadora conquistou, com as megeras da Tessália e da Cólquida, uma lúgubre celebridade. Visitantes noturnas de tumbas, vestais impuras de lugares desertos, elas misturavam, na seiva narcótico-acre dos meimendros negros e das cicutas, o leite cáustico do titímalo e faziam digerir extratos de acônito licoctone e de mandrágora com inomináveis venenos e humores obscenos. Depois, seus encantamentos saturavam essas misturas com um líquido que se tomava tanto mais mortífero quanto mais dolorosamente o seu ódio, por muito tempo contido, o tivesse elaborado e projetado em uma cólera mais venenosa e tácita. As cozinhas de Canídia (tão horrendas que, à sua vista, a lua se velava, conforme se diz, com uma nuvem sangrenta) tiveram a honra de provocar o desgosto lírico de Horácio, cujos detalhes não é preciso descrever aqui, presentes que estão na memória de todos os aficionados do poeta.
Não menos célebre é a lenda que Homero poetizou, a saber, a dos companheiros de Ulisses, enfeitiçados, que se tornaram porcos submissos à varinha de Circe. Todos beberam da poção e sofreram a metamorfose; isso implica um duplo símbolo: o da derrota a que são predestinadas as naturezas passivas no combate da vida e o da servidão a que nos reduzem as paixões físicas não equilibradas por uma iniciativa sempre desperta (paixão, pois, exprime um estado passivo). Todos beberam, dissemos. Ulisses, porém, recusa molhar os lábios na taça encantada e no tom calmo, próprio da força consciente de si mesma, com o gládio em punho, num gesto de ameaça, ordena à maga que quebra o sortilégio fluídico. O príncipe, aqui, representa o Adepto, o mestre dos fluidos, pois que, hábil em desmontar a armadilha, sabe imprimir às ordens que dá o verbo autoritário de sua vontade. Nele, Circe reconhece o homem mais forte que todos os encantamentos e, com a cabeça baixa, obedece.
Mais sanguinária e mais perversa, Medéia também deve aos poetas o lamentável privilégio de sua ilustração; muitos cantaram sua vida errante. Medéia envenena seus próximos, queima e massacra seus filhos. Refugiada em Atenas, perto do rei Egeu, que a torna mãe, ela dá largas aos seus instintos de depravação feroz e de inveja, confiante na impunidade, até o dia em que seus crimes suscitam a indignação de toda a cidade. Pálida apupada e apedrejada pelo povo, a infeliz vê-se forçada a fugir, com os olhos incendiados por um ódio implacável, apertando no peito o único filho que poupara, qual um fruto duplamente sagrado pelo adultério e pela vingança.
Pouco importa que a história dessas duas irmãs de malefício seja real ou legendária. As individualidades fabulosas são tipos de síntese moral em que se encarna o gênio médio de uma raça ou de uma casta. A estirpe execrável das sagas da Hélade fez desabrochar Medéia em uma suprema expansão de vigor. Sim, as abominações a que se refere o povo com referência a empusas e vampiros foram literalmente realizadas pelas feiticeiras do mundo antigo, criaturas a quem a cólera pública conferiu, aliás, os nomes de estrige e de lâmia.
Entretanto, deixemos esses horrores. Se na Idade Média monstros desse tipo foram confundidos, aqui e acolá, com os verdadeiros iniciados, é que estes - repito - necessariamente suspeitos de heresia, excomungados ipso facto, encurralados como cervos, viam-se obrigados a ocultar nas trevas o mistério de sua dolorosa existência. Desde então, a calúnia vigorou. Mas tal coisa, graças a Deus, não era possível ao tempo em que a teurgia enchia os templos de maravilhas e em que o mago, calmo e benfazejo em seu ilimitado poder, reinava, inviolável como um soberano, venerado como um Deus...
Meditai sobre o livro magistral de Saint-Yves d'Alveydre - A Missão dos Judeus(31). Religioso perscrutador das necrópoles do passado, perquirindo até os mínimos detalhes das raças e das religiões orientais, o eminente ocultista estabeleceu, com base nas provas mais irrefutáveis, uma verdade que Fabre d'Olivet(32) e, posteriormente, Eliphas Levi(33) já haviam entrevisto de forma lapidar, ou seja, o fato de a Gênese ser uma cosmogonia transcendente em que os mais profundos arcanos da santa Cabala são revelados simbólica e hieroglificamente. Mas a Cabala primitiva é filha do Hermetismo egípcio, cujos mitos primordiais foram hauridos pela grande fonte hindu. Saint-Yves não se detém, portanto, em Moisés. Como um navegador, explora o rio dos tempos passados. Desfraldando todas as velas, sobre o curso dos séculos até a origem do ciclo de Ram.
Eis aqui o imenso império arbitral do Carneiro. Seu governo "sinárquico", cuja organização ternária conforma-se às leis da ciência e da harmonia, faz florescer sobre a Terra, durante dois mil anos, a idade de ouro celebrada por Ovídio. Dos três conselhos encarregados da gestão dos negócios, os dois primeiros compõem-se, respectivamente, de hierofantes admitidos na iniciação suprema, e de adeptos laicos. Ram conquistou um terço do mundo apenas com vistas a pacificação. Uma vez atingido esse objetivo, renuncia ao gládio, à coroa e ao estandarte do Carneiro, em uma palavra, renuncia aos poderes executivo e militar, deixando-os nas mãos do primeiro príncipe indiano. Assim, colocando a tiara do Soberano Pontífice universal, arvora a auriflama do Cordeiro - hieróglifo do sacerdócio. Este realizador da mais vasta síntese que a mente humana pôde conceber, este soberano do mais gigantesco império civilizado que César ousou cobiçar em sonho, troca a coroa imperial pelo cetro do mago dos magos e pela divindade terrestre; pode-se dizer, pois, que esses hierofantes exerciam, então, a divindade sobre o microcosmo.
Durante mais de trinta séculos, até o cisma de Irschu, a grande obra de Ram prospera em ordem e em paz. Queremos transcrever, aqui, a enumeração das metrópoles religiosas do Império, de acordo com Saint-Yves.
"Os santuários mais célebres deste antigo culto lâmico foram, entre os indianos, os de Lanka, Ayodhia, Guzah, Methra e Dewarkash; no Irã, os de Vahr, Balk, Bamiyan; no Tibete, os do monte Boutala e de Lassa; na Tatarah, os de Astrakan, Gangawas e Baharein; na Caldéia, os de Ninweh, Han e Houn; na Síria e na Arábia, os de Askala, Balbeck, Mambyce, Salem, Rama, Meca e Sanah; no Egito, os de Tebas, Mênfis e Amon; na Etiópia, os de Rapta e de Meroe; na Trácia, os de Hemus, Balkan e Concayon ou Goy-Hayoun; na Grécia, os de Parnasso e de Delfos; na Etrúria, o de Bolsena; em Osk-tan, antiga Ocitânia, o de Nimes; entre os iberos da Espanha, irmãos dos hebreus e dos iberos do Cáucaso, os de Huesca e Gades; entre os golacks (gauleses), os de Bibracte, Perigueux, Chartres, etc..."
Esse excerto pode dar uma idéia do que foi o império de Ram. Entretanto, não nos propomos a um ensaio de história. Os curiosos que buscarem no livro de Saint-Yves o quadro completo desta "sinarquia arbitral" serão inteiramente informados da sua organização, suas leis e seu destino, desde sua origem até o seu apogeu, de sua decadência até o seu desmembramento: o cisma de Irschu, o positivista, que pretende cindir a idéia de Deus e que, excluindo o princípio ativo e paternal, faz subir seu incenso na direção do princípio produtor passivo; a tirania da Babilônia e de Nínive e a falsa interpretação do dualismo de Zoroastro; as distâncias faraônicas; a China de Fo-hi; a emigração dos hebreus dirigida por Moisés, etc...
Seriam necessários diversos volumes para acompanhar até nossos dias a transmissão do sacerdócio mágico - se o fizéssemos sem interrupção. Sem pretender ao menos esboçar uma visão global, nós nos restringiremos a alguns aspectos característicos.
Na medida em que avançamos na história, vemos deslocar-se a hierarquia universal. Observamos que a unidade primitiva é paulatinamente rompida por uma multiplicidade de cismas, que sobre as ruínas dos grandes colégios de magos - esses centros oficiais, de alta iniciação psíquica e mental, que outrora espargiam luz e calor por sobre o mundo pacificado - surgem adeptos individuais. O ensinamento geral das universidades ocultas é sucedido por escolas particulares de mestres independentes. Constituem exceção, no entanto, alguns santuários célebres, tais como Delfos, Mênfis, Preneste, Elêusis, entre outros. O inevitável desmoronamento destes santuários foi retardado por muito tempo, mas o nível do ensino, materializado, decaiu pouco a pouco.
Dilacerada pela queda do Supremo Pontificado universal, a centralização hierárquica não mais opunha ao transbordamento das paixões a sua barreira tutelar: os sacerdotes tornaram-se homens novamente. A pior das rotinas - a da inteligência - elegeu os templos como domicílio e o espírito passa a ser substituído pela letra. Os pontífices logo perderam até mesmo a chave tradicional dos hieróglifos sagrados, para realizar-se, assim, em todo o mundo conhecido, a profecia de Thoth, o Trismegisto: "Egito, Egito! De tuas religiões restarão apenas vagos relatos em que a posteridade não mais acreditará, palavras gravadas sobre a pedra, relatando tua piedade... O Divino retornará ao céu, a humanidade, abandonada, perecerá por inteiro, e o Egito será deserto e vazio de homens e de deuses!... Ela, que outrora fora a terra santa, amada pelos deuses por sua devoção a eles, será a perversão dos santos, a escola da impiedade, o modelo de todas as violências. E então, cheio de desgosto pela matéria, o homem não mais terá pelo mundo qualquer admiração ou amor(34)"...
Esta será, verdadeiramente, a palavra vibrante do legendário personagem que passa, sob o nome de Hermes Thoth, por tríplice fundador da religião, da filosofia e da ciência egípcias? A crítica moderna inclina-se a contestar a autenticidade do Poimandres (Poemander), de Asclépio e da Koré Kosmu (Minerva mundi), bem como de outros fragmentos herméticos. Com efeito, não há erro quanto à pessoa? Sabe-se que os hierofantes conferiam a si próprios, juntamente com a tiara, o nome de Hermes e o sobrenome de Trismegisto. Posteriormente, tais dogmas, próximos da doutrina cristã, parecem denunciar a autoria de um neoplatônico... Portanto, é preciso ter cuidado! Se o cristianismo é apenas um modo novo da antiga ortodoxia universal, essas semelhanças justificam-se de outra forma que não pelo plágio. Aliás, dificilmente poderíamos ver nos filósofos alexandrinos os autores desta Tábua de Esmeralda, de um conteúdo iniciático magistral. Acreditamos, assim, na antiguidade dos fragmentos de Hermes. [A forma, sem dúvida, pode ter sofrido alteração ou ter sido rejuvenescida pela pena dos tradutores e dos copistas, mas o essencial data de época mais remota e não variou](35). Trata-se, então, de um hierofante da época áurea que, mergulhando nos confins da posteridade, prediz desventuras para a terra dos faraós, como Jeremias para a cidade santa dos Hebreus. Lamentamos ter de mutilar esta grandiosa página. Entretanto, todos poderão lê-la no Asclépios.
Jamais uma predição se realizou de modo tão estranho. Tanto isso é verdade, que, segundo "homens sérios" deste século, os antigos egípcios adoravam a esfinge e outros animais fantásticos cujas figuras podemos encontrar sobre os restos de seus monumentos. Dia virá, sem dúvida, conforme supõe Eliphas, em que algum ocidentalista definirá o objeto de nosso culto: um deus tríplice, composto de um velho, um supliciado e um pombo. Ah! Antes os iconoclastas do que os imbecis! Quebremos todas as imagens simbólicas, se é que se degenerarão em ídolos! De qualquer forma, os pensadores podiam contar com essa materialização do culto: prescrevendo a transmissão dos altos mistérios apenas com bom conhecimento de causa e mediante ensinamento oral, a lei mágica expunha seus adeptos negligentes à possibilidade de perder a inteligência dos mitos sagrados. "É a pura justiça", talvez respondesse, a essa censura, um hierofante dos velhos tempos. "Antes a ciência perecer, um dia, do que cair em mãos indignas!..."
Se é verdade que os santuários ortodoxos desmoronaram após uma agonia de grande duração, algumas sociedades de adeptos laicos perpetuaram-se, ao menos, até os nossos dias. Não vemos aqui, necessariamente, a franco-maçonaria, cuja origem dita adonhiramita e salomônica, não fez senão homens ludibriados conscientes e encantados por assim serem. Trata-se, na realidade, de raros colégios - aquela associação dos Mahatmas, por exemplo, que nos assinala um Louis Dramard em sua brochura intitulada A Ciência e a Doutrina Esotérica(36). Apaixonados por um ascetismo panteísta, talvez errôneo, mas notáveis por sua síntese cósmica e sua ciência espantosa de realização, os Mahatmas sucedem-se, diz ele, desde tempos imemoriais, sobre os altiplanos do Himalaia. É lá que vivem no retiro e mergulhados nos estudos. A Sociedade Teosófica, muito próspera nas Índias Inglesas e em todo o império britânico, estendendo diversas ramificações até Paris, reivindica esses mestres orientais, inspiradores diretos da interessante revista (O Teosofista) que foi fundada em Madras sob os seus auspícios.
Mas retomemos ao mundo antigo. Quando Moisés, sacerdote de Osíris, deixou o Egito levando consigo a multidão bastante miscigenada, que guiou pelo deserto até Canaã, a decadência sacerdotal, que mal se notava em Mizraim, acentuou-se entre os outros povos em que a usurpação cismática dissolvera a autoridade arbitral. A gangrena moral invadiu sobretudo o país de Assur, tiranizado, desde o advento de Ninus (2200 a.C.), por uma seqüência ininterrupta de déspotas conquistadores.
Alguns séculos antes, três homens haviam despontado: entre os indianos, Chrisna (3150); na Pérsia, Zoroastro (3200); na China, Fo-Hi (2950). Cabia-lhes derrubar o sanguinolento nemrodismo e reconstituir parcialmente a antiga teocracia do Carneiro. Não nos interessa aqui descrever a obra de regeneração social levada a efeito no Oriente por esses três benfeitores da humanidade. O leitor sequioso de detalhes poderá recorrer ao livro de Saint-Yves, autor de cuja eminente cronologia fizemos uso e a quem exprimimos nosso reconhecimento. Observamos apenas, do ponto de vista hermético, a aparente reforma que Zoroastro, rei da Pérsia, introduziu na teologia esotérica. Aqueles que se ocupam das religiões orientais conhecem o significado hieroglífico das quatro letras do divino tetragrama. Símbolo não do Ser absoluto que o homem não pode definir, mas, antes, da idéia que tem dele(37), o vocábulo Iod-heve ou Jehovah (U Y U W ), que os cabalistas pronunciam letra por letra: iod, he, vau, he, analisa-se da seguinte maneira:
W Iod: o espírito masculino; princípio criador ativo; Deus em si mesmo; o Bem. Corresponde ao signo do falo, ao cetro do tarô, e à coluna Iakin do templo de Salomão. (Em alquimia é o enxofre ? ).
U He: a substância passiva; princípio produtor feminino; a alma universal plástica; a psíque viva, a potencialidade do Mal; representados pelos cteis, pela taça de libações do tarô, e pela coluna Boaz. (Em alquimia, é o mercúrio £ ).
Y Vaf ou Vau: a união fecunda dos dois princípios; a copulação divina; o eterno devir; representados pelo lingham, pelo caduceu e pela espada do tarô. (Em alquimia, é o Azoto dos Sábios \ ).
U Hé: a fecundidade da natureza no mundo sensível; realizações últimas do pensamento encarnado nas formas; os ouros do tarô. (Em alquimia, é o sal). Esta última letra associa à idéia de Deus a do universo, como finalidade: também o tetragrama Ieve (Iod-heve), aliás tão admirável, é, neste sentido, de uma envergadura menos precisa que o tetragrama } LO} (Agla), cuja quarta letra, exprimindo a síntese absoluta do Ser, afirma vigorosamente a unidade em Deus.
Pois bem, para a compreensão do vulgo, Zoroastro reduziu os termos a dois: o ativo e o passivo, o bem e o mal. Suprimindo, pois, pelo menos aparentemente, o princípio equilibrante, pareceu criar o império do demônio. Os iniciados, sem dúvida, sabiam como proceder. Assim, denominavam Mithras-Mithra o terceiro princípio, que mantém o equilíbrio harmônico entre Ormuzd e Ahriman. Todavia, a partir do momento em que Zoroastro, talvez sem saber, pareceu sancionar a crença no Binário impuro, símbolo de um eterno antagonismo, o reino de Satã foi estabelecido na imaginação do vulgo, e o inferno maniqueísta que aterrorizou toda a Idade Média não tem outra origem senão esta.
Entretanto, longe de querer cindir Deus, reagindo contra Irschu que, no Ser, divinizara a mulher, Zoroastro masculinizou o segundo princípio. Nada de passivo, com efeito pode ser concebido nos atributos do Ser essencialmente ativo e criador. Do mesmo modo, aos olhos dos Padres da Igreja - e pelo mesmo motivo - a segunda pessoa em Deus é o filho, e não a mãe, que a existência do filho supõe como condição. Como se vê, foi inteiramente sem razão que se suspeitou de Zoroastro como preconizador de um dualismo anárquico. Todavia, aos olhos dos profanos, o mal já estava feito, e o ensinamento errôneo do segundo Zoroastro em nada atenuou as suas conseqüências.
Quanto a Fo-Hi, veremos como os seus Trigramas correspondem ao pantáculo macrocósmico de Salomão (a estrela de seis pontas, formada por dois triângulos entrelaçados com base paralela - representativos dos mistérios do equilíbrio universal).
Mas, depois deste longo parênteses, voltemos ao fundador dos Bene-Israel.
Imbuído dos princípios da ortodoxia dórica e confirmado nesta doutrina pelo hierofante árabe Jethro, seu sogro, Moisés modelou o governo de seu povo pelo antigo modelo sinárquico. O conselho de Deus, ou dos sacerdotes de Israel, foi escolhido na tribo, a partir de então sacerdotal, de Levi. E foi da assembléia dos iniciados laicos, ou conselho dos Deuses, que surgiram mais tarde nabis e profetas, para lembrar aos soberanos e pontífices o seu dever esquecido.
Contudo, o epopta-legislador eclipsou, em toda a sua vida, os membros dos conselhos por ele mesmo criados. Notável taumaturgo - até o advento do Cristo, Israel jamais conheceu outro igual - Moisés ilustrou a sua carreira com uma multiplicidade de prodígios, que testemunham seu império absoluto sobre as forças fluídicas e misteriosas. O próprio rei dos magos, Salomão, não realizou obras que se comparem às suas. Porém, é nos livros mosaicos (Gênese, Êxodo, Números, Deuteronômio) que vemos o mais fascinante e imortal de todos os seus milagres. Diante do Pentateuco, tríplice obra-prima de poesia, ciência e sabedoria, os livros de Salomão parecem-nos pálidos. Nada no Antigo Testamento consegue atingir a altura da revelação mosaica, com exceção das páginas de hermetismo épico assinaladas pelo nome de Ezequiel. Monumentos sublimes, sem dúvida, de poesia oriental, o Eclesiastes e o Cântico dos Cânticos(38) - passionais em suma, embora de caráter bastante diverso - parecem menos profundos e de inspiração menos luminosa.
Em Israel, como em outros lugares, o sentido esotérico das alegorias primitivas perdeu-se pouco a pouco, e os grandes sacerdotes deixaram de compreender o próprio simbolismo do culto, quando Jesus Cristo veio vivificar, reanimar o eterno dogma - que dormia sob o véu já vetusto da revelação mosaica -, dando-lhe uma roupagem nova, mais coerente com a alma mística do mundo rejuvenescido. Achamos prudente não falar aqui dessa missão divina, pois onde a fé começa talvez seja conveniente que a ciência pare, a fim de evitar tristes mal-entendidos. Assim, evitemos falar nos Evangelhos; no momento, não penetremos o seu simbolismo, e sempre que, no decorrer deste rápido esboço, nos for necessário falar de crenças religiosas, declaremos de uma vez por todas que, nem um pouco competentes em matéria de fé, temos em mira os homens e os fatos apenas do ponto de vista da inteligência e da razão humanas, e sem jamais pretender dogmatizar.
Decorridos cerca de cem anos desde a morte do Cristo, os seus ensinamentos se foram disseminando gradativamente. O sangue de seus mártires - pela paz futura - já havia, então, batizado as três partes do mundo conhecido, quando os gentis, confundidos pelo progresso da fé cristã, decidiram opor Messias a Messias e investir altar contra altar. A caducidade dos velhos cultos necessitava imperiosamente de uma nova revelação. Simão, o taumaturgo, lutara em vão pela deificação de Helena, sua concubina, e de sua própria pessoa. Surgiu apenas um homem que parecia suficientemente grande para ser colocado ao lado de Jesus de Nazaré... Iniciado nos mistérios de todos os templos do mundo, Apolônio de Tiana semeara prodígios por onde passara, e foi de acordo com as memórias de Damis, o Assírio, um de seus fiéis, que Filostrato (193) escreveu, em grego, o evangelho do mago(39). "Spiritus flat ubi vult..." Sobre o engenhoso repositório de sábias alegorias, narradas artisticamente, no melhor estilo, o espírito vivificador não emitiu seu sopro. A multidão, pois, não se dirigia ao mago Apolônio. E, dois séculos mais tarde (363), vítima de uma tentativa análoga de restauração teocrática, pôde o imperador Juliano, em seu último suspiro, erguer ao céu suas mãos debilitadas, cheias de um sangue inutilmente derramado, e, adepto e sábio, clamar, antes com lassidão do que com ressentimento: "Venceste, Galileu!..."
Porém, antes de tratar dos iniciados de nossa era, acossados pelas maldições mais ou menos efetivas do Cristianismo triunfante, consagremos algumas linhas à Grécia antiga. Os limites do presente ensaio não comportam uma análise da imensa epopéia mística cujas poéticas lendas foram celebradas por Homero, Ésquilo, Hesíodo. Assim, nós nos restringiremos a saudar, em um personagem cuja existência tem sido posta em dúvida pelo mundo moderno, o grande iniciador das raças helênicas.
Contemporâneo de Moisés, educado juntamente com ele em um santuário de Tebas, Orfeu retornou ainda jovem à Hélade, onde nascera. Enquanto Moisés e os seus pisavam as areias áridas da Ásia, Orfeu, sacerdote-oráculo do grande Zeus, revia, sob o olhar severo de Iod-Heve, o arquipélago azul e a península natal, verdejante de murtas e oliveiras. À sua cara pátria, assolada pela desordem, trazia ele a Ciência absoluta, haurida nas próprias fontes da Sabedoria - a eterna Ciência do Ser inefável, designado por Osíris, Zeus ou Iod-Heve.
Quando desembarcou, modulando na lira de sete cordas sua alma expansiva e sonora de apóstolo e de rapsodo, a terra predestinada estremeceu toda, atenta aos seus acentos. Orfeu pregou o evangelho do Belo e converteu os povos pelo prestígio da lira santa. Assim, edificou-se uma restauração teocrática. A partir desse dia, o Gênio grego, revelado a si mesmo, concebeu o harmonioso Ideal que o consagra imortal entre todos.
A harmonia é civilizadora. Assim, Virgílio, um iniciado, mostra-nos o aedo em êxtase, fazendo chorar os animais selvagens, dóceis diante do magnetismo de sua voz, fazendo fremir de amor os carvalhos, que se vergam para ouvi-lo: Mulcentem tigres et agentem carmine quercus.
A harmonia é criadora. Assim, a Tebas de Anfião, constituída ao som da lira, é de um simbolismo análogo. Todos esses mitos não são destituídos de profundidade. Marcam esplendorosamente o caráter estético que a magia assumiu na Grécia.
A doutrina de Pitágoras é irmã daquela de Orfeu, assim como as matemáticas pacientes são irmãs da música inspirada; analisam seus acordes e denominam as suas vibrações. No Egito, Pitágoras aprende a Ciência já decadente dos magos. Recebe, na Judéia, das mãos dos nabis Ezequiel e Daniel, uma iniciação parcimoniosamente sincera(40). Cabe ao seu gênio preencher, através da intuição, essas lacunas. De qualquer forma, seu Tetractys e sua Tríade correspondem, rigorosamente, ao Tetragrama e ao Ternário cabalísticos.
Quanto ao esoterismo de Platão, devolvido mais tarde e sutilizado pelos teurgos de Alexandria, fundir-se-á, nas mãos dos Gnósticos, com o cristianismo oculto, imediatamente derivado da doutrina essênia. As obras de São Clemente de Alexandria, de Orígenes, de São Denis, o Areopagita, e do bispo Sinésio testemunham irrefutavelmente este intercâmbio dogmático. Parece que, inconscientemente, os herdeiros do mundo antigo trataram, de potência a potência, com os fundadores do novo mundo para firmar, de comum acordo, um compromisso filosófico. Em São João, reencontramos a tradição secreta, mas, integral, dos velhos mestres de Israel, a tal ponto que o Apocalipse forma, juntamente com o Zohar, o Sepher Ietzirah(41) e algumas páginas de Ezequiel, o mais puro corpo doutrinário e clavicular da Cabala propriamente dita.
Além disso, Porfírio e Jâmblico, por mais pagãos que se proclamem, pregam o Cristianismo sem o saber, ao lançarem os retalhos de um véu místico envelhecido sobre estes mesmos grandes princípios que o simbolismo cristão acaba de revestir, de modo tão magnífico, com novas alegorias, mais de acordo com o gênio da era nascente.
Lastimavelmente, porém, a Igreja não soube reservar para si mesma, por muito tempo, a chave do inestimável tesouro, confiado à guarda de seus altos prelados. Tal chave garantia a unidade hierárquica nas mãos do Soberano Pontífice (daí em diante, indispensável como revelador); penhor de ortodoxia infalível nas mãos dos Príncipes do sacerdócio (mesmo para, a partir daí, controlar tudo, à luz da síntese fundamental), tal chave - que é a do Bem e do Mal - só poderia abrir, para o vulgo, o reino das trevas. A razão transcendente do dogma acha-se muito acima do nível intelectual das massas, sendo que as mais graves heresias são verdades mal compreendidas.
Alguns iniciados na Gnose, invejando a autoridade hierárquica, resolveram fazer com que ela perdesse o tesouro da tradição oculta. A malícia desses homens empenhou-se, subrepticiamente, no sentido de levantar todos os véus. Chegou um dia em que, revelado em suas mais secretas fórmulas, o dogma esotérico foi posto à mercê da estupidez das multidões. A luz ofuscante cegou os olhos fracos. Diante da suprema sabedoria, os ignorantes julgaram-se feridos em sua parvoíce e se escandalizaram. A Igreja, então, teve que anatematizar a inscrição sublime do templo, a razão positiva e a razão real do dogma: esta Gnose santa dos adeptos que, temerariamente traduzida para a linguagem das massas, tornara-se, para a imbecilidade delas, o objeto do maior escândalo - uma mentira!
Ah! tinha toda razão o bispo Sinésio quando escreveu: "O povo sempre escarnecerá das verdades simples. Ele necessita de impostores... Um espírito amigo da sabedoria e contemplador da verdade sem véus é forçado a disfarçá-la para obter a aceitação das massas... A verdade torna-se funesta aos olhos frágeis demais para sustentar o seu esplendor. Se as leis canônicas autorizarem a reserva das apreciações e a alegoria das palavras, aceitarei a dignidade episcopal que me oferecem, mas sob a condição de me ser lícito filosofar em casa e contar, lá fora, parábolas reticentes. O que pode haver em comum, na verdade, entre a multidão vil e a sabedoria sublime? A verdade deve permanecer oculta. Às massas só se deve dar um ensinamento proporcional à sua limitada inteligência(42)..."
Eis o que os anarquistas e tribunos jamais compreenderão.
Embora o esoterismo sacerdotal tenha sido condenado sob o nome de Magia, os papas, segundo se diz, conservaram misteriosamente as suas chaves, até Leão III. Bons espíritos lograram sustentar a autenticidade do Enchiridion, compilação cabalística publicada sob o nome deste pontífice. Quanto ao Grimório de Honório, ocorre algo bem diferente: consta, segundo uma engenhosa pesquisa de Eliphas Levi, que esse ritual blasfematório seria a obra ignominiosamente maquiavélica do antigo Cadalous.
Montan, Manés, Valentin, Marcos, Ario, todos os heresiarcas dos primeiros tempos apresentam-se, em maior ou menor grau, como feiticeiros. Entretanto - com exceção dos teósofos de Alexandria - foi somente Apuleio (114-190), platônico como eles, que fez jus, nessa época, ao título de adepto. Seu Asno de Ouro, em que o burlesco roça o sublime, dissimula, através de engenhosos emblemas, as mais altas verdades da ciência, e a fábula de Psique, contida nessa sua obra, nada deixa dever aos mais belos mitos de Ésquilo ou de Homero. Tudo leva a crer, aliás, que Apulenio se ateve a parafrasear com gosto uma alegoria de origem egípcia. Oriundo de Mandaura, na África, Apulenio é romano apenas por direito de conquista e anexação. Este fato sugere-nos que Roma, tão fértil em abomináveis necromantes, não deu origem a nenhum verdadeiro discípulo de Hermes. Não cabe objetar com o nome de Ovídio, pois suas Metamorfoses, tão graciosas a todos os gostos, testemunham um esoterismo bastante errôneo, para não dizer ingênuo. Virgilio - este, um iniciado - cioso, antes de tudo, de legar à Itália uma obra-prima do gênero épico, só nas entrelinhas, e de modo eventual, evidencia o brilho de sua sabedoria.
No caso da República e do Império de Roma, o caráter perpetuamente anárquico e nemrodiano que acusaram em todas as circunstâncias refuta, por si só, a hipótese de uma iniciação a nível de governo. O único rei genuinamente "mago" de quem se podem orgulhar os filhos da Loba foi Numa Pompílio (714-671), um Nazareno dos tempos da Etrúria(43) que as nações circunvizinhas impuseram à Roma nascente. Mais tarde, Juliano, o filósofo (360-363), figura também como adepto nos faustos do Império. No entanto, nascido em Constantinopla, proclamado César pelos Gauleses de Lutécia (360), ele é também, por seu turno, muito menos romano. Assim, dois são os soberanos iniciados da cidade eterna: em seus primórdios, um rei, Numa Pompílio; já em seu declínio, Juliano, o Sábio, um imperador. Entre os dois, a guerra civil, a extorsão e o arbítrio.
Esses gauleses que Roma chamou de bárbaros são povos verdadeiramente mais livres e civilizados. Seus druidas, herdeiros diretos dos hierofantes ocitâneos da teocracia do Carneiro, perpetuam-lhe a tradição e transmitem uns aos outros, regularmente, o depósito da ciência sagrada. Alguns preceitos de seu ritual são interpretados, com efeito, em um sentido antropomórfico, errôneo, mas a inteligência do dogma, ao que parece, conservou-se integralmente nas mãos dos sacerdotes, distanciados, contudo, dos grandes centros de civilização e ortodoxia. Não obstante, na Gália, como em outros lugares, a feitiçaria recruta suas vestais sacrílegas. A feitiçaria é de todos os tempos, e de todos os países.
