Quadro Natural das Relações Existentes Entre Deus, o Homem e o Universo

Louis-Claude de Saint-Martin
O Filósofo Desconhecido


INTRODUÇÃO
"Não podemos ler-nos a não ser no próprio Deus e compreender-nos a não ser em seu próprio esplendor." SAINT-MARTIN, Ecce homo, p 19. Louis-Claude de Saint-Martin, chamado "o Filósofo Desconhecido" (1743-1803), a quem Joseph de Maistre chamou "o mais instruído, mais sábio e mais elegante dos teósofos", foi "uma das almas mais religiosas e mais puras que já passaram pela terra", como escreveu Henri Martin em sua História da França; "o representante mais completo; o intérprete mais profundo e mais eloqüente que o misticismo já teve em nosso país e o que mais influência exerceu", conforme escreveu Victor Cousin, um homem que recebeu "luzes sublimes", segundo disse Mme. de Staël, e reabilitou para a época de Diderot e de Holbach todos os "ídolos metafísicos" que estes acreditaram ter derrubado. Ele restabeleceu contra a opinião de Garat "a existência de um sentido inato e a distinção entre as sensações e o conhecimento"1. Restaurou a idéia de que o homem pode conhecer intimamente "o princípio de seu ser, Causa ativa e inteligente"2. Retomou a idéia da queda, decadência de um estado primitivo, de realeza, no qual o homem, fiel a seu Modelo divino, conformava-se exatamente à sua tarefa de ser um portador de seu Fogo (SER É SER)3, no meio de sua criação. Mas Adão desobedeceu a essa lei de liberdade absoluta, cedeu aos atrativos de sua substância sensível, e confundiu seu ser a ponto de esquecer o ser de seu ser, cometendo o ato que Saint-Martin denomina "Adultério primitivo". A Cabala chama a Terra de "Divina Noiva", destinando ao homem o papel de mediador entre o Céu e a Terra. Pois esta é, ela própria, "celestial", conforme dizia a cavalaria, e o homem não tem, pois, o direito de unir-se a ela em estado de impureza. Se o Valete do Rei se torna o valete de sua própria sensualidade, macula a Dama. "Visto que atendeste à voz de tua mulher, maldita é a Terra por tua causa"4, dizem as Sagr adas Escrituras num resumo admirável. Realmente, se o homem cede à mulher, no momento em que ela cede a Satã, nesse momento é a ela mesma que ele traiu. Por causa disso, a Natureza inteira ficará alterada, tornar-se-á diferente do que é. Mas o homem, diz Saint-Martin, pode restaurar a integridade de seu ser, desnaturado hoje até o ponto da animalidade. Pode encontrar a conformidade com a fórmula de identidade absoluta de seu Nome, isto é, tornar a ser livre. Se ele introduziu sua mácula no Universo, interrompendo, desse modo, as relações naturais de sua União com Deus, a Terra amaldiçoada se vinga, voltandose contra o homem para fazê-lo expiar. Ora, diz Saint-Martin, o sofrimento é o que existe de mais apropriado para "reativar" as centelhas divinas que ainda se encontram, imortais, no mais decaído dos seres. Pela graça do sofrimento, subsiste pois, para cada um de nós, uma oportunidade de poder operar o que ele denomina "a Grande Obra da mudança da vontade" ou, segundo uma outra perspectiva, o restabelecimento, na Ordem própria, das quatro letras do nome de Adão, que correspondiam primitivamente às quatro letras do Nome divino, os quatro aromas de peso igual dos quais se compõe o Perfume, sem o qual, diz o livro do Êxodo, o homem nada pode fazer5. 1 Discurso em resposta ao cidadão Garat, professar de entendimento humano… (1795). 2 Des erreurs et de la Vérité [Sobre os erros e a Verdade] (1775). 3 Eheieh asher aheieh, o que se costuma traduzir como: sum qui sum, sou aquele que sou. 4 Gênesis 3:17 - Tradução de João Ferreira de Almeida. Sociedade Bíblica do Brasil. Edição revista e atualizada no Brasil. (N.T.) 5 Yod, Pai. He, Natureza divina do Filho. Vav, Espírito, Mãe. He, Natureza humana do Filho. Pela repetição do segundo termo, o tetragrama simboliza a persistência do ternário divino no quaternário de sua manifestação cósmica (descida e subida). O ano com seus dois equinócios, sendo apenas um e, no entanto, dois, como as duas naturezas do Cristo, a fim de separar para reunir inverno e verão, Céu e Terra, Rei e Rainha, é uma clara imagem disso. Claude de Saint-Martin foi, a princípio, discípulo de um taumaturgo que desempenhou na Franco-Maçonaria da época um papel de fundador: Martinez de Pasqually, o Grande-Mestre Soberano da Ordem dos Élus Cohens, cuja história nos foi contada por R. Le Forestier6. A Ordem propunha-se nada menos do que "suprir as deficiências da Igreja, que deveriam ser total no fim dos tempos"7. E nossos Iluminados Martinistas trabalham firme no desenvolvimento de seus Poderes sobre os Espíritos perversos e os Espíritos divinos - pois, ensina Martinez - ao homem foi dado o Poder sobre as duas classes de espíritos - a fim de constituir esse novo poder espiritual, o qual permitiria que se continuasse a "garantir as comunicações com o mundo sobrenatural". Tal era a tarefa empreendida… Mas parece que Saint-Martin considerou imediatamente "violentos demais" os procedimentos teúrgicos empregados por seu mestre e enfadonhos os ritos da magia cerimonial. Então retirou-se para praticar exclusivamente o caminho que estava "mais de acordo com seu coração", ao qual chamou "caminho interior". Parece, até, que mais tarde ele se reprovou por essa deserção, quando a leitura mais aprofundada de Jacob Boehme o convenceu de que "M. de Pasqually possuía a chave ativa de tudo aquilo que nosso caro Boehme expõe em suas teorias, mas que não nos achava em condições de possuir." 8 A doutrina de Saint-Martin, hostil a qualquer supranaturalismo, assim como a qualquer materialismo, é "a doutrina das harmonias da luz da natureza e da graça"9. Ela nada tem de panteísmo, porém insiste na onipresença do divino. Saint-Martin havia, a princípio, planejado dar a um de seus livros, L'Esprit des ChosesI [O Espírito das Coisas], este título ainda mais significativo: Les Révélations Naturelles [As Revelações Naturais]. Para ele é um princípio natural que "nenhuma verdade religiosa deixe de fazer sua revelação própria no coração do homem", se ele souber manter o pensamento, "espelho divino", limpo de qualquer mácula. "Mas os sacerdotes", diz ele, "fizeram da palavra mistério uma muralha para a religião. Bem que podiam estender véus sobre os pontos mais importantes, pregar-lhes o desenvolvimento como preço do trabalho e da constância e com isso provar seus prosélitos, exercendo ao mesmo tempo a inteligência e o zelo; mas não deviam tornar essas descobertas tão impraticáveis a ponto de o universo ficar, por esse motivo, desencorajado… em uma palavra, no lugar deles, eu teria pregado um mistério como uma verdade velada e não como uma verdade impenetrável." Assim, Saint-Martin apenas fazia com que se desse novamente à palavra mistério o seu sentido primitivo, e não vejo o que se poderia responder a ele, senão reconhecer que o conteúdo substancial da maior parte dos mistérios está hoje perdido. Por outro lado, será tão difícil discernir que o argumento costumeiro (a fé não seria mais um mérito se pudesse ser uma evidência) só é inevitável para a fé… costumeira, uma fé tão fraca que não sabe mais criar a própria evidência e manter-se nela através de uma luta incessante? Albéric Thomas10 declarou ser "pueril sustentar que Saint-Martin seja o continuador de Martinez de Pasqually", pois, ao abandonar seu mestre, ele se teria tornado "um místico quem repugna qualquer gênero ativo". 6 La Franc-Maçonnerie ocultiste e l'Ordre des Elus Cohens [A Franco-Maçonaria ocultista e a Ordem dos Elus Cohens]. (Elus Cohens significa "sacerdotes eleitos". 7 Citado por Auguste VIATTE: Les sources occultes du romantisme [Fontes ocultas do romantismo]. 8 Carta a Kirchberger, 11 de julho de 1796. (Tradução direta do original da carta: "Fico mesmo tentado a crer que M. Pasq., de quem me falais (e que, já que é preciso dizê-lo, era nosso mestre), possuía a chave ativa de tudo o que o nosso caro B. expõe em suas teorias, mas que não nos acreditava em condições de sermos portadores dessas altas verdades." - N.T.) 9 Segundo testemunho de Franz von Baader, citado por E. SUSINI: F. von Baader et le romantisme mystique. 10 Nouvelle notice historique sur le martinesisme et le martinisme. Biblioteque rosicrucienne [Nova notícia histórica sobre o martinesismo e o martnismo. Biblioteca Rosacruz], no. 5, 1900.
Esse julgamento é por demais severo. E, ao menos, não existe vestígio algum de quietismo na doutrina do homem que glorificava no Cristo um "herói da vontade" e cuja obra não passou de uma exortação ao "exercício de todas as virtudes que deixem a alma pronta para assenhorear-se de suas luzes e a fazê-las frutificar para a glória da Fonte"11. Em seu Traité sur l'Influence des Signes [Tratado sobre a Influência dos Símbolos], ele expôs seu método de autoconhecimento por meio de provas ativas. E Caro apresenta uma citação suficiente dessas provas em seu Essai sur la Vie et la Doctrine de Saint-Martin (1850). Escreve Saint-Martin: "Aqui (no que concerne à Ciência de si mesmo) somos, ao mesmo tempo, o sujeito anatômico e o doente ferido em todos os membros, o que acontece depois de uma dissecação Completa, feita em todos nós, os vivos, e é somente através de atos perscrutadores que podemos atingir os confins da Ciência." Assim, Saint-Martin preconiza uma observação ativa, dolorosa, que somente poderia arrancar gritos da alma que a ela se submete, e que lhes deve arrancá-los, o que Caro, chocado em seu Cartesianismo comenta assim: "Não se trata mais, como se vê, do método experimental, calmo, lúcido, instrumento da verdadeira ciência: é uma ciência mística!… O ato perscrutador, para falarmos essa língua estranha, é quase um ato cirúrgico. Não se estuda o homem no desenvolvimento de sua vida regular: ele é colocado num estado violento, numa crise. É preciso pressionar, esmagar, quebrar-lhe a alma para forçá-la a responder. É preciso fazer com que ele proclame seu mal em altas vozes. Eis o que Saint-Martin denomina uma prova ativa." E conclui doutamente: "Estamos longe do verdadeiro método e do bom senso." Entretanto, essa é a idéia profunda de Saint-Martin e o centro de sua doutrina, que não é mais do que a da Cruz, Arma do Conhecimento. É preciso "dar madeira para ter o pão", segundo a expressão do Profeta. É preciso passar pelo lagar para se conseguir o licor da imortalidade. É preciso participar voluntariamente nos sofrimentos do Cordeiro, pois não temos o direito de "nos eximirmos de contribuir com ele na obra como se ele tivesse de executá-la sozinho e sem o concurso de nossa livre vontade", escreveu Saint-Martin. É nessa perspectiva que ele voltará incansavelmente à idéia de que o destino do homem, o sentido mesmo da vida, é "anunciar Deus ao mundo manifestando seus poderes, e não usurpando-os"12. Estamos aqui nos antípodas da atitude passiva. Foi um primeiro "êxtase" que acarretou a queda do primeiro homem, dizia Martinez abertamente13. Esse é um ensinamento que Saint- Martin jamais esqueceu. Mas é também o ensinamento tradicional que a espiritualidade, na época de Mme. Guyon e de Dutoit, havia esquecido de maneira perigosa. E por que se pregava o distanciamento do mundo? É que não se sabia mais que não é "este mundo" que é mau, mas que é má a nossa escravização ao mundo, pela qual nós o traímos, privando-o da Única coisa que Deus espera de nós: o Serviço ativo de manifestar-lhe seu Nome. A linguagem da religião ativa é a da admiração, da adoração e da vontade de representar, de encarnar, de santificar aqui no mundo o Nome admirado e amado. Retomando um pensamento de Saint-Martin, escreveu Franz von Baader: "As Sagradas Escrituras dizem que o homem foi criado para ser a imagem de Deus. Em outras palavras, que o homem consegue gerar ou realizar essa imagem nele e por ele…" Assim dizia Vivekananda: "Não se trata de nos tornarmos cada vez mais puros, mas de manifestarmos a pureza que está em nós." 11 Nouvel homme [O Novo Homem]. 12 Era a doutrina dos alquimistas, que viam na Cruz o crisol em que o mundo devia ser refundido. I.N.R.I lia-se: Igne Natura Renovatur Integra. (N.T.: Toda a Natureza será renovada pelo Fogo.) 13 "L'homme est tombé dans l'extase" [O homem caiu no êxtase. N.T.] (Traité de la Réintégration des êtres dans leurs premières propriétés spirituelles et divines.) Uma pureza, uma liberdade imortal, é o poder recebido por todo homem juntamente com o dom da vida. Mas "o homem acreditou-se mortal", escreveu Saint-Martin, "porque encontrou em si qualquer coisa de mortal." É preciso ensinar-lhe que isso não era Ele. Tudo se acha, pois, na parábola dos talentos: "Minha palavra, diz o Senhor, não deve ser por vós a mim devolvida sem conteúdo." Saint-Martin teve, em grau bem elevado, o sentido do "esforço que é o homem por inteiro", como disse Blanc de Saint-Bonnet. Mas sua visão não se limita jamais à perspectiva religiosa de salvação individual. "O homem verdadeiro", diz a tradição do Extremo Oriente, "não se detém a completar a si mesmo: ele completa também as coisas." Tem, assim, um papel intermediário no Cosmos, sendo o mediador indispensável entre o Céu e a Terra. Ninguém pode tornar-se verus homo sem tornar-se filho de Deus. Mas, como disse Mestre Eckart, "houvesse mil filhos, não poderiam ser senão o Único Filho". Foi isso o que Joseph de Maistre chamou de "cristianismo exaltado" de Saint-Martin. No princípio, houve um sacrifício divino, qualquer coisa como uma negação do Princípio até à fraqueza das coisas e esse ato afirmativo do amor - um Sim tem a natureza de ser na medida em que tem amor - foi a criação. Mas, como disse, Tauler, "a saída só existe por causa do regresso, e o rebaixamento do Criador teve como finalidade realizar uma elevação deste último." O Criador pôsse à disposição da Criatura; permanece em sua dependência; espera, com sua Inteligência, que ela reconheça a dívida e que seja libertada. Todas as criaturas nascem como uma dívida para com o Senhor. "Se apenas", exclamou Saint-Martin, "pudéssemos jamais esquecer que Ele não nos deve nada…" O homem cai, segundo Saint-Martin, todas as vezes que deixa de desejar um ser superior a si mesmo, pois "a alma só pode viver em admiração." E é essa necessidade de admiração que é a prova de Deus. "Quando o homem não mais admira, está vazio e nulo. Está como que mergulhado num sono espesso e tenebroso." A Cabala denomina esse mundo como "mundo da Separação…" Mas, se um homem coloca em si a resolução de uma outra Separação, de um sacrifício, ele afirma Deus: força-se a ser livre, opera o ato salvador. E o que Saint-Martin chamava, juntamente com seu Mestre, de Reintegração, pode agora cumprir-se devagar. É a Páscoa de luz. Ora, todas as tradições conhecem, ao lado do Ioga individual, esse tipo de Ioga cósmico em que, por uma Alquimia sacrificial, que está na própria natureza das coisas, produz-se incessantemente um processo de Redenção do Divino. Quer queira o homem, quer não, ele colabora nela. Mas se não participa, ritual ou conscientemente, dessa exaltação, não terá parte alguma nessa glória. Pois o Universo só tem realidade porque exerce uma função de espelho do Admirável. Se este mundo for apenas uma imagem, um Quadro Natural, será uma imagem viva, e não um quadro morto. Na verdade, o Modelo ainda está vivo no Quadro. Philippe Lavastine Aviso dos Editores Às margens do Manuscrito desta Obra, que recebemos de uma pessoa desconhecida, havia um grande número de Acréscimos numa letra diferente. Havendo observado que esses Acréscimos não apenas não ligavam o discurso, mas que algumas vezes até lhe interrompiam o fio; e que, além disso, eram de um gênero particular que parece diferir do da Obra, acreditamos dever designá-los por aspas colocadas no começo e no fim dos diversos fragmentos desse tipo; de sorte que se eles não forem do Autor, e se tiverem sido acrescentados por alguém a quem ele haja confiado seu manuscrito, qualquer pessoa poderá discerni-los com facilidade. Nota da edição de Edinburgh, 1782: O presente volume foi composto de acordo com uma colação do texto da edição de 1900 com o da edição de 1782.