Sob os primeiros reis da França, pululam encantadores e bruxas. Só se fala de necromantes que oferecem a hospitalidade de seu corpo ao diabo, de clérigos que exorcizam o diabo, de verdugos que queimam ou enforcam necromantes. É especialmente em honra dos feiticeiros que Carlos Magno institui, sob o nome de Santa Vema (772), essa terrível sociedade secreta que, sancionada novamente pelo rei Roberto (1404), aterrorizará mais de trinta gerações(44). Primeiramente na Vestefália, mais tarde em toda a Europa Central, os tribunais de franco-juízes não tardam a multiplicar-se. Os mandados de prisão se pronunciam em cavernas inacessíveis onde, por caminhos tortuosos, o acusado é conduzido de olhos vendados e com a cabeça desnuda. Não há sentença intermediária entre a morte e a absolvição, com ou sem reprimenda... Tanto camponeses como senhores temem encontrar, alguma manhã, a ordem de comparecimento afixada à sua porta com um golpe de punhal! E ai de quem não obedecer a citação dos franco-juízes! Mesmo sendo cardeal, príncipe de sangue ou imperador da Alemanha, ninguém escaparia ao decreto de morte pronunciado à revelia, e seria apanhado cedo ou tarde. O que se segue mostrará a vingança oculta vinculada aos passos do contumaz - sempre paciente, pois é garantida: "O duque Frederico de Brunswick, que foi imperador por um momento, recusara-se a atender a uma citação dos franco-juízes. Quando saía, armava-se da cabeça aos pés e cercava-se de guardas. Entretanto, certo dia ele se afastou um pouco de seu séquito e precisou desvencilhar-se de uma parte da armadura. Ninguém o viu retornar. Os guardas penetraram no pequeno bosque em que o duque desejara permanecer a sós por um instante. O desventurado, então, expirava, tendo nos rins o punhal da Santa Vema, de onde pendia a sentença. Olharam em todas as direções e viram um homem mascarado que se retirava com andar solene. Ninguém ousou persegui-lo."(45)
Na Idade Média, o Mal teve, assim como o Bem, seus aliados misteriosos e suas assembléias secretas. Eu não teria reservas em descrever aqui - após tantas outras! - as orgias priapescas e sádicas do sabbat criminoso: encontros de envenenadores e de bandidos que, salvaguardados pelo prestígio de um terror supersticioso, empenhavam-se em envolver suas práticas nas mais fantásticas trevas. Lendo-se o processo de Gilles de Laval, senhor de Retz, os cabelos se eriçam e a náusea sobe aos lábios. Entra-se, porém, no mesmo nível neste mundo nefasto da magia negra, em que os ritos dos sortilégios servem para dissimular perversidades mais efetivas, em que o assassino se disfarça como feiticeiro: só sob a fronte do marechal de Bretanha germinaram, floresceram e frutificaram depravações, todas as perversidades habituais aos freqüentadores do sabbat.(46) Estes, por vezes, ao menos descuidavam de temperar com a pimenta satânica o miserável guisado de sua cupidez saciada. Talvez se tenha exagerado o papel do magnetismo e das influências ocultas nas obras do sabbat criminoso. Os verdadeiros adeptos reservam a si mesmos, sem dúvida alguma, o emprego racional deste formidável agente. Quanto aos vendedores de filtros, eram, em sua maioria, envenenadores banais.
Contudo - à parte os cruzados ocultos do Inferno e do Crime e os cavaleiros não menos ocultos da Justiça e do Castigo, além dos necromantes e dos franco-juízes - viam-se campônios pacíficos e cidadãos inofensivos mesclaram-se como atores à grande tragicomédia de então. Comprimida pelo despotismo dos estados e pela intolerância do sacerdócio, a atividade vital, na Idade Média, teve, de fato, que se desenvolver na sombra. Tomava-se o ar de conspirador. Uma doença fustigava todas as classes da sociedade: a monomania do mistério, e, assim, reuniões secretas organizavam-se por toda parte. O maravilhoso (e as pessoas eram tão ávidas dele!) decuplicara o prestígio de um suposto sabbat, em que os pobres diabos confraternizavam de modo estranho com os maiores senhores, fascinados pela curiosidade, mais forte que o orgulho. Em conventículos noturnos, aliás tão inocentes, sob o pretexto de cerimônias estranhas, degustava-se o inefável prazer de andar a passo de lobo, de trocar a senha com uma voz sepulcral e de correr grande risco de ser enforcado.
Todavia, sem nenhum medo de semear o temor ou o estupor, desdenhando quando lhes era possível sem perigo, todo este luxo de encenação, os verdadeiros iniciados reuniam-se, também, e a grande Isis sentava-se no meio deles. Fundaram-se associações herméticas que deviam a rubricas forjadas o privilégio de uma segurança relativa. Citaremos, de memória, a ordem dos Templários (ninguém ignora sua origem e seu fim trágico)(47); as confrarias da Rosa-Cruz e dos Filósofos Desconhecidos, sobre as quais a história, por outro lado, diz pouca coisa, e, finalmente, a Franco-maçonaria oculta, prolongamento mais ou menos direto da Ordem do Templo, iniciada, segundo consta, por Jacques de Molay, antes de subir à fogueira. Mas a moderna franco-maçonaria - sonho de algum Asmohle em delírio, cepo bastardo e mal enxertado no antigo tronco - já não tem consciência dos seus menores mistérios. Os velhos símbolos que ela reverencia e que transmite numa piedosa rotina tornaram-se para ela letra morta: é uma língua da qual ela perdeu o alfabeto. Seus afilhados, assim, nem mais suspeitam de onde vêm e para onde vão(48).
Em suma, se os grandes colégios iniciáticos foram seminários ocultos do mundo antigo, não se pode dizer o mesmo das misteriosas associações da Idade Média, por mais intensamente que se afirmasse sua vitalidade. Ocorre então que na Europa, depois do desmoronamento dos derradeiros santuários, luminosos baluartes da síntese hermética, a ciência universal cinde-se em três ramos, surgindo, assim, os especialistas. A partir desse momento, cada um atém-se ao seu ramo. Os adeptos apaixonaram-se quer pela Cabala, quer pela Astrologia e pelas Ciências Divinatórias, pela Alquimia e pela Medicina Oculta. Alguns gênios excepcionais, cérebros organizados para a síntese, ressuscitam, efetivamente, a doutrina dos magos em sua íntegra: entre eles, Raymond Lulle, Paracelso, Henri Kunrath, Knorr de Rosenroth, Eliphas Levi. A maior parte dos ocultistas, contudo, conforme o seu temperamento especial e as influências preponderantes de seus respectivos ambientes, acantonam-se em alguma das três ciências de Hermes, cada uma delas correspondendo a um dos seus três mundos. Os cabalistas, fascinados pelos grandes problemas metafísicos, aspiram o conhecimento do Mundo Divino. Inclinados de preferência à psicologia, os áugures (e sob este rótulo incluo adivinhadores, astrólogos, quiromantes, fisionomistas, cartomantes, frenólogos) decifram os problemas do Mundo Moral. Quanto aos alquimistas, mais inclinados ao estudo das leis da física material, são os escrutadores do Mundo Natural ou Sensível.
No entanto, a primitiva síntese é a tal ponto una e coesa, que todos esses sábios, por mais diferentes que sejam suas preferências, respaldam-se nos mesmos axiomas, convergem para os mesmos princípios. Além disso, para penetrar os mistérios da ciência particular que elegeram, é preciso que eles, preliminarmente, galguem os degraus da escada analógica das correspondências nos três mundos, para assim reerguerem - pelo menos durante o seu período de aprendizagem - o edifício hermético dos antigos mestres.
Assinalaremos, de forma sucinta, os mais célebres iniciados da Idade Média e dos tempos modernos. Sob o reinado de Pepino, o Breve, desponta o cabalista Zedequias, a cujo poder fascinante os homens dessa época atribuem os fenômenos que os aterrorizam, segundo documentam as crônicas. "O ar está cheio de figuras humanas; o céu reflete palácios, jardins, ondas agitadas, navios com as velas desfraldadas ao vento, exércitos mobilizados em batalha. A atmosfera deixa a impressão de um grande sonho. Julgamos distinguir, no ar, feiticeiros disseminando em profusão os pós malfazejos e os venenos".(49) Quem leu o abade de Villars sabe o que pensar dessa orgia de estranhas visões, fotografadas na luz do sol. Depois de que perturbações fluídicas produzem-se essas miragens, ora deslumbrantes, ora terríveis, semelhantes aos reflexos coloridos de uma imensa lâmpada mágica? Ocorre-nos sempre o axioma de Hermes: "Quod superius, sicut et quod inferius". É natural que o céu de uma época turbulenta reflita a incoerência das coisas terrestres.
No século de São Luís, brilha o rabino Jequiel, notável eletricista e duplamente detestado pelos parvos, por seu gênio e por seu crédito surpreendente junto ao rei da França. Ao anoitecer, quando sua lâmpada misteriosa resplandesce(50) na janela, como uma estrela de primeira grandeza, o mago - caso seus inimigos, impelidos pela curiosidade, assediem tumultuosamente a porta - toca um prego cravado na parede de seu gabinete e faz fulgurar, do seu interior, uma centelha viva, crepitante e azulada. E ai do pobre indiscreto que nesse momento sacudir a aldraba do umbral da porta! Dobrar-se-á sobre o mesmo, gritando aterrado por uma força desconhecida; um raio circula em suas veias; é como se o chão se abrisse de repente e engolisse metade do seu corpo... Uma vez restabelecido, talvez fugisse o mais depressa possível, sem perguntar à terra por que milagre ela o vomitara.
O rei dos mágicos legendários, que resolveu, segundo se diz, o problema do andróide, é contemporâneo de Jequiel. Trata-se do célebre Alberto, o Grande (1193-1280), sob cujo nome circulam ainda, em nossos campos, coleções de inomináveis inépcias(51). Ainda na mesma época, surge um gênio universal, o monge Raymond Lulle, de Palma (1235-1315). Discípulo, no campo da alquimia, de Arnauld de Villeneuve - este, por sua vez, herdeiro da tradição árabe que remonta a Geber, o magister magistrorum (séc.VIII), Lulle desenvolveu esplendorosamente em seus escritos (sobretudo em Testamento e Codicilo) esta bela teoria hermética, cujos princípios, um século mais tarde, seriam inseridos na inextricável farragem simbólica de dois adeptos alemães: o conde Bernard le Trevisan e o monge Basile Valentin (l394)(52). A Arbor Scientiae e a Ars Magna, em que Raymond Lulle condensa todos os conhecimentos de seu tempo colocados à luz dos princípios do Esoterismo, apontam-no, além disso, como grande mestre cabalista, teólogo e filósofo.
O espagirismo de Nicolas Flamel (morto em 1413) deve pagar tributo, sem dúvida, ao sistema luliano, mas remonta diretamente ao ensinamento de Abraão, o Judeu, cuja obra (Asch Mezareph) Eliphas Levi traduziu, publicando-a em anexo à sua Chave dos Grandes Mistérios. juntamente com Lulle. A. Sethon, Filaletes, Lascaris, e alguns outros, Flamel é um dos realizadores absolutos da ciência, a quem não se poderia contestar - sem invalidar todos os critérios da certeza histórica - uma série de transmutações efetivas e a arte real da projeção filosofal.
Retornamos à Magia propriamente dita com o abade Tritheim ou Trithème (1462-1516), o ilustre autor da Esteganografia e do Tratado das causas segundas. Trithème foi mestre e protetor do "arquifeiticeiro" Cornelius Agrippa (1486-1535). Agrippa, esse intrépido aventureiro que escandalizou seu século e que, arrastando atrás de si a fogueira, só escapou desta para passar sob os ferrolhos os dois terços de sua existência! Este sábio irrefletido que jamais atingiu a paz do Conhecimento Total (53) e que renegou, em seu livro de Vanitate Scientiarum (54) a grande confidente que ele não soubera levar a dizer a sua última palavra!
Paracelso (1493-1541) pode ser colocado entre estes oniscientes a quem coube por direito a chave de todos os arcanos que caminham pela estrada da vida escoltados por todas as glórias, numa série ininterrupta de prodígios, Quando tais homens morrem - jovens, como todos aqueles que são amados pelos deuses -, o povo a quem maravilham não crê em sua morte e, assim, põe-se a aguardar seu retorno, espera vê-los surgir a qualquer momento dizendo: aqui estou! Mas as gerações sucedem-se, os eventos precipitam-se e a tradição do semideus extingue-se, apaga-se na mente dos homens que logo esquecem. Três séculos já se passaram, e quem pensa em Paracelso? Só Michelet lhe fez justiça... Quando o Magnetismo, algum dia mais bem conhecido em sua essência, tiver revelado ao mundo a Medicina Simpática, os espíritos familiarizados com a obra do mestre surpreender-se-ão com o descrédito em que caiu a memória de um adepto tão miraculoso. Ao leitor atento, sua Philosophie Occulte desvendará os últimos segredos da Magia científica; o seu Sentier Chymique, do qual Sendivogius fez circular uma cópia clandestinamente(55) apresentar-se-á como a mais pura obra-prima hermética dos tempos modernos. A sua terapêutica, enfim (que é a arte de equilibrar as emissões fluídicas em simpatia com o influxo astral, ou de centuplicar a eficácia curativa do magnetismo humano, regulando o seu uso segundo as leis invariáveis do magnetismo universal), sua terapêutica será compreendida e a auréola de Mesmer empalidecerá à vista de todos. Como foi superestimada a medicina oculta deste vulgarizador - cheia de indecisão e de experimentos -, sem imaginar que J.B. Van Helmont (para só citar um nome) publicava, já em 1621, o seu sábio tratado Magnetica vulnerum curatione! Ora, mas quem deu nome à América, Colombo ou Vespúcio? Não é sempre assim?
Universal como Paracelso, Henri Khunrath (1560-1605) condensou a ciência sintética dos magos em um pequeno in-fólio magnificamente impresso em 1609(56). Não conhecemos nada mais pessoal e mais cativante do que este Amphitheatrum Sapientiae Aeternae(57). Em torno dos mais serenos Pensamentos arrasta-se tortuosamente um estilo áspero, exaltado, quase bárbaro, mas de um relevo lampejante, ao estilo de Tertuliano. Maravilhoso contraste! Parece que o Verbo feito carne toma a idéia de assalto; que as asperezas da forma, no entanto, não nos choque, pois a idéia oculta irradia-se, de súbito, àqueles que sabem surpreendê-la. E sobre o tumulto épico dos vocábulos verte em torrentes de luz o inefável ideal. Parecendo parafrasear os provérbios de Salomão, o texto místico comenta as mais altas doutrinas da Cabala especulativa e nove pantáculos assombrosos simbolizam, segundo o costume dos Mestres, os últimos arcanos. Se Khunrath se dirige, na prática, à chama da teoria, consegue controlar, infatigavelmente, a teoria através da experiência - coisa rara em sua época. Assim, ele reitera, a cada passo: "Theosophice in oratorio, physicochemice in laboratorio, uti philosophum decet, REM tractavi, examinavi, trituravi..." Dois opúsculos póstumos de Khunrath - confessio de Chao Chemicorum e Signatura Magnesiae (Agentoranti, 1649) - constituem manuais imprescindíveis para todos os estudantes alquimistas.
Sem nos determos no astrólogo Jérôme Cardan (1501-1576), conhecido por seu notável tratado De Subtilitate(58); - sem falarmos, lamentavelmente, no douto monge Guillaume Postel (1510-1581), cuja Clavis absconditorum a constitutione mundi(59), sempre condenada para o "profanum vulgus", abre a porta da ortodoxia sintética; sem louvarmos, como conviria, a Basilica Chemica e o Livro de assinaturas(60), em que Oswald Croll (15..-1609) cria uma esplêndida teoria do mundo, da qual Gaffarel, o astrólogo de Richelieu, tomará alguns fragmentos para a sua compilação das Curiosidades Inusitadas - para citar apenas este - cumpre saudar, aqui, o grande iniciado Knorr de Rosenroth (l636-1689), a quem a posteridade deve uma coletânea cabalística dificilmente encontrável em nossos dias, uma obra que se pode qualificar como inestimável e única no gênero. Interpretação do Zohar, antologia das obras mais raras e sublimes da Tradição antiga e luminoso comentário sobre este tesouro doutrinal, a Kabbala Desnudada (Sulzbach, 1677, e Frankfurt 1684, 3 vol., in-4.° ) forma, juntamente com a coleção de Pistorius e certos manuscritos hebreus, o compêndio verdadeiramente clássico da Cabala clavicular.
Em torno dessa época, os adeptos multiplicam-se a tal ponto, que enumerar todos nos faria ultrapassar os limites a que nos propusemos. Não mencionaremos nem alquimistas puros - muitos dos quais, entretanto, como Sendivogius (l566-1646) e Philalèthe (1612-1680), passam por realizadores da pedra filosofal -, nem os místicos ingleses e alemães que abundam sobretudo no século XVIII. Retenhamos, no entanto, a título de memória, os nomes do Presidente Jean d'Espagnet, cujo Enchiridion phisicae restitutae, traduzido para o francês no ano de 1651 resume, de forma bem condensada, a filosofia sintética de Hermes; e do sapateiro de Goerlitz, Jacob Böhme (1575-1625), que foi o mestre póstumo de Louis Claude de Saint-Martin.
Na primeira edição do presente ensaio fomos injustos para com Saint-Martin (1743-1803). Nós o julgamos, então, com base na leitura apressada e muito superficial da obra Dos Erros e da Verdade (1775), livro de estréia, cansativo e enredado, em que páginas excelentes são comprometidas por uma intenção de obscuridade e por ares de mistério, características de que o autor soube, com o decorrer do tempo, desvencilhar-se. O Quadro Natural (1782) e, sobretudo, as últimas produções - O Espírito das Coisas (1800) e o Mistério do Homem-Espírito (1802), em que a influência de Böhme sobrepõe-se decididamente à influência menos pura de um primeiro mestre(61), testemunham a iniciação do marquês de Saint-Martin aos mais altos arcanos tradicionais.
Quase à mesma época, um outro adepto, o ministro genovês Dutoit-Mambrini, publicava, sob o pseudônimo de Keleph ben Nathan, um livro em que, certamente, há muitos erros, mas que, só pelo título e pela data de publicação torna-se merecedor de respeito e atenção por parte dos pesquisadores curiosos por assuntos de ocultismo: A Filosofia divina aplicada às luzes natural, mágica, astral, sobrenatural, celeste e divina; ou às verdades imutáveis que Deus revelou no tríplice espelho analógico do universo, do homem e da revelação escrita (1793, 3 vol. in-8.° ).
Alguns anos antes da grande Revolução, a Europa estivera sulcada de personagens misteriosos, cujo caráter equívoco acentuamos em outra parte(62). Referimo-nos a personagens como Saint-Germain, Mesmer e Cagliostro. Realizador extraordinário, mas de espírito bizarro, extravagante, confuso tanto quanto erudito e original, Joseph Bálsamo, conde de Cagliostro, não merece mais do que os outros dois o título de adepto superior. Nem Lavater, o profeta de Zurique (1741-1801), restaurador da Fisignomonia e correspondente místico da imperatriz Maria da Rússia, nem Swedenborg (1688-1772), iluminado freqüentemente genial, porém fantasioso e temerário, podem apresentar, nesse sentido, pretensões mais altas.
O mesmo diremos do poeta iniciado Jacques Cazotte (1720-1792). O seu Diabo Amoroso, em que a paixão é analisada cabalisticamente, basta para assegurar-lhe a estima e a simpatia, mas não a admiração, dos adeptos. Bem mais do que por suas obras e mesmo por suas profecias célebres. Cazotte pertence à história da magia pelas circunstâncias surpreendentes de seu processo e de sua morte, cujos detalhes apresentamos no n.° 7 da revista A Iniciação(63).
No limiar do Império, surge a figura enigmática de Delormel, cujo livro Grande Período (Paris, 1805, in-8.° ), tão notável no entender de todos, valeu a morte violenta dos perjuros e reveladores.
Conhecido já de longa data por alguns ensaios bastante medíocres no terreno da literatura e da poesia, Fabre d'Olivet (1767-1825) ingressa, em torno da mesma época, na carreira filosófica, que lhe reserva a imortalidade. A iniciação pitagórica, recebida na Alemanha sob o reino do Terror, determinou este novo impulso de pensamento de Fabre d'Olivet. Napoleão, mais instruído do que ninguém quanto aos inúmeros perigos que a difusão das verdades ocultas pode acarretar para o despotismo; Napoleão, inimigo pessoal do teósofo, em vão lhe confere a honra de suas incessantes perseguições: Fabre d'Olivet dissolve o rancor de César e sabe evitar todas as suas armadilhas. Encontra um meio de escapar até mesmo à censura imperial e publica, aos poucos, as suas Noções sobre o Sentido do Ouvido (1811), o seu maravilhoso comentário dos Versos dourados de Pitágoras (1813) e, enfim, em 1815, a sua obra-prima imortal: A Língua Hebraica Reconstituída (2 vol., in-4.° ). Bem provido das pesquisas anteriores de Volney, de Dupuis, de d'Herbelot e, sobretudo, do ilustre Court de Gébelin, Fabre d'Olivet remonta à origem da palavra e reconstrói, com base numa erudição verdadeiramente colossal, o edifício - desmoronado já a mais de três mil anos - do hebreu primitivo e hieróglifo. Posteriormente, aplicando à Cosmogonia de Moisés (vulgarmente, a Gênese), a chave por ele reencontrada nos santuários do Egito, penetra no cerne desta necrópole em que jazem, soterradas pelo pó dos séculos, a sabedoria e a ciência integrais do antigo Oriente. Tradutor de Moisés, Fabre d'Olivet, oferece a cada palavra o respaldo de um comentário científico, histórico e gramatical, a fim de pôr em evidência os três sentidos - literal, figurado e hieroglífico - que correspondem aos três mundos da magia antiga, ou seja, o natural, o psíquico e o divino.
Entretanto, Fabre d'Olivet não limita a estes os seus trabalhos de teosofia e de erudição. Hist6ria Filosófica do Gênero Humano que veio à luz em 1822 (2 vol. in-8.° ), revela ao leitor os arcanos do Pai, do Filho e do Espírito Santo(64) em suas relações com a evolução social e política universal. O Mestre traçou um quadro, um campo de aplicação circunscrito, em que faz agir esses Princípios, deduzindo suas conseqüências. Este quadro é a história da raça branca ou boreal, ou seja, a nossa. Em 700 páginas, o autor condensa e resume os destinos dessa raça, cujo desenvolvimento progressivo e normal através do Tempo e do Espaço ele descreve. As obras do marquês de Saint-Yves d'Alveydre, às quais, aliás, nunca deixaremos de pagar um justo tributo de admiração e de elogios, constituem a magnífica paráfrase e retomada dos trabalhos de Fabre d'Olivet. A morte ceifou o restaurador da língua hebraica, quando este preparava como complemento indispensável, a mais gigantesca de suas produções, Comentários da Cosmogonia de Moisés. Afirma-se que o precioso manuscrito não está perdido. Aliás, as observações críticas apostas por Fabre d'Olivet em apêndice a sua última publicação - uma tradução em versos eumólpicos do Caim de Lorde Byron (Paris, 1823, in-8.° ) - podem suplementar os comentários inéditos, esclarecendo o pensamento íntimo do teósofo em diversos pontos que permaneciam obscuros.
Não foi em vão que Fabre d'Olivet deu ao nosso século o exemplo de um retorno às altas especulações do ocultismo. A Restauração já vira surgir uma pluralidade de escolas místicas, de um esoterismo nitidamente bastardo, é verdade... a metade do século viu melhor. Embora o padre Enfantin lançasse sobre o sansimonismo, já moribundo, um brilho radiante mas efêmero, embora Victor Considérant rejuvenescesse a teoria de Fourier - e seus esforços não são destituídos de interesse -, infatigáveis pesquisadores, por outro lado, escavavam, em todos os sentidos, galerias através das catacumbas desmoronadas da antiga magia. Citemos Hoené Wronski, o apóstolo do Messianismo e restaurador da Filosofia Absoluta; Lacuria, o metafísico genial das Harmonias do Ser; Ragon, o único profundo de todos os mistagogos da Franco-maçonaria. Outros, como Lúis Lucas(65), o mais audacioso cérebro da ciência contemporânea, eram levados pela própria experiência a verificar estas grandes leis que os alquimistas especulativos haviam formulado talvez apenas por indução.
Mas todos esses filósofos, todos esses eruditos, todos esses sábios, responsáveis pela maior parte de uma fascinante florescência de descobertas, vejo-os todos agrupados em torno do grande ceifeiro da luz; vejo-os todos cortejando um adepto que os ultrapassa em muito e que parece ser, dentro dos altos barões do Esoterismo renovado, o Príncipe Encantado, esposo, por direito de conquista, desta Bela Adormecida que é a Verdade tradicional!
Com efeito, em nossos dias despontou um gênio para redificar o templo do rei Salomão, tornando-o ainda mais suntuoso e colossal do que antes. De um pensamento vasto e sintético, de um estilo luminoso rico, de uma imperturbável lógica e de uma ciência segura de si mesma, Eliphas Levi(66) é um mago completo. Os círculos concêntricos de sua obra compreendem a ciência inteira, e cada um dos seus livros reveste-se de significação precisa, cada uma de suas obras possui uma absoluta razão de ser. O seu Dogma ensina; o seu Ritual prescreve; a sua História adapta; a sua Chave dos Grandes Mistérios explica; as suas Fábulas e Símbolos revelam(67); o seu Feiticeiro de Meudon prega de forma exemplar; a sua A Ciência dos Espíritos, enfim, fornece a solução dos mais altos problemas metafísicos. Assim, sob a pena de Eliphas Levi, a magia acha-se exposta quanto a todos os seus pontos de vista: a obra total, de que cada tratado é uma faceta, constitui a mais coesa, fascinante e indiscutível síntese com que um ocultista possa sonhar! E, como se não bastasse, este pensador magnífico ainda se dá o direito de ser um grande artista! Em seu estilo fulgurante, grandioso e eloqüente - preciso até o escrúpulo, audacioso até a licença -, ele encerra ainda o pensamento mais grandioso e mais ousado. As palavras "sugestivas" brotam em profusão: onde vertiginosas exposições sumárias arredam a expressão verbal, onde evasivas nuanças desafiam a língua abstrata, o rigor exato de uma metáfora nova fixa o volátil, determina o incerto, define o imenso, numera o inumerável.
Mas, ao percorrer, em todos os sentidos, os três mundos - metafísico, moral e natural -, Eliphas Levi não se detém. A grande corrente centralizadora o arrebata e muitas questões que levanta fariam jus a um maior desenvolvimento. Referimo-nos, por exemplo, a questões relativas à história das origens asiáticas do ocultismo e da teoria social, que se acham apenas indicadas.
Ora, estes dois pontos capitais, já bastante esclarecidos por Fabre d'Olivet, são trazidos à luz por um mago contemporâneo de uma competência profunda, o marquês de Saint-Yves d'Alveydre; assim, as obras desses três adeptos se completam e se comentam da forma mais feliz. No entanto, a síntese social que Eliphas Levi esboça em algumas páginas de sua obra parece diferir daquela que Saint-Yves sustenta ardorosamente há dez anos e que talvez faça prevalecer. A forma ideal de governo é, segundo este último, a que denomina sinárquica, isto é, em harmonia com os princípios eternos. A administração de cada país seria confiada a três colégios de especialistas: os Doutrinadores, docentes (conselho das Igrejas), os Legisladores, juristas (conselho dos Estados) e os Notáveis, economistas (conselho das comunidades). Isso se aplica à sinarquia nacional. Por outro lado, três conselhos hierarquicamente superiores, mas essencialmente em correspondência com aqueles, seriam encarregados da administração central da sinarquia européia. Cada nação, assim, conservaria a sua autonomia, gerindo os seus próprios assuntos, enquanto a grande assembléia de civilização geral zelaria pela gestão equitativa dos interesses comuns. O Equilíbrio Europeu, esta quimera do passado, converter-se-ia, então, em uma realidade no futuro, e isso significaria o advento do reino messiânico sobre a Terra. Essa é, substancialmente, esta teoria magnificante cabalística; pois, segundo a lei de Hermes, as coisas que estão embaixo devem ser análogas às que estão em cima, o microcosmo, portanto, reproduzindo um macrocosmo em miniatura. Ora, espelho da própria divindade, a humanidade, tríplice e una, seria regida pelo ternário e marcada, pela adição de sua unidade específica, pelo signo do quaternário.
Aparentemente bem diversa, a teoria de Eliphas invoca a lei dos contrários. Sobre a Terra, como no céu, a Misericórdia deve temperar o Rigor; mas também a Justiça opor um limite ao transbordamento do Amor. Tais são os dois pólos do mundo moral; tais são as duas tendências inversas e complementares do Governo dos homens. Rigorosa como a Ciência exata, a justiça encarnar-se-á no supremo depositário do Poder civil. Mas o Amor, misericordioso como os sentimentos inspirados pela Fé verdadeira, encontrará o seu órgão no Soberano Pontífice da Religião. Imaginemos, a partir desses dados, o governo do mundo: Leão III e Carlos Magno, respectivamente, Papa e Imperador; o altar santificando o trono, o trono sustentando o altar. Pólo positivo, pólo negativo... Eis, à primeira vista, a lei do Binário. Mas não para aqueles que crêem na intervenção divina das coisas terrestres. O Binário, sob pena de ser anárquico, deve resolver-se pelo Ternário: no alto, Kether (a Inteligência suprema), refletida em Tiphereth (o Adão Harmonioso e ideal), manterá o equilíbrio entre Geburah (a justiça: O Império) e Hesed (a Misericórdia: o Papado). E se o sistema de Saint-Yves oferece uma bela síntese da humanidade tríplice e una, Eliphas Levi, designando o Ser Inefável, agente supremo do equilíbrio, imagina uma síntese talvez ainda mais grandiosa: une a terra ao céu, e a humanidade forma, com seu Deus, apenas um.
Depois deste esboço que traçamos, seria temerária uma conclusão; as doutrinas dos dois Mestres são essencialmente herméticas, por realizarem, verdadeiramente, o número três, número sagrado que resulta em quatro pela adição da unidade sintética.
De qualquer forma, a obra do marquês de Saint-Yves é corajosa e sua oportunidade bastante digna da clarividência de um Epopta. Urgiria que essas Missões(68) fossem pregadas aos filhos de uma raça que perdeu o senso da Hierarquia, o culto da Tradição e até mesmo o respeito pela Idéia pura. Século decadente, raça decaída. Retardadas pela preocupação exclusiva com fatos brutais acumulados, as próprias Egrégoras, míopes à força de tanta análise, são impotentes para enxergar algo que esteja além do contingente. O Idealismo tem por defensores apenas inábeis ou tímidos - ou seja, medíocres. Quanto ao Ocultismo, em vias de se depravar, vulgarizando-se nas mãos de sonhadores e charlatões, apenas raros escritores mantém-se dentro da lógica de sua ortodoxia(69). Há que assinalar, à frente desses últimos, Joséphin Péladan que, em seus audaciosos estudos(70), que nos oferece Decadência Latina, não hesita em produzir as grandes teorias cabalísticas - e tudo é significativo, até a intriga em que figura, simbolizado de forma nova e dramática, o eterno combate entre Édipo e a Esfinge: o homem em sua contenda com o Mistério. Mérodack (do Vívio Supremo) é um Louis Lambert de ação, e Curiosa faz lembrar Séraphitus-Séraphita. Mas este mistério que Balzac balbuciava intuitivamente, Péladan formula com o arrojo e a autoridade serena de quem sabe, e não com o febril arrebatamento de quem adivinha. Já se pode escrever, através dos modernos emblemas do romance sintético, a doutrina oculta cuja exposição técnica e racional o jovem adepto nos oferecerá em seu Anfiteatro das Ciências Mortas(71). Pertencendo à corrente de iniciação cabalística, Péladan deve ser distinguido, como tal, de magos ingleses ou franceses - muito estimáveis, aliás, e eruditos - que bebem da fonte menos pura do Esoterismo hindu. Já citamos, a propósito, Louis Dramard e devemos uma menção especial à presidente da Sociedade Teosófica do Oriente e do Ocidente(72), Lady Kaithness, duquesa de Pomar, a quem cabe a honra de haver explicado claramente, em artigos substanciais(73), os dogmas fundamentais de uma religião, que a imaginação luxuriante dos herdeiros de Sakya-Mouni havia misturado com mitos por demais complexos.