Quadro Natural das Relações Existentes Entre Deus, o Homem e o Universo
1 As verdades fecundas e luminosas existiriam menos para a felicidade do homem do que para seu tormento se a atração sele por elas fosse um inclinação que jamais pudesse satisfazer. No primeiro Móvel, ao qual as verdades se atêm radicalmente, seria mesmo uma contradição inexplicável se, por querer subtraí-las às nossa vista, ele as escrevesse em tudo o que nos cerca, assim como fez na força viva dos elementos, na ordem e na harmonia das as ações do universo e, mais claramente ainda, no caráter distintivo do qual é o homem constituído. Pensar que esta Causa não multiplicou diante de nossos olhos os raios de sua própria luz para depois nos interditar seu conhecimento e uso primitivo está mais de acordo com as suas leis. E, se ela colocou junto a nós, e em nós mesmos, tantos objetos instrutivos, foi para dar-nos tais objetos a fim de que meditarmos e compreendermos e a fim de conduzir-nos, por meio deles, a resultados brilhantes e gerais que possam acalmar nossas inquietações e desejos. Estas Verdades deixariam de parecer-nos inacessíveis se, por meio de cuidados atentos e inteligentes, soubéssemos agarrar o fio que sempre nos é apresentado. Porque esse fio, correspondendo da luz a nós, preencheria então o principal objeto que ela se propõe: certamente o de aproximar-nos dela e reunir os dois extremos. Para concorrer a um fim tão importante, comecemos por dissipar as dúvidas que têm surgido sobre a verdadeira natureza do homem, porque é daí que deve resultar o conhecimento das leis e da natureza dos outros Seres. O homem não pode dar existência a obra material alguma senão procedendo por atos que sejam Poderes criadores dessa obra, os quais operam interiormente e de maneira invisível, mas que são tão fáceis de distinguir pela ordem de sucessão como pelas propriedades diferentes. Por exemplo: antes de erguer um edifício, concebi o plano ou o pensamento, adotei esse plano e por fim escolhi os meios adequados para realizá-lo. É evidente que as faculdades invisíveis, através das quais recebi o poder de produzir esta obra, são, por sua natureza, muito superiores ao próprio resultado e completamente independentes dela. O edifício poderia não ter recebido existência sem que se alterassem as faculdades que me tornaram capaz de concedê-la. Depois que ele recebeu a existência, as faculdades conservam a mesma superioridade, pois possuem o poder de destruí-lo. Não o destruir é, de certo modo, dar-lhe continuidade à existência. Se ele viesse a desaparecer, depois dele as faculdades que lhe deram o Ser continuariam o mesmo que eram antes e depois do tempo que ele durou. Não somente são elas superiores às suas criações, como também não posso deixar de reconhecer que são superiores e estranhas ao meu próprio corpo, porque operam quando estão na calma de meus sentidos. Porque eles bem podem ser delas os órgãos e ministros, mas não o princípio radical e gerador. Porque meus sentidos agem por impulso, enquanto meu ser intelectual age por deliberação. Porque minhas faculdades intelectuais têm um poder real sobre meus sentidos na medida em lhes estendem as forças e o emprego pelos diferentes exercícios que minha vontade pode impor-lhes e, ao invés disso, eles só possuem sobre elas um poder passivo: o de absorvê-las. E, por fim, porque na Geometria a precisão mais escrupulosa e que mais satisfaz aos sentidos deixa sempre qualquer coisa a desejar ao pensamento, como na multidão de figuras cujas relações e ligações corporais conhecemos, mas cujos números e relações verdadeiros estão completamente fora do sensível. A marcha das obras do homem deve esclarecer-nos sobre os objetos de uma ordem superior; pois se os nossos feitos mais materiais e mais distantes da Vida recebem assim o seu ser de potências estáveis e permanentes - seus agentes necessários poderíamos recusar-nos a admitir que os resultados materiais mais perfeitos, tal como a existência da Natureza física geral e particular, sejam igualmente o produto de Potências superiores a esses resultados? Quanto mais uma obra contém perfeições, mais ela o indica em seu Princípio gerador. Então, por que desafiaríamos essa idéia, ao mesmo tempo simples e vasta, que nos oferece uma única e mesma lei para a produção das coisas embora elas se distingam por sua ação e seu caráter fundamental? A superioridade das criações da Natureza não as dispensa, pois, de serem o resultado dos Poderes ou faculdades, análogas em essência e virtude às que necessariamente se manifestam no homem para ele produzir suas obras. Embora sejam formadas apenas por transposições ou modificações, não podemos deixar de considerá-las como espécies de criações: através de diversos arranjos e combinações de substâncias materiais, imaginamos objetos que anteriormente só existiam em seus próprios princípios. Se o edifício universal da Natureza é a obra visível das faculdades anteriores à sua criação, nós temos, sobre sua existência, a mesma certeza que temos da realidade daquelas que em nós se manifestam. E podemos afirmar que, se os fatos da Natureza são materiais como os nossos - embora de ordem superior - os órgãos físicos da Natureza universal não devem conhecer as faculdades que os criaram e os dirigem. E que nem nossas obras nem nosso corpo conhecem as faculdades que sabemos existir em nós. Do mesmo modo, a obra universal das faculdades invisíveis, o resultado delas - a Natureza, enfim - poderia jamais ter existido. Poderia perder a existência que recebeu sem que as faculdades que a produziram nada perdessem de sua potência nem de sua indestrutibilidade, pois existem independentemente das obras que produzo. "Detenhamo-nos por um momento e leiamos, no próprio Universo, a prova evidente da existência das Poderes Físicos, Superiores à Natureza. Seja qual for o centro das revoluções dos Astros errantes, sua lei a todos confere uma tendência para esse centro comum, pelo qual são atraídos de maneira igual. Entretanto, vemos que eles mantêm uma distância desse centro, sem se aproximarem ora mais, ora menos, segundo as leis regulares, e sem jamais o tocarem ou a ele se unirem. Mesmo que oponhamos a atração mútua dos Astros planetários, que faz com que se equilibrem e se sustenham mutuamente, resistindo assim à atração central, sempre restaria uma pergunta: por que é que a atração mútua e particular dos Astros não os une logo uns aos outros para precipitá-los depois no centro comum de atração geral? Se o equilíbrio e a sustentação dependem de diferentes aspectos de uma certa posição respectiva, é certo que, pelos movimentos diários, tal posição varia e que assim, desde muito tempo sua lei de atração deveria ter sido alterada, bem como o fenômeno de permanência que a eles atribuímos. Apesar da enorme distância em que estão dos outros Astros, poderíamos recorrer às Estrelas fixas que sobre eles influem, que os atraem como eles são atraídos por seu centro comum e assim os sustenta em seus movimentos. É uma idéia com aparência de grande e sábia, que pareceria entrar naturalmente nas leis simples da física correta, mas - é bem verdade - apenas faria a dificuldade recuar. Embora pareça que as Estrelas fixas conservam a mesma posição, estamos tão distanciados delas que sobre este ponto só temos uma ciência de conjectura. Em segundo lugar, mesmo que fosse verdade que elas fossem fixas, como parecem ser, não se poderia negar que em diferentes lugares do Céu apareceram novas Estrelas, que depois deixaram de aparecer. E cito apenas a que foi observada por vários Astrônomos em 1572, na constelação de Cassiopéia. A princípio, ela igualou em grandeza a luminosidade da Lira14, depois o de Sírius, ficando quase tão grande quanto Vênus Perigéia, a ponto de ser vista a olho nu em pleno meio-dia. Mas foi perdendo pouco a pouco a luz e deixou de ser vista. De acordo com outras observações, presumiu-se que ela havia feito aparições anteriores, que seu período poderia ser de trezentos e poucos anos, podendo assim reaparecer pelo fim do século dezenove. Se observamos tais revoluções e mudanças entre as Estrelas fixas, não podemos duvidar de que algumas tenham movimento. É certo também que a variação de uma só dessas Estrelas deva influir na região à qual pertence, com preponderância suficiente para perturbar-lhe a harmonia local. Se a harmonia local é perturbada numa das regiões das Estrelas fixas, a perturbação pode estender-se a todas as regiões. Elas deixariam de manter a constância de suas posições respectivas e cederiam à força da atração geral que, reunindo-as como aos outros Astros num centro comum, acabaria por aniquilar o sistema do Universo. Não se vê acontecer nenhum desastre semelhante. Se a Natureza se altera, é de maneira lenta, deixando-nos ver sempre que reina uma ordem aparente. Existe, pois, uma força física invisível, superior às Estrelas fixas - assim como estas são superiores aos planetas - que as mantém em seu espaço, assim como elas mantêm os seres sensíveis encerrados em seu recinto. Unindo esta prova às razões da analogia que já estabelecemos, repetiremos que o universo existe por causa de faculdades criadoras, invisíveis à Natureza, assim como os fatos materiais do homem são produzidos por suas faculdades visíveis. Repetiremos que, ao inverso, as faculdades criadoras do universo possuem uma existência necessária e independente do universo, assim como minhas faculdades visíveis existem necessária e independentemente de minhas obras materiais." Tudo se reúne aqui para demonstrar a superioridade do homem - que encontra nas próprias faculdades algo com que pode elevar-se até à demonstração do princípio ativo e invisível do qual o universo recebe a existência e suas leis. Até mesmo nas obras materiais que tem o poder de produzir ele encontra a prova de que seu Ser é de natureza imperecível. Que os atos sensíveis e materiais comuns ao homem e à besta não se oponham a essas reflexões. Falando de suas obras, não tivemos em vista os atos naturais que o tornam semelhante aos animais, mas os atos de gênio e de inteligência, que o destinguirão sempre, através de caracteres evidentes e signos exclusivos. A diferença do ser intelectual do homem para com seu ser sensível foi demonstrada com total evidência no escrito do qual tirei a epígrafe desta Obra. Por isso limitar-nos-emos a observar aqui que não podemos executar a menor de nossas vontades sem nos convencermos de que levamos conosco, por toda parte, o Princípio do ser e da vida. Ora, como o Princípio do ser e da vida poderia perecer? Entretanto, apesar desse caráter distintivo, o homem vive numa dependência absoluta, relativamente às suas idéias física e sensíveis. Não se pode negar que ele traga em si todas as faculdades análogas aos objetos que conhece. Que são as nossas descobertas senão a visão íntima e o sentimento secreto da relação existente entre a nossa própria luz e as próprias coisas? Contudo, não podemos ter uma idéia de objeto qualquer sensível se esse objeto não nos comunicar suas impressões. Disso temos a prova no fato de que a ausência de nossos sentidos nos priva, por inteiro ou em parte, de conhecer os objetos que lhe são relativos. Muitas vezes é verdade que, por comparação, apenas pela analogia, as idéias primárias nos conduzem a idéias secundárias e que, por uma espécie de indução, o conhecimento dos objetos presentes nos faz tecer conjecturas sobre os objetos distantes. Mas então estamos ainda submetidos à mesma lei, porquanto é sempre o primeiro objeto conhecido que serve de móvel a esses pensamentos: sem ele, nem a idéia secundária nem a primária teriam sido produzidas em nós.
Obs.: Lira, cuja estrela principal é Vega, é uma, constelação, e não estrela. (N.T.) No que concerne aos objetos sensíveis e às idéias a eles análogas, é certo que o homem vive em verdadeira servidão princípio do qual a seguir tiraremos novas luzes sobre sua verdadeira lei. Além das idéias que adquire diariamente a partir dos objetos sensíveis, o homem possui, pela ação por eles exercida sobre os sentidos, idéias de uma outra classe, a idéia de uma lei, de uma Potência que dirige o Universo e os próprios objetos materiais. Possui a idéia da ordem que nele deve presidir e tende, como que por um movimento natural, em direção à harmonia que parece gerá-los e conduzi-los. Ele nem pode criar uma única idéia, e, no entanto, tem a idéia de uma força e de uma sabedoria superior, que é, ao mesmo tempo, como que o termo de todas as leis, o lugar de toda harmonia, o eixo e o centro de onde emanam as Virtudes dos Seres e ao qual elas chegam. Tal é o verdadeiro resultado de todos os sistemas, dogmas e opiniões, mesmo as mais absurdas, sobre a natureza das coisas e a de seu princípio. Doutrina alguma, sem excluir o Ateísmo, deixa de ter por finalidade esta espantosa Unidade, conforme veremos em seguida. Se estas últimas idéias formam uma classe absolutamente diferente da que temos das coisas materiais; se nenhum dos objetos sensíveis as pode produzir, já que os mais animais perfeitos nada anunciam de semelhante a elas embora todos vivam, assim como o homem, no meio deles; se, ao mesmo tempo, qualquer idéia só desperta no homem por meios exteriores a ele, resulta que o homem vive em dependência, tanto por suas idéias intelectuais como pelas sensíveis. Também resulta que, em ambas as ordens, mesmo tendo em si o germe de todas as idéias, ele é forçado a esperar que reações exteriores venham animá-las e fazê-las nascer. Não é seu dono nem autor e, apesar de seus esforços, no intento de ocupar-se de um objeto qualquer, não pode ter a garantia de atingir o alvo sem ter de desviar-se dele por causa de milhares de idéias estranhas. Estamos todos expostos a receber involuntariamente essas idéias irregulares, penosas e importunas que, como que contra a nossa vontade, perseguem-nos com inquietudes e dúvidas de toda espécie, vindo misturar-se aos nossos deleites intelectuais que mais nos satisfazem. De tais fatos resulta o seguinte: se as obras materiais do homem indicam que há nele faculdades invisíveis e imateriais, anteriores e necessárias à produção de suas obras; se caso, pela mesma razão, a obra material universal, ou a Natureza sensível, indica haver em nós faculdades criadoras, invisíveis e imateriais, exteriores a essa Natureza e pelas quais ela foi criada, então as faculdades intelectuais do homem são uma prova incontestável de que existem ainda outras de uma ordem bem superior às suas e àquelas que criam os fatos materiais da Natureza. Isto é: que, além das faculdades criadoras universais da Natureza sensível, fora do homem ainda existem faculdades intelectuais e pensantes, análogas ao seu ser e que nele produzem os pensamentos. E como os móveis de seu pensamento não lhe pertencem, ele só pode encontrá-los numa fonte inteligente relacionada ao seu ser. Sem isso, como tais móveis não têm sobre ele ação alguma, o germe do pensamento ficaria sem reação e, por conseqüência, sem efeito. Entretanto, embora o homem seja passivo tanto nas idéias intelectuais como nas sensíveis, resta-lhe sempre o privilégio de examinar os pensamentos que lhe são apresentados, julgá-los, adotá-los, rejeitá-los, agir em seguida de conformidade com sua escolha e esperar, mediante uma marcha atenta e ininterrupta, alcançar um dia a fruição invariável do pensamento puro - todas as coisas que derivam naturalmente do uso da liberdade. Mas é necessário que a liberdade assim dirigida se distinga bem da vontade escrava de propensões, forças ou influências que de ordinário determinam os atos do homem. A liberdade é um atributo próprio dele e que pertence ao seu ser, enquanto as causas de suas determinações lhe são estranhas. Vamos, pois, considerá-la aqui sob duas faces: como princípio e como efeito. Como princípio, a liberdade é a verdadeira fonte de nossas determinações, a faculdade que temos de seguir a lei que nos é imposta ou de agir em oposição a essa lei; e a faculdade de permanecermos fiéis à luz que não deixa de ser-nos apresentada. Essa liberdade princípio manifesta-se no homem, mesmo quando ele se tornou escravo das influências estranhas à sua lei. Então vemo-lo ainda, antes de decidir-se, comparar entre si as diversas impulsões que o dominam, opor entre si seus hábitos e paixões, acabando por escolher o que mais atrativos tiver para ele. Considerada como efeito, a liberdade dirige-se unicamente segundo a lei dada à nossa natureza intelectual. Supõe então a independência, a isenção inteira de qualquer ação, força ou influência contrária a essa lei, isenção que poucos homens já conheceram. Sob esse ponto de vista, em que o homem não admite motivo algum além de sua lei, todas as suas determinações e atos são o efeito da lei que o guia. E somente então é ele verdadeiramente livre, não sendo jamais desviado por nenhum impulso estranho ao que convenha ao seu Ser. Quanto ao Ser princípio, força pensante universal superior ao homem cuja ação não podemos sobrepujar nem evitar, e cuja sua existência é demonstrada pelo estado passivo em que nos achamos diante dela com relação aos nossos pensamentos, esse último Princípio tem também uma liberdade que difere essencialmente das liberdades dos outros Seres. Sendo ele mesmo a sua própria lei, não pode jamais afastar-se dela, não ficando sua liberdade exposta a qualquer entrave ou impulso estranho. Assim, não tem a faculdade funesta pela qual o homem pode agir contra o próprio alvo de sua existência. O que demonstra a superioridade infinita do princípio universal e Criador de toda lei. O princípio supremo, fonte de todas as Potências, seja das que vivificam o pensamento no homem, seja das que geram obras visíveis da natureza material; Ser necessário a todos os Seres, germe de todas as ações, do qual emanam continuamente todas as existências; termo final para o qual elas tendem, como que por um esforço irresistível porque todas buscam a vida; este ser, afirmo-o, é o que os homem chamam, de maneira geral, DEUS. Sejam quais forem as idéias estreitas que a grosseira ignorância tenha formado sobre Deus entre os diferentes povos, os homens que quiserem descer no próprio íntimo a fim de sondar o sentimento indestrutível que têm do Princípio reconhecerão que ele é o BEM por essência e que todo bem provém dele, que o mal não passa daquilo que se opõe a ele e que, assim, ele não pode querer o mal. Pelo contrário, pela excelência de sua natureza, jamais deixa de proporcionar às suas criações a extensão de felicidade da qual são susceptíveis, quanto a suas diversas classes, embora os meios que emprega estejam ainda ocultos a nossos olhos. Não tentarei tornar mais perceptível a natureza desse Ser, nem penetrar no Santuário as Faculdades divinas. Para alcançá-las, seria necessário conhecer alguns dos números que as constituem. Ora, como seria possível ao homem submeter a Divindade aos seus cálculos e fixar seu NÚMERO principal? Para conhecer um número principal, é necessário ter ao menos uma de suas alíquotas: e mesmo que enchêssemos um livro, o Universo todo, com sinais numéricos para representar a imensidade das Potências divinas, ainda assim não teríamos dele nem a primeira alíquota, já que poderíamos sempre acrescentar-lhe novos números, ou seja: encontraríamos sempre novas Virtudes neste Ser. Além disso, é preciso dizer aqui sobre Deus o que poderíamos ter dito do Ser invisível do homem. Antes de sonhar em descobrir suas relações e suas leis, tivemos que convencer-nos de sua existência, porque ser, ou ter tudo em si, segundo sua classe, é coisa só. Haver reconhecido a necessidade e a existência do Princípio eterno e infinito é haver-lhe atribuído, ao mesmo tempo, todas as faculdades, perfeições e a potência que esse Ser universal deve ter em si, embora não se possa conceber dele nem o número nem a imensidade. Assegurados esses primeiros passos, tentemos descobrir novas relações considerando a Natureza física. Poderíamos contemplar sem admiração os espetáculos do Universo? O curso regular de tochas errantes que são como que as almas visíveis da Natureza? A espécie de criação diária operada por sua presença em todas as Regiões da Terra e renovada nos mesmos ambientes em épocas constantes? As leis inalteráveis da gravidade e do movimento, rigorosamente observadas nos choques mais confusos e nas revoluções mais tempestuosas? Eis, certamente, maravilhas que parecem dar ao Universo os direitos a receber homenagens do homem. Mas, ao oferecer-nos esse espetáculo majestoso de ordem e harmonia, o Universo nos manifesta ainda, de maneira mais evidente, os sinais da confusão, sendo nós obrigados a lhe darmos em nosso pensamento a posição mais inferior, pois ele não pode influir nas faculdades ativas e criadoras às quais deve a existência, nem tem uma relação mais direta e mais necessária com Deus, a quem pertencem as faculdades, do mesmo modo as nossas obras materiais o têm conosco. O Universo é, por assim dizer, um ser à parte. É estranho à Divindade, embora não lhe seja desconhecido nem mesmo indiferente. E em nada está ligado à essência divina, embora Deus assuma a função de o manter e governar. Assim, não participa da perfeição, que sabemos pertencer à Divindade. Não forma unidade com ela. Por conseqüência, não está compreendido dentro da simplicidade das leis essenciais e particulares da Natureza Divina. Também por todo o Universo se percebem caracteres de desordem e deformidade, um conjunto violento de simpatias e antipatias, de semelhanças e diferenças, que forçam os Seres a viver em agitação contínua para se aproximarem daquilo que lhes convém e fugirem do que lhes é contrário: eles tendem sempre a um estado mais tranqüilo. Os corpos gerais e particulares existem para a subdivisão e a mistura de seus princípios constitutivos. E a morte dos corpos chega quando as emanações dos princípios, antes mutuamente combinados, se destacam, tornando a entrar em sua unidade particular. Por que é que tudo se devora na criação, a não ser pelo fato de que tudo tende à unidade de onde tudo saiu? "Vemos mesmo um Tipo impressionante da confusão e da violência em que toda a Natureza se encontra: a lei física que, quatro vezes por dia, agita a bacia dos mares, não lhe deixou um só instante de calma desde a origem das coisas - imagem característica pela qual o homem pode, ao primeiro olhar, explicar o enigma do Universo." Como, pois, poderia haver homens tão pouco atentos a ponto de assimilarem a Deus o Universo físico, um ser que não tem nem pensamento nem vontade, a quem é estranha a própria ação por ele manifestada, um ser que existe por divisões e desordem? As misturas que formam nossa Natureza física terão alguma relação com o caráter constitutivo da Unidade Universal? E a existência desse ser misto e limitado, sujeito a tantas vicissitudes, poderia algum dia confundir-se com o Princípio Uno eterno e imutável, fonte da vida, e cuja ação independente se estende sobre todos os Seres e a todos precedeu? A imperfeição inerente às coisas temporais prova que elas não são iguais a Deus nem coeternas dele e ao mesmo tempo demonstram que não podem ser permanentes como ele: sua natureza imperfeita não se liga de modo algum à essência de Deus, à qual só pertencem a perfeição e a Vida, podendo, por isso, perder a vida ou o movimento que recebeu, porque o verdadeiro direito que Deus tem para não deixar de ser seria o fato de não haver começado. Se a vida, ou o movimento fosse essencial à matéria, não seria necessário, como o fizeram os mais famosos Filósofos, exigir-se matéria e movimento para formar um Mundo: de acordo com esse princípio, obtendo-se um, ter-se-ia necessariamente o outro. Se os homens se equivocaram a respeito de tais objetos, é