Desde a primeira edição desta obra, publicada em 1886, acentuou-se nitidamente a corrente que induz os curiosos ao estudo do Ocultismo. Apesar de toda a antigüidade sagrada e dos raros apóstolos contemporâneos cujos nomes mencionamos, a magia era, então, quase ignorada pelo grande público.
Uma verdadeira floresta virgem parecia impedir o acesso aos templos em ruína, incrustrados de hieróglifos de uma ciência perdida. E se algum ousado arqueólogo do mistério se arriscasse a descobri-los, teria que forçar uma passagem através de cipós, e enfrentar, a cada passo, a contumácia dos espinheiros inóspitos...
Atualmente, o aspecto geral modificou-se prodigiosamente, e isso graças aos numerosos desbravadores desses inextricáveis acessos. Que luminosas avenidas hoje se cruzam, lá onde, ainda ontem, havia trevas espessas!
Contudo, quanto à vulgarização, a França permanecera notavelmente atrás dos outros países da Europa e mesmo do Novo Mundo. Na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos, até mesmo na América do Sul, assim como na Índia e em outros recantos do Oriente, a Sociedade Teosófica propalava, já havia vários anos, os ensinamentos do Budismo renovado. Depositária direta das tradições tibetanas, a sra. H.P. Blavatsky, fundadora desta sociedade próspera, dava, em diversos lugares, provas de uma competência real: sua erudição surpreendente, haurida de fontes desconhecidas, gerava ao mesmo tempo o estarrecimento e o escândalo na culta Europa. E a naturalidade com que sua fantasia parecia jogar com as forças ocultas para produzir os mais estranhos fenômenos(74) gerou, em torno dela, mais explosões de calúnias do que de louvores. Diversas lendas, uma mais incrível do que a outra, circulavam então com relação a essa inquietante personalidade. Blavatsky possuía o dom de apaixonar os espíritos: por ela ou contra ela, todos tomavam partido de modo violento, caloroso, além disso, às suspeitas injuriosas dos caluniadores, bem como ao sarcasmo da crítica, ela sempre opôs uma resposta triunfante, própria dos cérebros poderosos: é através das obras que manifesta sua réplica.
Há dez anos, o livro Ísis desvendada, de Blavatsky, trazia ao público inglês as primeiras revelações da alta ciência tibetana; o Budismo esotérico, de seu discípulo Sinnett, fazia a respeito desse belo livro um comentário digno dele. Blavatsky completa, hoje, o seu ensinamento pela apresentação progressiva de uma obra de imponente envergadura: A Doutrina Secreta (5 volumes in-8.° )(75).
É de se lamentar muito o fato de esses livros, tão usufruídos em seu texto inglês, não serem conhecidos por aqueles a quem este idioma não é familiar. Gaboriau, segundo se diz - outrora hábil diretor da revista francesa Lotus - pretende preencher essa lacuna, acrescentando à sua boa tradução, já publicada, de Mundo Oculto, de Sinett, a de Budismo esotérico, do mesmo autor(76). Talvez depois se empenhe em publicar a grande obra de Blavatsky. A gratidão de todos aqueles que se preocupam com essas graves questões já lhe foi tributada em oportunidades diversas, e certamente ele a verá crescer. A sua Lotus, que se tornou, há dois anos, órgão dos melhores expoentes franceses do Hinduísmo, pôs em foco uma constelação de personalidades ocultas eminentes: particularmente importantes os artigos de Soubba Rao, brama pândita, Hartmann e Amaravella, metafísicos de envergadura. Todos ficaram satisfeitos em saber que a colaboração ativa deste último foi cedida à Revue Théosophique, órgão parisiense recentemente fundado por uma ocultista de alto mérito, a sra. Condessa de Adhémar(77).
Enquanto as doutrinas neobudistas assim prosperavam, dois novos Cabalistas surgiam, ambos dignos de apreço por qualidades diversas, ambos eminentes em esferas diferentes.
Um é Albert Jhouney, diretor da revista L'Étoile, ilustre autor de O Reino de Deus (Carré, 1887, in-8.° ); o poeta esotérico de Lírios Negros (1888) e de Livro do Julgamento (1891-1892). O outro, jovem médico dos mais eruditos e eloqüentes, converteu-se em dupla personalidade: conquistou a notoriedade sob dois nomes diferentes. Só suas obras de anatomia e de fisiologia receberam a assinatura de Gérard Encausse. Seus tratados de magia arvoram um outro nome.
Cabeça enciclopédica e pena infatigável, saudemos este jovem iniciado que disfarça ou, diríamos, que desfigura o lastimável pseudônimo de Papus. É preciso, seguramente, que os seus livros testemunhem uma superioridade bastante transcendente, para que se possa perdoar seu rótulo! O fato é que os afeiçoados pela teosofia pronunciam o nome de Papus sem esboçar qualquer sorriso, mas, isto sim, com admiração e apreço. Passando pelas brochuras já em número considerável, que tem contribuído vigorosamente para a difusão das ciências esotéricas, mencionaremos somente as obras O Ocultismo Contemporâneo (Carré, 1887, in-8.° ), Sepher Jezirah (Carré, 1888, in-8.° ) e A Pedra Filosofal (Carré, 1889, in-l2.° , frontispício). Convém lembrar que Papus publicava, desde 1888, o seu Tratado Elementar de Ciência Oculta (Carré, in-l2.° , com figuras). Trata-se da primeira obra metódica em que se acham resumidos com clareza, além de agrupados e sintetizados com mestria, todos os dados primordiais do Esoterismo. Este livro excelente, que enfoca a aplicação dos métodos experimentais de nossas ciências ao estudo dos fenômenos mágicos, é também uma ação boa e meritória: os próprios estudantes adiantados podem recorrer a ele com segurança, como ao mais sábio dos gramáticos. Mas Papus acaba de firmar para sempre a sua reputação de adepto através da publicação de uma obra monumental referente ao Tarô(78). Em nosso entender, não exageramos ao asseverar que este livro, em que se revela, até às profundezas, a lei ondulatória do Ternário universal, constitui, no sentido mais pleno do termo, uma Chave absoluta das ciências ocultas.
A série de artigos de Barlet, publicados primeiramente na revista Lotus e posteriormente na revista Initiation, pode ser lida com proveito por aqueles que já meditaram sobre o Tratado Elementar de Papus. Ninguém ignora que um eminente iniciado se dissimula com excessiva modéstia sob o pseudônimo de François Charles Barlet.
Por outro lado, o Esoterismo vai, pouco a pouco, ganhando terreno por toda parte.
Sim, temos o consolo de ver nossas idéias penetrar, por infiltração, em todos os terrenos, sem barulho e sem derrocadas, mas com uma lentidão segura. O livro magistral de Edouard Schuré Os Grandes Iniciados (Paris, 1889, grande, in-8.° ) garante-nos que já se acham entabuladas as bases sociais da filosofia e da arte. Até o vetusco caráter clerical se embebe, por sua vez, e não tem cabimento afirmar que ele foi atingido superficialmente! Uma das mais belas almas, uma das mais lúcidas inteligências do clero francês, o cônego Roca, converteu-se, e não há pouco tempo, no mais fervoroso discípulo da Santa Cabala; faz soar alto e forte o clarim dos nabis para anunciar ao mundo caduco a era, já próxima e iminente, em que novos céus luzirão sobre uma terra regenerada(79). A Rosa-Cruz dá asilo a diversos padres católicos em sua misteriosa fraternidade. Um deles, doutor na Sorbonne e pregador de elite, está, sob o pseudônimo de Alta, entre os membros do Conselho supremo dos doze.
Assinalemos, enfim, como derradeiro fruto do Ocultismo, uma recente brochura de Polti e Gary intitulada Teoria dos Temperamentos (Carré, 1889, in-l2.° ). Este admirável ensaio de uma síntese fisiognomônica - baseada, por um lado e a priori, na lei do Tetragrama(80), fundada, por outro lado e a posteriori, numa quantidade imponente de documentos psíquicos e de observações escrupulosamente selecionadas, frutos tardios de pacientes estudos - este ensaio, dizemos, permite proferir, à primeira vista, um juízo quase infalível sobre o caráter dos seres com os quais somos chamados a cruzar no plano da existência material.
Eis um dos trabalhos que a Alta Ciência reconhece e que pode reivindicar como ecos de seu Verbo oculto, adaptações de seu princípio virtual, raios de sua luz refratada! ...
Na verdade, à parte dos pretensos iniciados, completamente independentes e fantasiosos, que julgam criar de todas as peças uma síntese absoluta, que pensam vaticinar, através da intuição, a fórmula necessariamente definitiva dos eternos princípios, é possível reduzir a duas as dioceses heterodoxas do ocultismo vulgarizado: a dos Magnetizadores e a dos Espíritas.
Esses representantes fervorosos do magnetismo são respeitáveis pesquisadores, freqüentemente verdadeiros homens de ciência que, mesmo sem terem indagado a razão positiva dos fenômenos sonambúlicos à luz das grandes leis da analogia universal e da harmonia pelo antagonismo dos contrários, não deixaram de contribuir para que a ciência oficial, nos últimos tempos menos renitente, desse, nesse sentido, verdadeiros passos de gigante. O domínio desses homens é, propriamente, a grande diocese do Livre Pensamento de que falava Sainte-Beuve aos senadores do império, pois cada um deles preconiza o seu procedimento particular, não concordando quanto à natureza e à causa última das manifestações que computam. Cabe agrupá-los, todavia, em duas categorias bem delineadas, distinguindo os Psicólogos (Braidistas) dos Fluidistas (Mesmerianos). A hipótese do fluido é mais antiga: abstendo-nos de esmiuçar a história de suas transformações - de Mesmer a Dupotet, passando por Eslon, Deleuze, Puységur -, retenhamos que todos esses práticos tiveram uma noção mais ou menos vaga da vasta teoria hermética do fluido universal, por mais inábeis que fossem para reconstruí-la em sua evidência luminosa e em sua sintética magnitude.
Estamos sempre No Umbral do Mistério. Suscitar questões sem oferecer respostas, eis nossa tarefa; ou menos ainda: um quadro exclusivo restinge-nos ao mais superficial e rápido esboço das metamorfoses com que este Proteu inatingível, "o Oculto", tem jogado através dos tempos. Assim, é mister que reservemos para outros tratados os detalhes dos fenômenos e as teorias que os explicam. Tal é a luz que a doutrina cabalística do fluido deve lançar sobre os problemas do Magnetismo e do Espiritismo, que, abrindo um novo parênteses, consideramos útil traçar, desde agora, uma exposição sumária.
Sem remontarmos ao tempo em que o Sacerdócio, depositário da Ciência Sagrada, traduzia os ensinamentos desta última para o povo, em linguagem parabólica, e sem reportar-nos ao tempo em que as nações civilizadas se orgulhavam de seus colégios de Magos ou de Teurgos, evoquemos ainda a lembrança dessas grandes sociedades secretas que a Franco-Maçonaria atual não passa de um simulacro sem vida, ou melhor, um rebento degenerado. Uma vez que o Querer infrangível - faculdade soberana do adepto - só era suscetível de afirmar-se pela energia na luta e na constância, em vista da sorte adversa, quem porventura aspirasse ao grau oculto deveria, ao longo de terríveis provas preliminares(81), dar a medida de seu destemor. Porém, o Grão-Mestre interrogava, de antemão: "Filho da Terra, que queres de nós?" "Ver a Luz", caber-lhe-ia responder. A palavra Luz, aqui era apenas um símbolo de Sabedoria e de Inteligência, sendo que o postulante (embora pensasse preencher uma formalidade rotineira e banal) determinava, em linguagem abstrata, o objeto de seu modo de agir, mesmo que o desconhecesse. "Tu queres, Filho do Limo(82), enxergar a verdadeira Luz, conhecer suas leis harmoniosas. Falaste sabiamente." Se há, pois, uma denominação ao mesmo tempo sintética e sugestiva, abarcando todos os ramos da Alta Ciência e adaptando-se a cada um deles, esta denominação é, certamente, Ciência da Luz.
A Luz, segundo os Cabalistas, é essa substância única, mediadora do movimento, imarcescível, eterna, geradora de todas as coisas, a que tudo retorna no momento oportuno: receptáculo comum da vida e da morte fluídicas em que, entre os destroços do ontem, germina o embrião do amanhã! Corresponde ao Verbo (luz divina), ao Pensamento (luz intelectual), ela é simultâneamente, no mundo fenomenal (e por uma contradição apenas aparente), o esperma da matéria e a matriz das formas: o agente hermafrodita do Eterno Devir. A luz constitui o fluido universal imponderável cujas quatro manifestações sensíveis se denominam Calor, Claridade, Eletricidade e Magnetismo. É a Akasa dos Hindus, Aor dos Hebreus, o Fluido que fala de Zoroastro, Telesma de Hermes, Azoto dos alquimistas, Luz Astral de Martinez de Pasqually e de Eliphas Levi, Luz Espectral do doutor Passavant, Força Psíquica do ilustre químico inglês Crookes.
Eis o ponto central da grande Síntese Mágica. Invisível tornada ou perceptível à visão através do calor, a luz forma a dupla corrente fluídica cujo modo de circulação, matematicamente determinável, pode ser influenciado por quem chegou ao resultado final. Eis o agente supremo das obras de magnetismo e de teurgia, esse Ser multiforme personificado pela serpente da Bíblia, como vimos acima. Conhecer as leis das marés fluídicas e das correntes universais é, como diz Eliphas, possuir o segredo da onipotência humana: descobrir a fórmula prática do incomunicável Grande Arcano.
Essa luz, dizem os adeptos, é andrógina. Seu duplo movimento efetua-se incessantemente, sendo determinado por sua dupla polaridade. I Y } é a corrente positiva ou de projeção, enquanto P Y } é a corrente negativa ou de absorção. A um dado ponto de sua evolução rigorosamente invariável, a Luz Astral se condensa, e de fluídica torna-se corporal. É então a matéria ou misto coagulado. (São distintas as expressões usadas pelos alquimistas. Estes chamam Aod de Enxofre, fervor seco ou calor inato; Aob, de Mercúrio, dissoívente universal ou radical úmido; o misto coagulado é, para eles, Sal ou Terra Vermelha.)(83) Como se pode observar, por mais que varie a terminologia, a doutrina permanece idêntica. E uma vez que tudo vem da Luz, pode-se dizer que a ciência deste agente primordial revela a gênese absoluta da matéria e das formas.
Uma palavra desta teoria aplicada ao zoomagnetismo fornecer-nos-á a chave do Sonambulismo artificial, da Segunda Visão, das Miragens condensadas (aparições), dos envultamentos criminosos - em suma, de todos esses fenômenos espantosos cuja realidade é contestada pela ciência oficial, nos limites cada vez mais restritos do possível: pois o simples enunciado de semelhantes fatos - e disso ela tem plena consciência - invalidaria a priori diversas "leis fundamentais" que ela promulgou do alto de sua infalibilidade secular.
Há no homem, segundo a magia, três elementos radicais: a Alma (elemento espiritual), o Corpo (elemento material) e o Perispírito ou Mediador (elemento fluídico); assim, a criatura de Deus (como Ele, Tríplice e Una) é feita, realmente, à sua imagem e semelhança(84). A alma espiritual seria, aliás, inábil para fazer-se obedecer pelo corpo material sem a interferência de um Mediador Plástico procedente de ambos, mediador que aciona diretamente o sistema cérebro-espinhal, encarregado, por sua vez, da transmissão das ordens do Querer aos órgãos físicos. Denominados, também, de Corpo Astral, este mediador, composto de luz bipartida fixa ou especificada (fluido nervoso) e de luz bipartida volátil (fluido magnético). O fluido nervoso comanda a economia vital; o fluido magnético, que não é senão a luz ambiente, aspirada alternadamente, de um modo análogo ao da respiração pulmonar, põe o perispírito em contato direto com o mundo exterior. Ora, uma vez que este Mediador Plástico, exercido convencionalmente, segundo sua própria vontade, pode coagular ou dissolver, projetar ao longo ou atrair uma porção do fluido universal, ele possibilita ao adepto influenciar toda a massa de luz astral, nela criando correntes e produzindo, enfim - ainda que à distância -, fenômenos surpreendentes que a ignorância comum qualifica como milagres ou perversas artimanhas do diabo, quando não acha ainda mais simples negá-los obstinadamente.
Sobretudo durante o sono magnético, o perispírito funciona com maior vigor e eficácia. Nesse estado, traz para junto de si, repleto de imagens, o fluido configurativo(85) que ele acaba de projetar dado ponto do espaço. É dessa forma que ao homem lúcido, adormecido em sua poltrona, a Natureza entrega seus últimos segredos, a ponto de ele perceber igualmente os vestígios do passado, as miragens do presente e os embriões do futuro - formas e reflexos espargidos na Luz Astral.
Os supersticiosos que enxergam fantasmas e, de modo geral, todos os alucinados, acham-se, no momento da aparição, em um estado próximo ao êxtase sonambúlico. O seu translúcido, em contato imediato com o fluído ambiente, apreende os inúmeros reflexos desse tipo transportados pela corrente. Os Cabalistas, de resto, reconheceram a existência positiva de miragens animadas, espécies de coagulações da luz astral, cujas diversas formas de nascimento ou, se quisermos, de produção deixamos entrever alhures... Inconscientes, mas reais, são as Larvas propriamente ditas. (Outras criaturas semi-inteligentes, recebem, em Magia, o nome de Espíritos Elementares e Elementais)(86). Por larvas podemos entender rudimentos de mediador plástico, destituídos quer de alma consciente, quer de corpo material, suscetíveis todavia, por condensação, de se tornarem visíveis, e até mesmo palpáveis. Afetam, então, a forma dos seres de que se aproximam. O ocultista (que os atrai, que os domina e os dirige por intermédio de seu próprio corpo astral) pode dar-lhe, à vontade, a aparência de qualquer objeto, contanto que determine mentalmente a natureza do objeto designado e que, em sua imaginação, burile vigorosamente seus contornos.
Cessemos esta exposição da teoria unitária do fluido universal, pois dissemos o suficiente para que o leitor entreveja a explicação racional dos mais perturbadores fenômenos magnéticos ou espíritas, sem que lhe seja necessário recorrer ao auxílio dos manes dos antigos ou de Satanás e suas legiões sulfurosas.
Esta teoria da luz - apenas esboçada aqui em seus traços essenciais, tão somente indicada em suas mais elementares aplicações é tradicional entre os adeptos. Os Mesmerianos pressentiram-na, sem saber precisar os seus princípios gerais melhor do que definir a sua imensa e decisiva envergadura; o ardor desses homens por proclamar a onipotência do fluido magnético é testemunha desta afirmação, juntamente com a sua incapacidade quando se trata de estabelecer-lhe a existência. Colocados contra a parede, eles se entrincheiram por trás desta fórmula indefinidamente vaga: "Emito o fluido e os fenômenos se manifestam. Quando o retiro, eles cessam". Isso não basta. Se esses senhores não confundissem a Antigüidade sábia e a Tradição em um mesmo e soberbo desdém, teriam encontrado nos hieróglifos do Tarô - esse admirável livro iniciático, já há muito prostituído e vilipendiado - a indicação precisa de uma doutrina mais satisfatória, talvez... Solitária, entre os escritores que trataram de modo especial do Magnetismo, a sra. Mond, a última adepta dos Mistérios Jônicos, pôde doutamente vincular às leis primordiais da Luz as verdadeiras regras do sonambulismo provocado(87). Discípula de Eliphas Levi, ela sabia por que motivo convém crer na existência real de um agente isômero da eletricidade. Quanto aos outros fluidistas - conjuradores de nuvens pretensamente metafísicas -, fizeram menos pela manifestação do Verdadeiro do que os magnetizadores positivistas, inatacáveis no terreno que escolheram.
Ninguém murmura sequer uma palavra acerca do abade Faria, que foi o primeiro a questionar a hipótese do fluido e a promulgar, também, os princípios da sugestão. Entretanto, os psicólogos ou Braidistas deveriam reivindicá-lo por ancestral, pois que o mérito incontestável do inglês Braid parece ter sido, seguramente, haver batizado a ciência de Mesmer em destinos novos e mais acadêmicos; os sábios oficiais não possuíam anátemas suficientes para o Magnetismo; o Hipnotismo lhes aprazia. - "O hábito faz o monge..." Esta máxima é tão justa, que uma vez caída a etiqueta injuriosa todos, alquimistas, médicos, professores, lançaram-se inescrupulosamente às práticas que por tanto tempo estiveram proibidas. O Instituto revogou a proibição outrora invectivada contra a ciência ortodoxa e, pronto para sancionar a ciência anabatista, acolheu a sugestão. Por mais incapaz que seja, aliás, esta hipótese para explicar o que se acha além das aparências, ela não é destituída de um real valor científico, conforme veremos adiante. A escola de Nancy, formada recentemente sob a égide de um sábio de primeira categoria, o doutor Liébault, levou o Magnetismo experimental e positivo às suas fórmulas mais nítidas - e nós preferimos mil vezes a ciência considerada deste ponto de vista, algo exclusivo e restrito, aos incoerentes desvarios dos caudatários mesmerianos, obcecados por um pseudo-fluidismo indigente.
Não é a divulgação mal compreendida das doutrinas cabalísticas referentes à questão dos espíritos elementares que se há de atribuir as aberrações do espiritismo contemporâneo? É possível. Os filhos supersticiosos da Idade Média tremiam diante da simples narração de visões misteriosas. O coveiro julgara distinguir, sobre os túmulos, vagas formas em véus diáfanos. O assassino sentira seu braço - já levantado para a prática do crime - sendo agarrado por uma mão invisível. O clérigo, tendo evocado Belzebu, vira-o surgir em turbilhões de fumaça ruiva. O fantasma de uma mãe castigada despontara aos olhos de seu filho para implorar padre-nossos. Contudo, ninguém jamais imaginara computar os sobressaltos de uma cartola ou de uma mesinha afim de obter, desse modo, revelações de além-túmulo! Falava-se de solares assombrados. Porém, qual o tolo que se atreveria a acreditar na obsessão de uma mesa ou de um chapéu? Tais convicções estavam reservadas ao século XIX... Por que haveríamos de insistir nos sonhos vazios de um Allan Kardec? Não contestamos a realidade física das manifestações, mas este não é o lugar adequado para tecer comentários a respeito. Além disso, o que dissemos acerca da luz astral deve elucidar o leitor quanto à causa eficiente e aos modos de produção dos fenômenos extraordinários em que nossos homens de espírito se gabam de ver "a mão dos desencarnados"(88). Por mais bizarros que sejam os fatos observados, não há nada que não seja natural, pois que, no sentido que as pessoas geralmente atribuem ao vocábulo, o Sobrenatural não existe. Porém, a razão última destas criações anormais de fluido coagulado a alta tensão reside num arcano mais terrível, em si mesmo, do que as fantasmagorias diabólicas que amedrontavam a ingenuidade de nossos pais.
Se fossem divulgados todos os segredos atinentes, de perto ou de longe, ao magnetismo animal, e se houvesse no mundo número suficiente de homens perversos para deles abusar coletivamente, é triste afirmar isto, mas tão nefastos, tão funestos seriam os frutos de tal civilização, que teríamos de aguardar ansiosos uma invasão de bárbaros, a título de libertação! Viriam eles, os brutos benfazejos e, para aniquilar os frutos insanos, solapariam a árvore contaminada... E benditos seriam eles por desobstruirem os destroços imundos daquilo que fora a grande civilização européia.
Há ciências fatais. Tal como outrora a casta Diana, a Natureza fulmina com a morte ou faz tombar o temerário que a surpreende desvelada; dá, porém, o seu beijo furtivo e sua carícia de luz ao homem simples e laborioso que não cobiçou o poder oculto para uma obra imbuída de um egoísmo mesquinho. Assim, Febo sorria ao pastor Endimião sem que este suspeitasse de seu sorriso, e beijava-o quando ele estava adormecido. Eis um simbolismo ainda mais profundo do que o da Bíblia. O fruto tentador acha-se eternamente suspenso na árvore do Bem e do Mal. Aproxima-te, se és puro; toca e contempla o pomo à vontade. Se ousas, come sua polpa, respeitando sua semente. Porém, não o colhas para o vulgo, pois o fruto da Ciência em mãos vulgares tornar-se-ia fruto da Morte.
Essas páginas, Leitor, constituem uma espécie de introdução às que publicaremos em seguida. Andando por entre aqueles que passarem a vida sob os ramos da macieira simbólica, só nos aproximamos desta árvore acidentalmente, e como que impelidos pela multidão. Doravante, mais audaciosos para atingir os seus frutos, ergueremos a cabeça e estenderemos os braços. Posteriormente, elevaremos também nossos corações na direção do mistério.
Sursum corda! Esse é o clamor das almas que aspiram à imortalidade. Essa é a divisa dos hierarcas que labutam pela ascensão. É o verbo dos Chamados que serão os Eleitos! O triângulo divino flameja por sobre os cumes. Em direção a ele se eleva a dupla escada de Jacó, cujos altos degraus perdem-se entre as nuvens. Galgam esses degraus sem soçobrar aqueles que, se não passam de homens, possuem os "flancos de baixa argila consumidos em desejos de Deus"(89)
Desaparecidos em meio ao nevoeiro, aqueles que se encontram abaixo os perdem de vista, enquanto eles, no alto, recebem a iniciação. Em seguida, tornarão a descer. Porém, como Moisés, a luz, contemplada face a face, terá deixado seu reflexo sobre eles: ao descerem, descerão arcanjos, para convidar as almas ousadas à escalada do céu: Violenti rapiunt illud. Se o absoluto não pode revelar-se aos filhos dos homens, que os fortes ascendam até ele para conquistá-lo. Quando retornarem aos seus irmãos mais tímidos, a fim de renderem homenagem à Luz(90), estes poderão ver, pela auréola de sua fronte, que, sem deixarem de ser Filhos da Terra, eles se fizeram naturalizar Filhos do Céu.
APÊNDICE I
O Amphitheatrum
Sapientiae Aeternae de Khunrath
As duas pranchas cabalísticas reproduzidas no rosto desta brochura foram extraídas de um pequeno in-fólio raro e singular, muito conhecido pelos colecionadores de alfarrábios com ilustrações e muito procurado por todos aqueles que se preocupam, pelas mais diversas razões, com o esoterismo das religiões, com a tradição de uma doutrina secreta sob os véus simbólicos do cristianismo - enfim, com a transmissão do sacerdócio mágico no Ocidente.
"AMPHITHEATRUM SAPIENTIAE AETERNAE, SOLIUS VERAE, christiano-Kabbalisticum, divino-magicum, necnon physicochemicum, tertriunum, katholikon: instructore ENRICO KHUNRATH, etc., HANOVIAE, 1609, in-folio".
Único em seu gênero, inestimável sobretudo para os pesquisadores curiosos por aprofundar estas questões perturbadoras, este livro acha-se, infelizmente, incompleto em grande número de exemplares. Talvez sejamos alvo da gratidão do comprador se fornecermos, aqui, algumas rápidas informações que lhe possibilitarão prever e prevenir uma decepção.
As gravuras a buril, em número de doze, aparecem geralmente no frontispício da obra, agrupadas de modo arbitrário, já que o autor - talvez propositadamente - deixou de indicar a seqüência. O essencial é possuir a série completa, pois sua classificação varia de exemplar para exemplar.
Três dessas gravuras são em formato simples - 1° . o frontispício alegórico enquadrando o título gravado; 2° . o retrato do autor, cercado de atributos igualmente alegóricos; 3° . uma coruja de óculos, magistralmente empoleirada entre dois archotes iluminados, com duas tochas ardentes formando uma cruz de Santo André em sua frente. Abaixo, figura uma legenda rimada em alemão duvidoso e cuja tradução pode ser:
"De que servem archotes, tochas e óculos
a quem cerra os olhos para não ver?"
Em seguida, aparecem nove majestosas figuras mágicas, cuidadosamente gravadas, em formato duplo e sobre ongletes. São: 1) (*) o grande andrógino hermético; 2) (*) o Laboratório de Khunrath. 3) (*) Adão e Eva no triângulo verbal; 4) (*) Rosa-Cruz(91) pentagramática; 5) os sete degraus do santuário e os sete raios; 6) (*) a Cidadela alquímica com vinte portas sem saída; 7) o Gymnasium naturae, figura sintética e muito sábia, sob a aparência de uma paisagem bastante ingênua; 8) a Tábua de Esmeralda gravada sobre a pedra ígnea e mercurial; 9) (*) o Pantáculo de Khunrath, ornamentado com uma caricatura satírica ao gosto de Callot; é, de certa forma, um Callot por antecipação(92).
Esta última prancha, de incisiva ironia e de uma arte selvagem verdadeiramente saborosa, falta em quase todos os exemplares. Os numerosos inimigos do teósofo, que aqui se vêem caricaturados por um gênio acerbo e que sem esforço percebemos triunfante preocupado com as semelhanças, empenharam-se em fazer desaparecer uma gravura de tão escandaloso interesse.
Quanto aos outros pantáculos, aqueles a que acrescentamos um asterisco (*) faltam, igualmente, em inúmeros exemplares.
Examinemos agora o texto, que é dividido em duas seções. As sessenta primeiras páginas, numeradas à parte, compreendem um privilégio imperial (com data de 1598) e, então, diversas partes: discurso, dedicatória, poesias, prólogo, argumentos. Enfim, o texto dos Provérbios de Salomão, do qual o restante do Amphitheatrum é o comentário esotérico.
Vem, em seguida, o comentário, constituindo a obra propriamente dita, em sete capítulos, seguidos por sua vez de esclarecimentos muito curiosos sob o título: lnterpretationes et annotationes Henrici Khunrath. Esta segunda parte totaliza 222 páginas. Uma última folha traz o nome do impressor: G. Antonius, o lugar de impressão e a data: Hanoviae, MDCIX.
Encerremos esta descrição com uma observação importante do erudito bibliófilo G.F. de Bure, que diz, no tomo 11 de sua Bibliografia: "É de se observar que, na primeira parte desta obra, de 60 páginas, deve-se encontrar, entre as páginas 18 e 19, uma espécie de sumário particular, impresso numa folha inteira com ongletes, sumário esse intitulado Summa Amphitheatri sapientiae, etc... e na segunda parte, de 222 páginas, um outro sumário, similarmente impresso numa folha inteira com ongletes, e que deve localizar-se à página 151, à qual remetem dois asteriscos colocados no texto. Já observamos que estes dois sumários faltam nos exemplares que vimos, razão pela qual será conveniente ter cuidado..." (p. 248)
Passemos ao estudo detalhado das pranchas cabalísticas cuja reprodução esta edição de nossa obra oferece ao público.
APÊNDICE II
Análise da Rosa-Cruz

Segundo Henry Khunrath
Esta figura é um esplêndido pantáculo, isto é, o resumo hieroglífico de toda uma doutrina. Aqui encontramos, agrupados em uma sábia síntese, todos os mistérios pentagramáticos da Rosa-Cruz dos adeptos.
Primeiramente, observa-se o ponto central desenvolvendo a circunferência em três graus diferentes, o que resulta em três regiões circulares e concêntricas que representam o processo da EMANAÇÃO propriamente dita.
No centro, um Cristo de braços estendidos em uma rosa de luz, ou seja, a resplandecência do Verbo ou do ADÃO KADMON GYKIN JI} ; é o emblema do Grande Arcano: jamais se revelou com tamanha audácia a identidade de essência entre o Homem-síntese e Deus manifestado.
Não é sem as mais profundas razões que o hierógrafo reservou para o centro de seu pantáculo o símbolo que representa a encarnação do Verbo eterno. É, com efeito, pelo Verbo, no Verbo e através do Verbo (indissoluvelmente unido, ele mesmo, à Vida), que todas as coisas, quer espirituais, quer corporais, foram criadas. - "In principio erat Verbum (diz São João) et Verbum erat apud Deum, et Deus erat Verbum... Omnia per ipsum facta sunt et sine ipso factum est nihil quod factum est. In ipso vita erat..." Caso se queira atentar para qual parte da figura humana deve ser atribuído o ponto central que desenvolve a circunferência, compreender-se-á, talvez, com que poder hieroglífico o Iniciador soube exprimir esse mistério fundamental.