porque fecharam os olhos às grandes leis dos Seres, ignorando até os caracteres essenciais que devem, no pensamento do homem, separar o Universo de Deus. Na ordem intelectual, é o superior que alimenta o inferior; é o Princípio da existência que mantém nos seres a vida que lhes deu; é da fonte primeira da verdade que o homem intelectual recebe diariamente os seus pensamentos e a luz que os ilumina. Ora, se o princípio superior não espera vida nem sustento de quaisquer das suas criações, se recebe tudo de si próprio, está para sempre ao abrigo das privações, da escassez e da morte. Ao inverso, em todas as classes da ordem física, é o inferior que nutre e alimenta o superior: o vegetal, o animal e o corpo material do homem fornecem as provas mais evidentes desse fato. A própria Terra não mantém a sua existência com a ajuda das próprias criações? Não é dos sobejos delas que recebe adubos e alimentos? E a chuva, o orvalho e a neve que a fertilizam nada mais são do que exalações suas, que tornam a cair na sua superfície depois de terem recebido na atmosfera as Virtudes necessárias para realizarem sua fecundação. Essa é, pois, a imagem mais impressionante de sua impotência e a prova mais certa da necessidade da destruição: como conserva a virtude geradora e a existência pelo socorro de suas próprias criações, não poderíamos crê-la imperecível sem lhe reconhecermos, como em Deus, a faculdade essencial e sem limites de gerar. Então, nela e em sua superfície, jamais veríamos esterilidade ou seca. Mas a Terra dá testemunhos diários de que pode tornar-se estéril, pois há hoje regiões inteiras desnudadas de plantas e de produções que outrora possuíram em abundância. Ora, se a terra pode cair na esterilidade, embora seja alimentada por seus próprios frutos, de que se nutrirá quando deixar de produzi-los? E como irá então conservar suas virtudes e a existência se a existência de qualquer ser não pode manter-se sem alimentos? Podemos, pois, conceber algo mais disforme do que um ser cuja vida esteja fundada sobre as vicissitudes, a destruição e a morte? Um ser que, como a Matéria, como o tempo - o Saturno da Fábula - só existe porque se nutre de seus próprios filhos? Um ser que não pode conservar uma parte deles sem sacrificar a outra, que, em suma, mantém a existência fazendoos devorar os próprios irmãos? É aqui que devemos observar os resultados das as pesquisas já feitas sobre Deus e a matéria. Em todos os tempos procurou-se saber o que a matéria é e ainda não foi possível concebê-la. Há mesmo línguas muito sábias que não possuem uma palavra para exprimi-la. Porém, entre os que tomaram Deus como objeto de suas reflexões, jamais houve alguém que pudesse dizer o que ele não era - pois não há denominações positivas, exprimindo um atributo real ou uma perfeição, que não convenham a esse Ser universal, primeira base de tudo o que existe. E se os homens lhe dão às vezes denominações negativas, tais como Imortal, Infinito, Independente, veremos, ao examinar-lhes os verdadeiro sentidos, que elas exprimem atributos muito positivos, pois tais denominações só servem para proclamar que ele é isento das sujeições e das limitações da matéria. No princípio supremo que ordenou a produção do Universo e lhe mantém a existência tudo é essencialmente ordem, paz e harmonia. Assim, não se lhe deve atribuir a confusão que reina em todas as partes de nossa morada cheia de trevas. E essa desordem é ser o efeito de uma causa inferior e corrompida que age em separado e fora do Princípio do bem pois é mais certo ainda que, relativamente à Causa primeira, ela é nula e impotente e nada pode sobre a própria essência do Universo material. É impossível que essas duas coisas existam juntas fora da classe das coisas temporais. Assim que a Causa inferior deixou de ser conforme à lei da Causa superior, perdeu a união e a comunicação com ela. Então a Causa superior, Princípio eterno da ordem e da harmonia, deixou a Causa inferior, oposta à sua unidade, cair por si mesma na obscuridade de sua corrupção, assim como nos deixa, todos os dias, perder voluntariamente parte da extensão de nossas faculdades e restringi-las, por nossos próprios atos, dentro dos limites das afeições mais vis, a ponto de afastar-nos completamente dos objetos que convêm à nossa natureza. Assim, o nascimento do mal e a criação do recinto no qual o homem foi encerrado, ao invés de produzirem um conjunto maior de coisas na ordem verdadeira e de aumentarem a Imensidade, apenas particularizaram o que por essência deveria ser geral. Separaram ações que deveriam estar unidas. Encerraram num ponto o que fora separado da universalidade e que devia circular sem parar na economia dos Seres. Acabaram sensibilizando, sob formas materiais, o que já existia em princípio imaterial: se pudéssemos anatomizar o Universo e retirar-lhe os invólucros grosseiros, encontraríamos seus germes e fibras princípios dispostos na mesma ordem em que vemos seus frutos e criações. E esse Universo invisível seria tão distinto para nossa inteligência como o Universo material o é para os olhos de nosso corpo. É aí que os Observadores se perderam: confundiram o Universo invisível com o Universo visível e proclamaram este último como fixo e verdadeiro, o que pertence ao Universo invisível e princípio. Foi assim que a causa inferior teve como limites a muralha sensível e intransponível da ação invisível vivificante e pura do grande Princípio, diante da qual a corrupção vê os seus esforços ficarem aniquilados. E se o conhecimento das autênticas leis dos Seres foi algumas vezes o preço dos estudos daqueles que me lêem neste momento, eles verão aqui por que é que a revolução solar forma um período anual de cerca de 365 dias. Teriam o direito de desconfiar dos princípios que lhes exponho se as provas não estivessem patentes sob seus olhos. Como a causa inferior exerce ação no espaço cheio de trevas ao qual está reduzida, tudo o que estiver contido com ela, sem exceção, deve ficar exposto aos seus ataques; e embora nada possa contra a causa primeira nem contra a essência do Universo, pode combater-lhe os Agentes, interpor obstáculos ao resultado de seus atos e insinuar sua ação desregrada nas menores perturbações dos seres particulares para aumentar-lhes ainda mais a desordem. Finalmente, se queremos ter uma idéia das coisas temporais, observemos nossa atmosfera: ela apresenta fenômenos que podem dar uma idéia de sua origem. Com freqüência, durante uma manhã inteira, nevoeiros sombrios, ou uma única massa de vapor, uniformemente estendida nos ares, parece erguer-se contra a luz do astro do dia e opor-se à sua claridade. Mas logo o sol, aproveitando-se de sua força, rompe essa barreira, dissipa a escuridão e divide os vapores em milhares de nuvens, atraindo com o calor as mais puras e mais leves, enquanto as mais grosseiras e malsãs precipitam-se na superfície da terra para aí se unirem novamente, misturando-se às diversas substâncias materiais e confusas. Este quadro físico é próprio para nos instruir. É essencial examinar aqui como a Causa inferior pode opor-se à Causa superior e como é possível existir o mal em presença das coisas divinas sem que as coisas divinas nele participem. A consideração dos fenômenos materiais pode ajudar-nos nessa busca. Observemos, a princípio, a diferença entre os seres materiais e as criações intelectuais do Infinito. O Ser criador está sempre produzindo seres exteriores a si, como os princípios dos corpos estão sempre produzindo sua ação exterior a eles. Não produz conjuntos, pois ele é Um, simples em sua essência. Por conseqüência, se dentre as criações desse primeiro Princípio há algumas que possam corromper-se, pelo menos elas não podem dissolver-se nem aniquilar-se, como as criações corporais e compostas. Quanto à natureza desses dois tipos de Seres, já existe nisso uma grande diferença. Encontramos uma diferença maior ainda no gênero de corrupção do qual são suscetíveis. A corrupção, o transtorno e o mal das criações materiais é deixar de ser sob a aparência da forma que lhes é própria. A corrupção das criações imateriais é deixar de ser na lei que as constitui. Entretanto, a destruição das criações materiais não é um mal quando chega a seu tempo e de maneira natural: só será desordem nos casos em que for prematura - e então até o mal está menos nos seres entregues à destruição do que na ação desregrada que o ocasiona. Pelo contrário, como os Seres imateriais não são conjuntos, não podem jamais ser penetrados por qualquer ação estranha; não podem ser por elas decompostos nem aniquilados. Assim, a corrupção dos Seres somente poderia provir da mesma fonte das criações materiais, já que a lei contrária que age sobre elas não age sobre os Seres simples. A que se deve, pois, atribuir essa corrupção? Como as criações, materiais ou imateriais, haurem a vida de uma fonte pura, cada uma segundo a própria classe, faríamos uma injúria ao Princípio se admitíssemos na essência delas a mínima nódoa. Da diferença extrema existente entre as criações imateriais e as criações materiais resulta que, sendo estas passivas, por serem compostas, não são o agente da própria corrupção: são, pois, o sujeito delas, uma vez que essa desordem lhes advém, necessariamente, de fora. Pelo contrário, as criações imateriais, na qualidade de Seres simples e no seu estado primitivo e puro, não recebem transtorno nem mutilação por parte de qualquer força estranha, já que nada delas é exposto e elas encerram sua existência e seu ser em si mesmas, como que formando, cada uma, a unidade de todas. Daí resulta: se existem algumas que se corromperam, foram o sujeito da própria corrupção e devem ter sido o órgão e os agentes dela. É totalmente impossível que a corrupção lhes tenha vindo de fora, pois ser algum poderia ter qualquer poder sobre elas ou perturbar-lhes a lei. Há Observadores que, considerando o homem apenas no estado natural de degradação, escravo dos preconceitos e dos hábitos, dominado por seus pendores, entregue às impressões sensíveis, concluíram que ele estava, ao mesmo tempo, desarmado em todas as ações intelectuais ou animais. Isso fez com que se julgassem autorizados a dizer que no homem o mal provém da imperfeição de sua essência, ou de Deus, ou da Natureza, de sorte que, em si mesmos, seus atos seriam indiferentes. Aplicando em seguida a todos os Seres à falsa opinião formada acerca da liberdade do homem, negaram a existência de qualquer Ser livre, e desse sistema resulta que o mal existe em essência. Sem nos determos no combate a tais erros, bastarnos-á observar que eles provêm do que foi confundido nos atos do Ser livre: os motivos, a determinação e o objeto. Ora, reconhecendo que o princípio do mal não conseguiu empregar sua liberdade a não ser sobre um objeto qualquer, ele não deixaria de ser o autor do motivo de sua determinação, pois o objeto ou o sujeito sobre o qual exercemos nossa determinação pode ser verdadeiro, e nossos motivos, não. A cada dia, no que diz respeito às melhores coisas, formamos motivos falsos e corrompidos. Por isso, é necessário não confundir o objeto com o motivo: um é externo; o outro, nasce em nós. Estas observações nos levam a descobrir a verdadeira fonte do mal. Realmente, um Ser que nos aproxima e que goza a visão das Virtudes do soberano Princípio pode encontrar nisso um motivo preponderante oposto às delicias desse sublime espetáculo? Se desviar os olhos desse grande objeto ou se, colocando-os nas criações puras do Infinito, ele buscar, ao contemplá-los, um motivo falso e contrário às leis das criações, pode encontrá-lo fora de si mesmo? Esse motivo é o mal e o mal não existia em parte alguma para ele antes que esse pensamento criminoso o tivesse feito nascer, assim como criação alguma existe antes de seu Princípio gerador. Eis como o estado primitivo, simples e puro de todo Ser intelectual e livre prova que a corrupção nasce dele sem que ele mesmo lhe produza voluntariamente o germe e a fonte. Assim, fica claro que o Princípio divino não contribui no mal e na desordem que surge entre suas criações, pois ele é a própria pureza. Sendo simples como suas criações, ele não participa nisso, e mais: como ele mesmo é a lei de sua própria essência e de suas obras, pela mais forte razão, é impassível como elas a qualquer ação estranha. Ah! Por quais meios a desordem e a corrupção chegariam até ele, já que na própria ordem física os poderes dos Seres livres e corrompidos, assim como os direitos de sua corrupção, estendem-se sobre os objetos secundários e não sobre os Princípios primeiros? As maiores desordens que operam na Natureza física alteram apenas os seus frutos e criações, não atingindo suas colunas fundamentais, que jamais são abaladas, exceto pela mão que as assentou. A vontade do homem dispõe de alguns dos movimentos de seu corpo, mas ele nada pode sobre as ações primeiras de sua vida animal, cujas necessidades lhe é impossível sufocar. Se levar mais longe a ação, atacando a própria base de sua existência vital, poderá, é verdade, terminarlhe o curso aparente, mas jamais aniquilar o princípio particular que havia produzido essa existência nem a lei inata desse princípio, pela qual deveria agir durante algum tempo fora de sua fonte. Subamos um grau: contemplemos as leis que operam em grande escala na Natureza universal, onde veremos a mesma marcha. As influências do sol variam sem cessar em nossa atmosfera. Ora os vapores da região terrestre o roubam de nós, ora o frescor dos ventos os tempera e detém. O próprio homem pode aumentar ou diminuir localmente a ação desse astro, reunindo ou interceptando-lhe os raios. Entretanto, a ação do sol é sempre a mesma: ele projeta ininterruptamente a mesma luz ao redor e sua virtude ativa expande-se sempre, com a mesma força e a mesma abundância, embora em nossa região inferior lhe provemos os efeitos de modos tão diversos. Tal é o verdadeiro quadro do que se passa na nossa ordem imaterial. Embora os Seres livres, distintos do grande Princípio, possam afastar as influências intelectuais que estão sempre descendo sobre eles; embora tais influências intelectuais talvez recebam em seus cursos alguma contra-ação que lhe desvie os efeitos, aquele que lhes envia esses presentes salutares não fecha jamais a mão benfeitora. Tem sempre a mesma atividade. É sempre tão forte, poderoso, puro e impassível diante dos desvarios de suas criações livres que podem mergulhar por si mesmas no pecado, gerando o mal unicamente pelos direitos da própria vontade. Seria, pois, absurdo admitir qualquer participação do Ser divino nas desordens dos Seres livres e nas que são o resultado das desordens no Universo - em suma, Deus e o mal nunca poderão ter a menor relação. Também teria pouco fundamento atribuir-se o mal aos seres materiais, que por si mesmos nada podem, provindo suas ações do princípio individual, sempre dirigido ou posto novamente em ação por uma força separada dele. Ora, se só existem três classes de Seres: Deus, os Seres intelectuais e a Natureza física; se a origem do mal não se encontra na primeira, fonte exclusiva de todo bem, nem na última, que não é livre nem pensante; e se, apesar disso, a existência do mal é incontestável, temos necessariamente de atribuí-lo ao homem, ou a qualquer outro Ser, que tenha como ele uma posição intermediária. Não se pode negar que a Natureza física seja cega e ignorante, embora aja regularmente e numa certa ordem: nova prova de que ela age sob os olhos de uma Inteligência. Se assim não fosse, teria uma marcha desordenada. Também não se pode negar que o homem faça ora o bem, ora o mal: isto é, que ora ele siga as leis fundamentais de seu ser, ora se desvie delas. Quando faz o bem, caminha na luz e na ajuda de sua Inteligência; e quando faz o mal, só podemos atribuí-lo a ele mesmo, e não à Inteligência, que o único caminho, o único guia do bem e o único pelo qual o homem e os seres podem fazer o bem. Quanto ao mal, tomado em si, em vão tentaríamos conhecer-lhe a natureza essencial. Para que ele fosse compreendido, precisaria ser verdadeiro. Mas então deixaria de ser o mal, pois o verdadeiro e o bem são a mesma coisa. Ora, já o dissemos, compreender é perceber a relação de um objeto com a ordem e a harmonia cujas regras temos em nós mesmos. Mas, se o mal não tem relação alguma com essa ordem, sendo exatamente o oposto dela, como poderíamos perceber entre eles alguma analogia? Como, por conseqüência, poderíamos compreendê-lo? Entretanto, assim como o bem, o mal tem seu peso, seu número e sua medida. E podemos mesmo saber relação que há no mundo entre o peso, o número e a medida do bem, e o peso, o número e a medida do mal, e isso em quantidade, intensidade e duração. Pois a relação entre o mal e o bem é de nove para um em quantidade, de zero para um em intensidade e de sete para um em duração. Se essas expressões parecerem embaraçosas ao leitor e ele desejar conhecer-lhes a explicação, eu lhe rogaria que não pedisse isso aos calculadores da matéria, os quais não conhecem as relações positivas das coisas. Também indicamos suficientemente como o homem poderia convencer-se da existência imaterial de seu Ser e da existência imaterial do Princípio supremo; e o que ele deveria observar para não confundir esse Princípio com a matéria e a corrupção nem atribuir às coisas visíveis esta Vida imperecível, o mais belo privilégio do Ser que jamais teve começo e do qual somente as criações imediatas participam por seu direito de origem. Pela simples marcha dessas observações, desenvolveremos logo idéias satisfatórias sobre o destino do homem e o dos outros Seres. Quando o homem produz uma obra qualquer, representa e torna visível o plano, o pensamento ou o desígnio que formou. Para que seu pensamento seja mais bem entendido, dedica-se a conformar a cópia tanto quanto possível ao original. Se os homens pelos quais o homem quer ser ouvido pudessem ler-lhe o pensamento, ele não teria necessidade alguma de sinais sensíveis para ser por eles compreendido: tudo o que concebesse seria tão pronta e extensamente captado como por ele mesmo. Mas, estando eles, como ele mesmo, presos por amarras físicas, que limitam os olhos da inteligência, ele é forçado a transmitir-lhes fisicamente seu pensamento que, sem isso, seria para ele nulo, no sentido de não poder atingi-los. Portanto, ele emprega meios físicos e produz as obras materiais para manifestar seu pensamento aos semelhantes, ao Seres distintos dele, separados dele; para tentar aproximálos, assimilá-los a uma imagem de si mesmo, esforçando-se com isso em envolvê-los em sua unidade, da qual estão separados. É assim que um Escritor, ou um Orador, manifesta seu pensamento de maneira sensível para convencer os que o lêem ou o escutam a formarem um só com ele, rendendo-se à sua opinião. É assim que um Soberano reúne exércitos, ergue muralhas e fortalezas para a persuadir solidamente os povos de seu poder e ao mesmo tempo inspirar-lhes terror. Convencidos como ele desse poder, terão dele exatamente a mesma idéia; permanecendo ligados ao seu partido, seja por admiração ou por temor, formarão com ele um todo. À falta desses sinais visíveis, a opinião do Orador e o poder do Soberano permaneceriam concentrados neles mesmos, sem que ninguém disso tomasse conhecimento. Assim acontece com os feitos dos outros homens, que sempre têm e sempre terão a finalidade de fazer seu pensamento conquistar o privilégio de dominação, universalidade e unidade. É essa mesma lei universal de reunião que produz a atividade geral e a voracidade que observamos anteriormente na Natureza física: vê-se que há entre todos os corpos uma atração recíproca pela qual, aproximando-se, eles se substanciam e se nutrem mutuamente. É pela necessidade dessa comunicação que todos os indivíduos se esforçam para ligarem a si os Seres que os rodeiam, para os confundirem consigo e absorvê-los em sua própria unidade. Vindo a desaparecer as subdivisões, aquilo que estiver separado será reunido, o que estiver na periferia virá para a luz e com isso, a harmonia e a ordem superarão a confusão que mantém todos os seres penando. Já que as Leis são uniformes, por que não aplicaríamos à criação do Universo o mesmo julgamento que temos aplicado às nossas obras? Se o pensamento do homem se exprime em obras materiais e grosseiras, por que não as olharíamos como expressão do pensamento de Deus? Por que não creríamos que a obra universal de Deus tenha por objeto a extensão e o domínio dessa unidade, que nós mesmos nos propomos em nossas ações? Nada se opõe a que nos dediquemos a essa analogia entre Deus e o homem, uma vez que a temos reconhecido nas obras de ambos. Se todas as obras, sejam de Deus ou do homem, são necessariamente precedidas de atos interiores e faculdades invisíveis cuja existência não podemos contestar, temos fundamento para crer, segundo a mesma lei em suas criações, que elas buscam também o mesmo alvo e o mesmo objetivo. Sem nos determos em novas buscas, admitiremos que os Seres visíveis do Universo são a expressão e o sinal das faculdades e dos desígnios de Deus, da mesma forma que temos considerado nossas criações como a expressão sensível de nosso pensamento e faculdades interiores. Quando Deus recorreu a sinais visíveis, como o Universo, para comunicar seu pensamento, empregou-os em favor dos Seres separados dele. Se os Seres houvessem permanecido na unidade, não teriam tido necessidade desses meios para ler nessa unidade. A partir daí, reconheceremos que os Seres corrompidos, separados voluntariamente da causa primeira e submetidos às leis de sua justiça no recinto visível do Universo, são sempre objeto de seu amor, pois ele está sempre agindo para que desapareça essa separação tão contrária à felicidade deles. Foi, pois, por amor aos Seres separados que Deus manifestara as suas faculdades e Virtudes em suas obras visíveis a fim de restabelecer entre eles e si mesmo uma correspondência salutar que os ajudasse, curasse e regenerasse através de uma nova criação. Foi para derramar sobre eles essa efusão de vida, a única que podia retirá-los do estado de morte em que enlanguesciam desde que se tinham isolado dele. Foi para estabelecer sua reunião à fonte divina e para imprimir-lhes o caráter de unidade, ao qual nos apegamos com tanta atividade em nossas obras. Se o Universo demonstra a existência da corrupção, que encerra e envolve, devemos compreender qual seria o destino da Natureza física, com relação aos Seres separados da unidade: "e não é sem finalidade e sem motivo que a massa terrestre e todos os corpos sejam como esponjas embebidas de água, que a devolvem com violência pela pressão dos Agentes superiores". Aplicando-se a todas as classes e Seres a lei da tendência à unidade, resulta que o menor dos indivíduos tem o mesmo alvo em sua espécie, ou seja: que os princípios universais, gerais e particulares se manifestam cada um nas criações que lhes são próprias, para com isso tornarem suas virtudes visíveis aos Seres distintos deles. Estando esse Seres destinados a receber a comunicação e os socorros dessas virtudes, não poderiam fazê-lo sem esse meio. Assim, todas as criações e indivíduos da Criação geral e particular, são, cada um em sua espécie, a expressão visível e o quadro representativo das propriedades do princípio, geral ou particular, que neles age. Todos devem trazer em si as marcas evidentes do princípio que os constitui. Através das ações e dos fatos que operam, devem manifestar claramente o gênero e as virtudes desse Princípio. Em suma: devem ser seu sinal característico e sua imagem sensível e viva. Todos os Agentes e fatos da Natureza trazem em si a demonstração dessa verdade. O sol é o caráter