O esplendor luminoso floresce em toda parte. Trata-se de uma rosa que desabrochou em cinco pétalas - o astro de cinco pontas do Microcosmo Cabalístico, a Estrela Flamejante da Maçonaria, o símbolo da Vontade onipotente, armada com o gládio de fogo dos Querubins.
Para falar a língua do Cristianismo esotérico, é a esfera de Deus Filho, postada entre a de Deus Pai (a Esfera de sombra do alto em que sobressai, em caracteres luminosos, Ain Soph > Y F G W }) e a de Deus Espírito Santo, Rouach Hakkadosch VYINU UYB (a esfera luminosa de baixo em que sobressai, em caracteres negros, o hierograma Emeth ZK}).
Essas duas esferas apareciam como que perdidas nas nuvens de Atziluth ZYLW<}, para indicar a natureza oculta da primeira e da terceira pessoa da Santa Trindade: o vocábulo hebraico que as exprime destaca-se aqui vigorosamente, resplandecente, sobre um fundo sombreado, e lá, tenebroso sobre um fundo de luz, para evidenciar que o nosso espírito, Inapto para penetrar esses Princípios em sua essência, pode apenas entrever as suas relações antitéticas, em virtude da analogia dos contrários.
Acima da esfera de Ain-Soph, a palavra sagrada de Jehovah ou Iahoah decompõe-se em um triângulo de chama, como se segue:
W
U W
Y U W
U Y U W
Sem nos engajarmos na análise hieroglífica deste vocábulo sagrado, sem pretendermos, sobretudo, expor aqui os arcanos de sua geração - o que implicaria intermináveis revelações -, podemos dizer que, deste ponto de vista especial, Iod W simboliza o Pai, Iah U W , o Filho, Iaho Y U W , o Espírito Santo, lahoah U Y U W, o Universo vivo, e que este triângulo místico é atribuído à esfera do inefável Ain Soph ou Deus Pai. Os Cabalistas quiseram mostrar, com isso, que o Pai é o manancial da Trindade inteira e que, além disso, contém em virtualidade oculta tudo o que é, que foi e que será.
Acima da esfera de Emeth (a Verdade) ou do Espírito Santo, na irradiação mesma da Rosa-Cruz e sob os pés do Cristo, uma pomba cingindo a tiara pontifical alça o seu vôo inflamado - emblema da dupla corrente de amor e de luz que desce do Pai ao Filho, de Deus ao Homem, remontando do Filho ao Pai e do Homem a Deus. Suas duas asas estendidas correspondem exatamente ao símbolo pagão das duas serpentes entrelaçadas em torno do caduceu de Hermes. Somente os iniciados podem compreender esta aproximação misteriosa.
Retornemos à esfera do Filho, que necessita de comentários mais extensos. Ressaltamos acima o caráter impenetrável do Pai e do Espírito Santo, encarados em sua essência. Sozinha, a segunda pessoa da Trindade - representada pela Rosa-Cruz central - penetra as nuvens de Atziluth, dardejando nelas os dez raios sefiróticos.
São como janelas iguais abertas sobre o grande arcano do Verbo, podendo-se completar através delas seu esplendor sob dez diferentes pontos de vista. O Zohar compara, com efeito, as dez sefirotes a dez vasos iguais transparentes, de cores dispares, através dos quais resplandece, sob dez aspectos diferentes, o fogo central da Unidade-Síntese.
Vamos supor, ainda, uma torre com dez janelas, tendo ao centro um candelabro brilhante de cinco braços. Este quinário luminoso será visível através de cada uma das janelas. Aquele que se detiver nelas, sucessivamente, poderá contar dez candelabros ardentes de cinco braços... (multiplique-se o pentagrama por dez, fazendo fulgir as cinco pontas em cada uma das dez aberturas e se terão as Cinqüenta Portas de Luz ou da Inteligência). Quem pretender a síntese deve entrar na torre. Se conseguir apenas contorná-la, será um analítico puro. Veja-se a que erros de ótica se expõe quando deseja raciocinar sobre o conjunto.
Diremos mais algumas palavras quanto ao sistema sefirótico. Deve-se concluir com o emblema central. Reduzido às proporções geométricas de um esquema, pode ser traçado da seguinte forma:


Uma cruz fechada numa estrela flamejante: trata-se do quaternário que encontra sua expansão no quinário.
É a pura substância, que se submultiplica, descendo à cloaca da matéria em que atolará por algum tempo. Seu destino, porém, é encontrar em seu próprio aviltamento a revelação da sua personalidade. E - como presságio de salvação - ela, no último escalão de sua queda, já sente surgir, de modo instintivo, a grande força redentora da Vontade.
É o Verbo, UYUW que se encarna e se torna o Cristo doloroso ou homem corporal, U Y V U W. até o dia em que, assumindo com ele sua natureza humana regenerada, reingresse em sua glória.
Eis o que exprime o adepto Saint-Martin, no primeiro tomo de sua obra Dos Erros e da Verdade, quando ensina que a queda do homem provém do fato de ele, homem, haver invertido as folhas do Grande Livro da Vida, substituindo a quarta página (a da imortalidade espiritual) pela quinta (a da corrupção e da decadência).
Adicionando o quaternário crucial e o pentagrama estrelado, obtem-se 9, cifra misteriosa cuja explicação completa faria com que deixássemos o quadro que traçamos. Em outra oportunidade (Lótus, tomo II, n° 12, pág. 327-328) expusemos em detalhe e demonstramos, por um cálculo de cabala numérica, como o 9 é o número analítico do homem. Remetemos o leitor a essa exposição(93).
Observemos ainda - já que, na Alta Ciência, tudo se entrelaça e as concordâncias analógicas são absolutas - que, nas figuras geométricas da Rosa-Cruz, a rosa é tradicionalmente formada de nove circunferências entrelaçadas, formando anéis infinitamente encadeados. Sempre o número analítico do homem: o 9!
Impõe-se, aqui, uma observação sugestiva, que confirmará mais uma vez nossa teoria. É evidente, para todos aqueles que possuem algumas noções de esoterismo, que os quatro braços da cruz interior (representada pelo Cristo com os braços estendidos) devem ser marcados pelas letras do tetragrama, ou seja, Iod, He, Vau, He. Não conviria que nós, aqui, retomássemos ao que em outra parte(94) dissemos a respeito da composição hieroglífica e gramatical deste vocábulo sagrado: comentários mais detalhados e mais completos encontram-se comumente nas obras de todos os cabalistas. (Ver, de preferência, Rosenroth, Kabbala Desnudata; Lenain, A Ciência Cabalística; Fabre d'Olivet, Língua Hebraica reconstituída; Eliphas Levi, Dogma e Ritual, História da Magia, Chave dos Grandes Mistérios; Papus, Tratado Metódico da Ciência Oculta e, sobretudo, o Tarô.) Porém, consideremos por um momento o hierograma Ieschua UYVUW. Que elementos o compõem? Todos podem ver, aí, o célebre tetragrama UYUW, separado ao meio UY - UW, posteriormente pela letra hebraica V (shin). Ora, UYUW exprime, aqui, o Adão Kadmon, ou seja, o Homem em sua síntese integral; em suma, a divindade manifestada por seu Verbo e representando a união fecunda do Espírito e da Alma Universais. Cindir a palavra é emblematizar a desintegração de sua unidade e a multiplicação divisional que daí resulta para a geração dos submúltiplos. O shin V , que reúne os dois membros, representa (Arcano 21 ou 0 do Tarô) o fogo gerador ou sutil, o veículo da Vida não diferenciada, o Mediador Plástico Universal cuja finalidade é efetuar as encarnações, permitindo que o Espírito desça até a matéria, penetrando-a, aprimorando-a e, enfim, elaborando-a à vontade. O V, traço de união entre as duas partes do tetragrama mutilado, é, assim, o símbolo da desintegração e da fixação, no mundo elementar e material, de UYUW em estase de submultiplicação.
É o V , enfim, que adicionado ao quaternário verbal, da forma como expusemos, produz o quinário, ou número de decadência. Saint-Martin vislumbrou este aspecto de modo muito claro. Porém, 5, que é o número da queda, é igualmente o número da vontade, e a vontade é o instrumento da reintegração.
Os iniciados sabem o quanto a substituição de 4 pelo 5 é apenas transitoriamente desastrosa: sabem como, na lama em que chafurda decaído, o submúltiplo humano aprende a conquistar uma personalidade verdadeiramente livre e consciente. Felix culpa! De sua queda, reergue-se mais forte e maior. E é assim que o mal só sucede o bem temporariamente, e tendo em vista a realização do melhor!
Este número 5 oculta os mais profundos arcanos. Entretanto, somos forçados a limitar nosso comentário, sob pena de nos vermos compromissados em intermináveis digressões. O que dissemos do 4 e do 5 em suas relações com a Rosa-Cruz bastará aos Iniciáveis. E é somente a eles que nos dirigimos.

Digamos algumas palavras, neste momento, acerca dos raios, em número de dez, que penetram a região das nuvens ou de Atziluth. É o denário de Pitágoras que denominamos, em Cabala, emanação sefirótica. Antes de apresentarmos aos nossos leitores a mais luminosa classificação das sefirotes cabalísticas, traçaremos um pequeno quadro das correspondências tradicionais entre as dez Sefirotes e os dez principais nomes dados à divindade pelos teólogos hebreus. Esses hierogramas que Khunrath gravou em círculo no desabrochar da rosa flamejante correspondem, respectivamente, a uma das dez Sefirotes.
sefirotes correspondentes
BZP Kether A Coroa UWU} Eieie O Ser
UKPR Hochmah A Sabedoria UW Iah Iah
UHWP Binah A Inteligência UYUW Ihoah Jehovah, o Eterno
IFR Hesed A Misericórdia L} El El
UBYPO Geburah A Justiça BYPO JWUL Elohim Ghibbor Elohim Ghibbor
ZB}AZ Tiphereth A Beleza UYL} Eloha Eloha
UDH Netzah A Vitória ZY}P< UYUW Ihoah Zebaoth Jehovah Sabaoth
IYU Hod A Eternidade ZY}P< JWUL} Elohim Zebaoth Elohim Sabaoth Deus dos Exércitos
IYFW Yesod O Fundamento WIV Shaddai O Todo Poderoso
ZYPLK Malkuth O Reino :LK WHI} Adonai Meleck O Senhor Rei
Quanto aos nomes divinos, uma vez feita a sua tradução sintética em linguagem comum, iremos deduzir, da forma mais concisa possível. a partir do exame hieroglífico de cada um, a significação esotérica mediana que se pode atribuir a eles:
UWU} - O que constitui a essência imarcescível do Ser absoluto. Onde fermenta a vida.
UW - A indissolúvel união do Espírito e da Alma universais(95).
UYUW - Copulação dos Princípios masculino e feminino, que geram eternamente o Universo vivo (Grande Arcano do Verbo).
L} - O desdobramento da União-princípio. Sua difusão no Espaço e no Tempo.
BYPO JWUL} - Deus-os-deuses, dos gigantes ou dos homens-deuses.
UYL} - Deus refletido em um dos deuses.
ZY}P< UYUW - O Iod-heve (ver acima) do Setenário ou do triunfo.
ZY}P< JWUL} - Deus-os-deuses, do Setenário, ou do triunfo.
WIV - O Fecundador, pela Luz Astral em expansão quaternizada; em seguida, o retorno dessa Luz ao princípio eternamente oculto de onde emana. (Masculino de UBV, a Fecundidade, a Natureza).
WHI} - A multiplicação quaterna ou cúbica da Unidade-princípio, pela produção do Devir que incessantemente se altera (o pagta rei de Heráclito); em seguida, a ocultação final do objetivo concreto, pelo retorno ao subjetivo potencial.
:LK - A Morte maternal, cópia da vida; lei fatal que se cumpre em todo o Universo e que interrompe, com uma força súbita, o seu movimento de transformação perpétua, cada vez que um ser qualquer se objetiva(96).
Assim são esses hierogramas em uma de suas significações secretas.

Observemos, de resto, que cada uma das dez Sefirotes (aspectos do Verbo) corresponde, no pentáculo de Khunrath, a um dos coros angélicos, idéia sublime quando se sabe aprofundá-la. Os anjos, segundo a cabala primitiva, não são seres de essência particular e imutável: tudo se move, evolui e se transforma no Universo vivo! Aplicando-se às hierarquias celestes a bela comparação pela qual os autores do Zohar buscam exprimir a natureza das Sefirotes, diremos que os coros angélicos são comparáveis a envelopes transparentes e de cores diversas, em que vêm brilhar alternadamente, com uma luz cada vez mais esplêndida e pura, os Espíritos que, definitivamente libertos das formas temporais, ascendem aos supremos degraus da escada de Jacó, cujo nome é ocupado pelo misterioso UYUW.
A cada um dos coros angélicos, Khunrath faz corresponder, ainda, um dos versículos do decálogo. É como se o anjo regente de cada grau abrisse a boca para promulgar um dos preceitos da lei divina. Mas isto parece um tanto arbitrário e menos digno de reter nossa atenção.
Uma idéia mais profunda do teófoso de Lípsia consiste em derivar as letras do alfabeto hebraico da nuvem de Atziluth, eivada de raios sefiróticos.
Fazer nascer dos contrastes da Luz e das Trevas as vinte e duas letras do alfabeto sagrado hieroglífico - as quais correspondem, como se sabe, aos vinte e dois arcanos da Doutrina Absoluta, traduzidos em pantáculos nas vinte e duas chaves do Tarô dos Boêmios - não significa condensar em uma imagem marcante toda a doutrina do Livro da Formação ou Sepher-Yetzirah (UYW<W BAF)? Esses emblemas, com efeito, alternadamente resplandecentes e lúgubres, misteriosas figuras que simbolizam tão bem o Fas e o Nefas do eterno Destino, Henry Khunrath fá-los nascer da união fecunda da Sombra e da Claridade, do Erro e da Verdade, do Mal e do Bem, do Ser e do Não-Ser! De súbito, despontam no horizonte fantasmas imprevistos, de expressão sorridente ou lúgubre, esplendorosa ou ameaçadora, quando, sobre o amontoado de nuvens densas e sombrias, Febo, uma vez mais vencedor de Píton, dardeja suas flechas de ouro.
O quadro que acabamos de apresentar fornece, com o sentido real das Sefirotes, as correspondências que estabelece a Cabala entre essas últimas e as hierarquias espirituais. A título de complementação das noções elementares que logramos apresentar com referência ao sistema sefirótico, concluiremos este trabalho com o esquema, bastante conhecido, do tríplice ternário reconduzido à Unidade pela década. Essa classificação é extremamente luminosa, a nosso ver, e notadamente fecunda em preciosos corolários (Cf. figura a seguir).
Os três ternários representam a trindade manifestada nos três mundos. O primeiro ternário - o do mundo intelectual - é a única representação absoluta da Trindade Santa: a Providência equilibrando os dois pratos da balança na ordem divina - a Sabedoria e a Inteligência.
Os dois ternários inferiores são mais do que reflexos do primeiro, nos meios mais densos dos mundos moral e astral. São também invertidos, como a imagem de um objeto que se reflete na superfície de um líquido.
No mundo moral, a Beleza(97) (ou Harmonia ou Retidão) equilibra os pratos da balança a
Misericórdia e a Justiça.
No mundo astral, a Geração, instrumento da estabilidade dos seres, assegura a Vitória sobre a morte e o nada, alimentando a Eternidade pela inesgotável sucessão das coisas efêmeras. Enfim, Malkuth, o Reino das formas, realiza, abaixo, a síntese totalizada, desabrochada e perfeita das Sefirotes em que, ao alto, Kether, a Providência (ou a Coroa), encerra a síntese antecedente e potencial.
sefirotes correspondentes
BZP Kether A Providênciaequilibrante VYINU ZYWU Haioth Hakadosch As inteligências providenciais
UKPR Hochmah A Divina Sabedoria JWHAY} Ophanim Os Motores das rodas
UHWP Binah A Inteligência sempre ativa JWL}B} Aralim Os Poderosos
IFR Hesed A Misericórdia Infinita JWLKVU Hasmalim Os Lúcidos
UBYPO Geburah A Absoluta Justiça JWABV Seraphim Os anjos ardentes de zelo
ZB}AZ Tiphereth A Imarcessível Beleza JWP}LK Malachim Os Reis do esplendor
UDH Netzah A Vitória da Vida sobre a Morte JWUL} Elohim Os deuses (enviados deDeus)
IYU Hod A Eternidade do Ser JWUL} WHP Beni-Elohim Os filhos dos Deuses
IYFW Yesod A geração, pedra angular da estabilidade JWPBP Cherubim Os Ministrantes do fogoastral
ZYPLK Malkuth O Princípio das formas JWVW} Ischim As Almas glorificadas
Muitas coisas ainda nos restariam a dizer a respeito da Rosa-Cruz simbólica de Henri Khunrath. Entretanto, precisamos limitar-nos.
Na verdade, não seria excessivo escrever um livro inteiro para o desenvolvimento lógico e normal dos assuntos que abordamos concisamente. O leitor, por sua vez, fatalmente nos julgará excessivamente abstrato e, mesmo, obscuro. Cabe-nos aqui apresentar-lhe nossas escusas.
Talvez, se vale a pena aprofundar a cabala até as suas fontes, não será fastidioso reencontrar, ao longo desta exposição maciça e de leitura tão fatigante, a indicação precisa e mesmo a explicação em língua iniciática, de um número considerável de arcanos transcedentes.
Assim como a álgebra, a Cabala tem suas equações e seu vocabulário técnico. Leitor, é uma língua a ser aprendida, uma língua cuja maravilhosa precisão e o emprego costumeiro o ressarcirá plenamente, em seguida, pelos esforços que seu espírito despendeu no período de estudos.
APÊNDICE III
Análise do Andrógino
de Henry Khunrath
O Grande Andrógino de meio corpo constitui, visivelmente, um pantáculo hermético ou de Crisopeu.
Este é, evidentemente, o sentido imediato e capital do emblema. É fácil convencer-se disso através do exame dos acessórios agrupados em torno da figura central, e, ainda que restasse alguma dúvida, bastaria a leitura dos textos latinos muito detalhados que revestem a gravura para dirimir qualquer incerteza, traindo a preocupação constante do teósofo, que é, antes de mais nada, a alquimia.
Mas, em Magia, as correspondências analógicas sendo absolutas, de um mundo para o outro, resulta que todo verbo oculto proferido em alguma das três esferas desperta, naturalmente, um eco nas outras duas: trata-se sempre da mesma nota, uma oitava acima ou abaixo. O sentido dos símbolos é, assim, múltiplo e pode estabelecer-se sobre uma escala rigorosamente determinável a priori.
A explicação hermética de nossa prancha corresponde ao sentido natural ou positivo. O sentido moral ou comparativo requer uma explicação psicológica, e o sentido espiritual ou superlativo, uma explicação de ordem metafísica.
Em nosso comentário sobre a Rosa-Cruz de Khunrath, propuséramos fazer, de certa forma, um amálgama das três significações. Nesta oportunidade tentaremos indicá-las à parte.
Aqui, além disso, o interesse concentra-se principalmente na interpretação alquímica, uma vez que, evidentemente, ela domina as duas outras no pensamento do autor.
Parece-nos lógico expor, em primeiro lugar, a interpretação alquímica - e pensamos surpreender agradavelmente nosso público dando a palavra, aqui, a um colega não só bem conhecido como também muito apreciado por ele. Papus, que bem antes de nós se lançou ao estudo prático da espagiria (até alcançar êxito em diversas experiências de ordem bastante particular). Papus nos brindará com algumas dessas páginas em que talvez seja o único a saber casar, de um modo primoroso, a profundidade das idéias com a limpidez de estilo.
Sentido positivo ou natural do emblema
por Papus
Atendendo ao desejo de nosso amigo e irmão Stanislas de Guaita, iremos expor, em algumas linhas, o sentido puramente alquímico da figura pantacular de Khunrath. Assim, o esquema que traçamos é estritamente limitado e devemos restringir-nos à exposição das grandes generalidades reveladas por esta magnífica síntese simbólica.
A Pedra Filosofal ofereceu provas irrefutáveis de sua existência, fato que outrora já nos esforçamos por demonstrar, com a história na mão(98).
Meu Deus, sim, cético leitor, sorris em vão ante o relato de todas essas legendas de velhos alquimistas usando sua vida e dilapidando sua fortuna na procura da Grande Obra. Não se trata de brilhantes quimeras. No fundo de tudo isso oculta-se um reverberante raio de verdade e os dez mil volumes que tratam dessas matérias não constituem obra de malabaristas indignos ou de impudentes falsários.
Os livros de alquimia são escritos de tal forma, que podereis, de maneira mais fácil, dar-vos conta de todos os fenômenos que se sucedem na preparação da Pedra Filosofal, sem jamais chegardes, vós mesmos, a prepará-la.
A razão disto é bastante simples. Os mestres escondem o nome da matéria-prima necessária à obra e o meio de elaborar e de preparar esta matéria-prima pelo emprego do Fogo Filosófico ou Luz Astral humanizada. Ora, é indispensável dizer duas palavras acerca dos fenômenos que assinalam a preparação da Pedra Filosofal, sob pena de jamais se chegar à compreensão do que iremos explicar com referência à figura simbólica de Khunrath considerada alquimicamente.
Quando colocais os dois produtos, sobre cuja origem os alquimistas silenciam prudentemente, no ovo de vidro do athanor e fazeis agir o fogo secreto sobre esta mistura, diversos fenômenos muito interessantes surgem aos vossos olhos.
A matéria contida no athanor torna-se, de início, absolutamente negra. Ela parece putrefata e completamente perdida, mas é neste momento que o alquimista se rejubila, uma vez que reconhece, aí, o primeiro estágio da evolução da Grande Obra, estágio designado pelos nomes de Cabeça de Corvo e Caos.
Essa cor persiste durante vários dias ou várias horas, conforme a habilidade do artista, e, em seguida, quase sem transição, a matéria assume uma coloração branca muito cintilante. Esta cor indica que a combinação entre os dois produtos colocados no athanor está efetuada, a metade do trabalho realizada.
A esta cor branca seguem-se cores variadas, segundo uma progressão ascendente relacionada com o espectro solar, ou seja, começando pelo violeta para elevar-se, passando por uma diversidade de nuanças, ao vermelho púrpura, que indica o fim da Obra.
A esses fenômenos de coloração, estão ligados outros fatos puramente físicos: alternativas de volatilização e de fixação, de solidificação e de semiliqüefação da matéria; fatos que levaram os alquimistas a comparar a criação da Pedra Filosofal pelo homem com a criação do Universo por Deus (fenomenalmente falando). A grande lei da Ciência Oculta, a Analogia, dá a razão de ser de todas as deduções, mas sairíamos do esquema que traçamos se nos detivéssemos mais nesse ponto.
Guardemos simplesmente os três grandes estados por que passa a matéria: o negro, o branco, o vermelho, e, munidos desses dados, vamos à explicação de nossa imagem.
No primeiro relance, aparecem três grandes círculos, cada um deles subdivididos em três outros. O círculo inferior traz, ao centro, escrita em letras maiúsculas e em língua grega, a palavra (Caos).
O círculo médio deixa sobressair sobretudo a palavra REBIS.
Enfim, o círculo superior apresenta a palavra AZOTH.
Caos, Rebis, Azoth são, portanto, os três termos que nos darão o sentido geral de nossa figura.
CAOS (1° Círculo)
O círculo inferior indica a criação da Matéria-prima e nos mostra a imagem do Universo. Ele simboliza particularmente a COR NEGRA da obra, ou a Cabeça de Corvo.
Não nos cabe entrar em todos os detalhes da preparação, revelados pelas palavras contidas no círculo; mostremos simplesmente a verdade de nossa explicação através de um excerto do Dicionário mitohermético de Pernety:
"Desenvolvendo-se este caos pela volatização, este abismo de água deixa ver pouco a pouco a terra, à medida que a unidade se sublima no alto do vaso. Eis porque os químicos herméticos acreditaram que pudessem comparar sua obra, ou o que se passa durante as operações, com o desenvolvimento do Universo quando da criação" (Pernety).
REBIS (2° Círculo)
O segundo círculo apresenta-nos a figura misteriosa do Andrógino hermético (o Sol e a Lua). Nosso sábio irmão Guaita exporá o sentido cabalístico dessa importante figura. Quanto a nós, basta que digamos que ela exprime alquimicamente a COR BRANCA da obra, resultante da união dos dois princípios, positivo e negativo.
O adágio Etiam Mundus Renovabitur Igne, que corresponde ao famoso Igne Natura Renovatur Integra INRI da Franco-Maçonaria Oculta, indica que é nesse momento que começa a aplicação do fogo filosófico sobre a matéria. O quadrado dos elementos (Ignis, Aqua, Terra, Aer), compreendendo o triângulo da constituição de todo ser (Anima, Spiritus, Corpus), indica a teoria do 2° grau da Obra.
O triângulo Separa, Dissolve, Depura, dominado pelo quaternário Solve, Fige, Coagula, Compone, indica a prática deste segundo grau da obra hermética. Enfim, todas essas operações redundam na criação de uma única e mesma coisa, REBIS, conforme define Pernety:
"O espírito mineral, crescendo como que da água, diz o bom Trévisan, mistura-se com seu corpo, na primeira decocção, dissolvendo-o. Eis porque se dá a ele o nome de REBIS, pois é feito de duas coisas, a saber, do macho e da fêmea, isto é, do dissolvente e do corpo dissolúvel, embora no fundo se trate de uma mesma coisa e de uma mesma matéria" (Pernety).
AZOTH (3° Círculo)
É a fênix alquímica que simboliza o terceiro círculo. O Fogo astral com todos os seus mistérios é claramente indicado nesta maravilhosa figura. As penas de pavão simbolizam as cores variadas que toma a matéria sob a influência deste fogo filosófico que chamusca sem arder, este fogo úmido e sutil representado pelas asas da Fênix. De resto, o vocábulo Azoth, indica por si mesmo, o sentido de toda a imagem.
"Azoth, segundo Planiscampi, significa meio de união, de conservação ou medicina universal. Observa também que o termo Azoth deve ser visto como o princípio e o fim de todo corpo e que encerra todas as propriedades cabalísticas, já que contém a primeira e a última letra das três línguas mães, o Aleph e o Thau dos hebreus, o Alpha e o Ômega dos gregos, o A e o Z dos latinos" (Pernety).
ELOIM
Acima desses três círculos, resplandece no triângulo místico o nome sagrado ELE-OS-DEUSES, Eloim, símbolo da Pedra Filosofal perfeita. Entramos aqui, inteiramente, no domínio da cabala. Assim, julgamos conveniente limitar aqui esta exposição já longa demais que o leitor mesmo poderá desenvolver a seu modo, com o auxílio de alguns elementos que lhe fornecemos.
PAPUS
Acrescentaremos pouca coisa a esta explicação hermética, tão ampla quanto precisa. Nós nos limitaremos a esboçar, em linhas o mais concisas possível, os dois sentidos cabalísticos da figura central.
Sentido comparativo ou psicológico
do emblema
O ANDRÓGlNO constitui a mais cativante imagem do Reino Hominal reconduzido ao seu princípio inteligível. Trata-se, em linguagem puramente hieroglífica, do símbolo absoluto do Ser Virtual que se exterioriza por meio daquilo que Fabre d'Olivet denomina "faculdade volitiva eficiente"; - do Ser Universal que se particulariza por sua submultiplicação indefinida através do espaço e do tempo; - do Ser Espiritual, enfim, que se corporifica e cai na matéria, por haver pretendido tornar-se centro e por se ter afastado da Unidade Divina, princípio central e fonte essencial de toda espiritualidade.
Segundo Moisés esotericamente interpretado(99), são as seguintes as etapas da queda; o Universal Adão FI} desdobra Aishah UV} ; desde então, ele próprio torna-se Aish VY} ; é o Intelecto Potencial do homem que se Realiza desenvolvendo a Vontade. Porém, o mau emprego dessa vontade faz com que ambos, homem e mulher, Intelecto e Vontade, caiam no mundo elementar: Aishah metamorfoseia-se em HEVAH UYU, a Vida Materializada, de que Adão se converte em esposo.
Voltemos à explicação que demos, em outra parte, sobre Hevah ou Heve UYU. Para não complicar mais ainda a nota, já bastante extensa, a respeito de I-eve e de Adam-eve(100), deixamos de assinalar, naquela oportunidade, a conversão em U Heth do primeiro U He de UYU (Hevah), que se torna UYR (Havah). Esse endurecimento da vogal inicial marca hieroglificamente a queda de Adão e sua conseqüência: a materialização, nele, da vida universal.
Ora, o Andrógino de Khunrath representa Adam-Eve ou o Homem Universal destroçado na matéria e naufragado no devir. Isso é expresso pelo globo elementar de Hilé (gLH)(101) que o Andrógino sustenta em suas mãos. Nesse globo acha-se inscrito o quadrado dos elementos, e no quadrado, por sua vez, o triângulo adâmico: corpo, alma, espírito.
Este esquema geométrico equivale e corresponde estritamente ao hieróglifo que os alquimistas usam como emblema da obra hermética realizada, da pedra filosofal obtida. A Grande Obra consiste, com efeito, em comprimir o Espírito (simbolizado pelo triângulo) sob a pressão da matéria (simbolizada pela cruz dos 4 elementos). O enxofre dos alquimistas, pelo contrário, é a Matéria dominada pelo Espírito. Também os adeptos, que são lógicos, exprimem-no pelo mesmo signo invertido.(102)
Para voltar ao triângulo aprisionado por um quadrado inscrito em um círculo, seria possível representar melhor a decadência do homem, encarcerado entre as quatro paredes de sua masmorra sinistra?... Passando do geral para o particular, os iniciados porventura não o entreverão, neste ternário vivo que comprime e retém cativo o quaternário dos elementos, o emblema de um temível arcano? Não lhes virá à mente a alma adâmica individual, primeiramente arrastada ao vertiginoso vórtice das gerações, depois se debatendo, presa das quatro torrentes elementares que a disputam? Pobre alma, aquartelada entre essas quatro potências de perdição, luta desesperadamente para atingir e conquistar o ponto central, equilibrado; a intersecção crucial, única; o lugar salvador em que sua encarnação poderá efetuar-se pelo menos sob a forma harmoniosa, ponderada e sintética do homem!
Se, por desventura, ela se deixar levar à deriva de uma das correntes, qual será sua sorte? Que se tornará? Algum elementar na natureza ou, caso se encarne, uma pobre inconsciência, centelha divina obscurecida por longo tempo e cativa sob uma das formas analíticas desmensuradas, anárquicas da animalidade.(103)
Reportemo-nos à figura mágica, à esfera substancial do Hyle, elaborada e renovada perpetuamente pela Luz secreta do universo: Etiam mundus renovabitur igne... Do princípio da encarnação, correspondente à mencionada esfera, passemos à realização, à efetivação desse princípio. Isso significa descer à esfera inferior em que Khunrath delineou continentes e mares; significa fixar nossos olhos no globo terrestre, considerado como tipo de todos os centros de condensaçao material, em que o universal Adam-Eve dispersa seus submúltiplos.
É lá o reino desse XLOS, a substância primeira criada: desse Tohou w'bohou YUPY YUZ ; desse abismo potencial (Thom JYUZ), gerador dessas duplas águas (Maim JWK) sobre cuja face o sopro gerador (Rouach Elohim JWUL} RYB) exerce seu poder Fecundante. O teósofo de Lípsia revela, aqui, para aqueles que sabem compreendê-lo, diversos arcanos relacionados à gênese material dos mundos. As fórmulas gravadas são, aliás, límpidas, e é proveitoso consultá-las atentamente...
O universal Adão, desintegrando-se, rolou até os confins; precipitou-se na cloaca da substância diferenciada, produzida por sua própria queda; disseminou-se, inexaurivelmente, semeando em profusão almas de vida cada vez menos inteligentes, cada vez menos morais e conscientes, até nas formas mais humildes da existência e do devir. Mas isso não é tudo. Uma vez dividido ao infinito, seu destino quer que ele se reconstitua em sua unidade ontológica; depois de ele ter descido, seu destino quer que ele ascenda, que ele evolua, enfim, depois de ter involuído.
Não abordaremos o problema - tão perturbador em sua profundidade oculta - das redenções mineral, vegetal e animal: esse mistério jamais será totalmente desvendado(104). Porém, tomando o ser adâmico nos dois terços de sua viagem de retorno, enquanto ele, já parcialmente livre dos estreitos e despóticos entraves com que a natureza física o sobrecarregou, pôde evoluir até a condição de homem. Permitimo-nos examinar, em linhas gerais, seu retorno à sua síntese verbal, o Adão celeste.
Por que esforços pode o homem carnal trabalhar para a reconquista do éden de sua divindade coletiva? Antes de tudo, pelo estabelecimento, desde esta esfera inferior, de um Estado Social hierárquico.
Em que se funda tal Estado Social? Antes de tudo, na Família.
Em que repousa a Família? Antes de tudo, no Amor.
O Amor aparece-nos, sob suas diversas formas, como sendo o princípio essencial da redenção e o instrumento primordial da reintegração.
Com relação aos indivíduos, o Amor é, com efeito, o elo moral que liga o homem à mulher; com relação às almas, ele é, ainda, o apelo magnético à vida objetiva; é ele que, infundindo nelas uma perturbação deliciosa, concita-as a encarnar-se e as faz rolar, vencidas, no turbilhão fatal das gerações. Com relação ao Estado Social, o Amor é, enfim, o irresistível procurador das raças: obseda, possui e cativa os amantes. Instilando neles um furor apenas saciável pela união dos sexos, ele abre incessantemente às pobres almas a porta estreita da existência física e terrestre.
Mas isso não é tudo: a estranha propagação dos tipos individuais ao longo da cadeia das filiações, esse fenômeno cujo vago nome de atavismo, na mente de tantos pensadores, designa apenas um impenetrável mistério - tudo isso só encontra solução no Amor!... Veremos oportunamente que, sob a forma sublimada da Caridade, é ainda o Amor que opera, pela ascensão primeiramente individual das almas, depois, por sua adição nupcial por grupos bissexuados e complementares, cuja fusão harmoniosa, em progressão matemática, resume a síntese relativa, que só encontra seu termo absoluto em Deus.
O Amor é a Terceira pessoa da trindade adâmica, pois, constituindo a relação comum dos dois esposos, sua relatividade sentimental, seu meio termo, em uma, procede do homem e da mulher, como o Espírito Santo procede do Pai e do Filho(105). Não é o Amor também o verdadeiro agente da encarnação? Aquele de quem o filho é verdadeiramente concebido? Do mesmo modo, misticamente nos é ensinado que, embora engendrado pelo Pai, o Cristo é concebido pelo Espírito Santo. Todas essas analogias são do mais alto rigor.
O Espírito Santo, aliás, é, por sua vez, o Amor-divino, o Amor exaltado no Mundo Espiritual: como a atração é apenas o Amor cósmico, o amor refratado no Mundo Elementar.
O que é verdade para os Mundos Divino ou superlativo e Natural ou positivo não é menos verdade para o Mundo Moral ou comparativo. O Amor é o terceiro termo da Trindade humana, pois é dele, como vimos, que é concebido o filho, nascido do Pai e da Mãe; e eis por que a fênix, que renasce de suas cinzas, irrompe e bate as asas entre as duas cabeças de mulher e de homem. Emblema da fecundidade eterna, a fênix simboliza, cabalisticamente, o Amor, no pantáculo de Khunrath.
Naturalmente, ao se considerar o grande andrógino, a cabeça de homem figura como solar, enquanto a cabeça de mulher se apresenta selênica. Do seio direito, marcado pelo signo sulfuroso , e do seio esquerdo, marcado pelo signo salino , jorram duas fontes perpétuas: símbolo das duas energias, ativa e passiva, que reagem mutuamente, para animar e reafirmar a substância prolífica do composto filosofal. O signo mercurial , colocado sobre o umbigo, indica o fator mediano de por .
Os dois braços, em que se acham inscritos os dois preceitos misteriosos - Coagula, Solve - sustentam a esfera dos elementos ocultos. Com isso, Khunrath nos ensina que o Mago, ou o homem completo, designado pelo Andrógino, pode dominar inteiramente o mundo elementar e agir sobre a Natureza naturada com uma espécie de onipotência, projetando ou atraindo para si a Luz Astral, substrato da quintessência.
Considerada como instrumento das transmutações universais, de que o homem pode tornar-se mestre e regulador, a Luz Astral revela-se em toda a extensão de sua ação pela fórmula dividida em caracteres de sombra sobre o feixe de fogo, tríplice e sêxtuplo, que se irradia e flameja na base da esfera central.
Porém, tomada como a própria substância da Alma vivente universal (Nephesh-ha-Haiah UWRU VAH ), que se distingue e se especifica sob inúmeras formas para gerar os seres dos quatro reinos(106), a Luz Astral torna-se o Azoth dos Sábios, e Khunrath a exprime pelo hieróglifo da fênix, instalada como um diadema singular sobre a dupla fronte do andrógino. A cauda do pavão, de que esse estranho pássaro ainda se vê bizarramente revestido, é, em alquimia, como disse Papus, o símbolo da obra, em determinado ponto de sua evolução espagírica. Uma variedade de cores cambiantes surgem então aos olhos, reverberando e parecendo irisar-se de infinitos reflexos enganadores. No sentido comparativo, a cauda de pavão, rica e multicor, simboliza as inúmeras formas e nuanças, infinitamente variadas, de que a matéria penetrada, elaborada, reanimada pelo espírito - reveste-se na progressão ascendente de todos os seres até o Ser. É o reino de Ionah (UHYW), a inexaurível fecundidade que, segundo a multiplicação quaternária, desenvolve a alma de vida distribuída indistintamente a todas as criaturas do universo(107). A hierografia é precisa nesse ponto: O Pássaro de Hermes significa o bem-aventurado princípio da vida vegetativa, que, agindo na profundidade espiritual das coisas corporais, é a própria alma da Natureza, ou a quintessência apta a fazer germinar todas as coisas.
Enfim, o triângulo supremo, que representa a pedra filosofal perfeita, esse triângulo em que Papus lê Elohim (JWUL}, Ele-os-Deuses) e em que julgamos, antes, decifrar o nome Aourim JWBY}, as Luzes (isto é, o princípio de todas as luzes: natural, hiperfísica e espiritual), é a manifestação ternária do fogo divino que se irradia do alto: V} Esch. Esse fogo dissimula para sempre, sob um véu de impetrável esplendor, a própria essência da incomunicável Unidade: princípio final onde, para concluir a evolução geral dos seres, ele deve, enfim, reintegrar-se e se ocultar.
Sentido superlativo ou metafísico
do emblema
Para a obtenção do significado de nosso pantáculo, do ponto de vista metafísico, é necessário revelar todos os mistérios do Tetragrama incomunicável UYUW (iod-he-vau-he), síntese divina do Universo vivo.
Ora, por um lado, seria desnecessário repetir aqui as explicações bastante detalhadas e precisas, já fornecidas anteriormente; por outro lado, o caráter inefável do Absoluto, esse Inominável manifestado pelo nome de UYUW desafia o esforço de nossas línguas analíticas e relativas.
Seremos, pois, extremamente sóbrio ao escrever: convém limitar esta nota a algumas indicações bastante breves.
Que nos baste observar que Esch V} representa o Espírito puro, universal, principalmente, que tece uma veste de luz inteligível ao místico Ain-Soph >YJ GW}, o ser-não-ser: Ser absoluto com relação a si próprio, pois ele é só, no sentido primordial(108), não-ser em relação a nós, que somos finitos e contingentes, pois o Relativo não pode compreender o Absoluto.
O triângulo de Aourim JWBY} figura o Verbo, indestrutível conjunção do Espírito e da Alma Universal: como Adão-princípio produz Eva-Faculdade, constituindo com ela uma unidade; como o Fogo V} produz a Luz BY}, constituindo com ela uma unidade; assim, o Espírito Universal produz a Alma Coletiva, constituindo com ela uma só e única coisa: o Verbo.
Este arcano parece ainda mais perfeitamente expresso pela figura central do grande Andrógino. Do macho W, emana a fêmea U. Sua síntese Iah UW constitui uma assimilação homogênea, coesa: símbolo eterno do Pai engendrando o Filho (por intermédio da Mãe Celeste ou Natureza-Naturante) e se reproduzindo na pessoa desse Filho. Quanto ao pássaro de Hermes, pairando acima do Andrógino, deve-se ver nele o Espírito Santo, Y, que procede do Pai e do Filho, de Deus e da Humanidade. Enfim, os globos que figuram abaixo representam o Reino ZYPLK (Malkuth), esfera de ação do segundo U, onde se exerce a exaurível fecundidade do Tetragrama no domínio da natureza naturada, mundo da substância plástica, das formas sensíveis, das imagens.
Assim como o quaternário Iod-heve UYUW, o quaternário Agla }LO} pode servir de chave a nosso emblema:
O primeiro Aleph (} = 1) exprime, assim, a Unidade principiante do Universo; Ghimel (O = 3), o ternário das pessoas em Deus; Lammed (L = 12), o desenvolvimento do ternário espiritual multiplicado pelo quaternário sensível (3 x 4 = 12), e a difusão do Ser Universal no Tempo e no Espaço. Enfim, o último Aleph, a Unidade principiante e final, ponto de partida e ponto de chegada; a unidade suprema para onde tudo retorna após o duplo movimento hemicíclico da Descida e da Ascensão(109), da Desintegração e da Reintegração, da Queda e da Redenção.
Fazendo um paralelo do que foi dito acima com as noções desenvolvidas anteriormente, será lícito ao leitor engenhoso desenvolver e completar para seu próprio benefício o sentido superlativo ou divino do Grande Andrógino cabalístico.
Nada negligenciamos de essencial; mas, colocando os princípios, não pretendemos demonstrá-los e, menos ainda, elucidá-los até as conseqüências que se podem deduzir.
APÊNDICE IV
Discurso iniciático relativo a uma
iniciação martinista
(reunião do 3° grau)
Foste investido sucessivamente nos três graus hierárquicos de nossa Ordem. Nós te saudamos S I ,(110) e quando houveres transcrito nossos ensinamentos e meditado sobre eles tornar-te-ás, por tua vez, Iniciador. Em tuas mãos fiéis será depositada uma importante missão: terás a incumbência, e a honra, de formar um grupo de que serás, perante tua consciência e perante a Humanidade Divina, o Pai intelectual e, quando se apresentar o ensejo, o tutor moral.
Não procuramos, aqui, impingir-te convicções dogmáticas. Pouco importa que sigas na esteira do materialismo, do espiritualismo ou do idealismo; pouco importa que professes o Cristianismo ou o Budismo; pouco importa que te proclames livre pensador ou que preconizes mesmo o ceticismo absoluto. Nada disso nos é relevante. Não melindraremos teu coração, molestando teu espírito em virtude de problemas que só terás de resolver segundo tua consciência e no silêncio solene de tuas paixões tranqüilizadas.
Imbuído de um profundo amor por teus irmãos humanos, não procures jamais dissolver os liames de solidariedade que te vinculam estreitamente ao Reino Hominal considerado em sua síntese; és de uma religião suprema e verdadeiramente universal(111), pois é ela que se manifesta e se impõe (multiforme, bem verdade, porém essencialmente idêntica a si mesma), sob os véus de todos os cultos esotéricos do Ocidente, como também do Oriente.
Psicólogo, dá a esse sentimento o nome que quiseres: Amor, Solidariedade, Altruísmo, Fraternidade, Caridade;
Economista ou Filósofo, chama-o de tendência ao Socialismo, se desejares... ao Coletivismo, ao Comunismo... de nada importam as palavras!
Místico, honra esse sentimento sob as denominações de Mãe Divina ou Espírito Santo.
Mas, quem quer que sejas, não esqueças jamais que, em todas as religiões verdadeiras e realmente profundas, isto é, calcadas no Esoterismo, a prática desse sentimento é o ensinamento primeiro, capital, essencial, desse mesmo Esoterismo.
A busca sincera e desinteressada da Verdade: eis o que teu Espírito deve a si mesmo; fraternal mansuetude com relação aos outros homens: eis o que teu Coração deve ao próximo. Com exceção desses dois deveres, nossa Ordem não pretende prescrever-te quaisquer outros, pelo menos não de maneira imperativa. Nenhum dogma filosófico ou religioso impõe-se à tua fé. Quanto à doutrina cujos princípios cardeais te apresentamos de forma concisa, pedimos apenas que medites sobre ela à vontade de imparcialmente. É só pela via da persuasão que a Verdade tradicional deseja conquistar-te em prol de sua causa!
Abrimos sob teus olhos os selos do Livro. Todavia, cabe a ti aprender primeiro a soletrar a Letra, e depois penetrar o Espírito dos mistérios que este livro encerra.
Nós te oferecemos o começo, e aqui termina o papel de teus Iniciadores. Se tu, por ti mesmo, chegares à compreensão dos Arcanos, merecerás o título de Adepto. Deves saber, entretanto, que seria inútil que os mais sábios mestres te revelassem as supremas fórmulas da ciência e do poder mágico; a Verdade Oculta não se deixaria transmitir num discurso: cada um deve invocá-la, criá-la e desenvolvê-la em si.
Tu és Iniciatus: aquele que outros colocaram na senda. Esforça-te para tornar-te Adeptus: aquele que conquistou a Ciência por si próprio - em suma, o filho de suas obras.
Nossa Ordem, conforme eu te disse, limita suas pretensões à esperança de fecundar bons terrenos, lançando a boa semente por toda parte: os ensinamentos de nossa Ordem são precisos, mas basilares, constituindo o alicerce sobre o qual se edificará um estudo eminentemente pessoal. Quer este programa satisfaça a tua ambição, quer o destino te empurre, algum dia, ao umbral do templo misterioso em que resplandece há séculos o luminoso repositório do Esoterismo Ocidental, escuta as derradeiras palavras de teus Irmãos desconhecidos: que elas possam germinar no teu espírito e frutificar em tua alma.
Afirmo que podes encontrar, aí, o critério infalível do Ocultismo e que a chave da síntese esotérica está aí, e não em outro lugar. Mas de que serve insistir se podes compreender e se queres crer? Caso contrário, por que ainda persistir?
És inteiramente livre para tomar por alegoria mística ou fábula literária sem profundidade aquilo que me resta a dizer. Podes até mesmo entender que se trate de uma audaciosa impostura... És livre. Todavia. ESCUTA. Germine ou apodreça a semente, irei lançá-la na terra.
No princípio, na raiz do Ser, é o Absoluto. O Absoluto - que as religiões denominam Deus - é insuscetível de ser conceituado, e quem quer que pretenda defini-lo desnatura sua noção, colocando-lhe limites: "Um Deus definido é um Deus finito"(112)
Porém, desse insondável Absoluto emana eternamente a Díade andrógina, formada por dois princípios indissoluvelmente unidos: o Espírito Vivificador e a Alma viva universal .
O mistério de sua união constitui o Grande Arcano do Verbo. Ora, o Verbo é o Homem coletivo considerado em sua síntese divina antes de sua desintegração. É o Adão Celeste antes de sua queda, antes que este Ser Universal se modalizasse, passando da Unidade ao Número, do Absoluto ao Relativo, da Coletividade ao Individualismo, do Infinito ao Espaço e da Eternidade ao Tempo.
Sobre a Queda de Adão, eis algumas noções do ensinamento tradicional. Incitados por um móbil interior sobre cuja natureza intrínseca devemos silenciar aqui, móbil que Moisés denomina VIH NAHASH e que definiremos, se quiseres, como sendo a sede egoística da existência individual, um grande número de Verbos fragmentários, consciências potenciais vagamente despertadas em forma de emanação no seio do Verbo Absoluto, separou-se deste Verbo que o continha.
Eles se destacaram - ínfimos submúltiplos - da Unidade-mãe que os havia criado. Simples raios deste sol oculto, dardejaram infinitamente nas trevas sua individualidade nascente, individualidade que desejavam ver independente de todo princípio anterior. Em suma, almejavam autonomia.
Contudo, como o raio luminoso goza apenas de uma existência relativa, com relação ao lume que lhe deu origem, esses Verbos, igualmente relativos, despojados de princípio autodivino e de luz própria, obscureceram-se na medida em que se distanciaram do Verbo absoluto.
Eles se precipitaram na matéria, falácia da substância em delírio de objetividade; na matéria, que é, para o Não-Ser, aquilo que o Espírito é para o Ser. Desceram até a existência elementar: até a animalidade, até o vegetal, até o mineral...(113) Assim nasceu a matéria, que foi logo elaborada pelo Espírito, e o Universo concreto tomou um caminho ascendente, que remonta da pedra, apta à cristalização, até o homem, suscetível de pensar, orar, aprovar o inteligível e se devotar a seu semelhante.
Essa repercussão sensível do Espírito cativo, que sublima as formas progressivas da Matéria e da Vida para empreender a saída de sua prisão, é constatada e estudada, sob o nome de Evolução, pela Ciência Contemporânea.
A Evolução é a Redenção universal do Espírito. Evoluindo, o Espírito reascende.
Todavia, antes de reascender, o Espírito decaíra. É o que chamamos de Involução.
Como o submúltiplo verbal se deteve em detertninado ponto de sua queda? Que Força permitiu que retrocedesse? Como a consciência adormecida de sua divindade coletiva pôde, enfim, despertar nele sob a forma ainda bastante imperfeita da Sociabilidade? Há tantos mistérios profundos, que não poderíamos abordá-los aqui. Se a Providência estiver contigo, conseguirás compreendê-los.
Aqui me detenho. Já foste suficientemente conduzido pela senda. Eis-te munido de uma bússola oculta que, se não evitar que te desvies, pelo menos permitirá que sempre reencontres o caminho certo.
São exatos esses poucos dados sobre a grande obra(114) da destinação humana. Cabe a ti inferir o que resta e oferecer solução ao problema. Porém, meu Irmão - e é pela terceira e última vez que te concito a isto -, compreende bem que o Altruísmo é a única senda que conduz ao fim único e derradeiro: a reintegração dos submúltiplos na Unidade divina. A única doutrina que acena com o meio para a consecução dessa finalidade, meio esse consistente no dilaceramento dos entraves materiais para a ascensão, através das hierarquias superiores, rumo ao astro central da regeneração e da paz.
Jamais esqueças que o Universal Adão é um Todo Homogêneo, um Ser vivo, do qual somos os átomos orgânicos e as células constitutivas. Todos nós vivemos uns nos outros, uns pelos outros, e, caso fôssemos salvos individualmente (para falar a linguagem cristã), cessaríamos de lutar só quando todos os nossos irmãos fossem salvos como nós.
O Egoísmo inteligente conclui, então, como conclui a Ciência tradicional: a fraternidade universal não é um artifício, mas uma realidade. Quem trabalha para os outros trabalha para si mesmo; quem mata ou fere seu próximo fere e mata a si próprio; quem ultraja o semelhante insulta a si mesmo.
Que esses termos místicos não te amedrontem. A alta doutrina nada tem de arbitrário. Somos os matemáticos da antologia, os algebristas da metafísica. Lembra-te, Filho da Terra, que tua grande ambição deve ser reconquistar o Éden zodiacal de onde jamais deverias ter descido, e, finalmente, reingressar na Inefável Unidade, FORA DA QUAL NADA ÉS e no seio da qual encontrarás, após tantos trabalhos e provações, a paz celeste, o sono consciente que os Hindus conhecem por NIRVANA: a beatitude suprema da Onisciência em Deus.
Stanislas de Guaita }
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APÊNDICE V
Notas sobre o êxtase
A meditação das obras do Oculto absorve exclusivamente a maioria dos pesquisadores que se preocupam com o problema místico. Referimo-nos aos pesquisadores sérios; os mais fúteis, verdadeiros basbaques de feira, comprazem-se em arrastar de barraca em barraca, à cata de fenômenos. Como se o labor da Iniciação se limitasse a esforços de assimilação doutrinária: A obra escrita dos mestres não é negligenciável impunemente - quem duvida? Não temos nenhuma estima por inovadores presunçosos que se gabam de suprirem, pela exuberância de sua própria imaginação, o estudo aprofundado dos clássicos do Esoterismo.
Contudo, esse estudo não poderia bastar. É preciso que o homem lance mão de esforços pessoais, aventurando-se decididamente na conquista do Verdadeiro, através das trevas de um mundo ignoto. É dessa forma que, distinguindo-se do simples erudito, cioso de intervir apenas em contendas de opiniões, o ocultista tende a penetrar a essência das coisas e decifrar a grande estela da Natureza, que está escrita tanto dentro como fora.
Imaginai uma folha de pergaminho, coberta de hieróglifos nas duas faces, mas colada a um quadro por uma delas. Os caracteres da primeira face - quer se saiba ou não interpretá-los parecerão visíveis aos olhos carnais, ao passo que os sinais traçados no verso somente serão perceptíveis ao órgão visual da alma, o que equivale a dizer que apenas um homem lúcido poderá distingui-los.
Isso é apenas uma metáfora - e o neófito tomaria o caminho errado se viesse a concluir que a lucidez magnética é a faculdade mestra para que se desenvolva, em si, a suprema prerrogativa do adeptado. Há diversos graus de vidência, como há diversas zonas de visão. Quantos videntes ilustres não foram nem um pouco lúcidos no plano físico! Aliás, alguém pode ser imensamente lúcido, no sentido demótico e tradicional, e não passar de um parvo completo. Essas duas qualidades não se excluem e a experiência tem dado inúmeras provas disso.
O que é importante, enfim, se alguém deseja realizar sua iniciação? É importante que se reintegre, desde aqui embaixo, na Unidade divina (na medida em que as barreiras hílicas comportem) a fim de ser co-partícipe, com todos os Iniciados e os Eleitos do mundo, nos mistérios do Absoluto.
Em última análise, o homem de gênio é apenas um adepto intuitivo e espontâneo, magnificamente incompleto, mas rico desses dons tão raros que muitas vezes faltam aos místicos mais sublimes: as faculdades de transposição estética do inteligível ao sensível e de conversibilidade do Verbo divino ao Verbo humano.
Tais faculdades de expressão não se adquirem: elas sempre sagrarão o homem de gênio, por direito divino e graça anterior, ao passo que o adepto o é por direito humano e conquista ulterior, já que os esforços de sua livre vontade o elaboraram dessa forma. Uma vez estabelecida essa distinção fundamental, a analogia pode e deve ser perseguida.
O gênio consiste na faculdade de reintegração espontânea (mais ou menos consciente e sujeita à intermitência) do submúltiplo humano na pátria celeste da unidade, Adamah. Também os poetas, pintores, músicos, escultores e, de maneira geral, todos os artistas que - com ou sem razão - acreditam ser gênios empregam a mesma locução que os místicos, para caracterizar os períodos de facilidade para produzir. Eles têm, ou não, inspiração. Isto é digno de nota...
Assim, é cabível dizer que a obra capital da Iniciação se resume na arte de tornar-se um gênio artificialmente. Contudo, enquanto o gênio natural oferece a inspiração em certas horas, de maneira mais ou menos freqüente, ou seja, quando o Espírito quer descer, o gênio adquirido é, em seu estágio mais alto, a faculdade de forçar a inspiração e estabelecer comunicação com o Grande Desconhecido todas e quantas vezes quiser.
Apresenta-se, aqui, uma razão muito simples: Deus desce até o homem de gênio, enquanto o Mago ascende até Deus. O homem de gênio é uma espécie de ímã que atrai intermitentemente. O adepto é uma potência conversível, um elo consciente da terra com o céu: um ser que pode permanecer à vontade na terra, desfrutar de suas vantagens e colher seus frutos, ou subir ao Céu, identificar-se com a natureza divina e beber a largos goles a ambrósia celeste.
O Gênio, força natural de atração, estabelece com a Unidade, em certos momentos, uma correlação mais ou menos efêmera. O Adeptado, passaporte irrestrito para o Infinito, implica um direito de reintegração ad libitum. Assim, o perfeito adepto toma, na índia o nome de Yoghi, ou seja, unido em Deus.
Reintegração do submúltiplo humano na Unidade divina: eis, portanto, a obra maior do adeptado, Em que consiste esta reintegração? Conhecemos duas: a Passiva e a Ativa. Ambas possuem diversos graus. Chega-se à primeira através da Santidade, ou seja, a depuração austera de sua essência anímica, unida por amor ao Espírito puro dos céus; à segunda, chega-se pela vontade livre e consciente, ou seja, pela realização do pentagrama místico.
A primeira (reintegração de modo passivo) necessita de uma abdicação do Eu, que se funde, sem reservas nem esperança de retorno, no Si divino. Ao agir, o homem já não age por si mesmo: é Deus que age por ele. Isso que levou o Apóstolo a dizer: "e já não sou mais eu quem vive, é o Cristo que vive em mim". A segunda (reintegração de modo ativo) equivale a uma conquista positiva do céu, a uma violação do elemento celeste e de seu Espírito coletivo, Rouach Haschamaim.
Ambas, em seu mais alto grau, conferem à alma o estado primordial do Éden, a fruição de Aor ain-soph. Porém, a Passiva implica a renúncia das vontades individuais e o desprezo por toda a ciência profana: "Felizes, disse Cristo, os pobres de espírito, pois é deles o Reino do Céu". A Ativa, ao contrário, permite, em certos casos, aqui mesmo, o exercício de uma onipotência relativa, delegação da potência de Deus. Põe na mão o Esch, gládio flamejante de Iahoah Elohim. É a tomada de posse, por direito de conquista, do Céu místico, que, como disse o Cristo, os Espíritos violentos tomam pela força: "violenti rapiunt illud".
A inefável-caridade de Nosso Senhor Jesus Cristo induziu-o a reivindicar apenas a Reintegração passiva, e ele morreu na cruz, duvidando de Si mesmo e de Seu Pai: "Eli, Eli, lamma sabachtani!" (Tratava-se, por certo, do grito da carne enfraquecida no curso de uma suprema prova; entretanto, a evocação desse grito de dúvida sempre nos espantou!).
A audácia de Moisés fez com que preferisse os privilégios da reintegração ativa: assim, após haver exercido sobre a terra a onipotência celeste, manejando firmemente o gládio ígneo do Keroub, Moisés elevou-se até Deus (como, depois dele, o faria Elias), virgem do beijo da morte, deixando a seu povo o nome de povo do Senhor e a livre entrada da terra de Canaã, da qual os judeus só saíram aparentemente, na qual eles reinam mais do que nunca(115).
A reintegração passiva é, talvez, mais divina, mais absolutamente meritória; é a dos Santos e dos Messias. A reintegração ativa é, certamente, mais vantajosa, mais rica em prerrogativas: é a dos Magos e dos Titãs. A reintegração ativa é a única à qual devem pretender os homens que, sem dar um adeus definitivo à vida e aos gozos deste mundo, sentem ainda o desejo de colher o que pode haver de bom em suas ilusões e miragens.
A vida eterna é tão longa! Mesmo decididos a ascender sempre, sem se desviar da rota que leva ao Pai, não nos seria permitido parar em estações? Deus, que é tão bom, só criou (ou, antes, deixou criar) só em virtude disso - nesta própria natureza da decadência e sobre esta terra de provação - a erva macia e a sombra propícia das ilusões...
O prazer bem compreendido, aceito na expansão normal de um coração honesto, será, em suma, outra coisa que não a modalização e a adaptação ao meio terrestre e transitório do gozo eterno dos Eleitos?... Uma vez que descemos a este mundo inferior, não será natural e perfeitamente lógico que nossas consolações, nossas satisfações e nossas alegrias temporais, forçosamente proporcionais à nossa natureza decaída (isto é, menos perfeita) sejam por sua vez, menos perfeitas e menos angélicas? "Homo sum (dizia Catão, um dos santos do paganismo estóico) et humani nil a me alienum puto."(116)
Não se poderia dizer melhor, e o próprio Pascal parecia comentar as belas palavras de Catão ao escrever, em seus Pensamentos que o homem não é nem anjo, nem besta - e o resto... Se Catão e Pascal tivessem sido iniciados e se estivesse em seu destino escolher entre a Reintegração passiva dos Santos e a Reintegração ativa dos Titãs, provavelmente, teriam dado preferência à última. Aliás, na verdade, não há escolha desde que se aspira à realeza cabalística do G A , ou somente à penetração dos mistérios do Além, sem querer abandonar o mundo para enclausurar-se, física ou moralmente... A Reintegração sob forma de atividade é a única que comporta o relativo.
Esta é a razão profunda do perigo dos conventos para certas almas que não estão preparadas para o sacrifício integral, sem restrição, sem limites, delas próprias e de sua vontade. Elas se deram de modo passivo: procuram elas desviar-se? Fazem elas algum esforço para se recuperar? O Esposo as deixa (pois, no modo passivo, elas se deixam possuir, mas não possuem) e elas caem em poder do Adversário. A perdição é o termo de sua vocação reticente.
Assim, nunca se deve hesitar - sob pretexto de respeito ao livre arbítrio - a antepor provações mundanas à vocação dos religiosos em geral, e sobretudo das moças que se julgam chamadas à vida contemplativa. Se a vocação é verdadeira, ela se revelará infrangível, e a noiva do Céu sairá vitoriosa de tais provas, incólume de tais obstáculos. Toda dificuldade suscitada levará apenas a uma nova confirmação de sua primeira vontade.
E quando se trata, por exemplo, de moças mundanas? Achamos criminoso da parte de seus pais permitirem que elas tomem o véu sem as terem conduzido no mundo, sem lhes terem dado oportunidade não só de participar de saraus, como de bailes! Se o apelo dessas almas se faz ouvir depois dessa diversão, se o seu gosto pela vida religiosa resiste a esse dissolvente, é porque que elas são de um metal incorruptível aos ácidos temporais, e nenhum outro Alkahest - quer fosse o de Paracelso ou de Van Helmont - nenhum outro dissolvente, por mais corrosivo que fosse, de nada valeria. Se, ao contrário, algum levedo terrestre, algum fermento mundano estivesse latente nas profundezas mais inconfessadas do seu Eu inconsciente, elas despertariam para a vida do mundo; e, sem dúvida, o travesso Eros as atiçaria com sua flecha, virtualmente - quando possível -, se é que não as atingiria de fato.
Voltemos aos modos de Reintegração. Chamamos de reintegrado (Yogui da Escola Mística ortodoxa, na índia) aquele que pode, sempre que desejar, dominar inteiramente seu Eu sensível exterior, para abstrair-se em espírito, e mergulhar, pelo orifício do Eu inteligível interno, no oceano do Ele coletivo divino, onde retoma consciência dos arcanos complementares da Natureza Eterna e da Divindade.
Chamamos de nascido duas vezes (Dwidja da Escola Mística, na índia) aquele que pode abandonar sua efígie terrestre, em corpo astral ou etéreo, para haurir no oceano astral a solução dos mistérios que oculta. A reintegração espiritual interna pode tomar o nome de Êxtase ativo. Convencionou-se dar à projeção da forma sideral o nome de Saída em corpo fluídíco (ou astral)...
O êxtase ativo apresenta dois graus. No primeiro, o Adepto penetra a própria essência da Natureza eterna, que lhe comunica de modo direto, sem símbolos, a Verdade-Luz. No segundo grau, ele pode comunicar-se mesmo com o Espírito puro, que o arrebata ao Céu inefável dos arquétipos divinos. Nesse caso, ocorre a transfusão da Divindade-pensamento que se faz humanidade-pensante em sua inteligência, pelo efeito de uma alquimia íntima, de uma transmutação
gigantesca e inexplicada.
A Saída em corpo astral difere do Êxtase ativo, uma vez que o corpo físico parece, então, em catalepsia, acionado apenas por uma vitalidade de certa forma vegetativa, enquanto o corpo astral ou mediador plástico (envoltório ambulante da alma espiritual) flutua na imensidão do éter sideral ou luz universal e se dirige para onde quiser, vinculado ao corpo material por uma espécie de umbilicação fluídica.