construtor do princípio fogo; a lua, do princípio água; e nosso planeta, o do princípio terra: tudo o que a terra produz e encerra em seu seio manifesta igualmente essa Lei geral. A uva indica a vinha; a tâmara, uma palmeira; a seda, um verme; o mel, uma abelha. Cada mineral mostra a espécie de terra e de sal que lhe serve de base e elo; cada vegetal, o germe que o gerou, sem falarmos aqui de uma multidão de outros sinais e caracteres naturais, fundamentais, relativos, fixos, progressivos, simples, mistos, ativos e passivos que compõem o conjunto do Universo, oferecendo assim o meio para que suas partes se expliquem umas pelas outras. O mesmo podemos dizer das criações das Artes e invenções do homem. Suas obras revelam as idéias, o gosto, a inteligência e a profissão particular de seu agente ou produtor. Uma estátua fornece a idéia de um Escultor; um quadro, a de um Pintor; um palácio, a de um Arquiteto, porque todas as criações são a execução sensível das faculdades próprias do gênio ou do Artista que as executou, assim como as criações da Natureza são a expressão do princípio delas e existem para serem o seu verdadeiro caráter. Devemos combater aqui um sistema falso, retomado nestes últimos tempos, sobre a natureza das coisas, no qual se supõe para elas uma perfectibilidade progressiva que pode ir levando as classes e as espécies mais inferiores aos primeiros lugares de elevação na cadeia dos Seres. Segundo essa doutrina, não sabemos mais se uma pedra poderia tornar-se uma árvore; se a árvore poderia tornar-se um cavalo; o cavalo, homem e, pouco a pouco, um Ser de natureza ainda mais perfeita. Desde que a consideremos com atenção, não subsiste essa conjuntura ditada pelo erro e pela ignorância dos verdadeiros princípios. Tudo é regulado, tudo está determinado nas espécies, e até mesmo nos indivíduos. Para tudo o que existe há uma lei fixa, um número imutável, um caráter, indelével como o do Ser princípio, no qual residem todas as leis, números e caracteres. Cada classe e cada família tem sua barreira, que força alguma jamais transporá. As várias mutações sofridas pelos insetos em suas formas não destroem esta verdade. Observase, aliás, nas diversas espécies de animais perfeitos, uma lei constante: cada um em sua classe, eles nascem, vivem e perecem sob a mesma forma. Os próprios insetos, apesar das mutações, jamais mudam de reino: na verdade, mesmo no grau mais ínfimo, estão sempre acima das plantas e dos minerais e, na sua mais individualizada maneira de ser, jamais revelam o caráter ou as leis que regem os animais mais perfeitos. A seu respeito, tudo o que podemos permitir-nos é formar com eles um tipo, um reino, um círculo à parte e mais significativo, mas do qual jamais sairão, e cujas leis necessariamente eles seguirão, como todos os outros Seres, cada um em sua classe. Se a existência das criações da Natureza não tivesse um caráter fixo, como poderíamos reconhecer-lhes o objeto e as propriedades? Como se cumpririam os desígnios do grande Princípio que, ao desdobrar essa Natureza aos olhos dos seres dele separados, quis apresentarlhes indícios estáveis e regulares, através dos quais pudesse restabelecer com ele a correspondência e as relações? Se esses indícios materiais fossem variáveis e se sua lei, marcha e forma não fossem determinadas, a obra desse Pintor seria apenas um quadro sucessivo de objetos confusos, nos quais a inteligência não encontraria lugar de repouso, jamais podendo mostrar o alvo do grande Ser. Por fim, esse mesmo grande Ser apenas anunciaria impotência e fraqueza na medida em se tivesse proposto um plano que não pudesse cumprir. Se é verdade que cada criação da Natureza e da Arte tem seu caráter determinado; se é somente por isso que ela pode ser a expressão evidente de seu princípio e que logo à primeira vista um olhar experimentado deve ser capaz de discernir qual é o agente cujas faculdades são manifestadas por tal produção, o homem só pode, pois, existir por essa lei geral. Provindo o homem, como todos os Seres, de um princípio que lhe é próprio, ele deve ser, tal como eles, a representação visível desse princípio. Deve, como eles, manifestá-la de maneira visível, de modo a não nos enganarmos quanto a ela e, em presença da imagem, reconhecermos qual é o modelo. Busquemos, pois, observando sua natureza, saber de qual princípio deve ele ser o sinal e a expressão visível. Entretanto, falo aqui apenas de seu Ser intelectual, visto que o Ser corporal, como todos os outros corpos, é a expressão de um princípio imaterial não pensante, compondo-se das mesmas essências desses corpos e sujeito à fragilidade dos agrupamentos. Para conhecer o homem, é necessário, pois, buscar nele os sinais de um Princípio de uma outra ordem. Além do pensamento e das outras faculdades intelectuais que lhe temos reconhecido, ele oferece fatos tão estranhos à matéria que nos sentimos forçados a atribuí-los a um princípio diferente do princípio da matéria. Previsões, combinações de todo tipo, Ciências ousadas, pelas quais de algum modo ele nomeia, mede e pesa o Universo; sublimes observações astronômicas pelas quais, situado entre os tempos que ainda não existem, ele pode aproximar de si os limites mais distantes desses tempos, verificar os fenômenos das primeiras idades vindouras; privilégio que só ele tem na Natureza de domesticar e subjugar os animais, semear e colher, extrair o fogo dos corpos, submeter as substâncias elementares às suas manipulações e uso - a atividade com que procura sempre inventar e produzir novos Seres, sendo sua ação por isso uma espécie de criação contínua - eis os fatos que nele anunciam um Princípio ativo bem diferente do princípio passivo da matéria. Se examinarmos com atenção as obras do homem, perceberemos que não somente elas são a expressão de seus pensamentos, mas ainda que, tanto quanto pode ele busca, retratar-se nelas. Está sempre multiplicando a própria imagem através da Pintura e da Escultura e em mil outras criações das Artes mais frívolas. Aos edifícios que ergue, dá proporções relativas às de seu corpo. Verdade profunda, que poderá descobrir um espaço imenso aos olhares inteligentes, pois esse pendor tão ativo em multiplicar assim a própria imagem, e encontrar o belo somente naquilo que com ele se relaciona, deve distinguir o homem para sempre dos Seres particulares do Universo. Quando nos iludimos a ponto de atribuirmos esses feitos à ação conjunta de nossos órgãos materiais, não prestamos atenção ao fato de que seria necessário supormos que a espécie humana é invariável em suas leis e ações como os animais, cada um segundo a sua classe. As diferenças individuais encontradas entre os animais da mesma espécie não impedem que haja para cada uma delas um caráter próprio e uma maneira de viver e de agir uniforme e comum a todos os indivíduos que a compõem, em que pese a distância dos lugares e as variedades causadas pela diferença de clima em todos os Seres sensíveis e materiais. Em vez de uniformidade, o homem apresenta quase que só diferenças e oposições. Não tem relações com quaisquer dos seus semelhantes. Difere deles pelos conhecimentos. Abandonado a si mesmo, combate a todos com ambição, cupidez, posses, talentos e dogmas. Cada homem é semelhante a um Soberano em seu Império. Cada homem tende até a uma dominação universal. Mas, que estou dizendo? Não apenas o homem difere de seus semelhantes, mas a todo instante ainda difere de si mesmo. Ele quer e não quer; odeia e ama; toma e rejeita simultaneamente o mesmo objeto; simultaneamente é por ele seduzido e dele se enfada. Ainda mais: às vezes foge daquilo que lhe agrada, aproxima-se daquilo que lhe repugna, adianta-se aos males, às dores, e até mesmo à morte. Se isso fosse a ação conjunta de seus órgãos, se fosse sempre o mesmo móvel que dirigisse seus atos, o homem mostraria mais uniformidade em si próprio e para com os outros; caminharia de acordo com uma lei constante e pacífica e, ainda que não fizesse coisas iguais, faria ao menos coisas semelhantes, nas quais reencontraria sempre um princípio único. Então, como foi que ele veio a ensinar que os sentidos tudo regem e tudo ensinam, se entre as próprias coisas corporais é evidente que os sentidos nada podem medir com exatidão? Assim, podemos dizer que, tanto em suas trevas como em sua luz, o homem manifesta um princípio inteiramente diferente daquele que opera e mantém a ação conjunta de seus órgãos, pois, conforme vimos, um pode agir com deliberação e o outro, somente pelo impulso. As proporções do corpo do homem demonstram a relação do Ser intelectual com um Princípio superior à natureza corporal. Se traçarmos um círculo com o diâmetro igual à altura do homem, sendo a linha dos braços estendidos igual à sua altura, ela também pode ser considerada como um diâmetro do mesmo círculo. Ora, perguntemos: é possível traçar dois diâmetros num mesmo círculo sem fazê-los passar pelo centro? É verdade que nosso corpo não oferece esses dois diâmetros passando pelo centro de um mesmo círculo, pois o diâmetro horizontal formado pelos braços estendidos não corta o diâmetro da altura do corpo em partes iguais. Com isso, o homem está ligado a dois centros, mas essa verdade prova apenas uma transposição nas virtudes constitutivas do homem, e não uma alteração na essência mesma de tais virtudes. Assim, não destrói a relação que estabelecemos. E embora as dimensões fundamentais não mais estejam em seu lugar natural, o homem pode sempre encontrar nas proporções da própria forma corporal os traços de sua grandeza e de sua nobreza. Os animais que mais se assemelham ao homem pela conformação diferem dele completamente neste ponto, pois seus braços estendidos formam uma linha bem maior do que a da altura do corpo. Tais proporções, atribuídas exclusivamente ao corpo do homem, fazem dele como que a base comum e fundamental das proporções e virtudes dos outros Seres corporais, que deveriam ser julgados sempre com relação à forma humana. Mas as maravilhas da inteligência e as relações corporais, cujo quadro acabamos de apresentar, não são as mais essenciais dentre as que podemos perceber no homem. Existem ainda outras faculdades e direitos para serem colocados acima dos Seres da Natureza. Assim como não há substância elementar que não encerre em si propriedades úteis segundo a sua espécie, também não há homem algum em quem não se possam desenvolver os germes da justiça e até da benignidade que constitui o caráter primitivo do Ser necessário, soberano Pai e Conservador de toda legítima existência. Nulas e enganosas são as conseqüências contrárias que quiseram tirar das educações infrutíferas. Para que tivessem qualquer valor, necessário seria que quem as professou fosse perfeito, ou pelo menos tivesse as qualidades análogas às necessidades de seus Alunos. Necessário seria que fosse exercitado na arte de captar-lhes os caracteres e necessidades para apresentar-lhes de maneira atraente o tipo de apoio ou de virtude que lhes falta, sem o quê sua insensibilidade moral apenas aumentaria: eles se afundariam cada vez mais nos vícios e na corrupção, e aquilo que não passa de uma conseqüência da inabilidade e da insuficiência do Mestre seria lançado novamente sobre a imperfeição de sua natureza. Se excetuarmos alguns monstros, que chegaram a tornar-se inexplicáveis porque no princípio procuramos mal o núcleo de seus corações, não existirá um Povo ou um homem em quem não se possam encontrar alguns vestígios de virtude. As associações mais corrompidas têm por base a justiça, cobrindo-se pelo menos com suas aparências. Para obterem o sucesso de seus projetos desordenados, os homens mais severos tomam emprestado o nome e as exterioridades da sabedoria. A benignidade natural ao homem manifestar-seia também de maneira universal se lhe buscassem os signos fora das necessidades que nos são estranhas, porque é necessário que ela seja exercida sobre objetos reais para determinar e desenvolver as verdadeiras virtudes que pertencem à nossa essência. Mas, além do fato de que os Observadores sempre deixaram de estabelecer suas experiências sobre necessidades falsas e benefícios igualmente imaginários, eles esquecem que o homem, entregue a si próprio, limita-se ordinariamente a alguma virtude, pela qual negligencia e perde de vista as outras. É apreciado então por causa daquela que adotou. Assim, não encontrando as mesmas virtudes em todos os indivíduos e Povos, apressamo-nos a afirmar que elas não podem ser a essência do homem por não serem gerais. É um engano imperdoável concluir uma lei geral para a espécie humana a partir de diferentes exemplos particulares. Repetimos: o homem traz em si os germes de todas as virtudes. Elas estão todas em sua natureza. Embora as manifeste de maneira parcial, daí decorre que, muitas vezes, quando parece não reconhecer as virtudes naturais, ele apenas substitui umas pelas outras. O selvagem que viola a fidelidade do casamento cedendo sua mulher aos hóspedes vê o benefício e o prazer de exercer a hospitalidade. As viúvas indianas que se atiram na fogueira sacrificam a voz da Natureza ao desejo de parecerem ternas e sensíveis, ou ao desejo de entrar na posse de bens que seus dogmas religiosos as fazem esperar no outro mundo. Os próprios sacerdotes que profanaram suas religiões com sacrifícios humanos entregaram-se a esses crimes absurdos para tornar manifesta a sua piedade pela nobreza da vítima, persuadindo-se de que, com esse culto terrível, ampliavam a idéia da grandeza e do poder do Agente supremo, ou que o tornavam propício à Terra quando o criam irritado contra ela. É bem certo, pois, apesar dos erros dos homens, que todas as suas seitas, instituições e usos se apóiam numa verdade e numa virtude. Tomemos, por exemplo, as convenções sociais do homem e seus estabelecimentos políticos. Todos tendem a reparar alguma desordem moral ou física, real ou convencional. O homem tem - ou pelo menos finge ter - como objeto em todas as leis, remediar alguns abusos, evitá-los, conseguir para seus concidadãos e para si mesmo alguma vantagem que possa contribuir para torná-los felizes. Não seria isso uma confissão de que, superior aos seres físicos concentrados em si mesmos, ele tem de cumprir no mundo funções diferentes das deles? Não seria conhecer, pelas próprias ações que está encarregado de uma função divina, pois sendo Deus o Bem por essência, a reparação contínua da desordem e a conservação de suas obras devem ser realmente obra da Divindade? Por fim, estabelecidas de um modo geral pela Terra, vemos instituições sagradas, das quais, dentre todos os Seres sensíveis, somente o homem participa. Em todos os tempos e regiões do Universo encontramos dogmas religiosos que ensinam ao homem que ele pode dirigir suas preces e suas homenagens ao Santuário de uma Divindade que não conhece, mas que o conhece perfeitamente, e da qual pode esperar fazer-se ouvido. Por toda parte ensinam os dogmas que os decretos divinos nem sempre são impenetráveis ao homem; que ele pode, no que lhe concerne, participar de algum modo na força e nas virtudes supremas; e por toda parte já vimos homens verídicos, ou impostores, anunciando-se como Ministros e órgãos delas. Os próprios traços desses direitos sublimes são percebidos não apenas nos cultos públicos das diversas Nações; não apenas no que elas chamaram de Ciências ocultas - nas quais se encontram cerimônias misteriosas, certas fórmulas com supostos poderes secretos sobre a natureza, as enfermidades, os gênios bons e os maus e o pensamento dos homens - mas também nos simples atos civis e jurídicos das potências humanas que, tomando como árbitros as leis convencionais, consideram-nas e consultam-nas como decretos da própria verdade. E não temem, agindo segundo essas leis, dizer-se de posse de uma ciência certa e ao abrigo de qualquer erro. Se é verdade que o homem não tem uma única idéia própria, mas que a idéia de um tal poder e de uma tal luz seja universal, tudo pode ser degradado pela ciência e pela marcha tenebrosa dos homens, mas nem tudo é falso. Tal idéia demonstra que há neles alguma analogia, algumas relações com a ação suprema e alguns vestígios de seus próprios direitos, assim como na inteligência humana já encontramos relações evidentes com a Inteligência infinita e suas virtudes. Com todos esses indícios, seria ainda possível ignorar o Princípio do homem? Se os Seres que receberam a vida existem para manifestar as propriedades do agente que a doou, podemos duvidar de que o Agente de quem o homem recebeu a sua seja a própria Divindade, já que descobrimos nele tantas marcas de origem bem superior de uma Ação divina? Reunamos, pois, aqui, as conseqüências das provas que acabamos de estabelecer e reconheçamos no Ser que produziu o homem uma fonte inesgotável de pensamentos, ciência, virtudes, luz, força e poderes; um número infinito de faculdades, cuja imagem não pode ser oferecida por qualquer Princípio da natureza, faculdades que faremos entrar na essência do Ser necessário quando lhe quisermos contemplar a idéia. Já que nenhum desses direitos nos pareceria estranho, já que, ao contrário, encontramos traços dele multiplicados nas faculdades do homem, é evidente que estamos destinados a possuir a todos e a manifestá-los aos olhos daqueles que os desconhecem ou que deles não querem tomar conhecimento. Confessemo-lo abertamente: se cada um dos Seres da Natureza é a expressão de uma das virtudes temporais da sabedoria, o homem é o signo ou a expressão visível da própria Divindade. É por isso que ele deve ter em si todos os traços que a caracterizam. E se não fosse perfeita a semelhança, o modelo poderia ser ignorado. E aqui podemos já formar uma idéia das relações naturais existentes entre Deus, o homem e o Universo. Os princípios que expus sobre o destino sublime do homem devem merecer ainda mais a nossa confiança, cuja verdade ele mesmo manifesta em quase todos os atos. Levado por um instinto secreto a dominar, pela força ou pela exatidão aparente de sua doutrina, parece ocupado apenas em provar a existência de um Deus e mostrá-la aos seus semelhantes. Os mesmos que se declaram contra um Ser eterno, infinitamente justo, fonte de toda felicidade e de todas as luzes, nada mais fazem do que mudar o nome desse Ser e colocar outro em seu lugar. Ao invés de destruir sua indestrutível existência, demonstram-lhe a realidade e as faculdades que lhe pertencem. Ao Ateu e ao Materialista desagrada crer no Deus impresso em suas almas. Ao substituí-lo pela matéria, não estarão apenas transportando para ela os atributos do Princípio verdadeiro, cuja essência os torna para sempre inseparáveis? Assim esse ídolo é sempre um Deus, pregado por eles. Além disso, ao elevar desse modo a matéria, na verdade o reino que eles pretendem estabelecer é menos o dela do que o próprio. Os raciocínios em que tentam apoiar seus sistemas, o entusiasmo que os anima e seus discursos inflamados não têm por alvo persuadirnos de que são os donos da verdade? Ora, segundo as relações íntimas que sentimos existir entre Deus e a verdade, isso não seria ser Deus? Desse modo, embora contra a vontade, o Ateu confessa a existência do Ser supremo, pois empenha-se em provar que não há Deus algum apresentando-se ele próprio como um Deus. E como poderia não revelar a existência do Princípio supremo? Assim como os Seres da Natureza são a expressão visível das faculdades criadoras desse Princípio, o homem deve, ao mesmo tempo, ser a expressão das suas faculdades criadoras e das pensantes. Assim, o Ímpio não pode subtrairse a uma lei que tem em comum com tudo o que está contido na região temporal. Entraremos em alguns detalhes sobre esse assunto. Que sua profundidade não assuste: é importante penetrar nela e a saída será venturosa. Antes que as coisas temporais possam ter tido a existência pelas quais se tornam sensíveis a nós, foi necessário haver elementos primitivos e intermediários entre elas e as faculdades criadoras das quais descendem, porque as coisas temporais e essas faculdades são de natureza por demais diferente para poderem existir juntas sem intermediários. Isso nos é demonstrado fisicamente pelo enxofre e pelo ouro, pelo mercúrio e pela terra, que se unem pela mesma lei de uma substância intermediária. Tais elementos desconhecidos dos sentidos, mas cuja necessidade e existência são atestadas pela inteligência, estão determinados e fixados em essência e em número, assim como as leis e meios que a sabedoria coloca em uso para cumprir seus desígnios. Podem ser considerados como os primeiro sinais das faculdades superiores às quais estão imediatamente ligados. A partir daí, tudo o que existe na natureza corporal, todas as formas, os mínimos traços, são e só podem ser reuniões, combinações ou divisões de sinais primitivos. E entre as coisas sensíveis nada pode aparecer sem estar escrita neles, sem deles descender, assim como todas as figuras possíveis da Geometria hão de ser sempre compostas de pontos, linhas, círculos ou triângulos. Em suas obras materiais - secundárias em relação às da Natureza - o próprio homem, está ligado, como todos os Seres, a esses sinais primitivos. Nada pode criar, nada traçar, nada construir; não pode, afirmo, imaginar forma alguma, até mesmo executar um só movimento, voluntário ou involuntário, que não esteja preso a esses modelos exclusivos, dos quais tudo o que se move e vive na Natureza é o fruto e a representação. Se pudesse ser de outra maneira, o homem seria criador de outra Natureza e de outra ordem de coisas que não pertenceriam ao Princípio produtor e modelo de tudo o que existe para nós de maneira sensível. Assim, as criações admiráveis das Artes, monumentos maravilhosos da indústria humana, revelam a cada passo a dependência do homem e o seu destino. Não oferecem compilações, ou partes reunidas de outros monumentos, que não sejam combinações variadas dos elementos fundamentais, os quais dissemos serem os indícios primitivos das faculdades criadoras da Divindade. Nada há no homem corporal, nem nas suas criações, que não seja, embora de maneira muito secundária, a expressão da ação criadora universal, representada por todo ser corporal desde que ele existe e age. Elevemo-nos acima das forma materiais e apliquemos esses princípios à palavra e à escrita. Ambas revelam faculdades pensantes, já que são para nós sua primeira expressão sensível. "É certo que os sons e os caracteres alfabéticos que servem de instrumentos fundamentais a todas as palavras que empregamos para manifestar nossas idéias devem ligar-se a símbolos e sons primitivos que lhes sirvam de base. Esta verdade profunda nos é traçada desde a mais remota antigüidade no fragmento de Sanchoniathon, em que ele representa Thot fazendo o retrato dos Deuses para com ele compor os caracteres sagrados das letras - emblema sublime e de imensa fecundidade, porque tirado da própria fonte na qual o homem deveria sempre beber." Ao admitir os símbolos primitivos para expressar de nossas idéias modo sensível, não devemos ser detidos pela variedade infinita usada nas diversas Nações da Terra: tal variedade apenas prova a nossa ignorância. Se a lei que serve de órgão à suprema Sabedoria em tudo estabeleceu uma ordem e uma regularidade, deve ter determinado símbolos invariáveis para exprimirmos os pensamentos que nos envia, assim como estabeleceu símbolos para a produção de seus feitos materiais. Se não estivéssemos mergulhados em trevas profundas, ou se nos empenhássemos mais em seguir a estrada instrutiva e luminosa da simplicidade dos Seres, quem sabe chegaríamos a conhecer tanto a forma quanto o número dos símbolos primitivos, ou seja, a fixar o nosso alfabeto? Mas, seja qual for a nossa privação