Assim, a personalidade consciente vagueia sob forma astral por onde lhe apraz e vai, por si mesma, tomar conhecimento das realidades longínquas que lhe podem interessar. Mas então - se são noções de ordem inteligível que ela deseja adquirir - essas noções lhe são transmitidas apenas simbolicamente, por intermédio da luz astral, que é antes de tudo configurativa, e portanto só fala oferecendo à sagacidade do Espírito uma série de imagens que este deve, em seguida, traduzir como hieróglifo do Invisível. O modo concreto e emblemático é, assim, o único de que a Verdade pode fazer uso para exprimir-se por intermédio do Astral.
Na modalidade passiva, o alto êxtase tem, igualmente, dois graus: 1°) comunicação com a Natureza-essência na luz de glória; 2°) com o Espírito puro. Quanto ao êxtase passivo astral ou inferior, ele é apenas o estado de lucidez, quer natural, quer magnética. A maior parte das visões beatíficas lhe são expressamente atribuíveis.
O que sobretudo importa ao adepto é chegar a pôr-se em comunicação espiritual com a Unidade divina; é cultivar um dos graus do Êxtase ativo e aprender a fazer com que, dentro de si, vil átomo, fale a Voz reveladora do Universal, do Absoluto.
Então é possível ao Relativo compreender o Absoluto? Não, sem dúvida; mas é viável assentir-lhe, sim, unindo-se a Ele. Um fragmento de espelho convexo não reflete todo o Céu? Toda a grande voz do Oceano não canta na cavidade do mais singelo molusco, que teve a fortuna (diz a lenda) de suportar, mesmo por uma hora, seu beijo imenso e sonoro?
Assim, o Êxtase deixa na alma extasiada (ainda que por uma hora) a impregnação do Infinito, a noção vivida do Absoluto - o murmúrio incessante do Ele revelador, que contém todos os Eus, sem ser contido por nenhum. Quanto gozo! Revigorar sua vida individual no oceano coletivo da vida incondicionada, ou aspirar a seiva espiritual no próprio Espírito puro - e se alimentar! É uma iniciação decisiva: uma janela aberta para a imensidão da Luz inteligível e do Amor divino, da Verdade celeste e do Belo típico.
Reencontrar o caminho do primitivo Éden...! Muitos passam ao lado da porta que comanda essa senda, e nem mesmo percebem esta porta ou, se a vêem, desprezam-na, deixando de bater nela. Talvez até bata nela um curioso que não saiba fazer ressoar o umbral dos três toques místicos: bate profanamente e a porta não lhe será aberta. O Cristo disse: "Petite et accepietis, pulsare et aperietur vobis", mas Ele também disse: "multi vocati, pauci vero electi". Como conciliar esses dois textos? Acontece que às vezes aqueles que batem na porta não são ainda chamados; muitas vezes aqueles que seriam chamados não batem, ou, mais frequentemente, batem mal...
Portanto, se aspiras a tornar-te um Adepto, evoca o Revelador que fala ao âmago do teu ser; impõe ao Eu o mais religioso silêncio, para que o Ele se possa fazer ouvir. E então, mergulhando nas profundezas de tua inteligência, escuta falar o Universal, o Impessoal, o que os gnósticos chamam de Abismo...
Porém, é preciso estar preparado (e esse é o papel do Iniciador humano: zelar por essa preparação), sem o que o Abismo só tem uma voz para aquele que o evoca estouvadamente, voz terrível e que tem o nome de Vertigem. Em resumo, tem-se aqui um grande e sublime Arcano: alguém só pode completar sua iniciação pela revelação direta do Espírito universal, coletivo, que é a Voz que fala ao interior. Ele é o Mestre único, o inevitável Guru das supremas iniciações. Conhecemos as diversas maneiras de entrar em contato com Ele: ir à sua busca, fazê-lo vir, deixá-lo vir, entregar-se a ele ou tomar parte em sua soberania...(117)
Sabemos de que maneira ambígua certas obras de alta ciência dissimulam os mistérios, a tal ponto que essas obras, frequentemente de caráter muito profundo, parecem, à primeira vista, libelos de ominável superstição.
Sob que véu, então, os autores ensinaram este grande arcano, cujo tabernáculo místico entreabrimos acima?
Sob que véu? Eis o que é muito curioso, pois exatamente por haverem confundido "a letra que mata" com "o espírito que vivifica" é que tantos estudiosos de ocultismo dão-se, hoje, ao Espiritismo puro e simples.
Quase que unanimemente os hierógrafos pontificam que é necessário evocar as Inteligências celestes, como únicas suscetíveis de ensinar ao teósofo os últimos mistérios. Moisés sobre o Sinai e Nosso Senhor Jesus Cristo no jardim das Oliveiras visitado pelos anjos; Sócrates e Plotino consultando seu gênio; Paracelso e seu Espírito encerrado no botão de uma Espada; Zanoni interrogando Adonai, etc. Todas essas lendas, segundo sua mais alta significação, simbolizam o que agora é conhecido para nós.
Não é que contestemos a possibilidade de entrar em contato com as Inteligências do Alto, com as almas glorificadas. Acontece que tudo isso não passa de Magia secundária, iniciação ao segundo grau.
No terceiro grau, os espíritos desaparecem... O espírito permanece só, irradiante, impessoal, agitando-se pelas eternas profundezas de um Infinito que não é o Espaço; transbordando de Amor divino, de Vida, de Luz, de Esperança e de Beleza divinas; cumulando a alma de uma inefável onisciência que lhe causa embevecimento sem embriagá-la.
A personalidade egoísta funde-se, desaparece, extingue-se no horizonte do Finito que a alma desertou. Em Deus, como na Natureza essência (a natureza eterna de Boehme), tudo é belo, doce, evidente, sublime - e formidável como um beijo com que nos sentiríamos morrer, imersos na vida!...
Notai como Abraão, o Judeu, descreve, sob o emblema que denunciamos como capcioso, a realização desses mistérios: "Verás então que bem empregaste os seus passados; pois, se buscate a verdadeira Sabedoria do Senhor, teu Anjo guardião, o Eleito do Senhor surgirá dentro de ti e te falará palavras tão doces e tão afetuosas, que nenhuma língua humana jamais poderá traduzir..." (A Sabedoria divina de Abraão, o Judeu, dedicada a seu filho Lamech, manuscrito do século XVIII, traduzido do alemão para o francês (1432), 2 vol., pequeno, em 8 fólios, tomo II, página 76).
APÊNDICE VI
Prefácio de Zanoni:
comentário preliminar
Desde as primeiras páginas deste livro, mencionamos Zanoni, de Bulwer Lytton - essa obra de excepcional envergadura, que, sob a forma contemporânea do romance, nada mais é do que uma grande epopéia esotérica e idealista.
Zanoni, impresso em inglês em torno de 1842, foi trazido para nosso idioma aos cuidados de um hábil intérprete(118), cuja elegante tradução foi publicada pela Livraria Hachette (1867, 2 vols. in 12 folios). Infelizmente, por motivos que nos escapam, os responsáveis pela edição francesa entenderam ser dispensável o Prefácio, que, na realidade, constitui não só a introdução literária, como também a chave mágica de toda a obra.
Julgamos essas poucas páginas omitidas de uma importância tal, que não hesitamos, com o consentimento de quem de direito, em reparar o esquecimento de um primeiro tradutor. Por mais bizarro que possa parecer o oferecimento ao público de um prefácio isolado do texto que o motiva, eis estas páginas preliminares, ilustradas com algumas anotações substanciais.
Avaliar as partes respectivas da verdade, do simbolismo e da ficção, não apenas no contexto do Prefácio como também nas peripécias do romance, é fazer apreciação pessoal. Assim, não tomaremos a liberdade de emitir nenhuma conjetura a esse respeito.
De qualquer maneira, Bulwer Lytton vos previne disso em várias passagens, ó Leitores curiosos dos oráculos da Magia, "vós, a quem chegarão estas páginas sibilinas, plenas de enigmas sombrios e misteriosos"(119) guardai-vos de crer em magníficos excessos de imaginação. As aparências podem enganar...
O Público profano abomina ou menospreza a Verdade desnuda. Ela escandaliza os Tartufos que velam seu rosto multiplicando os sinais da cruz, e ri dos céticos que se permitem, sob seus olhos, indecentes gracejos ou olhares criminosos. Se a mais alta Sapiência é, por vezes, reduzida a tomar a máscara e o bastão da Loucura, não será para melhor se disfarçar diante das babas venenosas de todos os fanatismos e do ultraje das indiferenças obscenas?
Zanoni é um livro cheio de revelações e de arcanos. Sob um véu de delirante fantasia, o autor ocultou as tradições secretas da Rosa-Cruz e até o longínquo repositório de fraternidade mais antigas e ocultas ainda, de que a Ordem instituída por Rosenkreutz é apenas o último prolongamento: "Venerável sociedade, tão sagrada e tão pouco conhecida, vós, cujos arquivos secretos e preciosos forneceram o material desta narração: vós que conservastes de século em século tudo o que o tempo poupou da Cíência venerável e augusta; e graças a vós que hoje, pela primeira vez, o mundo irá conhecer, imperfeitamente, por certo, os pensamentos e os atos de um membro de vossa Ordem cujos títulos não são nem falsos, nem tomados de empréstimo. Vários impostores usurparam a glória de vos pertencer; vários pretendentes mentirosos foram colocados entre os vossos, pela ignorância pedante que até hoje está reduzida por sua impotência a confessar que nada sabe de vossa origem, de vossos ritos e de vossas doutrinas, que nem mesmo sabe se ainda há na terra um lugar que vós habiteis.
"É graças a vós que eu, o único de meu país a quem neste século foi dado pôr um pé indigno em vossa misteriosa academia, recebi de vós poder e mandato para colocar ao alcance dos espíritos profanos algumas das resplandecentes verdades que reverberavam na Grande Shemaia da sabedoria caldaica e que projetavam ainda luminosos reflexos através da Ciência obscurecida de vossos discípulos mais recentes, quando eles buscavam, como Pselus e Jâmblico, reanimar o fogo que crepitava nos Hamarim do Oriente. É bem verdade que nós, cidadãos de um mundo velho e arrefecido, já não temos o segredo deste nome que, segundo os antigos oráculos da Terra, se precipita nos mundos do infinito; mas podemos e devemos assinalar a renascença das verdades de outrora, em cada nova descoberta do astrônomo e do químico. As leis de atração, de eletricidade e desta Força mais misteriosa ainda do grande Princípio vital - o qual, se desaparecesse do universo, deixaria, em lugar do universo, uma tumba -, todas essas leis eram apenas o código em que a antiga Teurgia hauria as regras que erigiu em legislação e ciência.
"Ao procurar construir, com palavras incompletas, os fragmentos desta história, parece-me que, numa noite solene, percorro as ruínas de uma vasta cidade de que só restam túmulos. Da urna e do sarcófago, evoco o gênio do Archote apagado, e essa aparição tanto se assemelha a Eros, que às vezes não sei qual de vós dois me inspira... ó amor! ó morte!...(120)
Em vão buscamos saber a que ramo da Fraternidade Rosa-Cruz Bulwer Lytton se filiara. Seu conhecimento cabal das tradições secretas da Ordem permite-nos, todavia, afirmar relações diretas. Desejosos de precisão, se possível, a esse respeito, voltamo-nos para um personagem que sabemos ter vivido na mais estreita intimidade com o cabalista romancista; porém, esse testemunho da vida quotidiana do Mestre não nos pôde dar satisfação quanto a esse ponto capital de nossa questão. Em compensação, consentiu em nos esclarecer diversos detalhes de interesse maior - e não poderíamos encerrar melhor este Comentário Preliminar, do que transcrevendo algumas linhas de sua resposta: "... Eu já notara, com pesar, a omissão do Prefácio na tradução francesa de Zanoni publicada por Hachette. Alegra-me saber que o senhor tem a intenção de reparar essa omissão... Não me seria possível dizer com precisão até que ponto Bulwer Lytton travou conhecimento com os adeptos da Rosa-Cruz, nem até que ponto ele considerava os ensinamentos deles. O lado místico de seu espírito, embora muito forte, sempre foi dominado pelo lado prático e por um alto bom senso, que o fazia tão pouco homogêneo, por assim dizer, com os místicos de sua época, que me seria difícil precisar sua atitude quanto a eles e a suas doutrinas. Sua personalidade era, também, muito complexa. Caberia dizer que havia nele diversos homens (o místico, o racional, o artista, o homem do mundo) que em nada se assemelhavam. Creio que seus estudos astrológicos o deixaram muito indiferente, para não dizer cético, com relação a essa ciência tal como subsiste hoje...
"Por razões muito longas para serem explicadas aqui, ele era mais afeito à Geomancia. Por várias vezes eu o ouvi rir-se de certos cabalistas modernos. Por outro lado, era, sem dúvida, versado na literatura e nas tradições de todas as ciências ocultas e de todas as filosofias místicas.
"Estudara a fundo alguns aspectos da Magia - e, creio poder dizer que ele possuía alguns dos dons naturais tão imprescindíveis à prática da magia, que sem eles todas as fórmulas de nada servem... (24 de janeiro de 1891)"
Stanislas de Guaita
Prefácio de Zanoni
Alguns de meus leitores talvez conheçam uma velha livraria que, há alguns anos ainda, existia nos arredores de Convent Garden. Digo "alguns" porque, certamente, nada havia de atraente para o grande mundo nesses preciosos alfarrábios que a perseverança de toda uma vida acumulara sobre as estantes poeirentas da loja de meu velho amigo D***. Seria inútil procurar ali obras da moda, romances cativantes, contos ou relatos de viagens, assim como volumes de biblioteca popular ou qualquer coisa que pudesse seduzir a massa dos leitores.(121) Porém, em nenhum outro recanto de toda a Europa os curiosos descobririam mais surpreendente coleção de obras de sopradores, cabalistas e astrólogos que entusiasta algum jamais reuniu. Para a compra desses tesouros invendáveis, o livreiro desembolsara toda uma fortuna. Aliás, o velho D*** não se comprazía em vender... Sentia um aperto no coração quando um cliente entrava em sua loja. Intruso presunçoso! D*** espreitava seus movimentos com um olhar penetrante e agressivo; borboleteava em torno dele numa vigilância inquietante. E quando mãos profanas desalojavam seus ídolos de seus nichos, lastimava-se, de mau-humor. Se uma das sultanas favoritas de seu harém de feiticeiro parecia sorrir; o preço marcado não era mais tão exorbitante. Acontecia, porém, que ele duplicava a soma. Se hesitasses? Imediatamente ele arrebataria o objeto sedutor que já seguravas em tuas mãos. Se aceitasses uma proposta desse velho maníaco, ele se transformaria como que no ícone do Desespero. E, muitas vezes, ao cair da noite, tu o verias bater à tua porta, querendo reaver a qualquer preço o artigo que vendera no mesmo dia, em condições tão bizarras. Seguidor de Averróis e de Paracelso (1)*, era tão cioso quanto eles de arrebatar aos profanos os tesouros acumulados por ele.
Ora, há alguns anos, quando eu me iniciava na literatura e na vida, inflamou-me o desejo de compreender a origem, bem como as tradições, da seita estranha conhecida pelo nome de Rosa-Cruz (2). Pouco satisfeito com os documentos truncados e superficiais que qualquer um pode encontrar obras a esse respeito, não me pareceu de todo impossível que a biblioteca do Sr. D***, tão rica em incunábulos góticos, e também em manuscritos, pudesse me oferecer sobre sua fraternidade famosa alguns dados de exatidão e autenticidade mais rigorosa. Quem sabe? Talvez, um escrito da própria pena de um membro da Ordem - um documento tal que confirmasse, indiscutivelmente e em detalhes, as pretensões à sabedoria e à virtude que Bringaret (3) atribuía aos sucessores dos Caldeus e dos Gimnosofistas.
Tomei, então, o caminho desse reduto, um dos lugares de peregrinação - e eu deveria ter vergonha de confessar - que eu freqüentava com o maior gosto. Porém, na verdade, serão as publicações de nossos dias isentas de erros e de paradoxos cujo absurdo em nada fica a dever às dos velhos alquimistas? E quem pode afiançar-nos que nossos próprios jornais não parecerão, também repletos de quimeras aos olhos da posteridade, como se apresentam para nós os grímórios dos Espagíricos? E isso não impede que a Imprensa constitua o próprio ar que respiramos - um ar particularmente brumoso, diga-se de passagem.
Desde a entrada da loja, fui surpreendido pela aparência venerável de um cliente que eu nunca havia encontrado. Contudo, o que me espantou ainda mais foram os sinais de respeito que o desdenhoso colecionador prodigamente mostrava com relação a ele. "Senhor, exclamou ele enfaticamente, há quarenta e cinco anos dedico-me a essas pesquisas, e de todos os homens que conheci, o senhor é o único verdadeiramente digno de ser meu cliente. Onde, pois, e como, nesta idade frívola, conseguiu adquirir uma ciência tão profunda? Quanto a essa Augusta Fraternidade, cujas doutrinas, mal esboçadas pelos filósofos mais antigos, têm permanecido um mistério para os mais recentes, diga-me se existe ainda sobre a terra um livro ou um manuscrito realmente revelador de seus dogmas e seus arcanos?"
Essa expressão Augusta Fraternidade despertou minha atenção. Nem é preciso perguntar se eu agucei os ouvidos para escutar a resposta do estranho!
- Não acho, disse o velho senhor, que os Mestres da Escola tenham revelado ao mundo suas verdadeiras doutrinas, a não ser por alusão obscura e mística parábola, e não serei eu a incriminar sua discreção.
E como, depois de uma pausa, ele me parecesse prestes a ir embora, dirigi bruscamente a palavra ao colecionador:
- Nada vejo em seu catálogo, Senhor D***, que trate dos RosaCruzes.
- Os Rosa-Cruzes! exclamou o velho senhor, e foi sua vez de me fitar com uma atenção mesclada de espanto: que outro homem senão um Rosa-Cruz poderia explicar os arcanos da Rosa-Cruz? Julga o senhor, então, que um membro desta Fraternidade, a mais zelosa das sociedades secretas, se resignaria a levantar, dessa forma, o véu que esconde do mundo a Ísis de sua Sabedoria?
Aha! pensei, está aí, então a augusta Fraternidade de que o senhor falava há pouco? Deus seja louvado!... Sem dúvida: esbarrei com um Irmão!
- Porém, senhor, disse eu, levantando a voz, se os livros se calam, onde então poderei encontrar documentos? Em nossos dias, nenhum escritor se arrisca sem a caução de alguma autoridade; mal se ousa citar Shakespeare sem precisar o capítulo e o verso. Estamos na era dos fatos - na era dos fatos, senhor!
- Bem, respondeu o ancião, com um sorriso gracioso. Se algum dia nos encontrarmos novamente, talvez eu possa dirigir suas buscas à verdadeira fonte de informação.
Dito isto, abotoou seu longo redingote, chamou seu cão e foi-se.
Exatamente quatro dias depois desse breve colóquio na loja do sr. D***, ocorreu-me encontrar novamente o velho gentleman. Eu cavalgava tranqüilamente ao lado do Highgate quando, ao pé da colina clássica, reconheci o estrangeiro. Ele montava um poney negro e diante dele trotava um cão, também negro.
Suponhamos que encontreis, a cavalo, o homem com quem desejais travar conhecimento, e que isso ocorra ao pé de uma longa colina; lá, verdadeiramente, a menos que tenha tomado de empréstimo o rocim favorito de um amigo, esse homem não pode, por uma questão humanitária, cavalgar para longe para esquivar-se de vós. Receio, pois, que não tendes culpa se a ligação projetada não estiver no bom caminho antes de haverdes atingido o alto da colina. Em suma, foi tal meu sucesso, que, ao atingir Highgate, o ancião propôs que nos detivéssemos em sua casa, que ficava um pouco afastada da vila. Uma casa excelente, pequena mas cômoda, com um grande jardim e janelas de onde se descortina uma vista como Lucrécia recomenda aos Sábios. Os campanários e cúpulas de Londres são distintamente visíveis quando o tempo está claro. Aqui, o retiro do eremita; la embaixo, Mare Magnum do mundo.
Sendo as paredes dos cômodos principais ornadas com pinturas de rara envergadura, e da alta escola de arte que dificilmente se encontra fora da Itália, surpreendi-me ao saber que esses quadros eram todos da lavra do proprietário (4). Minha evidente admiração agradou a meu novo amigo e, sem dúvida, incitou-o a falar. Logo reconheci nele um esteticista, tão superior em teoria quanto o artista o era na prática. Sem fatigar o leitor por uma afetação de pedantismo, não é sem interesse esboçar em algumas palavras uma observação que pode lançar um pouco de luz sobre o plano e o caráter da obra a que estas folhas servem de introdução. Meu anfitrião insistia constantemente na correlação entre as artes, como o fez um autor notável sobre a síntese das ciências. Ele sustentava que, em toda obra de imaginação, o artista das escolas mais sublimes - homem de letras ou de pincel - deve fazer a mais expressa distinção entre o Realismo e a Verdade (5); em outros termos, entre a pintura da vida comum e a sublimação da Natureza no ideal.
- Um (o Realismo) e o feito da Escola holandesa; o outro (a Verdade), da grega.
- Senhor, ponderei eu, a holandesa está mais na moda.
- Sim, em pintura, talvez, respondeu meu anfitrião; mas e na literatura?
- É da literatura que eu falava. Nossos poetas da jovem geração são pela simplicidade e Betty Foy: o mais alto elogio que nossos críticos possam fazer a uma obra de imaginação, consiste em dizer que seus caracteres são adequados à vida comum de cada dia. Mesmo na escultura...
- Na escultura! Não, não! Aí, pelo menos, o Ideal sublime deve ser essencial!
- Perdão, mas receio que o senhor não tenha visto Souter Johnny e Tam O'Shanter.
- Ah! disse o velho senhor, balançando a cabeça. Eu vivo muito fora do mundo, pelo que vejo. Aposto como Shakespeare deixou de agradar.
- Pelo contrário; faz-se da admiração de Shakespeare um pretexto para diminuir qualquer outro artista... Entretanto, os críticos descobriram que Shakespeare é tão realista!...
- Realista, o poeta que jamais delineou um caráter que se possa encontrar nesta vida! Realista, o psicólogo que jamais (nem mesmo uma vez!) ofendeu a dignidade da Arte a ponto de pintar uma paixão que seja falsa ou um personagem que seja real!
Eu estava a ponto de responder a esse paradoxo com grande severidade, quando observei que meu companheiro se exaltava pouco a pouco. Quando se quer pescar um Rosa-Cruz, deve-se cuidar para não turvar sua água. Não hesitei em desviar o curso da conversa.
- Voltemos, disse eu, ao nosso ponto. O senhor me havia prometido esclarecer minha ignorância quanto aos Rosa-Cruzes.
- Muito bem, respondeu ele cem um tom algo áspero; mas por quê? Não desejará o senhor penetrar este templo apenas para profanar os seus mistérios?
- Por quem o senhor me toma?... Mas, admitamos que eu tenha esse propósito. A sorte do abade de Villars bastaria, ao que parece, como advertência a todos os homens contra a tentação de tocar frivolamente no reino das Salamandras e dos Silfos. Quem desconhece o fim misterioso desse personagem espiritual que pagou com sua vida pela maliciosa sátira (6) Conde de Gabalis?"
- Salamandra ou Silfo! Pelo que vejo, o senhor também cai no erro comum (7), traduzindo ao pé da letra a linguagem alegórica dos adeptos do misticismo.
A esse respeito, o velho gentleman não se absteve de fazer uma digressão das mais curiosas e, parece-me, das mais eruditas, sobre a doutrina dos Rosa-Cruzes. Havia alguns deles, pelo visto, que ainda, em augusto mistério, prosseguiam suas pesquisas profundas sobre a ciência da natureza e a filosofia oculta.
- Mas essa Fraternidade, concluiu ele, por mais respeitável e virtuosa que seja (digo virtuosa, pois não há Ordem monástica em que a fé esteja mais viva, onde os preceitos da moral sejam praticados com severidade mais conscienciosa), esta Fraternidade é apenas um ramo de outras fraternidades mais transcendentes ainda quanto aos poderes de que dispõem, mais ilustres quanto à sua origem. O senhor tem conhecimento dos platônicos?
- Na ocasião, repliquei eu, perdi meus passos no labirinto deles. São, a meu ver, homens muito difíceis de entender.
- No entanto, as suas mais árduas especulações não vieram à luz; suas obras mais sublimes acham-se apenas em manuscritos. Elas constituem a reserva do Ensinamento iniciático, não somente entre os Rosa-Cruzes, como também nas outras Fraternidades mais augustas a que me referi para o senhor. Mais solene e mais sublime ainda é a gama de conhecimentos que se podem colher em seus ancestrais, os pitagóricos, e mais exatamente nas imortais obras-primas de Apolônio (8).
- Apolônio, o impostor de Tiana? Chegaram a nós os seus escritos?
- Impostor?, clamou meu anfitrião. Apolônio, um impostor?!
- Desculpe-me. Não sabia que ele era seu amigo. Se o senhor afiança o seu caráter, não mais devo hesitar em ver nele o mais respeitável dos homens, que nada além da verdade dizia ao exaltar seu poder de aparecer em dois lugares ao mesmo tempo...
- E será isso, tão difícil? indagou o velho senhor. Nesse caso, o senhor nunca sonhou (9).
Nossa conversa deteve-se aí. Entretanto, o gelo se quebrou e nossa intimidade perdurou até a morte de meu venerável amigo... Paz às suas cinzas! Era um personagem de hábitos singulares e de opiniões excêntricas. Todavia, devo dizer que ele passava a maior parte de seu tempo na realização de atos de paz e de discreta bondade. Praticava com entusiasmo os deveres do Samaritano; suas virtudes humanizavam-se ao contato da mais amável caridade e a mais ardente fé servia de base a suas esperanças. Suas confidências nunca iam além do estritamente necessário para o esclarecimento de sua própria origem e de sua história; jamais tive ocasião de penetrar nas trevas onde seu passado se ocultava. Ele parecia ter presenciado a Revolução Francesa (10); nada escondia a esse respeito, expressando-se em digressões eloqüentes e instrutivas. Quanto aos crimes dessa época tumultuada, devo confessar que ele não os julgava com aquela indulgência filosófica, característica dos homens ilustrados de hoje, que parecem ter a cabeça bem firme sobre seus ombros. Não falava como estudante que leu e que raciocinou, mas como homem que viu e sofreu. Velho, ele parecia ser uma pessoa só no mundo e eu não conheci um único parente seu, a não ser quando seu executor testamenteiro, um primo distante, me informou do esplêndido legado que fizera a seu favor. Foi uma soma sobre cujo valor creio ser prudente nada revelar, receando um novo imposto sobre a renda e a propriedade imobiliária: deixou-me, ainda, alguns manuscritos preciosos, aos quais este livro deve a sua existência.
Suponho que devo este último legado a uma visita que fiz ao Sábio (poderei ousar dar-lhe este título?) algumas semanas antes de sua morte. Se bem que pouco ao par da literatura contemporânea, a afabilidade que caracterizava o fundo de sua boa natureza tinha levado o caro amigo a me permitir, gentilmente, consultá-lo com respeito a diversos empreendimentos literários, que uma exuberante ambição tinha sugerido à minha inexperiência de jovem estudante. Solicitei então seu parecer, mais ou menos nessa época, com respeito a uma obra de imaginação em que pretendia descrever os efeitos do entusiasmo sobre os diversos modos do caráter. Ele empenhou sua paciência habitual em escutar meu projeto, banal e prosaico; depois, voltando-se com um ar pensativo para as estantes de sua biblioteca, tirou um velho livro e leu-me alguns trechos, inicialmente em grego, depois em versão inglesa, cujo teor é o seguinte:
"PLATÃO ASSINALA AQUI QUATRO TIPOS DE ÊXTASE (11) (palavra que a meu entender denota o entusiasmo e a inspiração dos Deuses): temos, em primeiro lugar, o ÊXTASE MUSICAL; em segundo lugar, o TELÉSTICO OU MISTICO; terceiro, o PROFÉTICO; enfim, quarto, AQUELE QUE SE REFERE AO AMOR..."
Depois de ter sustentado que existe na alma uma faculdade superior ao Entendimento; após ter demonstrado que nossa natureza engloba energias distintas - sendo que uma nos permite descobrir e compreender os objetos com uma precisão matemática e com uma rapidez quase intuitiva, e a outra presta-se às realizações da grande arte (admitamos que se trate de uma estátua de Fídias) - o autor citado colocou-se no dever de afirmar "que o Entusiasmo, no seu verdadeiro sentido, consiste no desenvolvimento dessa faculdade mais elevada do que o entendimento, quando os Deuses se comprazem em acioná-lo, de onde provém a Inspiração".
Em seguida, o autor, prosseguindo seu comentário sobre Platão, nota "que um único desses Êxtases (sobretudo aquele referente ao Amor) pode bastar para reintegrar a alma na felicidade primordial de sua divina essência: mas existe uma conexão íntima entre todos esses estados e a alma, em progressão normal, eleva-se do Êxtase Musical ao Êxtase do Amor, passando pelo Êxtase Místico inicialmente, e depois pelo Êxtase Sibilino".
Enquanto minha inteligência aturdida concentrava sua atenção inquieta nessas especulações de inextricável sublimidade, meu conselheiro fechou o livro e me disse delicadamente: - "Eis a epígrafe do seu livro, a tese para o seu tema".
- Davus sum non Edipus, respondi com despeito, balançando a cabeça. Tudo isso pode ser de uma suprema beleza, mas que o Céu me perdoe! Não compreendo uma só palavra... Os mistérios de seus Rosa-Cruzes e de suas Fraternidades ocultas são um brinquedo de criança, se comparados com a linguagem dos platônicos.
- De qualquer maneira, enquanto o senhor não compreender todo o sentido dessas passagens, as teorias dos Rosa-Cruz lhe permanecerão incompreensíveis, assim como os ensinamentos dessas Fraternidades mais nobres de que o senhor fala com tanta leviandade.
- Oh! sendo assim, em desespero de causa, renuncio a toda esperança de compreender essas doutrinas! Mas o senhor, tão versado na matéria, porque não escreve um livro sobre a epígraje referida?
- E se eu já tivesse escrito um livro com essa tese por tema, poderia o amigo encarregar-se de prepará-lo definitivamente para o público?
- Com grande prazer, respondi, sem pensar na responsabilidade que estava assumindo.
- Eu lembrarei sua promessa, insistiu o velho cavalheiro. Quando eu não estiver mais aqui, o senhor receberá os manuscritos. Segundo o que o senhor me disse sobre o gosto que prevalece em literatura, ouso lisonjeá-lo com a esperança de um grande sucesso... Aliás, devo dizer-lhe que o senhor aceitou uma tarefa um pouco difícil.
- Sua obra é um romance?
- É romance e não é. É uma verdade para quem sabe compreender, é uma extravagância para os demais.
Enfim, os manuscritos chegaram às minhas mãos com um pequeno bilhete de meu amigo, que me lembrava minha promessa imprudente.
Foi com uma triste emoção, mesclada entretanto de uma viva impaciência, que abri o pacote, avivando minha lâmpada. Imaginem minha decepção quando o texto surgiu-me traçado do começo ao fim com caracteres desconhecidos. Apresento ao leitor uma pequena amostra:

E assim por diante, preenchendo 940 páginas de formato grande! Eu mal podia acreditar no que estava vendo! Parecia-me, entretanto, que minha lâmpada estava luzindo com um azul singular e tive a impressão inquietante de uma espécie de profanação, quando abri, sem saber, esses misteriosos hierogramas. Acrescentei a isso a lembrança das estranhas alusões e da linguagem mística do velho senhor: todas essas coisas emaranhavam-se em minha imaginação em desordem. Certamente, para não dizer o pior, tudo se tingia, aos meus olhos com uma nuvem funesta e fatídica...