quanto a esse assunto, como os símbolos primitivos existem, todos aqueles que empregamos, embora de maneira convencional, derivam necessariamente deles. Assim, as palavras que quisermos compor, imaginar e fabricar serão sempre composições tiradas dos caracteres primitivos, pois eles não podem sair da lei que os produziu e jamais encontraríamos fora deles alguma coisa além deles mesmos. Tais sons e caracteres primitivos são os verdadeiros símbolos sensíveis da unidade pensante: existe uma só idéia, como um só princípio de todas as coisas. Assim como as criações mais desfiguradas que possamos manifestar pela palavra e a escrita trazem sempre, de maneira secundária, a marca dos símbolos primitivos - e, por conseqüência, a da idéia única ou da unidade pensante - assim também o homem não pode proferir uma só palavra ou traçar um só caráter sem manifestar a faculdade pensante do Agente supremo, como também não pode produzir um só ato corporal ou um só movimento sem manifestar-lhe as faculdades criadoras. O uso, mesmo o mais insensato, orgulhoso e corrompido que em sua linguagem ou escritos ele fizer dos instrumentos primitivos do pensamento, não destrói aquilo que enunciamos. Como não existem outros materiais além dos caracteres primitivos, o homem vê-se forçado a servir-se deles, ainda que não queira erguer muralhas contra a unidade por eles representada e declarar-se inimigo dela. É com as armas dessa unidade que ele a quer combater; é com as forças dessa unidade que ele quer provar-lhe a fraqueza; é com os próprios sinais de sua existência que ele quer determinar que ela não passa de um nada e de um fantasma. Se o Ateu quiser atacar, da maneira que for, o primeiro Princípio de tudo o que existe, que ele então interdite a si mesmo todo ato, toda palavra, e que até mesmo todo seu Ser desça para o nada, pois escrevendo, mostrando-se, falando e se movimentando, ele mesmo prova aquilo que quisera aniquilar. Podemos, pois, dizer que o homem está destinado a ser o símbolo e a expressão falante das faculdades universais do Princípio supremo, do qual emanou, assim como os Seres particulares são, cada um em sua classe, o símbolo visível do princípio particular que lhes transmitiu a vida. O vocábulo emanou pode contribuir para lançar nova luz sobre nossa natureza e nossa origem, pois, se a idéia de emanação tem tanta dificuldade em penetrar na inteligência dos homens, é somente porque deixaram que todo o seu Ser se materializasse. Vêm na emanação uma separação de substância, tal como nas evaporações dos corpos odoríferos e na fonte que se divide em diversos riachos: exemplos tomados à matéria nos quais a massa total fica realmente diminuída quando algumas partes que a constituem lhe são suprimidas. Ao quererem fazer uma idéia da emanação nos objetos mais vivos e mais ativos, como o fogo - que parece produzir uma multidão de fogos semelhantes a si mesmo, sem deixar de ser igual a si - acreditaram ter atingido o alvo. Mas este exemplo não deixa de ser estranho às verdadeiras idéias que devemos formar da emanação material: serve apenas para induzir em erro aqueles que descuram de aprofundá-lo. O fogo material só nos é visível na consumação dos corpos, só é conhecido à medida que repousa numa base que ele mesmo devora, ao passo que o fogo divino tudo vivifica. Em segundo lugar, quando o fogo material produz, aparentemente, outros fogos, não é de si que os tira, como o fogo divino: apenas causa uma reação sobre os germes do fogo, inatos nos corpos de que se aproxima, favorecendo-lhes a explosão. Temos a prova disso no fato de que lhe é impossível inflamar as cinzas, porque nelas o fogo princípio já desapareceu. Essas diferenças são por demais evidentes para que o homem sábio se detenha em comparações tão ilusórias. Mostrando fatos físicos e agindo pelas leis corporais, os Seres da Natureza material anunciam o princípio físico que neles vive e os faz mover. Não indicam com clareza suficiente um princípio santo e divino para provar-lhe imediatamente a existência. E também, as provas tomadas à matéria são muito insuficientes para demonstrar Deus e, como conseqüência, demonstrar-nos a emanação do homem exteriormente ao seio da Divindade. Mas, como já descobrimos no homem as provas do Princípio que o constituiu tal como ele é, será no próprio homem, no espírito do homem, que devemos encontrar as leis que orientaram sua origem. E, sendo ele um Ser real, não deveria jamais ser julgado por comparação, como podemos fazer com os Seres corporais cujas qualidades são relativas. Que nos declarará ele, se o considerarmos sob esse ponto de vista? Declarará, por seus próprios feitos, que pode emanar das faculdades divinas sem que elas hajam sofrido separação, nem divisão, nem qualquer alteração em sua essência. Quando produzo exteriormente alguma ação intelectual, quando transmito a um de meus semelhantes o mais profundo de meus pensamentos, esse móvel que trago em meu Ser, e que vai fazê-lo agir, talvez lhe dê uma virtude. Esse móvel, embora saído de mim, embora sendo um extrato de mim mesmo e minha própria imagem, não me priva da faculdade de produzir outros semelhantes a ele. Tenho sempre em mim o mesmo germe de pensamentos, a mesma vontade, a mesma ação. No entanto, de certo modo dei uma nova vida a esse homem ao transmitirlhe uma idéia e um poder que nada eram para ele antes que eu fizesse em seu favor a espécie de emanação à qual sou susceptível. Lembrando-nos, no entanto, de que existe um Autor e Criador de todas as coisas, veremos por que é que só transmito luzes passageiras, enquanto o Autor universal transmite a própria existência e a vida imperecível. Mas, se na operação que tenho em comum com todos os homens, é sabido, evidentemente, que as emanações de meus pensamentos, vontades e ações em nada alteram minha essência, com mais razão ainda pode a vida divina transmitir-se por emanações: pode produzir sinais e expressões sem fim de si mesma, sem jamais deixar de ser o núcleo de sua vida. Se o homem emanou da Divindade, é uma doutrina absurda e ímpia dizer que ele foi tirado do nada e criado como a matéria. Ou então seria necessário considerar-se como um nada a própria Divindade, fonte viva e incriada de todas as realidades e existências. Como conseqüência também natura l, se o homem foi tirado do nada, deveria necessariamente tornar a entrar no nada. Mas o nada é uma palavra vazia e nula, da qual ninguém tem idéia. E não há quem possa aplicar-se a concebê-la sem experimentar aversão. Afastemos, pois, de nós as idéias criminosas e insensatas desse nada, por que homens cegos ensinaram ser a nossa origem. Não aviltemos nosso Ser: ele foi feito para um destino sublime, mas não pode ser mais sublime que o seu Princípio, pois segundo as leis físicas simples, os Seres só podem elevar-se até o grau do qual desceram. E, no entanto, tais leis deixariam de ser verdadeiras e universais se o Princípio do homem fosse o nada. Mas tudo nos demonstra suficientemente as nossas relações com o próprio centro, produtor da universalidade imaterial e da universalidade corporal, uma vez que os nossos esforços sempre tendem apoderar-se de ambas, reunindo todas as virtudes ao nosso redor. Observemos ainda que essa doutrina sobre a emanação do Ser intelectual do homem se harmoniza com a outra que nos ensina que todas as nossas descobertas são, de certo modo, reminiscências. Pode-se mesmo dizer que ambas se apóiam mutuamente: se somos emanados de uma fonte universal de verdade, verdade alguma deveria parecer-nos nova; e, reciprocamente, se nenhuma verdade nos parece nova, mas nela percebemos a lembrança ou a representação do que estava escondida em nós, então devemos ter tido nascimento na fonte universal da verdade. Nas leis simples e físicas dos corpos vemos uma imagem sensível do princípio de que o homem é um Ser de reminiscências. Quando os germes materiais produzem fruto, não fazem mais do que manifestar de maneira visível as faculdades ou propriedades recebidas pelas leis constitutivas de sua essência. Quando esses germes uma bolota, por exemplo, já havendo atingido a existência individual, pende do ramo do carvalho que a produziu, está participando de tudo o que se opera na atmosfera: recebe as influências do ar, existe no meio dos Seres que têm vida corporal e está em presença do sol, dos astros, dos animais, das plantas e dos homens, e de tudo o que age em sua esfera temporal. É verdade que em todas essas coisas ela está presente de maneira passiva porque tem uma existência inativa, unida à do carvalho. Não tendo ainda uma vida distinta da vida de seu princípio, vive da vida desse princípio, mas sem nada poder realizar. Quando essa bolota atinge a maturidade, cai na terra ou é colocada no seio dela pela mão do homem e, havendo produzido uma árvore, vem a manifestar seus próprios frutos, repete o que já fora realizado pela própria árvore da qual proviera; retorna, por suas próprias faculdades, ao ponto de onde havia descido; renasce na região que havia anteriormente ocupado, em suma: reproduz-se entre as mesmas coisas, Seres e fenômenos pelos quais já fora rodeada. Mas agora há uma diferença impressionante: é que, sendo ela própria um agente, existe nesse segundo estado de maneira ativa, enquanto que no primeiro era passiva, sem ter uma ação distinta da ação de seu princípio. Podemos pensar a mesma coisa do homem intelectual. Segundo a lei universal, por sua primitiva existência ele teve de permanecer unido à sua árvore geratriz. Era testemunha de tudo o que existia em seu ambiente. E como esse ambiente está tão acima daquele que habitamos - da mesma maneira que o Intelectual está acima do material -, os fatos dos quais o homem participava eram incomparavelmente superiores aos fatos da ordem elementar. A diferença entre uns e outros é a mesma que há entre a realidade dos Seres com uma existência verdadeira e indelével e a aparência dos que têm uma vida independente e secundária. Assim, o homem, ligado a essa verdade, participava, embora de maneira passiva, em todos os fatos da verdade. Desligado da árvore universal, sua árvore geratriz, e vendo-se precipitado numa região inferior para aí experimentar uma vida intelectual vegetativa, o homem, se chega a conquistar luzes e a manifestar as virtudes e as faculdades análogas à sua verdadeira natureza, realiza e representa por si mesmo aquilo que o seu Princípio já lhe colocara diante dos olhos: recuperar a visão de uma parte dos objetos que haviam estado em sua presença, reunir-se aos Seres com os quais havia habitado; e descobrir novamente, de maneira mais intuitiva e mais ativa, coisas que haviam existido para ele, nele e ao redor dele. Eis por que não se pode dizer antecipadamente que os Seres criados e emanados na região temporal - e, conseqüentemente, o homem - trabalhem na mesma obra, que é recuperar a semelhança com seu Princípio, ou seja: crescer sem parar até chegarem ao ponto de produzir frutos, assim como o Princípio produziu os seus nos homens. Eis também o motivo pelo qual, tendo o homem a reminiscência da luz e da verdade, se prova que ele descende da morada da luz e da verdade. Vamos agora retornar ao nosso assunto, declarando novamente que o homem nasceu para ser a chave de código universal, o símbolo vivo e o quadro real de um Ser infinito. Ele nasceu para provar a todos os Seres que existe um Deus necessário, luminoso, bom, justo, santo, poderoso, eterno, forte, sempre pronto a revivificar aqueles que o amam e sempre terrível para com os que querem combatê-lo e ignorá-lo. Feliz seria o homem, se apenas houvesse anunciado Deus manifestando-lhe os poderes, e não os usurpando! E não fiquemos nem um pouco espantados ao vermos o homem trazer uma marca como essa. As faculdades do Ser necessário são infinitas como ele e, visto que ele colocou sobre nós a expressão do número delas, é necessário termos em nós os traços de sua universalidade. Quanto ao temor de depreciar esse Princípio supremo fazendo remontar até ele a nossa origem, temos, em nossa própria emanação, com que nos preservar, já que todas as criações são inferiores ao seu Princípio gerador, já que somos apenas a expressão das Faculdades divinas e do Número divino, e de modo algum a própria natureza das faculdades e do Número que é o caráter próprio e distintivo da Divindade. Isso deve tranqüilizar-nos sobre a grandeza exclusiva do Princípio supremo e de sua glória. A qualquer ponto que subamos, ele estará eterna e infinitamente acima de nós, como acima de todos os Seres. "Enobrecer assim a nossa própria essência é honrá-la, porque não podemos elevar-nos um grau sem nos elevarmos, ao mesmo tempo, a uma relação quádrupla. Toda ação, assim como todo movimento e progressão, é quaternária e só podemos mover-nos segundo a imutabilidade de suas leis. E se descendemos da Divindade, se ela é o princípio imediato de nossa existência, quanto mais dela nos aproximar-mos, mais a ampliaremos aos olhos de todos os Seres, visto que então fazemos ressaltar ainda mais o brilho de suas Potências e de sua superioridade." Creríamos mesmo ter prestado um serviço essencial aos homens se pudéssemos fazer com que eles dirigissem o olhar para verdades tão sublimes. Contemplar tais objetos é o verdadeiro meio de nos humilharmos aos nossos próprios olhos, porque, que comparamos sua força e sua grandeza, a nós mesmos somos obrigados a permanecer em profundo estado de inferioridade. É por isso que é bom lançar sempre os olhos sobre a ciência para não nos persuadirmos de que sabemos alguma coisa; sobre a justiça, para não crermos que somos irrepreensíveis; sobre as virtudes, para não pensarmos que as possuímos. Pois, em geral, o homem só vive na quietude e só se contenta consigo mesmo quando não encara os objetos acima de si. E se quisermos preservar-nos de todas as ilusões, sobretudo das seduções do orgulho, pelas quais o homem é tantas vezes reduzido, não tomemos jamais os homens, mas sempre Deus como nosso termo de comparação. Quando nos elevarmos a esse Princípio supremo, sem o qual a própria Verdade não existiria, veremos que as Faculdades devem ser reais, fixas, positivas, isto é: constituídas por sua própria essência. Isso as subtrairia para sempre a qualquer destruição, pois é nelas somente que reside sua lei, assim como o caminho que leva ao santuário de sua existência. De fato, como o Ser é a fonte primeira de todos os poderes, como se conceberia um poder que não fosse ele? Por onde, por quem, como poderia ele ser vencido ou alterado se todos os Seres saíram de seu seio mediata ou imediatamente e se possuem somente as faculdades ou poderes reais dados por ele? Seria então preciso supor que ele poderia atacar a si mesmo. Outras provas nos demonstram que nenhum Ser pode, e jamais poderá, intentar coisa alguma contra Deus. Se alguém declarar-se seu inimigo, para vencê-lo basta que ele o deixe em suas próprias trevas. Aqueles que o querem atacar tornam-se cegos apenas pelo fato de o quererem atacar. Assim, por esse próprio fato, todos os seus esforços tornam-se sem êxito e as suas forças ficam anuladas ou impotentes, já que eles não vêm por onde devem dirigi-las. Mas, para que o primeiro homem pudesse manifestar esse Ser majestoso e invencível, para que pudesse servir de símbolo da Divindade suprema, ele precisaria da liberdade de ver e contemplar os direitos reais, fixos e positivos que nela existem. Precisaria de um título que lhe desse entrada em seu Templo para gozar do espetáculo de sua grandeza. Sem isso, como teria podido representar com exatidão o menor traço de tal grandeza? E, se o houvesse representado de maneira imperfeita, como é que aqueles que tinham perdido de vista o Ser supremo teriam sido culpados por continuarem a ignorá-lo? Mas se na qualidade de Ser livre o homem pôde deixar de apresentar-se no Templo com a humildade do Levita, querer colocar a Vítima no lugar do Sacrificador e o Sacerdote no lugar do Deus a quem ele servia, então a entrada do Templo teve de ser-lhe fechada, já que ele para ela trazia e nela vinha buscar outra luz além daquela que, sozinha, preenchia-lhe toda a imensidade. Nada mais foi preciso para fazê-lo perder, ao mesmo tempo, o conhecimento e a visão das belezas do Templo, já que só podia vê-las na própria morada delas, na qual ele mesmo se proibira entrar. Ele se gabou de encontrar a luz em outro lugar diferente do Ser, que era seu santuário e lar, e a única que podia fazê-lo nesse santuário. Acreditou que poderia consegui-la por uma outra via que não fosse ela própria. Em suma, acreditou que em dois Seres se poderiam encontrar, ao mesmo tempo, faculdades fixas e positivas. Deixou de fixar a visão naquele em que elas viviam com toda força e brilho para dirigi-la a um outro Ser, do qual ousou pensar que receberia os mesmos socorros. Esse erro, ou antes, esse crime insensato, em vez de assegurar ao homem a morada da paz e da luz, precipitou-o no abismo da confusão e das trevas - e isso sem que o Princípio eterno da vida precisasse fazer o menor uso de suas Potências para aumentar o desastre. Sendo ele a ventura por essência e a única fonte da felicidade de todos os Seres, agiria contra sua própria lei se os afastasse de um brilho adequado a torná-los felizes. Como, por sua natureza, ele só pode ser bem, paz e deleite, produziria coisas que o Ser perfeito não deve conhecer - o que demonstra que ele não é, nem pode ser, o autor de nossos sofrimentos. se enviasse males, desordens e privações Pelo contrário, veremos, na seqüência desta obra, que não há nenhum dos Poderes dessa mão benigna que ela não tenha empregado e que não empregue para nos consolar. Aprenderemos a conhecer que, se as virtudes desse Agente supremo vêm combatendo sem tréguas desde a origem das coisas, é a nosso favor, e não contra nós. Veremos a diferença entre esse Ser e nós: quando fazemos o mal, somos nós os seus autores e algumas vezes cometemos a injustiça de imputá-lo a esse Ser. Entretanto, ao fazermos o bem, é ele quem faz o bem em nós, e para nós. E depois de tê-lo feito em nós e para nós, ainda nos recompensa por isso, como se nós mesmos o houvéssemos praticado. Por fim veremos que se, para satisfazer às suas verdadeiras necessidades, o homem desse a atenção que dá às necessidades imaginárias, obteria bem mais cedo o objeto de seus desejos; "e se me for permitido dizer a razão disso, verdade é que o Bem e o Mal nos perseguem, mas o primeiro nos persegue com quatro forças, enquanto o segundo só nos persegue com duas. Ora, como o homem deve ter também quatro forças, vê-se quão celeremente se daria a união se ele caminhasse sem se deter na direção daquele que tem o mesmo número". O Ser divino o único Princípio da luz e da verdade; somente ele possui as faculdades fixas e positivas, nas quais reside exclusivamente a vida real e essencial. Logo que o homem buscou essas faculdades em outro Ser, acabou, necessariamente, por perdê-las de vista, encontrando apenas o simulacro de todas as virtudes. Assim, quando o homem deixou de ler na verdade, só encontrou em torno de si a incerteza e o erro. Quando abandonou a única morada do que é fixo e real, teve de entrar numa região nova que, por suas ilusões e seu nada, era em tudo oposta àquela que acabara de deixar. Foi preciso que essa região nova lhe mostrasse em aparência, pela multiplicidade de suas leis e ações, uma outra unidade além da unidade do Ser simples e outras verdades além da sua. Foi preciso que o novo apoio sobre o qual ele repousou lhe apresentasse um quadro fictício das faculdades e propriedades desse Ser simples sem que, no entanto, ele tivesse alguma delas. "E aqui já temos uma explicação dos números quatro e nove, que teriam podido estorvar a Obra já citada. Ao passar de quatro para nove, o homem extraviou-se. Isso quer dizer que ele deixou o centro das verdades fixas e positivas encontradas no número quatro, na qualidade de fonte e correspondência de tudo o que existe; na qualidade ainda, mesmo em nossa degradação, do número universal de nossas medidas e da marcha dos Astros. Verdade divina, da qual os homens dos últimos séculos fizeram a mais feliz aplicação para determinar as leis dos movimentos celestes, embora fossem conduzidos a essa imortal descoberta unicamente pela força de suas observações e pela chama das ciências naturais. Ou seja: o homem uniu-se ao número nove das coisas passageiras e sensíveis, cujo nada e vazio estão escritos na mesma forma circular ou nonária, a eles designada, e que mantém o homem como que iludido pelas aparências." São esses os direitos que as coisas da região temporal têm hoje sobre o homem. Como cada um dos Seres que a compõem é completo e inteiro na sua espécie, os olhos desse homem infeliz permanecem fixos nos objetos que realmente representam a unidade, porém somente por imagens bem falsas e defeituosas. Como são formadas por agrupamentos, podem ser vistas pelos nossos olhos de matéria e são necessariamente compostas, visto que nossos olhos materiais também são compostos e que só existe relação entre os Seres da mesma natureza. Enquanto permanece na região temporal, o homem fica assim reduzido a perceber apenas unidades aparentes. Isso quer dizer que ele hoje só conhece pesos, medidas e números relativos em vez dos pesos, medidas e números fixos que empregava em seu lugar de origem. Disso ele tem prova nas experiências mais comuns: ser-lhe-ia totalmente impossível fixar uma porção de matéria igual em peso, número e medida a uma outra porção, visto que precisaria conhecer o peso, o número e a medida fixa da primeira, mas que ele deixou a morada de tudo o que é fixo. Todavia, essas coisas sensíveis, aparentes e nulas para o espírito do homem têm uma realidade análoga ao seu Ser sensível e material. A Sabedoria é tão fecunda que estabeleceu proporções tanto nas virtudes quanto nas realidades, com relação a cada classe de suas criações. Eis por que existe uma conveniência, e até mesmo uma lei insuperável, vinculada ao curso das coisas sensíveis, sem a qual sua ação, embora passageira e temporal, jamais teria o menor efeito. Assim, para os corpos é verdade que os corpos existem, nutrem-se, chocam-se, tocamse, comunicam-se e que há uma permuta indispensável entre todas as substâncias da Natureza material. Mas também isso só é verdadeiro para o corpo, pois se as ações materiais nada operam de análogo à verdadeira natureza do homem, elas, de certo modo, são ou poderiam ser-lhe, estranhas quando ele quiser usar essas forças e aproximar-se de seu elemento natural. A matéria é verdadeira para a matéria e jamais o será para o espírito. Distinção importante com a qual há muito tempo já teriam cessado as disputas entre aqueles que pretenderam ser a matéria apenas aparente e os que pretenderam ser ela real. "Se as coisas corporais e sensíveis nada são para o Ser intelectual do homem, vemos como se deve apreciar aquilo a que chamamos morte e a impressão que ela pode produzir no homem judicioso, em nada identificado com as ilusões das substâncias corruptíveis. Embora verdadeiro para os outros corpos, o corpo do homem não tem, como eles, realidade alguma para a inteligência que, quando muito, deve perceber que está dele separada. E de fato, quando ela o deixa, deixa apenas uma aparência ou, melhor dizendo, nada deixa." Pelo contrário, tudo nos declara que ela deve ganhar em lugar de perder. Prestando um pouco de atenção, só podemos sentir respeito por aqueles que a lei liberta das amarras corporais, porquanto então há uma ilusão a menos entre eles e o verdadeiro. À falta dessa útil reflexão, os homens crêem que é a morte que os aterroriza, ao passo que não é dela, mas da vida que eles sentem medo. Se a ilusão das coisas temporais não bastasse para