Estava prestes a engavetar todos estes papéis num canto de minha escrivaninha, com a piedosa intenção de não retornar a vê-los, quando meu olhar deu com um livro, primorosamente encardenado em marroquim azul, que eu não tinha percebido pela pressa do primeiro instante. Abri esse volume com grande precaução, não sabendo bem o que poderia saltar aos meus olhos. Adivinhem meu arrebatamento quando percebi tratar-se da chave ou dicionário dessa criptografia (12). Basta dizer, para poupar o leitor do relatório de meus trabalhos, que finalmente considerei-me capaz de interpretar esses hieróglifos: lancei-me então ao trabalho.
Esse trabalho não foi nada fácil, e dois anos se passaram sem que eu fizesse progressos notáveis. Foi então que, desejando testar a receptividade do público, obtive a publicação de alguns capítulos desordenados em um periódico, com o qual tive a honra de estar em contato durante alguns meses. Eles pareceram incitar uma curiosidade mais viva do que eu poderia ter imaginado; lancei-me então com mais ardor do que nunca a essa difícil tarefa. Veio-me contudo nova atribuição: prosseguindo o estudo, percebi que o autor tinha feito duas cópias sucessivas de sua obra, a segunda muito mais amadurecida e detalhada do que a outra. Ora, eu me tinha dedicado à primeira! Tive, assim, de retomar o meu trabalho; foi necessário traduzir de novo os capítulos já interpretados.
Excetuando alguns períodos de intervalo consagrados a algumas ocupações mais urgentes, posso dizer que meu desastroso compromisso custou-me vários anos de árduos esforços, para atingir plenamente o objetivo proposto. O que redobrava a dificuldade era que, no original, o estilo consistia em uma espécie de prosa ritmada, como se o autor desejasse dar a essa obra uma conotação de poema em prosa, tendo em vista a sua concepção e arranjo. Isso me foi impossível de ser levado estritamente em conta em minha tentativa de tradução, e seguramente precisarei de toda a indulgência do Leitor. O respeito natural com que tenho aceito os caprichos do velho cavalheiro e o caráter equívoco de sua Musa - esta é a única desculpa que invoco se, às vezes, a linguagem, mesmo sem poder atingir a riqueza do verso, toma emprestado a este último algumas flores, um tanto impróprias da prosa.
A verdade obriga-me a reconhecer que, apesar de todos os meus esforços, não posso ter a certeza de ter dado sempre o verdadeiro sentido a todos os caracteres hieroglíficos do livro. Fui mesmo obrigado, em certas passagens (seja por alguma lacuna na narração, seja pelo aparecimento repentino de algum hieróglifo cuja chave não pude encontrar), a recorrer a interpelações de minha própria invenção, fáceis de distinguir, sem dúvida, mas que, felicito-me, não estão em desacordo com a harmonia geral da obra.
Essa confissão leva-me a proferir a seguinte sentença, com a qual desejo concluir: Se neste livro, amigo Leitor, alguma página tem a ventura de agradar-te, ela é certamente de minha autoria; pelo contrário, se alguma passagem vier a te chocar, dirige tua reprovação ao velho cavalheiro!
Londres, Janeiro de 1842.
Edward Bulwer Lytton
Comentários sobre o prefácio de Zanoni
1. Seguidor de Averróis e de Paracelso.
Averróis, ou Averrohes (lbn-Roschd), médico e filósofo árabe da segunda metade do século XII, é reputado sobretudo como tradutor e comentarista geral da obra de Aristóteles. A Europa só conheceu este último há tempos, graças a seu intérprete muçulmano, cuja versão árabe nossos bons escolásticos tinham retraduzido em latim, na falta de texto grego original. Averróis é o responsável, em grande parte, pela admiração universal por Aristóteles: os comentários do Árabe gozavam, na Idade Média, de grande autoridade, pelo menos igual àquela reconhecida nos próprios tratados do filósofo ateniense... É bem verdade que a doutrina de Aristóteles concordava com aquela de Averróis, que reunia os ensinamentos elementares da ciência oficial com as mais audaciosas especulações dos teósofos alexandrinos. Ele seduzia, com isso, inúmeros místicos e iniciados que reivindicavam o privilégio de serem seus discípulos, enquanto os aristotélicos pretendiam ver nele apenas um alter ego do Mestre, um discípulo igual ao próprio fundador da Escola. Averróis nos aparece como o Jano da metafísica da Idade Média: tanto que seu nome, ao lado daquele do grande Paracelso, não causa maior espanto do que se aparecesse ao lado do nome de Santo Tomás de Aquino.
Quanto a PARACELSO, veja nossos comentários à página 31 deste volume.
2. da seita estranha conhecida sob o nome de Rosa-Cruz.
ROSA-CRUZ - Ouando, perto do fim do reinado de Henrique IV, o mundo profano ouviu falar pela primeira vez de uma associação muito fechada de teósofos taumaturgos, os Rosa-Cruzes já existiam há mais de um século. Derivaram seu nome de um emblema pantacular, de muita tradição entre eles. Esse pantáculo é o mesmo que Valentin Andréa (ou melhor Andréas), o grão-mestre de então, trazia gravado na pedra de seu anel: uma cruz de São ]oão, cuja áustera nudez ramificava-se em quatro rosas, desabrochadas em seus ângulos.
Muito se falou que a Ordem não remontava a antes de Valentin Andréas, mas isso é um erro manifesto. Se para refutá-lo evocarmos o artigo dos estatutos que ordenava dissimular durante cento e vinte anos a existência da mística fraternidade, poderíamos considerar a prova como insuficiente. Melhor seria recorrer a outros argumentos. Bem antes do ano de 1613, quando apareceu o manifesto dos Rosa-Cruzes, e mesmo antes de 1604, quando o mundo profano começou a suspeitar de sua existência, colhemos aqui e ali, vestígios incontestáveis de sua associação: eles são inúmeros, para quem sabe ler os escritos dos adeptos da época.
Vejamos alguns exemplos. Todos os arcanos Rosa-Cruzes são representados em um dos pantáculos do Amphitheatrum saptientiae eternae(122), onde Khunrath desenhou um Cristo de braços abertos em cruz, em uma rosa de luz. Ora, o livro de Khunrath traz uma aprovação imperial com data de 1598. Contudo, é principalmente em Paracelso, falecido em 1541, que devemos obter as provas decisivas de uma Rosa-Cruz latente no século XVI. Podemos ler em seu tratado De Mineralibus (tomo II, pp. 341-350 da edição de Genebra)(123) o anúncio formal do milagroso acontecimento que deveria confundir o século seguinte. Diz ele: "Nada existe de octulto que não deva ser descoberto. É assim que deverá suceder-me um ser prodigioso, que revelará muitas coisas" (De Mineralibus, 1). Algumas páginas adiante Paracelso precisa seu pensamento, anunciando certa descoberta: "que deve permanecer velada até a chegada de ELIAS-ARTISTA" (De Mineralibus, 8).
Elias Artista! Gênio diretor dos Rosa-Cruzes, personificação simbólica da Ordem, embaixador do Santo Paracleto! Paracelso, o Grande, prediz tua vinda, ó Sopro Coletivo das generosas reivindicações, Espírito de liberdade, de ciência e de amor que deve regenerar o mundo!...
Em outra passagem, Paracelso é mais formal ainda. Abramos sua espantosa Prognosticatio(124), coletânea de profecias, cuja única edição traz a data de 1536. O que vemos na figura XXVI? Uma rosa desabrochada numa coroa, e o místico diagrama (F), emblema da dupla cruz, enxertado sobre esta rosa. Ora, eis a legenda que se lê embaixo: "A Sibila profetizou o digamma eólico. Foi também pelo direito, ó cruz dupla, que foste enxertada sobre a rosa: és o produto do tempo, obtendo precocemente a maturidade. Tudo o que a Sibila predisse sobre ti realizar-se-á infalivelmente em ti, motivo pelo qual o verão produziu suas rosas... Triste época, em verdade, a nossa, onde tudo se faz sem ordem. Essa desordem é o mais evidente símbolo da inconstância humana. Mas tu, sempre de acordo contigo mesma, só produzes frutos estáveis, pois construíste sobre a pedra boa; e, tal como a montanha de Sião, nada mais poderá abalar-te; todas as coisas favoráveis chegam a ti como que por um desejo. Tanto que os homens confundidos dirão que é milagre. Mas o tempo e a idade propícia trarão essas coisas com eles; quando a hora soar, será necessário que elas se realizem, e é por isso que ELE VEM(125)" (versão textual).
Quem deverá vir? Ele, o Espírito radiante do ensinamento integral dos Rosa-Cruzes: Elias-Artista!
Não teríamos nenhum impedimento para reproduzir, se necessário, outros textos não menos formais, para provar que Andréas não foi o fundador da Ordem Rosa-Cruz.
Não nos iremos limitar às lendas Rosa-Cruzes. Não cabe aqui discutir se a história do fundador Christian Rosenkreutz é puramente legendária, ou se um fidalgo de carne e osso, nascido na Alemanha por volta de 1378, conseguiu que o santuário da Cabala lhe fosse aberto pelos sábios de Damcar (provavelmente Damasco), após uma longa peregrinação pelas terras do Oriente; e se, de volta à Alemanha, tendo transmitido a alguns discípulos a provisão dos arcanos, ele se tornou o eremita do mistério e passou sua longa velhice no fundo de uma caverna, onde a morte o esqueceu até 1484. Durante três séculos as controvérsias sobre esse ponto não conduziram a nenhuma conclusão positiva; não temos a mínima vocação para encher páginas fúteis, para acrescentá-las às antigas...
Essa gruta, sepulcro de Rosenkreutz, só foi descoberta em 1684, ou seja, cento e vinte anos após a morte do mago, conforme a estranha profecia que se pode ler na parede de rocha: "Serei descoberto após cento e vinte anos", - profecia que nos interessa pouco no momento. Todas essas lendas têm seu interesse, sem dúvida nenhuma, assim como possuem sua razão de ser do ponto de vista cabalístico. O mesmo se pode dizer das mil e uma maravilhas que os herdeiros espirituais de Rosenkreutz - segundo se afirma - teriam descoberto a partir da meditação sobre os mistérios. As latitudes de um campo mais vasto seriam necessárias, em todo o caso, para efetuar esse inventário e revelar o significado preciso e profundo desses símbolos múltiplos; talvez algum dia nos lancemos nessa tarefa.
O que nos é lícito afirmar desde já é que a Rosa-Cruz, cujos emblemas constitutivos nos conduzem aos poemas de Dante e de Guillaume de Lorris, durante muito tempo funcionou veladamente, antes de manifestar-se publicamente através de obras.
Hoje, quantos falsos magos ousam levar a mistificação ao ponto de cobrir com o rótulo ultramontano a Rosa-Cruz (restituída desde então, dizem eles, à pureza de sua gloriosa origem)(126). Pode parecer interessante transcrever duas frases do Manifesto(127) da Ordem, publicado pelo Grão-Mestre em 1615. Os irmãos aí proclamam, diz o contemporâneo Naudé(128): Que por seu intermédio, o tríplice diadema do Papa será reduzido a pó;
Que eles confessam livremente, e publicam sem nenhum medo de serem castigados, que o papa é o Anticristo.
Três linhas adiante, eles manifestam o desejo de que se retorne à simplicidade dogmática e rítualista da Igreja primitiva. Sem dúvida, essas frases, como todas as outras de seu Manifesto, são intencionalmente exaltadas, notoriamente impelidas ao maravilhoso, às vezes absurdas. Inúmeros prodígios são aí anunciados, sendo que vários, tomados ao pé da letra (que mata, dizia São Paulo), chocam-se contra a impossibilidade física. Mas sob essa forma paradoxal, esses engenhosos teósofos tiveram o cuidado de ocultar aos olhos dos tolos e de designar à sagacidade dos sábios as mais preciosas luzes do ocultismo tradicional.
Assim, jamais os Rosa-Cruzes renegaram o catolicismo na significação esplêndida de sua verdadeira etimologia, reveladora de um esoterismo superior; foram inspirados demais pelo Espírito que vivifica, para jamais atentarem contra a hierarquia gnóstica. Eles (tão ligados aos símbolos cristãos, denominavam Capela do Espírito Santo seu colégio supremo e Liberdade do Evangelho um de seus mais ocultos manuais) não se furtavam a ver no Santo Padre o princípio encarnado da unidade viva, e no papado espiritual a pedra angular do templo-síntese onde oficiarão um dia os pontífices professadores da Religião-Sabedoria universal. Bem mais, muitos dos Irmãos, nascidos no protestantismo, proclamavam-se católicos de viva voz, a exemplo de seu ilustre patrono Khunrath, de Leipzig.
Lembremos, ainda, que Valentin Andréas foi o instigador, em 1620, de uma Fraternidade Cristã, que se fundiu, mais tarde, à Fraternidade-Mãe dos Rosa-Cruzes.
Mas o abuso do papado temporal fazia com que eles fossem implacáveis e criticassem as ações ridículas, difamassem as intrigas, sem tréguas e sem piedade.
O verbo anticlerical dos Rosa-Cruzes clamava tão intensamente por toda a Europa, nos primeiros lustros do século XVII, que se acreditou tratar-se de uma associação secreta de huguenotes fanatizados; ledo engano. Anticlerical jamais significou anticatólico ou anticristão; confundir seria um erro. No papa, os Rosa-Cruzes distinguiam duas potências, encarnadas em uma só carne: Jesus e César. Quando qualificavam o sucessor de Pedro de anticristo, eles ameaçavam destruir sua tríplice coroa, mas não visavam senão o déspota temporal do Vaticano.
Seu sistema era, em suma, exaltar ao máximo as fórmulas até o paradoxo, falsear as obras até o milagre. Tinham tomado emprestado esse método a seus antigos mestres, os Cabalistas. Davam às alegorias um estilo tão inverossímil, que somente os imbecis se atinham sentido aparente, e os demais adivinham no primeiro contato o valor íntimo de um sentido oculto - era, de fato, um método inteligente. Foi assim que pregaram cartazes em Paris, no ano de 1622, contendo as proclamações seguintes, próprias convenhamos a intrigar os espíritos sutis e a distanciar as mentes parvas:
PRIMEIRO CARTAZ: "Nós, deputados do Colégio principal dos Irmãos da Rosa-Cruz, estamos visível e invisivelmente nesta cidade, pela graça do Altíssimo, em direção do qual se volta o coração dos justos. Mostramos e ensinamos sem limitações, podemos falar toda a espécie de língua dos países onde desejamos permanecer, para livrar os homens, nossos semelhantes, do erro e da morte."
SEGUNDO CARTAZ: "Se alguém deseja nos ver por simples curiosidade, não se comunicará jamais conosco; mas se a vontade o conduz realmente e de fato a inscrever-se nos registros de nossa fraternidade, nós que lemos os pensamentos o faremos ver a veracidade de nossas promessas; é por isso que não revelamos nosso endereço, pois os pensamentos, refletindo a vontade real do leitor, serão capazes de nos fazer conhecer a ele e ele a nós."
Não surpreenderemos os estudiosos, mesmo pouco avançados, do ocultismo, se protestarmos aqui que o anúncio dessas prerrogativas que os Irmãos exibiam, secretamente, sob a aparência de uma loucura incurável, ocultam significações da mais perfeita sabedoria. A última das pretensões das quais eles se vangloriavam, aquela que se julgará talvez a mais exorbitante, é precisamente a única que se poderá interpretar ao pé da letra. Ela lembra a condição expressa da admissão ao mais alto grau de uma fraternidade muito fechada e pouco conhecida, no areópago supremo da qual o postulante é obrigado a apresentar-se em corpo astral...
Os Irmãos iluminados da Rosa-Cruz eram obrigados, por juramento, a praticar a medicina oculta por onde quer que passassem, sem jamais receber remuneração alguma, sob nenhum pretexto. Psicurgia, Mestria Vital, Hermetismo, Teurgia e Cabala não tinham nenhum segredo para os mais avançados.
Um artigo de sua profissão de fé obrigava-os a "acreditar firmemente que, caso sua associação fracassasse, ela entraria num processo de regressão, voltando ao sepulcro de seu primeiro fundador". Isso quer dizer que se acontecer que um dos Irmãos se comprometa no mundo, a Ordem que eles terão manifestado imperfeitamente em atos voltará a seu potencial; de seu estado de abertura, ela voltará a ser oculta...
Assim como nenhum homem é perfeito, nenhuma sociedade é indefectível. A Ordem enfraqueceu e, por volta de 1630, entrou pelo menos como associação regular - nas trevas ocultas de onde saíra vinte anos antes(129). Só alguns Rosa-Cruzes manifestavam-se esporadicamente. A unidade coletiva pareceu adormecer por longo tempo no silêncio da gruta, de onde a fizeram sair novamente em 1888.
Os homens estão sujeitos ao erro, à malícia, à cegueira, e os Rosa-Cruzes são homens; entretanto, não se podem computar suas faltas ao abstrato da Ordem. Elias-Artista é infalível, imortal, e além disso, inacessível tanto às imperfeições como às manchas e às ridicularizações dos homens de carne que desejam manifestá-lo. Espírito de luz e de progresso, ele se encarna nos seres de boa vontade que O evocam. Se estes porventura tropeçarem no caminho, Elias-Artista os abandonará.
Fazer esse Verbo Superior mentir é impossível, mesmo que se possa mentir em Seu nome. Pois cedo ou tarde Ele encontra um órgão digno Dele (nem que seja por um minuto), uma boca fiel e leal (nem que seja para pronunciar uma só palavra). Por esse órgão de eleição, ou por esses lábios de encontro - que importa? - Sua voz se faz ouvir, poderosa e vibrante da autoridade serena e decisiva que dá ao verbo humano a inspiração do Alto. Assim são desmentidos na terra aqueles que Sua justiça havia condenado abstratamente.
Evitemos falsear o espírito tradicional da Ordem; sendo reprovados no Alto, no mesmo instante, cedo ou tarde seríamos renegados aqui embaixo pelo misterioso demiurgo que a Ordem saúda por esse nome: Elias-Artista!
Ele não é a Luz, mas, como São João Batista. Sua missão é dar o testemunho da Luz de Glória, que deve irradiar de um novo céu sobre uma terra rejuvenescido. Que Ele se manifeste por conselhos de força e que Ele desobstrua a pirâmide das santas tradições, desfigurada pelas camadas heteróclitas de detritos e de caliças que vinte séculos acumularam sobre ela. E que enfim, por Ele, as sendas sejam abertas para receber o Cristo glorioso, no ninho maior do qual se dissipará - estando Sua obra concluída - o precursor dos tempos futuros, a expressão humana do Santo Paracleto, o gênio da Ciência e da Liberdade, da Sabedoria e da Justiça integral: Elias-Artista.
3. Bringaret...
Bringaret, provavelmente Jean Bringern, o autor da versão alemã do Manifesto de Andréas, impresso em Frankfurt em 1615, juntamente com uma tradução da Confissão de Fé dos Irmãos da Rosa-Cruz (Veja Gabriel Naudé, Instruction à Ia France, p. 31).
4. Esses quadros eram todos da lavra do proprietário
O leitor atento de Zanoni não poderá deixar de pensar nesse momento no pintor Clarence Glyndon, um dos personagens que surgem em primeiro plano nesta grande obra esotérica. Glyndon é o aspirante excluído do adeptado, não pelo vício de incapacidade mental ou de fraqueza de alma, mas ao contrário, pelo orgulho e pela temeridade que o induziram a desobedecer as ordens peremptórias de Mejnour, o Mago.
O neófito dos mistérios só quis tributar à sua audácia a coroa da eleição; o hierofante estando ausente, tentou conquistar de assalto as prerrogativas do Sanctum Regnum, desafiando o Guardião do Umbral... Mejnour vai puní-lo fechando-lhe para sempre a porta do santuário, pois o fracasso é definitivo e a suprema prova não se tenta duas vezes. Mas não deixa de estabelecer-se uma comunicação entre o visível e o invisível; o véu que separava Glyndon do mundo astral é rompido. Regressando à vida cotidiana, o pintor debater-se-á entre as duas influências adversas, fasta e nefasta, que disputarão o seu ser, isto é, a virtude vivificadora do elixir e a obsessão do fantasma.
Liberado finalmente por Zanoni, que o ressuscita para a vida ativa e serena de antes da prova, seu longo martírio vai parecer-lhe a reminiscência de um pesadelo e o ensinamento substancial adquirido na escola dos dois caldeus subsiste apenas ao naufrágio das ilusões perdidas, fazendo do velho Glyndon um iniciado especulativo, um amador apaixonado das ciências ocultas...
Qualquer que seja a parcela de ficção inserida na possível realidade dos fatos revelados neste prefácio, não há dúvida de que Bulwer não quer dar a entender que Glyndon e o velho cavalheiro encontrado na livraria excêntrica são o mesmo personagem. Inúmeros detalhes não permitem duvidar disso e a sagacidade do leitor os distinguirá sem muitas dificuldades.
5. ...A mais extensa distinção entre o Realismo e a Verdade.
O realismo dá um colorido servil às coisas, tais como os sentidos fornecem sua noção no mundo físico; a verdadeira arte, comparando esta noção dada pelos sentidos com o ideal dessas mesmas coisas intuitivamente pressentido, reergue e corrige os objetos segundo o modelo de seu arquétipo. E se o Real pode ser concebido sob a aparência que nos é sensivelmente proposta, o Verdadeiro só se concebe compreendido na revelação das Essências e das formas puras; é através de tais indícios que nos cabe definir a realidade como aquilo que é, no sentido dos positivistas (ou, melhor, daquilo que parece ser), e a verdade como aquilo que deveria ser (ou melhor, o que virtualmente por direito concebido, mas que não existe fisicamente de maneira palpável).
6. ...pagou com sua vida pela maliciosa sátira...
Villars (abade de Montfaucon de) nasceu perto de Toulon, em 1635, e morreu em 1673, em circunstâncias misteriosas. Seus contemporâneos acreditaram tratar-se de uma vingança oculta. No ano de 1670, o abade de Villars publicou sob o título O Conde de Gabalis, ou diálogos sobre as Ciências Ocultas, um panfleto bastante estranho, aliás agradavelmente escrito, onde zombava do simbolismo dos RosaCruzes, com interpretações ao pé da letra; mas isso em estilo bastante equívoco e de maneira a fazer crer, que, por ser um fervoroso adepto da Alta Ciência, ele só zombava pela forma, e da boca para fora. Por outro lado, não se ignorava que ele se fizera iniciar outrora nos mistérios dessa Ordem Cabalística, e ele próprio deixara entender, com um tom meio brincalhão e ansioso, a vários íntimos seus que, convidado a comparecer diante de uma espécie de Corte Vêmica, sob a acusação de ter profanado os arcanos, não quis obedecer; mas, à revelia, os irmãos o tinham condenado à morte como costumavam fazer com os reveladores e traidores... Entretanto, ele tinha ainda recebido um prazo para opor-se à sentença... Os amigos do abade acreditaram tratar-se de uma mistificação em estilo gracejador. Mas a lembrança de todos esses fatos lhes veio à memória quando o planfletário espiritual foi raptado e assassinado na estrada que conduz a Lyon (1673).
7. ...Salamandra ou Silfo!... o senhor também cai no erro comum...
Sob a graciosa alegoria do casamento dos Rosa-Cruzes com as Salamandras, os Silfos e outros Espíritos dos elementos, esses adeptos da Escola de Paracelso simbolizavam o poder que o homem pode conquistar sobre as forças semiconscientes da Natureza.
O Leitor não ignora que, seguindo essas tradições ao pé da letra, as Salamandras habitam a região do Fogo; as Ondinas, a da Água; os Silfos povoam a imensidão dos ares, e os Gnomos as cavernas do mundo subterrâneo. A antigüidade pagã multiplicava ainda mais as raças demiúrgicas, ou dos deuses inferiores. Cada povo inventava nomes para designá-los; não havia fonte que não se glorificasse de alguma ninfa tutelar, não havia floresta onde não se reverenciassem faunos, sátiros e silvanos, etc...
8. ...Imortais obras-primas de Apolônio.
9. ...Nesse caso, o senhor jamais sonhou.
Apolônio (de Tiana), veja à página 11.
Esta resposta do velho iniciado é plena de profundidade. Sabe-se que, durante o sono, o homem interno abandona seu despojo material para banhar seu corpo luminoso fatigado e retomar sua vitalidade esgotada no Oceano fluídico universal. Ele pode assim transportar-se a distâncias imensas (veja nossas Notas sobre o Êxtase, pp. 57 a 61) e discernir as coisas exteriores a ele, nos planos físico e astral, por intermédio dos órgãos de percepção de seu corpo astral, ou mediador plástico. Mas, por mais que o ser astral se distancie de seu invólucro material, permanece unido a ele por uma cadeia simpática de tal eficácia, que à mínima sensação anormal percebida por intermédio desse cordão fluídico o homem interno é bruscamente trazido a seu corpo exterior, no qual se reintegra imediatamente, ocasionando o despertar. Em certos casos, felizmente bastante raros, onde o choque foi extremamente intenso, o cordão pode romper-se, o que ocasiona a morte imediata. Por isso, é perigoso despertar de sobressalto as pessoas que sonham.
O próprio sonho não é outra coisa senão a percepção mais ou menos confusa dos reflexos e dos fenômenos do mundo astral, cujas lembranças bastante vagas só se coordenam imperfeitamente no estado de vigília.
Os iniciados sabem em que condições hiperfísicas o corpo astral, assim expulso de sua efígie carnal, pelo sono ou pelo êxtase, pode condensar-se, tornar-se objetivo ao ponto de ser visto e tocado, mesmo a distâncias enormes do local onde o corpo material jaz imóvel e, geralmente, em catalepsia. A história fornece-nos vários exemplos desse fenômeno, em casos em que ele pode ser bem verificado.
"Nada no mundo, diz Eliphas, "é melhor atestado e mais incontestavelmente provado do que a presença visível e real do pe. Alphonse de Liguori ao lado do papa agonizante, enquanto que o mesmo personagem era visto em sua casa, a uma grande distância de Roma, orando e em êxtase. A presença do missionário François Xavier em vários locais ao mesmo tempo não foi constatada com menor rigor(130). Ver, ainda, o livro de Gurney, Meyers e Podmore, Phanstams of the living (3 vol. in-8°), ou o resumo francês dessa grande obra, efetuada por M.L.Marillier, sob um título menos explícito e significativo: As alucinações telepáticas (Les Hallucinations télépathiques Paris, 1891, in-8.°).
Esta fase de aparição à distância de um ser vivo, cujo corpo jaz adormecido no mesmo instante longe do lugar onde se produz o fenômeno, tem o nome de desdobramento.
10. ...Testemunho ocular da Revolução Francesa...
É inútil sublinhar aqui esse traço revelador, entre outros, da identidade que, segundo entendemos, se impõe entre Clarence Glyndon da narrativa e o old gentleman do Prefácio.
11. ...Platão assinala quatro tipos de Êxtase...
Cornélio Agrippa faz, no terceiro volume de Filosofia Oculta, um comentário extenso dessa classificação quaternária, advinda de Platão e dos Alexandrinos (Capítulos XLVI-XLIX).
Depois de ter definido o Êxtase (iluminação da alma pelos deuses ou gênios) - uma alienação do homem animal sensual e, ainda, uma amarra que mantém cativo esse carcereiro da alma, de modo que ela se solta da prisão que não está mais guardada e, livre, sob os influxos divinos, envolve todas as coisas e prevê o futuro -, Agrippa detalha quatro tipos de furores ou êxtases, que distingue pela diversidade de suas origens: o primeiro procede das MUSAS (êxtase Musical), o segundo de DIONISO (Êxtase Místico), o terceiro de APOLO (Êxtase Sibilino), o quarto, enfim, de VÊNUS (Êxtase de Amor).
O primeiro furor, segundo o discípulo de Tritemo, imanta a inteligência, tornando-a divina e apta a atrair as influências superiores, pelas virtudes das coisas naturais(131). As musas nada mais são do que as almas das esferas celestes que dirigem hierarquicamente as qualidades atrativas das coisas materiais, com relação ao que se encontra no Alto. A Lua rege as plantas, as pedras e os metais; Mercúrio, aquilo que provém da natureza animal e principalmente o que se refere ao beber e ao comer; Vênus rege os perfumes, ungüentos, exalações e fumigações; o Sol preside à voz, às palavras, à música, à harmonia; Marte, às paixões veementes, às afecções da alma, ao ímpeto da imaginação; Júpiter governa o que se refere à razão; Saturno rege tudo o que se refere à inteligência e ao espírito puro - eis o que concerne às sete esferas dos planetas. Restam a oitava esfera (aquela das Estrelas Fixas), que exerce influência sobre a astrologia e seus instrumentos e a nona, enfim (aquela do Primeiro Móbil), que exerce sua influência sobre o que se refere à analogia e ao símbolo: números, figuras, pantáculos, efígies de divindades, etc. Tal é, segundo Agrippa, o governo cósmico das nove Musas, e suas correspondências...
O segundo furor, emanado de DIONISO, obtém-se pelas cerimônias exteriores do culto: exorcismos, sacramentos, solenidades, práticas e pompas religiosas, etc. Sublimando a alma na região espiritual, que é a parte mais elevada, o Êxtase de Dioniso faz desta alma um templo purificado, digno de ser visitado pelos deuses. Desde então, os deuses vêm morar nele e o enchem de oráculos, numa efusão de alegria divina e de inefável sabedoria. Eles não se manifestam por sinais ou prognósticos, mas diretamente, acionando o espírito ou ainda, às vezes, por visões claras ou por vozes articuladas. Um exemplo, entre vários, é o demônio de Sócrates.
O terceiro furor provém de APOLO, que é o Espírito Universal, a alma inteligente do mundo. Se o furor de Dioniso é fundamentado por pompas exteriores do culto, o de Apolo obtém-se pelos mistérios sagrados, as adorações, as invocações, a virtude dos objetos consagrados e as práticas da Magia. É o Espírito de profecia que repentinamente desce sobre um mortal e o invade inteiramente. O mais ignorante, purificado sobre o todo poderoso amplexo de Deus, vaticina os oráculos da suprema sabedoria. Exemplo: os Sibilas.
O quarto juror, enviado por VÊNUS, o furor do amor, identifica a alma humana com a natureza divina e a assimila às potências empíreas. Deve-se ver aí a reintegração propriamente dita: um contato essencial, uma fusão temporária da alma humana transfigurada com a divindade transfigurante, que lhe infunde a Sabedoria em um abraço sublime, transpondo os limites do Entendimento. É por isso que Orfeu considerou o Amor cego como superior ao entendimento humano(132), acrescenta Agrippa.
Esses comentários distintivos são excelentes(133). Mas nada impede que o texto platônico tenha outra interpretação, uma vez que o sentido dos apotegmas é múltiplo em Magia, bem como o sentido dos próprios símbolos. Assim, o Êxtase enviado pelas Musas (inspiradoras das inteligências e reitoras das esferas) pode ser entendido igualmente como a iluminação espontânea, que favorece os homens de gênio: seja aguilhão fulgurante do pensamento, ou chama criadora da arte. Lá jaz o arcano de uma apoteose semiconsciente da natureza adâmica, ilustrada por intervalos, e depois obscurecida.
Traduziremos ainda Êxtase Musical no sentido estrito da palavra? Leitor de Zanoni, nós o podemos, em memória do papel preponderante(134) reservado por Bulwer Lytton ao pai da jovem, esse bizarro e genial maestro Pisani. Viola, nascida de um sonho, caminhará no sonho, protegida do mundo exterior por uma muralha de melodia. Silfos e Salamandras, de asas vibrantes e musicais, transparecem em rivalidade na atmosfera encantada engendrada pelos acordes do violino. É toda uma teurgia evocatória em volta do berço da criança; o milagroso ambiente torna-a predestinada a encontrar o mago, do qual ela se tornará a fatal delícia e o inocente flagelo. Podem-se ler, já, as fatalidades de sua vida futura, virtualmente incluída nas ondas sonoras do violino paterno.