nos demonstrar a diferença entre o estado atual do homem e seu estado primitivo, seria preciso lançarmos os olhos sobre o próprio homem, pois tanto é verdade que o estudo do homem nos fez descobrir em nós relações com o Primeiro de todos os Princípios e vestígios de uma origem gloriosa, quanto deixa perceber no homem uma horrível degradação. Para nos convencermos disso, basta apenas nos confrontarmos com o Princípio cujas Faculdades e virtudes deveríamos, por nossa natureza, representar. É necessário ver quem dentre nós poderá justificar esses TÍTULOS; é preciso ver se somos conformes ao Ser do qual descendemos e que exprimiu em nós a imagem de sua sabedoria e de sua ciência a fim de que o honrássemos. Nós buscamos, ele possui; nós estudamos, ele conhece; nós esperamos, ele desfruta; nós duvidamos, ele é a própria evidência; nós trememos de medo, ele só tem a preocupação do amor, do qual se acha ainda mais abrasado pelo homem do que o homem por seus próprios pensamentos e emanações. Um é grande, multiplicando suas imagens em todos os Seres e no homem; o outro costuma empregar sua glória para exterminá-las e destruí-las. Não somente o Autor das coisas fez os elementos e agentes da natureza existirem para nós e nossas necessidades, cujo uso costumamos perverter: também produziu em nós as faculdades que deveriam ser o signo de sua grandeza mas que empregamos para atacá-lo e combatê-lo. Desse modo os homens, que deveriam ser os Satélites da verdade, são antes os seus perseguidores. Considerando-se que o homem rasteja hoje na reprovação, no crime e no erro, aquele que havia emanado para mostrar que existe um Deus pareceria mais apropriado para mostrar que não há nenhum. Pois, quando reincidindo no primeiro crime, o homem usurpa com tanta freqüência os direitos da Divindade na Terra, é para profanar-lhe o Nome e aviltá-lo através de uma nova prostituição. Sob esse Nome sagrado ele decide, induz ao erro, engana, tiraniza, degola, massacra. Ah! Contra o quê esse Deus tão estranho exerce direitos mais estranhos ainda? Contra o homem, contra seu semelhante, contra um Ser de sua espécie e que, por conseqüência, tem o mesmo direito que ele ao título de Deus. Assim, ao contrapor suas ações ao orgulho, o homem apaga em si esse título glorioso, ao mesmo tempo que dele quer revestir-se. Assim, toma o caminho mais seguro para destruir em torno de si toda idéia do verdadeiro Deus, apresentando a si próprio como um Ser de mentira, furor e devastação, um Ser que só age para tudo desnaturar e tudo corromper, que só demonstra a superioridade de seu poder pela superioridade de suas loucas injustiças, crimes e atrocidades. Poderíamos, pois, exclamar com razão: Homens, era por vosso intermédio que os Ímpios deveriam conhecer a justiça, porém mal podeis responder quando vos perguntam o que é a justiça. Era por vós que eles deveriam ser conduzidos aos caminhos da luz, porém empregais vossos esforços para obscurecer essa luz e corromper os caminhos. Era por vós que a verdade devia aparecer, porém somente ofereceis a mentira. Como hão de ser conhecidas a justiça, a luz e a verdade se o Ser proposto para exprimi-las, além de não lhes conservar a idéia, tenta até mesmo destruir os seus traços que estavam escritos nele e em toda a Natureza? Como saberíamos que o princípio necessário é Santo e Eterno se professais o culto e a doutrina da matéria? Como saberíamos que Ele se ocupa em perdoar e que arde de amor pelos homens se apenas respirais o ódio e só pagais suas benignidades com blasfêmias? E como creríamos na ordem e na vida se nada mostrais em vós, a não ser a confusão e a morte? Embora não pudéssemos comparar nossos títulos à ignomínia que nos cobre sem nos inclinarmos para a terra e sem buscar enterrarnos em seus abismos, quiseram, entretanto, persuadir-nos de que éramos felizes, como se pudéssemos anular a verdade universal de que só existe felicidade para um Ser dentro de sua lei. Homens levianos, depois de terem cegado a si mesmos, tentaram transmitir-nos seus extravios. Começaram fechando os olhos às próprias enfermidades, e depois, induzindo-nos a fechar os nossos também às nossas, quiseram persuadir-nos de que elas não existiam e que nossa situação era apropriada à nossa verdadeira natureza. Que produzem semelhantes doutrinas? Encantam nossos males e não os curam. Fazem nascer em nós uma calma enganadora, graças à qual a corrupção faz progressos tanto mais rápidos quando não se aplica um bálsamo à chaga para curar-lhe a malignidade. Elas enfraquecem no homem o princípio da vida; corrompem-no até o germe; fazem com que aquele que deveria dizer a verdade - e a quem bastaria dar um passo para consegui-la - veja extinguir-se esse impulso precioso, o instinto virgem e sagrado, que o fazia buscá-la naturalmente como seu único apoio. Se o próprio Sábio estiver abalado, o Universo corre o risco de não conter homem virtuoso algum em seu seio - eis os males deploráveis produzidos pelas falsas doutrinas que endurecem o homem a respeito da lei de seu Ser e da privação que ele sofre de sua verdadeira morada. Deixemos que esses mestres perigosos se nutram de ilusões e mentiras. Um olhar rápido sobre a nossa situação bastará para convencer-nos de suas imposturas. A dor, a ignorância, o temor - eis o que encontramos em todos os passos em nosso recinto cheio de trevas, os pontos do círculo estreito, no qual uma força que não podemos vencer nos mantém encerrados. Todos os elementos desencadearam-se contra nós: mal produziram nossa forma corporal e já trabalham para dissolvê-la, lembrando-lhe continuamente os princípios de vida que nos deram. Existimos para nos defendermos contra seus assaltos e somos como enfermos abandonados e reduzidos a viver pensando nossas feridas. Que são os nossos edifícios, vestes, servidores e alimentos senão outros tantos indícios de nossa fraqueza e impotência? Para os nossos corpos só existem dois estados: definhar ou morrer. Se não se alteram, permanecem no nada. Dos homens chamados à vida corporal, uns vagueiam como espectros na superfície, entregues continuamente às necessidades e enfermidades. Os outros já partiram. Foram, como hão de ser os seus descendentes, arrastados na torrente dos séculos: seus sedimentos se acumularam, formando hoje o solo de quase toda a Terra. Não podemos dar um só passo sem calcar aos pés os humilhantes vestígios de sua destruição. Aqui na terra, o homem é semelhante aos criminosos que em algumas Nações a Lei manda que sejam amarrados vivos a cadáveres. Dirigimos os olhos ao homem invisível? Incertos quanto aos tempos que precederam nosso Ser, quanto aos que deverão seguir-se a ele e quanto ao nosso próprio Ser, enquanto não sentirmos as suas relações vagueamos no meio de um sombrio deserto, cuja entrada e saída parecem fugir nós. Se algumas vezes clarões brilhantes e passageiros rasgam sulcos em nossas trevas, tornam-nas mais atrozes ou nos aviltam ainda mais ao nos deixarem perceber o que perdemos. E ainda, se penetram nas trevas, fazem-no cercadas de vapores nebulosos e incertos, porque, se se apresentassem sem disfarce, nossos sentidos não conseguiriam suportar-lhes o brilho. Com relação às impressões da vida superior, o homem acaba sendo como o verme que não pode suportar o ar de nossa atmosfera. Mas, que estou dizendo? No meio das trevas estamos cercados de animais ferozes que nos cansam com seus gritos irregulares e lúgubres, lançam-se sobre nós de maneira súbita e nos devoram antes de os termos percebido. Enxofres incendiados trovejam sobre nossas cabeças e com seus fulgores imponentes parecem pronunciar mil vezes sobre nós a sentença de morte. A própria Terra está sempre pronta a fremir sob nossos pés e jamais sabemos se no instante seguinte ela não irá entreabrir-se para nos engolir em seus abismos. Seria, realmente esse lugar a verdadeira morada do homem, desse Ser que corresponde ao centro de todas as ciências e de felicidades? Aquele que, por seus pensamentos, pelos atos sublimes que dele emanam e pelas proporções de sua forma corporal se proclama o representante do Deus vivo, estaria em seu lugar certo num local coberto de leprosos e de cadáveres? Num local que somente a ignorância e a noite poderiam habitar, local em que esse desditoso homem não encontra nem mesmo onde repousar a cabeça? Não, no estado atual do homem, até os mais vis insetos estão acima dele. Eles têm pelo menos a sua posição na harmonia da Natureza. Nela eles se encontram em seu lugar e o homem não se encontra no seu. Todos os Seres do Universo vivem em ação contínua. Gozam ininterruptamente da porção de direito atribuída a cada um, de acordo com o curso e as leis de sua existência: como só subsistirão - enquanto existirem - pelo movimento, para eles o movimento jamais se interrompe. Também as plantas, os animais e todas as virtudes da Natureza vivem numa atividade que não cessa, pois, se cessasse um só instante, toda a Natureza seria destruída. Pois bem, entre os Seres que estão mergulhados no gozo e na vida, um Ser incomparavelmente mais nobre, o homem, o pensamento do homem e sua inteligência, estão sujeitos a intervalos, a períodos de repouso, a interrupções, ou seja: à inação e ao nada. Deixemos, pois, de crer que aqui no mundo o homem esteja em seu lugar. "Como Prometeu, ele está preso à terra para ser dilacerado pelo Abutre." E nem mesmo sua paz é gozo, não passando de um intervalo entre as torturas. Seria aqui o lugar propício para lançarmos alguma luz sobre o primeiro crime do homem. A esse respeito poderíamos mesmo observar que ao mundo o homem só traz lamentos, e não remorsos, embora esses lamentos sejam ignorados pela maioria, porque só podemos sentir dor pelos males que conhecemos, porque só conseguimos conhecer e sentir os males primeiros com bastante trabalho e porque a maior parte dos homens não faz trabalho algum. Eis o que torna a verdade desse crime tão incerta aos olhos deles, ao passo que seus efeitos são tão manifestos. Eu poderia acrescentar que na ordem social, quando um homem falta à honra, é enviado à classe dos que não têm honra alguma; que assim, observando aqui o principal atributo que falta aos Seres com os quais somos confundidos, deve ser fácil perceber a natureza do primeiro crime. Mas, sem discutirmos as diferentes opiniões que já reinaram sobre esse assunto, podemos crer que o crime do homem foi o de ter abusado do conhecimento que tinha da união do princípio do Universo com o próprio Universo. Nem mesmo podemos mesmo duvidar de que a privação desse conhecimento seja a verdadeira pena de seu crime, uma vez que sofremos todos essa irrevogável punição por ignorarmos os laços que unem nosso Ser intelectual à matéria. A prova manifesta de que tal conhecimento não pode ser-nos totalmente dado durante a nossa permanência na Terra é que, estando nesta Terra apenas para sofrermos a privação da luz que tínhamos deixado escapar, se aqui pudéssemos recuperar plenamente a luz, não mais ficaríamos privados dela e, conseqüentemente, não ficaríamos mais nessa Terra. De fato, as observações mais simples sobre a luz elementar nos mostram a que grau seria necessário nos elevarmos para atingirmos a luz intelectual. As leis desses dois tipos de luz são semelhantes. Além da necessidade de um Princípio primordial e gerador, é necessário haver para ambas uma base, uma reação e uma classe de Seres susceptíveis de serem as suas testemunhas e participarem nos seus efeitos. Isso demonstra que a luz sensível e a luz intelectual agem, procedem e se manifestam por um quaterno. E não é sem razão que a luz elementar esteja no nível dos mais admiráveis fenômenos da natureza material, já que não pode ser completa na ação e nos efeitos sem exercer e colocar em jogo os quatro pontos cardeais da criação universal. Ao considerá-la somente quanto aos efeitos relativos aos três reinos terrestres, observaremos que os minerais, por estarem escondidos na terra, vêem-se totalmente privados dessa luz; que os vegetais não estão privados dela, mas que a recebem sem vê-la nem desfrutá-la; que os animais a vêem e a desfrutam, mas não podem contemplá-la nem penetrar no conhecimento de suas leis; e este último privilégio está reservado somente ao homem e a todo Ser dotado como ele das faculdades da inteligência. É aí que aprenderemos a reconhecer tudo o que nos falta para possuirmos a luz intelectual. Há Seres inteligentes que se acham completamente separados dessa luz. Há os que não estão separados, mas que só participam de seus efeitos de forma exterior. Há os que recebem seus raios interiormente, mas vivem na ignorância absoluta dos caminhos pelos quais ela se propaga. Somente, pois, aqueles que são admitidos ao seu conselho, ou à própria ciência daquele do qual tudo descende, podem recuperar esse conhecimento primitivo, porque é aí onde eles podem, ao mesmo tempo, receber a luz, vê-la, usufruí-la e compreendê-la. É aí que se desenvolvem com eficácia superior os poderes do grande quaterno, porque nesta classe suprema residem os tipos dos quatro pontos cardeais do mundo elementar. O homem não soube conservar esse gozo sublime seu apanágio de outrora: quis transpor a ordem dos quatro pontos fundamentais de toda luz e de toda verdade. Ora, transpô-los é confundi-los, e confundi-los é perdê-los e privar-se deles. É por isso que o homem se vê hoje rebaixado às classes inferiores, onde não apenas não mais conhece essa luz intelectual - que apesar de nossos crimes conserva eternamente seu esplendor - mas onde ainda tem dificuldade em percebê-la às vezes, e onde costuma ser para ela o mesmo que os minerais com relação à luz elementar. Entretanto, é no meio dessa privação que os homens imprudentes se deixam levar a conceber idéias tão arriscadas sobre sua natureza, a construir sistemas cegos sobre os laços que nos mantêm escravos e a persuadir-nos mesmo de que podemos chegar a rompê-los pelo suicídio. Se somente Deus conhece as correntes que ligam nosso Ser intelectual à região temporal, certamente só ele tem o poder de efetuar sua ruptura. Mas não tenhamos receio de dizer que ele não tem vontade de fazer isso, pois assim agiria contra sua justiça. O homem, pelo contrário, pode até ter vontade de desembaraçar-se das amarras estranhas à sua própria natureza, mas não tem poder para isso. Os desditosos que se matam crêem em vão escapar aos males e aos padecimentos: não podem destruir nem evitar uma lei que condena o homem injusto a sofrer. E realmente, os homens impuros podem estar separados de seus corpos sem por isso estarem separados de sua alma sensível. Vejamos os princípios anteriores: embora real para os outros corpos, o corpo é apenas aparente para seu Ser intelectual - assim, depois de se terem libertado desse corpo, os homens impuros devem ser aquilo que eram enquanto nele encerrados. Se era, então, a fraqueza em suportar as dores; se era a peçonha dos vícios e os vapores do crime que lhes tornavam insuportável a vida corpórea, então a morte do corpo nada lhes mudou na situação intelectual. Ainda são corroídos pelos mesmos venenos; têm ainda os mesmos vapores a respirar, as mesmas fadigas a suportar; "em suma: são como frutos pouco maduros e já podres, cuja qualidade malsã não muda nem mesmo que lhes tirem a casca; e que, recebendo assim a ação do ar de maneira mais imediata, apenas se corrompem ainda mais." Além disso, como o homem pode contaminar-se com muitos crimes na vida e identificar-se com uma multidão de objetos contrários ao seu ser, após a morte ele deve provar, uma após outra, todas as impressões relativas a eles. Deve nutrir-se ainda das afeições e dos gostos que lhe pareceram os mais inocentes durante a vida, mas que, como não tiveram um alvo sólido e verdadeiro para lhe oferecer, deixam seu Ser na inação e no nada. São essas substâncias estranhas que fazem então o tormento do Suicida, assim como de qualquer outro culpado privado da vida: "e talvez pudéssemos encontrar aqui alguma explicação do sistema da Metempsicose, segundo o qual, depois da morte, os homens permanecem ainda ligados a diversos objetos elementares, sendo mesmo transformados em plantas e em vis aimais - expressões que são apenas a pintura dos gostos, vícios e objetos que o homem transformou em ídolos na Terra": Pois quem serão esses cujo Ser, após a morte, será assaltado pelos tormentos e ilusões de sua alma sensível? Serão aqueles cujo Ser viverá sensivelmente, embora separado do corpo? Serão aqueles que aqui tiverem vivido separados de seu Ser. De acordo com o que acabamos de ver, o imprudente que pelo suicídio se precipita numa nova região antes do tempo determinado, ainda que tenha cometido apenas esse crime, expõese, talvez, aos padecimentos mais aterrorizantes do que se tivesse ali chegado com as forças conquistadas na região visível através da constância aplicada em cultivar as faculdades com as quais devia combater. É semelhante a um prisioneiro que, para ficar novamente em liberdade, demolisse a prisão pelos alicerces, fazendo-a desabar sobre si. Assim, todo ato nosso que não tiver a aprovação da natureza e da ordem aumenta ainda mais os males e os sofrimentos ligados à condição de nossa infeliz posteridade. De acordo com esses Princípios, podemos já reconhecer a sabedoria e a bondade do Ser divino, cujos decretos trazem todos o caráter do amor. Ele ordena aos homens apenas aquilo que pode aproximá-los dele, só lhes proíbe o que dele os afasta. E se as leis da Natureza e da razão condenam o suicídio, é que ele engana o homem em vez de torná-lo mais feliz. Eu poderia demonstrar que essa sabedoria e essa bondade se manifestam também pelo nascimento do homem para a vida terrestre, já que torná-lo capaz de aliviar, por meio de seus combates e esforços, uma parte dos males causados na terra pelo primeiro crime e confiar-lhe o segredo e a obra da própria Divindade é admiti-lo, em sua esfera particular, à tarefa da reparação das desordens da espécie humana. E, por mais rigorosos que sejam os males que nos esperam no mundo, bastaria pensar que o homem pode não deixar-se abater por eles e que a maior parte deles deve ser atribuída aos seus erros e fraquezas. Assim sendo, poderia dar-se que estes fossem nulos e apenas aparentes para ele e que assim, talvez, seja o homem que lhes atribua todo valor. Mas para conceber semelhantes verdades, seria necessário que ele se elevasse a uma sublimidade muito estranha à maior parte dos homens para quem é difícil formar idéias verdadeiras e constantes sobre os resultados, mesmo os mais simples, de uma justiça material. Assim, não me estenderei sobre esse assunto. Por se haver unido, em conseqüência da corrupção de sua vontade, às coisas mistas da região aparente e relativa, o homem ficou sujeito à ação dos diversos princípios que a constituem e à dos diversos agentes designados para mantê-los e presidir à defesa de sua lei. E como o conjunto das coisas mistas produz fenômenos temporais, lentos e sucessivos, resulta ser o tempo o principal instrumento dos sofrimentos do homem e o poderoso obstáculo que o mantém afastado do Princípio. "O tempo é a peçonha que o corrói, ao passo que ele, o homem, é quem deveria purificar e dissolver o tempo; o tempo, ou a região que serve de prisão ao homem, assemelha-se à água, que tem o poder de tudo dissolver, de alterar de modo mais rápido ou menos rápido, a forma de todos os corpos, e na qual o ouro não pode ser mergulhado sem com isso ficar privado da décima-nona parte de seu peso; fenômeno que, segundo cálculos integrais, representa ao natural a nossa verdadeira degradação." Realmente, o tempo é apenas o intervalo entre duas ações: não passa de um contração e de uma interrupção na ação das faculdades de um Ser. Assim, a cada ano, mês, semana, dia, hora e momento o princípio superior tira os poderes dos Seres e os devolve, sendo essa alternativa o que forma o tempo. Posso acrescentar, de passagem, que a extensão sofre igualmente essa alternativa e que está submetida às mesmas progressões que o tempo, o que faz com tempo e espaço sejam proporcionais. Por fim, consideremos o tempo como o espaço contido num ângulo formado por duas linhas. Quanto mais os Seres se afastarem do vértice do ângulo, mais serão obrigados a subdividir sua ação para completá-la ou para percorrer o espaço de uma linha a outra. Ao contrário, quanto mais se aproximarem do vértice, mais sua ação se simplificará. Julguemos, a partir daí, qual deve ser a simplicidade de ação no Ser Princípio que é, ele próprio, o vértice do ângulo. Tendo de percorrer somente a unidade de sua própria essência para atingir a plenitude de seus atos e poderes, o tempo é para ele completamente nulo. Ao contrário, todo o peso do tempo se faz sentir naquele que, havendo nascido para a unidade da ação, está colocado na extremidade das duas linhas. Eis por que, de todos os Seres sensíveis, o homem é o que mais se aborrece: sendo aquele cuja ação natural é hoje a mais afastada da ação de seu Princípio, sendo o único Ser cuja ação é estranha à região terrestre, essa ação fica nele perpetuamente suspensa e dividida. Não se pode duvidar de que a verdadeira ação do homem não tenha sido feita para sujeitar-se à região sensível: a luz caminha para comunicar-se com ele à medida que a ação sensível o abandona e ele dela se despoja e, ao invés de ter que esperar tudo de seus sentidos, ele só não tem nada quando eles se encontram calmos e numa espécie de nada para sua inteligência. Seria um erro julgá-lo subordinado ao sensível, porque seu espírito geralmente segue o crescimento e a degradação do corpo. Isso pode ser verdade na infância, quando, devendo cada homem sofrer os primeiros efeitos de sua degradação, apresenta o exemplo de uma servidão total à ação dos Seres temporais. Isso também pode ser verdade numa idade mais avançada se o homem não empregou a vontade e o julgamento para avaliar os efeitos das ações sensíveis. Mas, pelo fato de que o sensível pode colocar obstáculos ao intelectual e suspender-lhe a atividade, não seria necessário concluir que as faculdades intelectuais do homem sejam fruto de seus sentidos e produção dos princípios materiais que nele agem, pois não matar ou dar a vida são duas coisas bem diferentes. E jamais se dirá que um véu espesso seja o princípio de minha visão só porque nada posso distinguir quando ele me cobre os olhos. Não já reconhecemos que, em vez de aprender, nada mais fazemos do que lembrar o que já sabíamos e perceber o que jamais havia deixado de existir diante de nós? Que também, como os objetos sensíveis nada nos dão - mas, pelo contrário, podem tudo nos tirar - a nossa tarefa entre eles é bem menos a de adquirir do que nada perder? Sim, se é lei dos seres manifestar suas faculdades sem se confundirem com qualquer substância heterogênea; se os Seres físicos seguem exatamente essas leis, cada um segundo sua classe, quando não são impedidos em seus atos, por que seria o homem o único privado desse poder? Ao perceber tantas belezas nas criações dos Seres físicos, cuja lei não é perturbada, podemos formar uma idéia das maravilhas que o homem faria desabrochar em si se seguisse a lei de sua verdadeira natureza, e se, à imagem da mão que o formou, ele se esforçasse, em todas as circunstâncias de sua vida, para ser maior do que aquilo que faz. Seu ser intelectual chegaria ao último termo da carreira temporal com a mesma pureza que tinha ao iniciar-lhe o percurso. Vê-lo-íamos na velhice unir os frutos da experiência à inocência de sua primeira idade. Todos os passos de sua vida teriam feito descobrir nele a luz, a ciência, a simplicidade e a candidez, porque essas coisas pertencem à sua essência. O germe que o anima ter-se-ia ampliado sem se alterar e ele regressaria, com a calma da virtude, à mão que o formou, porque, ao apresentar-lhe novamente, sem alteração alguma, o mesmo caráter e o mesmo selo que dela recebera, ela reconheceria ainda nele a sua marca, continuando a ver nele a sua imagem. Podemos dizer que, se a maior parte dos homem está tão distanciada de semelhante calma no momento dessa importante separação, é que durante a vida eles não foram engenhosos nem orgulhosos o suficiente para lhe perceber a grandeza e conservá-la, de sorte que, confundidos com as coisas mistas temporais, crêem que vão deixar de existir quando elas os abandonarem. O número dos períodos a que o homem deve submeter-se para cumprir sua obra é proporcional ao número de graus abaixo dos quais desceu: quanto mais elevado o ponto do qual uma força cai, mais tempo e esforços são necessários para tornar a atingi-lo. Mas, para que o homem pudesse adquirir luzes a respeito desse objeto, ser-lhe-ia necessário enumerar as forças, as faculdades e os direitos que lhe faltam. É sobre esse número que repousa a medida de sua escala de regeneração, assim como o peso ou o resultado que daí deve derivar. Ora, o homem pode abranger com um golpe de vista o abismo aonde desceu, pois lhe faltam tantas virtudes quanto há de astros acima de sua cabeça. Além disso, a ação do tempo sobre o homem é proporcional à grandeza das virtudes inerentes aos graus que ele deve percorrer, porque, quanto mais elas forem poderosas e necessárias ao homem, mais longa, penosa e dolorosa deve ser a privação para ele. Eis o que torna seu estado tão cruel e aflitivo. Se esses graus são a expressão e a força das virtudes divinas, se são animados pelos raios da própria vida, se trazem em si um fogo primitivo e tão necessário à existência de todos os Seres, segue-se que, se o homem ficar separado deles, sua privação é inteira e absoluta. Mesmo que o homem seja feliz o suficiente para, durante sua permanência na terra, formar um conjunto de luzes e conhecimentos que abarcasse uma espécie de unidade, não poderia ainda gabar-se de ter o complemento dos verdadeiros deleites, por serem eles superiores à ordem terrestre: só teria o esboço e a representação das luzes verdadeiras, pois, sendo tudo aqui relativo, ele nada pode possuir de real e de verdadeiramente fixo. "Que o homem inteligente medite aqui sobre as leis do Astro lunar que nos exibe, sob mil faces, a nossa privação; que examine por que é que esse Astro só nos é visível durante seus dias de matéria; e por que é que o perdemos de vista no vigésimo-oitavo dia de seu curso, embora se erga da mesma forma no horizonte." Tudo concorre para provar ao homem que, depois de haver percorrido laboriosamente esta superfície, é necessário que ele atinja graus mais fixos e mais positivos que tenham mais analogia com as verdades simples e fundamentais, cujo germe está em sua natureza. E, na hora da morte, é necessário que ele trave conhecimento com os objetos que aqui só conseguiu perceber na aparência. "Posso admitir que esses conhecimentos superiores consistam na inteligência e no uso de duas línguas acima das línguas comuns e vulgares, pois elas se ligam aos deleites primitivos do homem. A primeira tem como objeto as coisas Divinas e possui um alfabeto de apenas quatro Letras; a segunda tem vinte e duas e se aplica às criações, sejam intelectuais ou temporais do grande Princípio: um mesmo crime privou o homem dessas duas línguas. Se ele cometesse nova prevaricação, formar-se-ia para ele uma terceira língua com oitenta e oito Letras, que o faria ficar ainda mais longe de seu termo. Acrescentarei que há línguas falsas e opostas às três das quais acabo de falar. A que corresponde à língua Divina tem um alfabeto de duas letras; a que corresponde à segunda tem cinco; e se houvesse nova prevaricação, a língua falsa que a acompanharia teria cento e dez letras em seu alfabeto. O conhecimento das duas línguas puras que o homem adquiriu ao se separar dos objetos terrestres deve produzir nele efeitos mais satisfatórios do que tudo o que podemos experimentar aqui: elas devem estender seus deleites por terem uma ação mais viva que os objetos da Natureza visível. Mas também, se ele deve ainda experimentar interrupções em sua marcha, os obstáculos tornam-se mais dolorosos para ele porque, à medida que uma força se aproxima de seu centro, aumenta sua tendência15 e o choque das resistências to rna-se mais violento." Entretanto, é inevitável que o homem suporte interrupções ao percorrer os novos graus de sua reabilitação, pois eles são apenas a continuação dessa barreira terrível que o separa da grande luz, sendo a terra o primeiro dos graus. Ora, se existe um espaço entre a prisão do homem e seu lugar de origem, é indispensável que ele o percorra, sofrendo todas as suas ações, uma após outra. Se um viajante ágil e curioso chegasse ao pé de um grupo de montanhas amontoadas umas sobre as outras e quisesse caminhar até o cume da última, escondida entre as nuvens, após ter transposto a primeira delas seria necessário que parasse de subir e fosse caminhando horizontalmente até ganhar o pé da segunda - para por sua vez atravessá-la - e assim por diante, até conseguir chegar ao termo de seus desejos. Imagem sensível da regeneração do homem na qual, além disso, vê-se a Sabedoria benigna acompanhar-lhe os passos enquanto ele está sujeito às leis da justiça, pois, mesmo quando, por várias interrupções, ela parece adiar nossos deleites, dedica-se apenas a orientar nossas forças e a dar-nos tempo de renoválas e aumentá-las. 15 V. Glossário O homem não pode percorrer as regiões fixas e reais de purificação sem adquirir uma existência mais ativa, mais extensa, mais livre, isto é: sem respirar um ar mais puro e descobrir um horizonte mais vasto à medida que se aproxima do cume desejado. Assim vemos que, quanto mais se simplificam os princípios dos corpos, mais virtudes adquirem eles; como acontece com o ar grosseiro que, liberto das substâncias materiais, preenche um espaço tão prodigioso em relação ao que ocupava nos corpos que por pouco não causa medo à imaginação. Além do mais, como as verdades fixas e reais que o homem pode atingir na morte se ligam à ordem intelectual, a única verdadeira, não é de surpreender que, enquanto estamos mergulhados na matéria, relativa e aparente, nem sempre percebemos os trabalhos dos homens já separados de seus corpos, embora a única luz da inteligência demonstre evidentemente essa necessidade. E o mesmo exemplo do viajante pode ainda servir-nos de indício sobre esse objeto: aqueles que permanecem ao pé da montanha perdem-no de vista quando ele chega a certa altura, mas mesmo assim não podem ter qualquer dúvida de que ele subiu e de que existe, embora os olhos corporais não possam mais acompanhá-lo na marcha. Eis o que torna tão incertos os nossos julgamentos sobre o destino dos homens depois que o Ser intelectual se separa do corpo, já que só poderíamos justificar tais julgamentos apoiandoos numa base fixa e determinada, e da qual só possuímos bases aparentes e relativas: "pois tanto existem julgamentos dessa classe intelectual e invisível como do simples físico elementar; toda a Natureza é volátil, tendendo a evaporar-se; ela até o faria num instante se o fixo que a contém lhe pertencesse; mas esse fixo não é dela, está fora dela, embora agindo violentamente sobre ela; ela jamais faz aliança com ele sem começar por uma dissolução; ora, como nas duas classes, física e intelectual, há vários graus de dissolução, há também vários graus de alianças e de amálgamas." Tudo o que podemos permitir-nos, pois, quanto aos objetos de tal importância, é tirar algumas induções de acordo com as fiéis observações sobre a lei dos corpos. Assim, semelhantes aos glóbulos de ar e de fogo que escapam das substâncias corpóreas em dissolução e que se elevam com maior ou menor rapidez de acordo com seu grau de pureza e a extensão de sua ação, não podemos duvidar de que, por ocasião da morte, os homens que não tiverem deixado sua própria essência amalgamar-se com sua habitação terrestre, se aproximem com rapidez de sua região de origem para aí brilharem, como os Astros, com esplendor resplandecente. Também não podemos duvidar de que aqueles que tiverem misturado um pouco de si mesmos com as ilusões dessa morada cheia de trevas atravessem com maior lentidão o espaço que os separa da região da vida. E de que aqueles que se houverem identificado com a sordidez que nos cerca permaneçam mergulhados nas trevas e na escuridão, até que se dissolvam as mínimas substâncias corrompidas, fazendo desaparecer com elas uma corrupção que não pode terminar enquanto elas mesmas não acabarem. E para dar mais peso a essas verdades, direi que na morte os Criminosos permanecem sob sua própria justiça, os Sábios ficam sob a justiça de Deus e os Reconciliados sob a sua misericórdia. Mas o que não nos permite pronunciar-nos sobre a medida segundo a qual se operam os diversos atos ou diversos números de tempo é o fato de que a justiça não age sozinha, havendo outras virtudes que, combinando-se a ela, não deixam de dirigir-lhe a ação em direção ao maior bem dos Seres, que é o retorno à luz. Sem nos ocuparmos por mais tempo com os trabalhos futuros, aos quais o homem entregou sua posteridade, consideremos aqueles aos quais ele está condenado na terra por conseqüência de sua incorporação material. Havendo o homem recebido o ser para exercer ação sobre a universalidade das coisas temporais, só quis exercê-la sobre uma parte. Devendo agir pelo intelectual contra o sensível, quis agir pelo sensível contra o intelectual. Devendo reinar no Universo, mas, em vez de velar pela conservação de seu império, ele próprio o degradou e o Universo desmoronou sobre o Ser poderoso que deveria administrá-lo e sustentá-lo. Como conseqüência dessa queda, as virtudes sensíveis do Universo, que deviam agir de maneira subordinada ao homem no círculo temporal, agiram sobre ele em confusão, comprimindo-o com toda força e poder. Pelo contrário, as virtudes intelectuais, com as quais deveria agir de comum acordo e que deveriam apresentar-lhe uma unidade de ação, viram-se por ele divididas, dele separadas, fechando-se cada uma em sua esfera e região. De modo que aquilo que para ele era simples e uno, tornou-se múltiplo e subdividido; o que era subdividido e múltiplo conglomerou-se, esmagando-o com seu peso. Isso quer dizer que, para ele, o sensível tomou o lugar do intelectual e o intelectual tomou o lugar do sensível. Relações não equívocas mostram-nos que todas as forças físicas da Natureza serviram de entraves a esse homem infeliz no momento de sua queda. E da mesma forma que o corpo que trazemos e nos escraviza é um extrato de todos os fluidos, fogos, humores e outras substâncias do indivíduo corporal que o gerou, assim também as cadeias do primeiro homem culpado foram formadas com o extrato de todas as partes do grande Mundo: o que faz com que, depois deste, possamos ver nosso corpo como sendo também uma imagem do Universo material. Ao se escravizar ao sensível, não somente o homem ficou separado das virtudes intelectuais e superiores, com as quais cooperava pelo poder que tinha, mas também deixou as próprias virtudes se misturarem e se amalgamarem a todas as partes de sua prisão. E temos indícios dessa mistura e da origem material do primeiro homem na lei de geração particular pelo qual o homem atual chega à vida. Antes de sua formação individual, o corpo do homem está espalhado por toda a forma do pai, unido a todas as potências que existem em seu princípio gerador. Quando chega o momento do nascimento, o germe corporal espalhado na forma universal do pai concentra-se, reunindose num ponto. Então ele se exila, sepultando-se no seio trevoso da mulher onde, misturado a fluidos impuros e rodeado por milhares de barreiras, não pode nem mesmo fruir do ar, onde seus órgãos mais perfeitos ficam sem função e só recebe a vida e os socorros dos elementos através de um ponto passivo, enquanto que o destino do homem seria o de corresponderse ativamente com toda a Natureza. Tal é a imagem do primeiro estado corpóreo do homem culpado: banido de sua esfera universal, foi ignominiosamente atirado na forma - ou prisão - material dos homens e, experimentando nela uma oposição universal à sua verdadeira ação, ficou reduzido à privação mais completa, não oferecendo mais do que uma mistura vergonhosa das próprias virtudes com as substâncias heterogêneas que formavam sua obscura morada. Nesse estado, quais devem ter sido os primeiros movimentos do homem? Foram os de desvencilhar-se das massas estranhas que o acabrunhavam. De separar penosamente as próprias virtudes de todas as matérias impuras com as quais elas se tinham confundido. De reunir todas as forças para sair de baixo dos escombros do Universo. Mas, como as leis positivas se opõem a que um Ser possa aliar-se ao que lhe é contrário sem levar a marca e os traços do amálgama, foi impossível ao primeiro homem sair de sua cloaca com a mesma pureza e a mesma agilidade que tinha antes de nela se precipitar. Eis por que o homem particular, depois de ter estado no seio da mulher, depois de ter nele exercido a ação que o deixa em condições de desembaraçar seu germe sensível dos laços e amarras que o restringem, vem à luz encerrado numa forma mais opaca do que o fluido sutil que lhe envolvia o próprio germe. Depois de superado esse obstáculo, restou ao homem primitivo um passo bem considerável: unir-se gradativamente às forças dos diversos elementos que agiam em sua atmosfera. Também é esta a tarefa do homem particular, que, depois de admitido à luz elementar, padece ainda por longo tempo antes de os olhos se acostumarem ao brilho, o corpo às impressões do ar e os órgãos às diversas leis estabelecidas para as formas corpóreas. Até aqui, só vemos para o homem um trabalho corporal e físico. Todas as coisas acontecem na ordem elementar e, por causas não livres, nelas não se distinguem os sinais verdadeiros dos trabalhos do homem intelectual, mas descobrimos pelo menos a sua lei e a sua necessidade. E do mesmo modo que, ao receber o nascimento, o homem supostamente reúne em si suas virtudes físicas e particulares, com as quais pode chegar a participar nas forças universais da atmosfera que deixara e que lhe são exteriores, assim o homem intelectual, libertado da primeira prisão e admitido na terra com a forma material, deve trabalhar para recuperar gradativamente as próprias forças e virtudes intelectuais, com as quais pode tender a recuperar aquelas das quais ficou separado pelo crime. Mas aquilo que o homem físico faz de maneira passiva e cega no corporal, o homem intelectual deve fazê-lo por esforços constantes e livres de sua vontade. É com isso que pode livrar-se da morte à qual se dedicara ao concentrar-se numa ação particular. Pois os corpos destroem a si mesmos quando sua ação se dirige para um único ponto, abandonando as outras partes da forma. Ora, assim como os corpos atingidos pela enfermidade escapam da morte quando a ação neles isolada se torna geral, assim também o homem intelectual, reduzido voluntariamente a uma classe inferior e limitada, deve generalizar todo o seu Ser, estendendolhe as virtudes até os extremos de seu recinto particular, se quiser atingir o recinto universal e sagrado do qual se baniu. E como, de certo modo, a vontade é o sangue do homem intelectual e de todos os Seres livres, o único agente pelo qual eles podem apagar em si e em torno de si os vestígios do erro e do crime, a revivificação da vontade é a principal tarefa dos Seres criminosos. Verdadeiramente, é uma obra tão grande que todas as potências nela têm trabalhado desde a origem das coisas sem ainda terem podido realizá-la de modo geral. Seria preciso apresentar aqui novas relações mais exatas entre a incorporação material do homem particular e a do homem geral. E poderíamos, seguindo as leis da geração em todo o seu curso, instruirmo-nos de maneira positiva sobre a punição do primeiro culpado, sobre o tempo que ele permaneceu na primeira prisão, sobre o momento exato em que dela saiu. "Poderíamos descobrir a origem do próprio Universo e a ação dos agentes de todas as classes ao vermos que nisso operam todos os números. Aprenderíamos a diferença entre a divisão regular do círculo e sua divisão irregular; por que é que a espessura do planeta está em razão inversa à do crescimento do feto; por que é que os movimentos do feto jamais são percebidos antes do fim do terceiro mês e no máximo até o fim do sexto; por que é que ele toma a princípio uma forma esférica no seio da mãe; por que é que num prazo mais avançado ele se encontra de cabeça para cima e com o rosto para a frente; por que é que pelo fim do oitavo mês se prosterna, dispondo-se a rastejar pela terra. E por fim, por que é que tem tanta propensão ao sono depois do nascimento." Mas, para fazer uma comparação desses fatos com seus tipos, é preciso que estejamos habituados a um gênero de observações pouco conhecido pela maior parte do Leitores, que não lhe sentiriam os resultados, visto que para isso não possuem as bases. Limitemo-nos, pois, a observar que o primeiro trabalho que o homem intelectual teve de fazer, depois de haver penosamente separado e desembaraçado as próprias virtudes sepultadas sob as ruínas de seu trono, foi unir-se às do Ser mais próximo de si ou às da Terra. E assim como o homem corporal criança é obrigado, durante certo tempo, a tirar sua subsistência do leite da mulher, assim o homem intelectual é obrigado a começar pela Terra, a recuperar as luzes que perdera e que hoje estão subdivididas para ele em todas as regiões, pois a Terra é a mãe e a raiz do Universo. Todas as leis físicas e intelectuais que acabamos de apresentar sobre a caminhada necessária do homem degradado são tão naturais a ele que na própria ordem humana o homem temporal as põe todos os dias em ação, não deixando de demonstrar a atividade essencial ao nosso Ser, embora se engane tantas vezes sobre o quê deveria ser o objeto dessa atividade. Quando o homem ambicioso e ávido procura com tanto ardor distinguir-se de seus semelhantes, quando os homens comuns e os Soberanos empurram os limites de seu Domínios e de Seu Império querendo levá-los até os confins do Mundo, apenas estão seguindo, de maneira falsa, a lei de sua natureza, que tem aversão por limites e entraves. Isso significa que eles representam o que o homem verdadeiro deveria fazer, levando até os confins de seu domínio os limites físicos e materiais que deveriam ter sempre conservado sua distância natural com relação a ele. É mesmo essa lei indelével que, operando com integridade sobre os filhos, dá-lhes a atividade tumultuada, o impulso destrutivo, qualificado como vício e maldade pelos homens que procedem com menos reflexão, enquanto ela não passa do efeito de oposição necessária que um Ser verdadeiro e universal deve experimentar por parte dos objetos falsos e mesquinhos com os quais está aprisionado. Quando, por outro lado, o homem curioso e industrioso busca reunir em torno de si as criações preciosas da Natureza, não temendo transportar-se até os lugares mais distantes para daí trazer raridades de todo tipo e reuni-las diante dos olhos; quando o sábio naturalista deixa seu pensamento viajar por todos os climas, perseguindo todas as descobertas e impondo com isso uma espécie de tributo universal à Natureza terrestre; e quando o Químico busca, destruindo os envoltórios dos corpos, penetrar até os Princípios aos quais deve a existência, todos esses trabalhos são apenas a imagem do que o homem deve fazer aqui; e ensinam-lhe que ele está destinado a aproximar de si todas as partes de seu império. É, pois, verdade que, depois de ter recebido num lugar trevoso um envoltório grosseiro, depois de ter disposto em si as forças intelectuais que lhe são próprias, o homem tem ainda de multiplicar essas mesmas forças. Reunindo-as às que lhe são exteriores, ele tem de recolher as virtudes de todos os reinos terrestres, de distinguir todas as espécies de cada reino e mesmo os caracteres particulares de cada indivíduo. Tem de esquadrinhar até as entranhas da Terra para aí aprender a conhecer as desordens que fazem o horror e a vergonha de nossa triste morada e que nos são apontadas ora pelos metais que não têm óleo algum, ora pelo furor dos vulcões, ora pelo grande número de insetos e de animais daninhos e peçonhentos banidos da terra, que se escondem em seus abismos, como se a luz do dia lhes fosse proibida. E é aqui onde os trabalhos do homem, em sua morada terrestre, são pintados em toda a sua aspereza, pois, recordando o exemplo temporal do homem ávido, ambicioso, curioso, industrioso e aplicado às ciências vulgares, vêm-se os enormes obstáculos que ele deve encontrar todos os dias antes de poder satisfazer a seus desejos. Mares a atravessar, precipícios a transpor, Nações inteiras a reduzir, intempéries de todos os gêneros a experimentar, regiões impuras a percorrer, privações e demoras a suportar pelos atrasos e variedades das estações. Eis o estado diário do homem intelectual do qual o homem temporal é a imagem. O que torna tais trabalhos tão imponentes é que o homem deixa escoar-se em vão o tempo concedido para cumpri-los. É-lhe necessário um segundo número de tempo mais considerável e mais penoso que o primeiro, visto que agora ele tem de conseguir tanto a primeira quanto a segunda força. Se durante esse segundo número de tempo o homem infeliz não cumprir melhor a tarefa que não fez no primeiro, vai precisar, necessariamente, de um terceiro ainda mais rigoroso que os outros dois- e assim por diante, sem que se possa determinar outros termos aos seus males, exceto o que ele mesmo há de determinar sacrificando todas as virtudes que nele existem. Se ele defraudar uma parte do holocausto, aquele que as receber também lhes reterá uma parte da recompensa, até que ele se submeta a pagar sem reserva um tributo que só pode tornar eficaz e completo se fizer com que seu Ser nisso contribua. Entretanto, o homem só tem o momento de sua vida corporal para determinar esse tributo, esse sacrifício e essa obra, pois a vida terrestre é a matriz do homem futuro. E assim como os Seres corpóreos trazem para a terra, conservando-os, a forma, o sexo e os outros sinais que hauriram no seio materno, assim também o homem levará para outra terra o plano, a estrutura e a maneira de ser que ele mesmo determinar para si durante a estada aqui. Se ele percorrer inutilmente esse intervalo, ao invés de se revivificar, tornar-se-á incapaz a conhecer a vida, como as plantas secas e doentias que não apenas vêem passar em vão sobre elas os raios do sol, mas também ressecam ainda mais com seu calor e perdem o pouco de sumo que lhes restava para melhorarem e tornarem-se férteis. São esses os perigos que nos ameaçam desde a corrupção e a queda do Primeiro culpado. Este é o estado do homem em sua morada tenebrosa, onde não apenas desconhece o próprio nome, mas ainda onde, comprimido pelo peso das esferas e as ações às quais se sujeitou, pode ser por elas oprimido se não empregar de maneira útil os esforços da vontade e o socorro favorável que ainda lhe é oferecido para sustentar-lhes a violência e dirigir-lhes os efeitos em seu benefício. Pois enquanto ele estiver reduzido a si mesmo, a atividade das Potências formidáveis lhe é ainda mais dolorosa: não gozando mais da luz dessas Potências, não sabe para onde fugir a fim de evitar o choque com elas e ser por elas perseguido. Colocado entre abismos e forças imponentes que o comprimem, a todo instante ele fica exposto a ser machucado, dilacerado, ou a tombar nos precipícios que se abrem sempre debaixo de seus pés. Nessa degradação