Os músicos mais importantes de hoje sabem o que é a Música, concebida em sua essência e potencialidades? Eles vêem nela apenas uma arte divina, mas só uma arte. "Ora, o que fazia da Música uma ciência tão importante para os antigos era a faculdade que nela haviam reconhecido de poder facilmente servir de meio de passagem do físico ao intelectual; de forma que, como transportavam de uma natureza para outra as idéias que ela fornecia, acreditavam-se autorizados a atingir, por analogia, o Desconhecido partindo do conhecido. A Música então, era, entre suas mãos uma espécie de medida proporcional que eles aplicavam às essências espirituais" (Fabre d'Olivet, História Filosófica do Gênero Humano, 1, p. 264). Esta simples citação deve bastar. É suficiente para entrever a que nível a Música pode, sozinha, servir de base a uma categoria de iluminação celeste: aquela correspondente ao Êxtase Musical, cuja significação pode ser interpretada textualmente.
12. ...desta criptografia.
Encontram-se nos grimórios de todos os tipos, e notadamente no manuscrito das Clavículas de Salomão, hieróglifos semelhantes àqueles de que Bulwer Lytton oferece uma amostra. Quanto à sua chave, deverá ser procurada de preferência nas três obras seguintes: Polygraphie et universelle escriture cabalistique; do Abade Jean Tritheme, traduzida para o francês por Gabriel de Collanges... (Paris, Jacques Kerver, 1561, in-4.°, com figuras); De furtivis litterarun notis, vulgo de Ziferis, libri IV, de Joanna Baptista Porta (Nápoles, 1563, pequeno In-4.°, com figuras); e Traicté des chiffres ou secretes manieres d'escrire, por Blaise de Vigenère, Bourbonois (Paris, Abel L'Angelier, 1587, in-4.°, com figuras).

NOTAS

24 - Boismont, Dr. Brière, Des Hallucinations. Paris, Germer-Baillière, 1852, in. 8.° .
25 - Bulwer Lytton, Edwards, Zanoni. São Paulo, Ed. Pensamento, 1973.
26 - Levi, Eliphas, Dogma e Ritual da Alta Magia. São Paulo, Ed. Memphis, 1971, p. 327
27 - Dupotet, Baron, La Magie Dévoilée. Saint-Gerrnain, Eugène Heutle, 1875 (in-4.° ). Esta obra singular, que Dupotet distribuía a terceiros apenas mediante juramento de descrição, escrito e assinado pelo impetrante, caiu agora no domínio público.
28 - V. "Comentários sobre o prefácio de Zanoni", comentário n° 6.
29 - Bertholet, Les Origines de I'Alchimie. Paris, Steinheil, 1885, l vol. in-8.° (prefácio, pp. XIV e XV).
30 - Deploramos aqui a morte recente de um jovem sábio do mais alto mérito, o qual, sendo químico e médico, empenhava-se inteiramente na reconstituição contemporânea da Filosofia Hermética. Entre os inúmeros trabalhos que publicou, citamos duas grandes obras muito consideradas no meio ocultis ta: Théories et Symboles des Alchimistes, - Histoire de I'Alchimie au moyen - âge: Nicolas Flamel (Chacornac, ed., 2 vol. in-l6.° , com figuras).
Albert Poisson sucumbiu devido a uma tuberculose, em julho de 1894. Sabia, há tempos, do seu estado de saúde; entretanto, trabalhador incansável, escrevia o dia inteiro e, ainda, durante uma parte da noite, lutando contra a destruição iminente em suas últimas horas, para dedicá-las à Ciência. Nos intervalos de horríveis acessos de tosse, quando parecia sucumbir, Poisson esboçava algumas páginas serenas e luminosas de filosofia alquímica, ou consignava por escrito o resultado de suas últimas experiências.
Cabalista e Rosa-Cruz, não ignorava, aliás, que a morte não atinge o homem em seu ser primordial; que ela se resume numa mudança de estado. O maior pesar de Albert Poisson - além daquele de abandonar os seres que ele amava - foi deixar inacabados seus caros trabalhos, onde pôde encontrar, até o fim, o esquecimento do quotidiano e a consolação de seus sofrimentos... Que Deus tenha sua alma! Seus irmãos guardarão sua memória e zelarão pela divulgação de seus preciosos escritos.
31 - Saint Yves D'Alveydre, Marquis, La Mission des Juifs. Paris, Ed. Traditionnelles, 1971, 2 vol.
32 - Fabre D'Olivet, La langue hébraique restituée. Paris, Ed. de Ia Tête de Feuille, 1971.
33 - Levi, Eliphas, A chave dos grandes mistérios. São Paulo, Ed. Pensamento, 1973.
34 - Hermes Trismegisto, Asclépios. Paris, Didier, 1867, pp. 147-148.
35 - [Prevenimos o leitor de que colocamos entre colchetes ( [ ] ) as passagens e as notas intercaladas nesta 3a. edição, quando nos parece importante sublinhar a data recente dessas edições (1894)].
36 - Dramard, Louis, La science occulte et la doctrine ésotérique. Paris, Carré, 1885, in-8.° .
37 - E o homem só pode concebê-lo encarando-o em sua manifestação primeira, que é o Verbo. É despertando a centelha divina que jaz no mais profundo de seu ser, que o homem aprende a se conhecer, dando nome a Deus.
38 - Jacolliot demonstrou, ainda, que o Cântico dos Cânticos é apenas uma imitação inferior do Canto nupcial hindu de Nourvady. V. Jacolliot, L., Les Fils de Dieu. Paris, Lacroix, 1837, pp. 169-73.
39 - Se Apolônio fosse vivo na época (morreu em 79 d.C.), teria certamente ficado envergonhado por ter representado assim o personagem do Anticristo. Apesar de tudo, os parvos entusiastas não conseguiram ridicularizá-lo. Chassang apresenta-nos uma boa tradução francesa da vida de Apolônio: Philostrate, Vie d'Apollonius. Paris, Didier, 1876, in-l2.° .
40 - Levi, Eliphas, História da Magia. São Paulo, Ed. Pensamento, 1974, p. 87.
41 - Papus realizou uma excelente tradução francesa do Sepher Iet-zirah, acompanhada de um sábio comentário cabalístico: Papus, Sepher Iet-zirah. Paris, Carré, 1888, grande in-8.° .
42 - Synesius, Lettres. [Paris, s. ed., s.d.]
43 - Saint-Yves D'Alveydre, Mission des Juifs. op. cit., p. 738.
44 - A Santa Vema ainda existia no início do século XVIII.
45 - Levi, Eliphas, História da Magia, op. cit., pp. 204-205.
46 - O processo e a morte de Gilles de Laval em Guaita, Stanislas, O Templo de Satã. São Paulo, Editora Três, 1973, Biblioteca Planeta, Vol. 1. pp. 148-151.
47 - Ver Guaita, S., O Templo de Satã, op. cit., pp. 188 e seguintes.
48 - Os maçons começam a compreender o ridículo de suas vãs iniciações. Alguns querem suprimir o simbolismo; outros, mais esclarecidos, procuram sua elucidação racional. Um grupo de pesquisas iniciáticas foi recentemente formado sob a inspiração de um maçon pertencente à verdadeira Rosa-Cruz, Oswald Wirth, tendo como objetivo reencontrar a palavra perdida dos antigos mistérios.
49 - Levi, Eliphas, História da Magia, op. cit., p. 196.
50 - Tornava-se ainda mais difícil explicar o esplendor desta lâmpada, uma vez que ela se acendia espontâneamente sem óleo e sem mecha.
51 - O Grande e o Pequeno Alberto, entre outros.
52 - Ver especialmente Douze Clefs, de Basile Valentin, seguidas de Azoth, tradução francesa de 1660 (Paris, in-8.° , com figuras curiosas).
53 - Sua obra principal é Philosophie occulte, traduzida para o francês por A. Levasseur, no início do século XVIII (La Haye, 1727, 2 volumes, in-8.° , figuras).
54 - Traduzido para o francês por M. de Guendeville (Leyde, 1726, 3 volumes, in-l2.° , com uma foto).
55 - O manuscrito original encontra-se na Biblioteca do Vaticano. As obras completas de Paracelso foram publicadas em Genebra (1658, 3 vol. infólio, com figuras).
56 - A aprovação real que se encontra anexada na obra traz a data de 1598.
57 - Ver, no Apêndice I, a descrição minuciosa dessa importante obra, bem corno a explicação dos dois pantáculos reproduzidos no começo deste livro.
58 - Traduzido para o francês por Richard le Blanc (Paris, 1578, in-8.° , figuras).
59 - Amsterdam, 1646, pequeno in-l2.° , com figuras.
60 - Ambos foram traduzidos para o francês por François Marcel de Boulène (Rouen, 1634, in-l2.° ).
61 - Pasqually, Martinez, Traité de Ia Réintégration des êtres. Paris, Ed. Traditionnelles, 1974.
62 - Guaita, Stanislas, O Templo de Satã. São Paulo, Ed. Três (Coleção Planeta, n.° 12), pp. 171-76.
63 - Guaita, Stanislas, op. cit. (Coleção Planeta, n.° 13), pp. 158 e seguintes (A Vingança dos Templários e o Processo de Jacques Cazotte).
64 - Fabre d'Olivet manifesta esses três Princípios pela revelação das faculdades correspondentes a eles na Natureza universal: Providência, Vontade do Homem e Destino.
65 - Acoustique nouvelle (Paris, o autor, 1854, in-l2.° ); La chimie nouvelle (l854, in-l2.° ); Le Roman alchimique (l857, in-l2.° ); e, enfim, a Médecine Nouvelle (l862, 2 vol. in-l2.° ).
66 - Pseudônimo de Alphonse-Louis Constant (1810-1875).
67 - No verdadeiro sentido etimológico, re-velaire significa simbolizar novamente.
68 - Saint-Yves D'Alveydre, Mission des Souverains par l'un deux; Mission des Ouvries; Mission de L'Inde; Mission des Juifs. Paris, 4 vol. grande in-8.° . La France Vraie. Paris, s. ed., 1887, 2 vol. in-l2.° .
69 - Deixamos subsistir esta frase tal como a tínhamos escrito em 1886; mas ver-se-á que, desde então, tudo mudou.
70 - Péladan, Joséphin, Le Vice suprême; Curieuse. Paris, Laurent, s/d., 2 vol. in-l2.° . L'Initiation sentimentale; A coeur perdu; Istar. Paris, Edinger, 4 vol. in-l2.° . La Victoire du mari. Paris, Dentu, in-l2.° , s/d.
71 - Escrito em 1886.
72 - Apesar do título pomposo, é apenas um ramo francês filiado, corno os demais, ao centro de Adyar-Madras.
73 - Kaithness, Lady (Duquesa de Pomar), La Théosophie Universelle et Ia Théosophie Boudhiste; Fragments glanés dans Ia Théosophie Occulte. Paris, Carré, 1886, 2 vol. in-8.° .
74 - Blavatsky produz à vontade, ou quase, todos os fenômenos dos Espíritas e de seus Médiuns. Comanda as forças a que estes se submetem: onde são escravos, ela parece dominar. Como pensadora, Blavatsky destaca-se sobretudo pelas faculdades psíquicas e intelectuais de assimilação, que a tornam um mistério para os profanos. Entretanto, ela fornece aos ocultistas um tema de estudo do mais alto interesse.
75 - Esta apreciação sobre Mme. Blavatsky é de 1890. Como Mme. Blavatsky morreu, julgamos inútil manter as duas páginas de críticas um pouco severas que deveríamos ter-lhe consagrado em nossa 2.ª edição (1890). Estas críticas visavam sua atitude e seus procedimentos polêmicos; mas pode-se observar que jamais contestamos seu valor intelectual. Conviria lembrarmos hoje somente seu talento e os serviços por ela prestados à causa teosófica.
76 - Escrito em 1889. O Budismo esotérico foi traduzido depois por Mme.Lemaitre (Paris, 1890, in-l2.° ).
77 - A Revue Théosophique não durou, infelizmente, mais de um ano. Encontram-se excelentes artigos nos únicos doze números publicados.
78 - Papus, Le Tarot des Bohémiens. Paris, Ed. Dangles, s/d. [Papus publicou, após a 2.' edição de No Umbral do Mistério, dois grandes volumes, onde a mais alta doutrina é formulada numa linguagem luminosa e precisa: PAPUS, Traité Méthodique de Science Occulte. (Paris, 1891, grande in-8.', figuras) e Traité Elementaire de Magie Pratique. (Paris, 1894, grande in-8.', figuras)
79 - Roca, Abbé, Les Noveaux Cieux et ta Nouvelle Terre. Paris, Jules Levy, 1889, 2 vol., in-8.° . [Tivemos o pesar de ter notícia, no ano passado, da morte prematura de nosso estimado amigo, a natureza de apóstolo mais generosa que nos foi dado conhecer e admirar! Diga-se àqueles que tomaram conhecimento das hostilidades implacáveis, das perseguições hipocritamente ferozes que conduziram o abade à morte, que seu grande coração perdoou sem distinção todos aqueles que o injuriaram. Em verdade tudo foi dito.]
80 - O inefável Z G U W refletindo sua quádrupla expansão no espelho das formas ou de Malkuth.
81 - Com relação às provas, extraídas dos egípcios, enviamos o leitor a Jâmblico, sem temer que ele confunda estas cerimônias com aquelas humilhantes das lojas atuais, onde reina uma caduquice alegórica e solene.
82 - O vocábulo J I } (Adam) forma os compostos J Y I } Adom (Vermelho, avermelhado), e U K I } Adamah (no sentido restrito: terra, limo); intérpretes grosseiramente sutis tiraram de tais vocábulos esta conclusão surpreendente: o Senhor criou o homem petrificando um pouco de terra vermelha entre seus dedos!... Daí provém a expressão corrente corrente: O Homem, filho do Limo.
83 - Ver e comparar esta explicação com aquela dada acima sobre o tetragrama Iod-he-vau-he. Alguma luz poderá jorrar dessa comparação.
84 - Essas três grandes divisões são cada uma delas, suscetíveis de se subdividir. Obtêm-se, então, os Sete Princípios da escola tradicional do Oriente, assim como Sinnett as detalhou em seu Budismo esotérico. Parece inútil, pelo menos aqui, aprofundar a análise além do agrupamento ternário, o qual é suficiente para a compreensão das idéias gerais resumidas neste livro. Contudo, em razão de possíveis mal-entendidos derivados de nossas explicações muito concisas (mesmo com a classificação ternária), achamos melhor completá-las, fornecendo nesta nota as últimas minúcias. Independente de materiais grosseiros e tangíveis, que constituem o corpo físico do homem a Cabala ortodoxa acrescenta três elementos mais sutis: V S H Nephesh (o mediador plástico ou corpo astral); R Y I Ruach (a alma feminina, ou passional); U K V P Neshamah (o Espírito masculino, ou puro). O corpo, diz o Zohar, é a vestimenta de Nephesh; Nephesh, a vestimenta de Ruach; enfim, Ruach, a vestimenta de Neshamah. Quer isto dizer que a Cabala distingue no homem quatro elementos radicais? Não, pois Nephesh, do ponto de vista terrestre, não é senão uma relação, um intermediário, que deve ser considerado seja como a vitalidade animal do Corpo Físico, seja como instrumento plástico da Alma Passional. Nephesh não possui, pelo menos aqui embaixo, existência independente, absoluta; só se pode considerá-lo relativamente, em relação seja ao corpo que ele move, seja à alma que o aciona. É neste último sentido que o Umbral do Mistério encara Nephesh. Para não tornar complexa nossa teoria do Mediador Plástico, não julgamos necessário especificar a alma feminina, passional (Ruach), englobando assim na denominação geral de Mediador, esta alma e o corpo astral. Abordemos agora o mal-entendido a cuja produção já nos referimos. Fiel à terminologia corrente dos modernos teólogos, comentemos o erro de denominar o Espírito Puro de Alma Espiritual. Da mesma forma, o termo Alma Passional presta-se a confusão. A Alma Passional é a verdadeira Mediadora entre o Corpo e o Espírito Puro. Ela é a esposa fiel, ou infiel, deste último, que lhe confere a imortalidade chamando-a a si, ou a condena a afogar sua personalidade na alma universal coletiva, se ele remonta só à sua fonte divina. Os primeiros Papas da Igreja, assim como os autores do Antigo Testamento, distinguem sempre a Alma do Espírito; os doutores modernos são os únicos a confundi-los. Segundo Isaías, Jeová diz: "Os Espíritos saíram de meu seio e eu criei as almas." De qualquer maneira, esses esclarecimentos permitem-nos manter o texto litigioso, tal como se pode ler nas páginas 28-29 de nossa primeira edição. Porém, para evitar qualquer confusão futura, teremos o cuidado de adotar, no curso de nossas publicações ulteriores, a sábia divisão do Zohar, como se segue:
CONSTITUIÇÃO 1° O Corpo, cuja vitalidade é Nephesh;
TERNÁRIA 2° A Alma, cuja substância é Ruach;
DO HOMEM 3° O Espírito, cuja expressão humana é Neshamah.
85 - Isto é, apto a tornar a impressão durável, como a fotografia, dos objetos que ele banhou com sua onda.
86 - Vários ocultistas distinguem os Elementais, espírito dos elementos (Silfo, Gnomo, Ondina, Salamandra), do Espírito Elementar, ser humano desencarnado. Mas a maioria dos mestres empregam estes dois vocábulos indiferentemente, e sempre no primeiro sentido citado.
87 - Mond, Louis, Cours de Magnétisme. Paris, Petite Bibliothèque Universelle, 1886, l vol., in-32.° .
88 - Estilo Espírita.
89 - Péladan, Joséphin, Curieuse. Paris, s.ed., s.d., p.150.
90 - São João, Evangelho. cap. I.
91 - Adiante, apresentamos a análise minuciosa das pranchas l e 4.
92 - Ver Eliphas Levi, História da Magia. São Paulo Ed. Pensamento, 1974, p. 279.
93 - Uma vez que são, hoje, raros os exemplos de Lotus, convém reproduzir aqui esta importante demonstração.
O Hierograma de Adão
Ao asseverar que o hierograma de Adão encerra os mais profundos arcanos do universo vivo, não estaremos surpreendendo aqueles que empreenderam um estudo sério do Sepher Beraeshith. Cotejando a admirável tradução de Fabre d'Olivet e as revelações pantaculares do livro de Thoth, não é impossível fazer com que desponte a suprema centelha da verdade. Eis alguns dados que auxiliaram neste sentido.
Adão J I } escreve-se, em hebreu, com as letras Aleph, Daleth e Mem.
} (Aleph - É a Primeira Chave do Tarô, o Pelotiqueiro). Deus e o homem; o Princípio e o Fim, a Unidade equilibrante.
I (Daleth - É a quarta chave do Tarô, o Imperador). A Potência e o Reino. O quaternário verbal. A multiplicação do cubo.
J (Mem - É a décima terceira chave, a Morte). Destruição e Restauração. Noite e dia morais e físicos. A eternidade do efêmero. A Passividade feminina, ao mesmo tempo abismo do passado e matriz do futuro.
A análise ternária do Princípio que Iod manifesta em sua unidade inacessível e sintética: Adão, no fundo, guarda muita analogia com o hierograma Aum, tão conhecido nos santuários da Índia. Em J I } , o Aleph corresponde ao Pai, manancial da Trindade; Daleth corresponde ao Filho (que a cabala também denomina Rei) e Mem corresponde ao Espírito Santo, cujo corpo etéreo, devorador e fecundador simultaneamente das formas transitórias, faz florescer a Vida (inesgotável e inalterável em sua essência) sobre o adubo cambiante do Devir. Dissemos que J I } é a ciência cíclica do Princípio de que W é a síntese inacessível. Um simples cálculo de Cabala numérica confirma nossa afirmação: traduzimos as letras em cifras (método do tarô).
} = 1; I = 4; J = 13; 1 + 4 + 13 = 18; Em 18, 1 + 8 = 9;
Em Cabala numérica absoluta, a cifra analítica de Adão é, portanto, 9. Ora, obtemos 10 ao adicionarmos ao 9 a unidade específica, que conduz o ciclo ao seu ponto de partida, encerrando a análise na síntese. E 10 é a cifra correspondente a Iod, o que se deveria estabelecer. O vocábulo hierogramático J I } representa, assim a evolução nonária do ciclo emanado de W, e que se encerra em 10, retornando ao seu ponto de partida. Princípio e Fim de tudo, Iod eterno, revelado em sua forma de expansão tertriuna. Prossigamos. Temos, pois, o direito (observando, aliás, que Adão difere de Iod ou de Woth assim como o conjunto dos submúltiplos difere da Unidade) de dizer, levando adiante nossas analogias, que: Se Adão igual I , Adão-ah = I-ah e Adão-Ieve = I-eve. O primeiro He U representa a Vida universal, a Natureza Naturante; UW representa, pois, W unido à vida e U K I } , o princípio de Adão unido à vida. É, em dois graus diferentes (tendo sempre em conta a distinção mencionada acima), a união do Espírito e da Alma universais.
Finalmente, em U Y U W , como em U Y U - J I } , Vau Y representa a fecundidade desta união, e o último U simboliza a Natureza Naturada, concebida pelo Princípio Masculino e pela Natureza Naturante. As quatro letras de U Y U W significam o quaternário de Mercavah; as seis letras de U Y U - J I } representam o senário de Bereshith. S. de G.
94 - No Umbral do Mistério, p....... desta edição. Lotus, tomo II, n° 12 pp. 321-47, passim.
95 - Aqueles que sabem ler os hierogramas invertidos, decompondo-os (seguindo os mesmos princípios radicais estabelecidos por Fabre d'Olivet, para a etimologia em senso direto e normal) constatarão, sem dificuldade, que este método complementar vem confirmar ainda as interpretações esotéricas que aqui propomos. Forneceremos alguns exemplos: WU (Iah UW invertido) exprime a Vida Eternizada. }L (El L} invertido) significa a Expansão sem fim indefinida. V} - IW as duas raízes cuja contração forma VIW (Shaddai WIV invertido) podem traduzir-se como a Mão do fogo, a Mão ígnea. A significação secreta ressalta com grande evidência. JLP (Meleck :LK invertido) é uma contração das raízes JL - LP. As idéias de totalização, de pertuo, por outro lado, unem-se aqui a idéia de um liami simpático e mútuo, por outro lado (vide o Dicionário radical de Fabre d'Olivet). O sentido novo controla e completa maravilhosamente aquele já manifestado esotericamente pelo hierograma normal, aberto pelas chaves desejadas.
96 - Este sentido oculto irradia-se no vocábulo Malkuth ZYPLK o Reino (10ª Sefira), derivado de Melech :LK, o Rei. Malkuth exprime, em Cabala, o Reino do Astral, suporte das criações físicas, efetivo das objetivações.
97 - "Magnus Adão e Tiphereth" (conclusão cabalística).
98 - Cf. PAPUS, La Pierre Philosophale preuves irréfutables de son existence. Paris, Carré, s. d.
99 - Ver FABRE D'OLIVET, Langue Hébraique restituée, 2° vol.
100 - Nas pp. 35 e 36.
101 - Palavra inserida no centro do globo e do triângulo.
102 - Louis Claude de SAINT-MARTIN em seu Tableau Naturel (pp. 261-2, 1° vol.), deu uma explicação fundamentalmente errônea desses dois signos. O que ele diz de um, aplica-se rigorosamente ao outro, e vice-versa. Essa confusão é surpreendente, pois trata-se de um teósofo do mais alto valor.
103 - Para enfocar rapidamente as duas gêneses complementares - aquela dos princípios de ordem inteligível e aquela das origens de ordem sensível, evoquemos por um momento o espetáculo dos milhares de espermatozóides lutando pela existência em uma gota de esperma humano! Que corrida desenfreada!... Não nos riamos, seria quase um sacrilégio, um crime de lesa-humanidade. Cada um desses pequenos seres representa uma existência humana em potencial ou, como diria Fabre d'Olivet, em potência contingente de ser em uma potência de ser. Pois aquele que, chegando em primeiro lugar ao objetivo, fecunda o óvulo, abre literalmente a porta da vida terrestre, permitindo a passagem de uma dessas almas adâmicas, ansiosas por obter um corpo físico, que acorrem em massa ao limiar da existência objetiva.
104 - Digamos uma só palavra: escutai, vós todos que sabeis compreender o espírito de um arcano sob o véu de uma imagem grosseira e material. Diremos apenas uma palavra. Se a alma espiritual está totalmente obscurecida na pedra, termo último ou, diríamos, resultado ínfimo da involução, como a Consciência pode despertar pouco a pouco, na evolução das formas progressivas. Através dos reinos mineral, vegetal e animal?... Que Deus ex machina vem, então, em sua ajuda? Em uma palavra, como a Consciência vai desembaraçar-se da Inconsciência absoluta à medida que evolui? Nós vos perguntamos se a Eterna Sabedoria não colocou um fim à decadência de Adão e limitou, pela interposição de uma barreira intransponível, sua descida aos infernos do não ser? Essa muralha providencial chama-se Matéria. Uma vez possuído inteiramente por ela, o espírito não pode descer mais. O próprio Deus lhe diz: Tu não irás mais longe. Como um metal em fusão, quando entra em ebulição longe do ponto central, congela-se repentinamente, prisioneiro de sua própria natureza, que é endurecer no frio; assim, a alma espiritual, distanciada de sua fonte divina, compacta-se e objetiva-se: tal é a origem da matéria, espécie de meio termo, pacto entre o ser e o não-ser; agregação passiva que o espírito pode penetrar e elaborar, mas não ultrapassar! Debilitado na sua queda, o espírito choca-se contra esse obstáculo invencível e deve, necessariamente, ricochetear daí esse movimento redentor: a evolução recorrente! A própria impulsão da queda adâmica determina a reascensão. A lei da Reação proporcional interveio. Para sempre incompatível com o Nada, onde ela está prestes a soçobrar, a alma espiritual decaída encontra. nas profundezas de sua natureza oculta, um princípio ocasional que a freia bruscamente e que a projeta de volta. A Involução choca-se contra seu termo irrecusável, fatal ou providencial. O movimento adquirido não poderá aniquilar-se ou se perder... Ele se torna repercussivo e retrógrado. A decadência involutiva é sustada; a própria força das coisas necessita de uma reação: a Evolução redentora nasceu.
105 - Assim, o Azoto dos Sábios, princípio da atração, constitui a terceira pessoa da trindade hermética: (Enxofre, Sal e Mercúrio ou Azoto).
106 - Mineral, vegetal, animal e hominal.
107 - Ver no Lotus, n° 12, pp. 338-43, o que escrevemos sobre Ionah.
108 - Eieie asher Eieie, UWU} BV} UWU} : o Ser é o Ser. Trata-se de um axioma fundamental dentro da teologia cabalística. Seu corolário, de incalculável profundidade, por ser formulado assim: Sum, ergo Esse.
109 - Sobre a escada de Jacó.
110 - S I = Superior Incógnito.
111 - Este é o sentido original do vocábulo católico.
112 - Cf. Eliphas Levi.
113 - Eles desceram até as potencialidades dessas coisas, sobre o plano astral, evidentemente, que é o plano normal da Involução, ao passo que o plano físico é o plano normal da Evolução. Em razão desse movimento ascendente e repercussivo que se conhece por Evolução, os seres surgem alternativa e progressivamente no cenário do mundo material, partindo dos mais elementares.
114 - Em francês "Ia grande affaire", termo empregado por Saint-Martin.(N. do T.)
115 - Canaã, no sentido mais material, quer dizer "homem de especulação e de negócio"; a terra de Canaã dos judeus modernos é a Usura, o Ágio, a Alta e a Baixa.
116 - O verso é de Terence, mas o pensamento é de Catão.
117 - Sob um outro ponto de vista, os Rosa-Cruzes classificaram os diversos modos do Êxtase em quatro categorias, segundo os caracteres que ele afeta e os resultados que ele dá: 1) o Êxtase musical, 2) o Êxtase místico, 3) o Êxtase sibilino, 4) o Êxtase do amor. (Veja, no Apêndice "Comentários sobre o prefácio de Zanoni", comentário n° 11).
118 - Sr. Sheldon.
119 - Zanoni, tomo I, p. 50.
120 - Zanoni, tomo I, pp. 130-1.
121 - Literalmente: nem "Livraria para o povo", nem "divertimento para a massa".
* Os números entre parênteses indicam as passagens do Prefácio que serão comentadas adiante. (N. do T.)
122 - Hanovie, 1609, in-folio, com figuras. Veja este apêndice, pp. a
123 - Genebra, 1658, 3 vols., in-folio.
124 - T. Paracelsi Prognosticatio S. L., 1536, in 4°, com figuras.
125 - Ele vem... no texto latino, a palavra "venil" poderia referir-se a "tempus" e a "oetas". Recusando esse sujeito ao verbo venil, guiamo-nos por uma tradição rosa-cruz relativa a Elias-Artista, onde os Irmãos subentendem freqüentemente o nome.
126 - O Vocábulo Rosa-Cruz não traz felicidade aos ultramontanos. Por prudência, pelo menos, eles deveriam abster-se de mencioná-lo... Os jesuítas não são os autores do grau maçônico de R.'.C.'. (18° do Rito Escocês Antigo e Aceito)? É um fato conhecido. Com essa inovação, e algumas outras, os jesuítas esperavam, mudando suas intenções, abarcar indiretamente as forças vivas de uma ordem florescente. São eles hábeis dirigentes. Mas o abstrato do nome assim explorado foi mais forte do que essas políticas dissimuladas; esse agente oculto apoderou-se de sua obra e os obrigou a dar meia volta: assim, o grau maçônico de Rosa-Cruz, fundado pelos jesuítas no século XVIII, enfeita atualmente com sua quinquilharia simbólica o peito de seus piores inimigos! E como se trata de uma lei da natureza, que a reação é proporcional à ação, o agnosticismo ultramontano dos fundadores deu lugar ao agnosticismo materialista de seus herdeiros atuais. Sem o saber, os jesuítas tinham evocado o fantasma longínquo de Elias-Artista. Ele apareceu por um instante, revirou sua instituição como se vira uma luva do avesso, e depois desapareceu de repente, deixando a obra desses fanáticos como presa do fanatismo contrário.
127 - Fama Fraternitatis Roseae-Crucis, Frankfurt, 1615, in 8.°.
128 - Instruction à Ia France sur Ia vérité de l'histoire des frères de la Rose-Croix, Paris, 1623, pequeno in-8.°.
129 - Mais ou menos nessa época, surgiu, com a denominação de Associação dos Filósofos Incógnitos, uma fraternidade derivada da Rosa-Cruz, cujos adeptos se ocupavam principalmente de Alquimia. Podem-se ler seus Estatutos em Traittez du Cosmopolite nouvellement descouverts. Paris, 1691, in 12.°.
130 - Levi Eliphas, Dogma e ritual da alta magia. São Paulo, Ed. Pensamento, 1974, p. 169.
131 - Esta única definição basta para entender que as plantas, os perfumes, os instrumentos místicos são por si próprios de eficácia nula, se o mago não os prepara, magnetizando-os com sua vontade.
132 - Que é o olho racional da alma. Resumindo Agrippa, nós nos esforçamos constantemente para esclarecer esses comentários, um pouco confusos pelo modo de expressão.
133 - Algumas objeções, que uma primeira leitura pode sugerir ao espírito, cederão a um mínimo esforço de compreensão. Achamos mal definida a fronteira entre as três primeiras divisões? As "coisas naturais" classificadas sob a rubrica Musas reapareceriam com efeito sob as rubricas Dionisio e Apolo, nos objetos consagrados dos grandes mistérios e instrumentos requeridos pelas pompas religiosas e sacramentais. Mas não é mais com o mesmo sentido. As Musas governam as propriedades imanentes dessas coisas; Dioniso, a virtude religiosa que lhes infundem as cerimônias do culto oficial; Apolo, enfim, as virtudes místicas e sibilinas que elas podem adquirir pela magia ou pelas invocações pessoais do teurgo. Essas coisas naturais, cuja existência provém diretamente das Musas, são aliás de importância indireta e secundária para os êxtases de Dioniso e de Apolo.
134 - Quanto à filiação esotérica de Viola.