aflitiva, não percebendo mais as propriedades fixas e simples da unidade, ele fica reduzido a errar em torno do templo que as encerra e cujo acesso ele mesmo se proibiu. Se, pela perseverança, puder chegar sozinho alguma vez junto ao pé desse augusto recinto e ouvir de longe o som dos cânticos - aí pronunciados por vozes puras com palavras de fogo - essas vozes, não encontrando a mesma pureza na voz dele, não podem permitir que ele se una a elas nem que se misture aos seus concertos. Eis, pois, as conseqüências do primeiro crime do homem com relação a toda a sua posteridade. Tais conseqüências funestas não se limitam ao homem: estendem-se a todos os Seres sensíveis e a todas as partes do Universo, uma vez que nada daquilo que compõe o tempo pode subtrair-se aos sofrimentos, em conformidade com a definição que demos ao tempo. O homem, escolhido pela Sabedoria suprema para ser seu o sinal de justiça e poder, devia restringir o mal aos seus limites e trabalhar sem descanso para trazer a paz ao Universo. E seu destino sublime declara suficientemente quais devem ser as suas virtudes, uma vez que somente ele devia possuir todas as forças repartidas entre os Seres rebeldes. Mas, se deixou corromper sua atividade virtual; se, em lugar de subjugar a desordem, ele fez aliança com ela, então a desordem teve de aumentar e fortificar-se em vez de se aniquilar, e o recinto universal, que servia de limite ao Mal, teve de ficar ainda mais exposto aos seus ataques e à sua ação. Isso deve dar uma idéia de como os Seres da região sensível podem achar-se hoje num padecimento ou num trabalho maiores do que aqueles em que se achavam antes do crime do homem. Não obstante, é necessário convir que os padecimentos naturais dos Seres sensíveis não podem comparar-se aos do homem, porque o homem, tendo um princípio a mais que eles, é susceptível de dores e prazeres que lhes são inteiramente desconhecidos. Seria de presumir-se também que há diferenças entre os padecimentos dos Seres que compõem a classe material. Se a planta sofresse, sofreria menos que o animal; se o mineral sofresse, sofreria menos do que a planta e o animal, tendo em vista a diferença dos princípios que constituem os três reinos. Mas, para não diminuirmos nossa marcha, abrangeremos, sob a denominação de Seres sensíveis e corpóreos, tudo o que está em ação na Natureza e tudo o que é corpo de matéria, deixando à inteligência do Leitor fazer as distinções particulares que a imensidade dos detalhes possa exigir. Perguntar-se-á: como é possível que os Seres sensíveis e corpóreos da Natureza, que não são livres, sejam submetidos sem injustiça às conseqüências da desordem? Os Seres sensíveis e corpóreos da Natureza são seres de ação. Como tais, não são, por si mesmos, susceptíveis de bem nem de mal, não podendo ser-lhes aplicadas quaisquer das leis da moralidade. Tudo o que as noções naturais nos fazem compreender é que o Princípio supremo não os obriga a ações mais fortes do que as que lhes foram concedidas. Assim, em qualquer grau a que essa ação seja levada, como ela não pode exceder os poderes deles, a Sabedoria fica ao abrigo da injustiça. Pois todas as Potências existentes que dela provêm estarão submetidas aos seus direitos e usos, quando a lei de seu conselho lhe exigir que os empregue. Além disso, a Sabedoria mede e dispõe as forças e potências segundo a regra de sua própria glória. Assim, ela iria diretamente contra os seus interesses se permitisse que as potências se estendessem além dos próprios limites, pois isso seria dissolvê-las e destruí-las. O padecimento dos Seres sensíveis não mais pareceria chocar nossa justiça, uma vez que tais Seres nada mais são do que os instrumentos da Sabedoria e os meios temporais por ela empregados para deter o avanço do mal. Sua lei particular e essencial, fundada na base inabalável de todas as leis, é totalmente avessa à ação rebelde e desordenada que nelas não cessa de perturbar a ordem. Também eles jamais são alterados em seu princípio, embora geralmente o sejam nos resultados e nos efeitos desse princípio. Nesse sentido, quando os Seres sensíveis estão em padecimento, o decreto temporal da justiça está na força de seu cumprimento, porque a lei deles combate com mais vigor a força contrária, que busca destruí-la e fazer a desordem chegar até o princípio da ação deles. Vê-se, com isso, como os padecimentos dos Seres materiais se transformam em vantagem e manutenção da lei que os constitui e como cumprem os Decretos da Justiça divina sobre as potências inimigas, que nos combates e suas conseqüências só experimentam contrariedades e tormentos inexprimíveis. Pois, que suplício pior poderíamos conceber do que perseverar em esforços obstinados, porém impotentes, que, quanto mais são sustentados, mais se transformam em vergonha e raiva para aqueles que a eles se entregam? Se homens imprudentes, ao observar os padecimentos dos Seres sensíveis, ousaram condenar os caminhos de Deus e chamar a isso injustiça, é que jamais prestaram atenção ao fato de que se o homem estava destinado a representar a Divindade em suas ações, também a representava nos meios pelos quais essas ações se manifestam. Muito embora todas as classes tivessem descido, essas relações se descobrem hoje quase que de maneira material. Isso, não obstante, basta para fazer cessar a dificuldade. De fato, se um pai vir o filho ser atacado por malfeitores ou ameaçado por algum perigo considerável, esse pai afetuoso correrá, sem dúvida alguma, em seu socorro, sem temer pôr em uso, para salvá-lo, todas as forças e órgãos da própria forma corpórea e sensível. Entretanto, os membros desse afetuoso pai em nada contribuem nas desordens contra as quais ele as emprega. E embora possam ser maltratados, feridos, não achamos que sofrem com isso qualquer injustiça, porque são seres subordinados e o amor paterno que os comanda justifica as ações que deles exige. Suponhamos, por um momento, que os Seres sensíveis universais sejam, com relação à Divindade, os que os órgãos materiais são no exemplo citado. Não mais nos espantaremos se ela os empregar para vir em socorro do homem, embora os seres ou órgãos sensíveis em nada tenham cooperado nos crimes que expuseram o homem à morte. Mas como na grande obra da sabedoria Divina o emprego dos Seres sensíveis está ligado a leis e a conhecimentos superiores, esse assunto fica muito acima do alcance da maioria para esperarmos que, ao levarmos mais longe as nossas reflexões, elas sejam entendidas por todos. Além do mais, independentemente dos sofrimentos que as leis da Natureza ligaram a todos os seres sensíveis, eles ainda experimentam alguns bem consideráveis, que parecem nascer de uma causa estranha a essas leis. Tais são os sofrimentos que resultam do império do homem sobre os animais e do modo como emprega esse império, seja nos sacrifícios religiosos, seja para as necessidades alimentares, seja para diversos serviços e usos, seja para seu divertimento. Se para justificar esse novo gênero de padecimentos - que as religiões, as necessidades, a crueldade e a depravação das sociedades acrescentam aos sofrimentos naturais dos animais - eu ainda recordasse os direitos do homem e lembrasse a extensão de sua autoridade, o abuso que ele faz dessa autoridade com relação aos Seres sensíveis não pareceria certamente mais desculpável, nem aos animais menos inocentes. Tal é, não obstante, a imensidão dos seus poderes, que ele sujeita à sua ação tudo o que está destinado a ser objeto dela. E assim como só dependeria dele legitimar até os mínimos atos de seu poder, também assim ele pode torná-los nulos, criminosos e perniciosos. Mas, para acalmar todas as dificuldades sobre essa verdade profunda, acrescentaremos aqui que as virtudes superiores, que não participaram no crime do homem, participam nas conseqüência trabalhosas que esse crime arrasta consigo. E se o homem conseguiu levar as influências penosas de suas desordens até os Anjos livres, Ministros da sabedoria Divina, não é de se espantar que possa estendê-las também a simples objetos passivos, a objetos de dependência e de servidão. Ora, tudo o que temos dito sobre os diversos padecimentos dos seres corpóreos, em razão dos diversos princípios que os constituem, também poderia ser dito sobre os seres acima da ordem elementar e acima do homem. Poderíamos mostrar qual é o sofrimento deles, ou, melhor dizendo, a vivacidade de seu zelo e de seu ardor pelo restabelecimento da ordem, já que eles são comuns a todos os Princípios e Potências. Diríamos que quanto mais um Ser está próximo da Verdade, mais sofre por aqueles que a negam e a combatem. E, realmente, ele a vê: primeira causa de padecimentos e de aflição, quando percebe que os seres que dela recebem toda a força, e até mesmo o menor movimento, são insensatos até o ponto de pretender destruir-lhe os poderes e a existência. Em segundo lugar, ele a sente. Conhece-lhe, por um deleite contínuo, toda a doçura: nova causa de padecimento e aflição, que vê Seres divinos por sua origem afastarem-se da fonte da vida e quererem forçá-lo a separar-se dela e dela desarraigar-se juntamente com eles. A partir disso, poderíamos julgar quais devem ser as dores produzidas pelo interesse e pelo amor nos Seres que tocam a própria Verdade; que estão como que unidos e confundidos com ela e que, destinados a contemplar-lhe em paz a ordem e a harmonia, são forçados a desviar os olhos desse espetáculo deslumbrante para dirigi-los à desordem e à confusão. Que crime pode, pois, igualar o do homem, se nada há na Natureza material e imaterial que dele não se ressinta e se toda a cadeia dos seres foi, por causa dele, abalada? Deixemos cair o véu sobre esse abismo de desordens e de dores e pousemos o olhar nos socorros que nos cercam para neles descobrirmos o quanto nos resta ainda de esperanças. Servindonos de guia nessa sublime carreira, a lei universal de reação, nos convencerá da extensão dos deleites daquele de quem recebemos a origem e de seu amor extremo por suas criações. Na ordem das gerações, os Agentes de ação e reação precisam ser distintos por suas virtudes, mas devem ser da mesma essência e da mesma natureza para que sua obra lhes seja sensível. É por isso que a geração das plantas não é sensível para elas, porque opera pela reação da água ou pela de outras seivas terrestres muito inferiores e muito diferentes delas. É por isso que a reprodução da maior parte dos animais é feita por eles com grande sensibilidade, porque eles têm Seres de sua espécie como agentes de reação. É por isso que os frutos do pensamento e os atos da inteligência são tão sedutores para o homem, porque as coisas nele operam através de Agentes de sua própria natureza e análogos a ele, embora ele atualmente esteja separado dos Agentes. Concebamos, pois, quais sejam a atividade e as delícias da existência de Deus, que não deixa de produzir, exteriormente a si, a imensidade dos seres e que, para produzi-los, emprega apenas suas próprias faculdades e sua própria essência, isto é: os agentes de reação não apenas relativos, mas que ainda lhe são iguais, confundidos com ele, que são ele mesmo. Produzindo obras acima de tudo o que nos pode ser oferecido pelos sentidos e pelo pensamento, e reunindo somente nele os agentes e seus deleites, ele se torna, aos nossos olhos, o foco supremo de todas as venturas e o centro universal aonde vem refletir-se o ardor de todas as afeições da vida. Essa relação incessante influi necessariamente nos laços que unem as criações temporais ao seu Princípio gerador, laços que são mais sensíveis à medida que a própria obra se torna mais considerável. tais laços são nulos entre a árvore e o fruto, se considerarmos os que são encontrados entre os animais e seus filhotes. E parecem bem menores ainda quando os comparamos aos que ocorrem entre nosso Ser intelectual e as criações que lhe são próprias. O que devem então ser aqueles que correspondem de Deus ao homem? Qual deve ser o ardor de seu amor por nós? - pois, sendo o homem a mais sublime das criações e Deus o mais sublime de todos os Princípios criadores, existem entre esses dois seres todos os laços de amor e de união que nossos mais elevados pensamentos nos permitam conceber. Haveria aqui uma infinidade de outras relações a expor sobre as leis da concepção dos Seres, sua simplicidade - à medida que eles se elevam e se aproximam da primeira fonte - e sobre a subdivisão à qual estão submetidos, - à proporção que dela se distanciam e vão descendo. Veríamos a razão pela qual, fora do tempo, todas as faculdades são o mesmo Ser, ao passo que, para os Seres no tempo, essas faculdades exigem outros agentes distintos. Poderíamos dar a conhecer a causa final dessa grande e magnífica lei pela qual os animais perfeitos nascem à semelhança do seu princípio gerador, ao passo que os animais imperfeitos, assim como os insetos, passam por diversas mutações sensíveis de forma antes de atingirem essa semelhança. Observaríamos que, passando por todas as revoluções da matéria, nosso corpo é, com relação ao nosso Ser intelectual, apenas um inseto que recebeu o complemento da existência desde o instante de sua emanação. Poder-se-ia, finalmente, observar que no estado presente o nosso próprio Ser intelectual é uma espécie de inseto, em comparação aos Seres que desconhecem a corrupção e o tempo. Embora haja recebido o complemento de sua existência juntamente com a emanação, após a queda ele ficou sujeito a uma transmutação contínua de diferentes estados sucessivos antes de chegar ao final, enquanto o primeiro Autor de tudo o que existe foi, e sempre será, o que é e o que devia ser. Mas tais detalhes nos arrastariam a caminhos sem número e sem limites. Basta-nos lembrar aqui que o homem traz em si um germe invisível, incorruptível, do qual tem o direito de esperar frutos análogos à sua própria essência, assim como, quando semeamos germes de vegetação, obtemos frutos análogos aos princípios do qual saíram. Basta observar que, se quisermos ver nossos trabalhos coroados de sucesso, é preciso - por exemplo - que cultivemos as flores com a mais assídua atenção depois de haver semeado. E só quando seu crescimento houver chegado ao termo é, compensando os nossos cuidados, elas nos oferecerão como tributo as doçuras das propriedades que nelas existem. Agradam a nossos olhos com suas cores e a nosso olfato com seus perfumes. Podem até levar alegria e bem-estar a todo o nosso ser com as seivas e os bálsamos salutares que nele vertem. Essas imagens devem fazer-nos compreender que, como o bom ou o mau estado dos Seres depende quase sempre da espécie de reação que recebem, fomos colocados no mundo para nos defendermos das reações más e procurarmos as proveitosas: não fosse a mão da sabedoria que cultiva a própria semeadura e faz reagir o germe sagrado que colocou em nós, em vão pretenderíamos produzir frutos análogos aos da árvore que nos gerou, em vão esperaríamos ver exalar-se de nós as virtudes ativas da qual os Seres são depositários, cada um segundo sua classe - as virtudes que, circulando continuamente do Princípio supremo às criações e das criações ao Princípio, formam a cadeia viva e ininterrupta, onde tudo é ação, tudo é força, tudo é deleite. Mas, independentemente da necessidade que temos da reação superior, vemos a impossibilidade de que ela ocorra para nós, embora quase sempre nos descuidemos de seus efeitos. E na verdade, mesmo que a natureza essencial e primitiva do homem o houvesse chamado para ser a imagem e a expressão das virtudes do grande Princípio e se a natureza dos Seres é indestrutível - embora seus feitos e propriedades se alterem ou se destruam - o homem não apagou a lei e a convenção que o constituem. Devem restar-lhe sempre os meios para realizarlhes o cumprimento. E qualquer que seja o tenebroso abismo no qual o homem haja caído, a essência divina não deixa de verter nele as correntes de sua glória. Como existe um Ser verdadeiro, ele é, forçosamente, a imagem da Sabedoria suprema, pois ela é a única fonte de tudo o que existe de verdadeiro e nada existe sem dela provir e sem a ela se prender. Ora, como essa fonte universal não suspende jamais a ação pela qual se reproduz, por conseqüência ela mesma jamais deixa de reproduzir universalmente as próprias imagens. Aonde, pois, poderia ir o homem sem deixar de encontrá-las e sem se ver cercado por elas? Para qual exílio poderia ele ser banido sem levar delas qualquer marca? O mesmo devemos dizer do Princípio do mal, cuja existência é atestada pela contra-ação penosa que opera em nosso pensamento. Certamente os raios ativos da luz penetram até ele. Vemos que as águas doces não se limitam a fecundar a terra, subdividindo-se em milhares de regatos em sua superfície, mas dirigem-se para o mar a fim de colaborar com as outras causas naturais para amenizar-lhe o amargor e impedi-lo de transformar-se numa massa inútil de sal. Não seria isso uma indicação de que, assim como depois de haverem vivificado e enchido o coração do homem - seu reservatório natural - as virtudes superiores transbordam e descem até o foco da corrupção para adoçar-lhe o amargor e impedir que o ardor desse fogo impuro seque de tal modo o germe do crime que ele não mais pode dissolver-se nem decompor-se? Entretanto, por serem criminosos, os Seres estão realmente separados do Chefe divino pela privação do exercício de suas faculdades. Embora a virtude do Criador se transmita até eles, eles permanecem nas trevas e na morte, destinadas aos Seres de mentira e de erro se, por causa da corrupção de sua vontade, nada retornar para ele. É uma grande verdade que as relações dos Seres devem ser apreciadas subindo-se delas para o Princípio, e não descendo-se do Princípio até elas, porque é nele que elas têm sua fonte e todo seu valor, ao passo que o Princípio, tendo possuindo essas coisas em si, não necessita buscálas em qualquer outro Ser. Por fim, podemos dizer que, se Deus conserva ainda vida e virtudes nos Seres culpados, é do mesmo modo como conserva a palavra nos homens ociosos e que assim, em ambos os exemplos, são evidentes os traços da degradação. Embora haja uma distância incomensurável entre os homem degradados e o Criador, devemos reconhecer que essa distância só é relativa a eles, em nada agredindo a indivisível universalidade do Eterno. Ele está ligado sempre a esses homens pelos direitos da lei natural e intelectual e jamais o Pai comum dos Seres perderá de vista a menor de suas criações. Caso contrário, seria preciso que seu amor se extinguisse e, extinguindo-se o amor, não haveria mais Deus. Permitamo-nos uma comparação tomada à ordem física. Quando um homem está fisicamente desperto, frui a luz elementar, sabe sensivelmente que ela existe e que está junto dele. Se adormece, não a percebe. Mas os que velam junto dele vêm-na não podendo negar que ela se reflete no corpo adormecido. Assim acontece com a luz intelectual: quando nos aproximamos, ela nos aquece e ficamos conhecendo com clareza a sua existência. Mas, se fecharmos os olhos à sua claridade, não percebemos mais a luz. Ficamos nas trevas e, no entanto, para os que estão despertos, é certo que ela está sempre sobre nós e que, na qualidade de Seres livres e indestrutíveis, conservamos o poder de abrir os olhos aos seus raios. Assim, intelectualmente mortos ou vivos, estamos ininterruptamente sob o olhar da grande luz, jamais podendo ser inacessíveis ao olhar do Ser universal. Coloquemos aqui a principal coluna de nosso edifício e examinemos os caminhos que a Sabedoria não cessa de empregar para proporcionar ao homem essa reação superior, sem a qual todos os frutos de sua natureza seriam reprimidos no germe. Se o homem, excluído da morada onde reside a luz não pode hoje contemplar o pensamento, a vontade e a ação supremas, no conjunto ou em separado, ele as pode reconhecer ainda numa subdivisão relativa a ele somente, ou seja: numa multidão de imagens de todos os gêneros que o cercam e estão destinadas a fazê-lo reagir e abrir os olhos à verdade. Sem essa reação, o homem não seria culpado de permanecer nas trevas sem recobrar a idéia das faculdades de seu modelo. Se entre os Seres materiais não houver nenhum que possa manifestar sem reação o que nele existe, há, do mesmo modo, uma reação para o espírito do homem, que tem como eles um princípio gerador. Também o homem não pode olhar em torno de si sem perceber as imagens mais expressivas das verdades que lhe são necessárias. O princípio supremo manifesta de início a existência de suas faculdades criadoras pela existência da matéria, pois todo indivíduo material é e só pode ser uma criação. Manifesta, além disso, a lei progressiva da ação dessas faculdades pelas ações sucessivas e geradoras dos elementos. Eis a ordem dessas últimas. Há um fogo princípio invisível, incoercível, do qual procedem todas as substâncias particulares que constituem os corpos. O fogo princípio é indicado pelo Flogístico que exala das matérias em dissolução. Produz três atos sensíveis. Pelo primeiro, gera o fogo material e visível, representado nos animais pelo sangue. Esse fogo grosseiro é tríplice pelo que contém em si de água e de terra, mas essa triplicidade é simples, porque ainda não há separação. A segunda operação separa do fogo visível e material um fluido aquoso muito mais grosseiro, representado pelo germe animal extraído de seu sangue ou do princípio universal difundido na forma. Esse fluido aquoso, germe, água, é dupla, pois está unida com à terra, sendo produzida pela segunda ação. A terceira ação separa da água a terra, o sólido ou a forma. Aos nossos olhos, a forma parece simples ou una, mas essa simplicidade é tripla por suas dimensões e por seu nível de emanação. E é nisso que se opõe ao fogo, cuja triplicidade é simples. Eis a lei progressiva e numérica dos atos sensíveis, gerais e particulares das faculdades criadoras e universais. Vê-se aqui como as coisas se tornam físicas e grosseiras. À medida que descem, vemos de onde vêm as disputas dos Filósofos que pretenderam - uns, que tudo vinha da água; outros, do fogo; e outros do mercúrio ou da terra. Todos tiveram razão e tudo depende do grau de progresso em que se detiveram. Há também uma lei ascendente pela qual as emanações das faculdades elevam-se ao seu Princípio gerador, sendo o inverso da primeira - mas, agindo ambas circularmente, elas se sucedem sem se prejudicarem, operando de comum acordo, segundo a razão dupla que constitui o tempo. Por essa lei ascendente, a forma sólida e terrestre desaparece, liqüefazendo-se ou tornando-se água. A água se volatiliza e desaparece, sendo devorada pelo fogo elementar. O fogo elementar desaparece, entrando novamente em seu fogo princípio, cuja ação voraz, mas invisível, será demonstrada pela ação do próprio fogo elementar, que consome sob nossos olhos os objetos que produziu. Como as forças descendentes e ascendentes das faculdades criadoras universais estão perpetuamente em ação diante de nós, podemos sempre descobrir a fonte de onde provêem todas coisas e onde elas devem entrar novamente. Cada um dos graus que acabamos de observar é como um farol que ilumina os pontos superiores e inferiores, no meio dos quais está colocado na progressão circular. Mas ponderemos sobre os objetos elementares na classe terrestre: embora não possamos atingir nela o seu Princípio gerador, podemos pelo menos perceber-lhe e admirarlhes as leis. Se contemplarmos os corpos e os elementos em seus feitos e atos temporais e terrestres, poderemos reconhecer uma imagem da atividade contínua das faculdades criadoras universais pelo estado perpétuo de eflúvios e transpirações onde estão, simultaneamente, os Seres de todas as classes de nossa região. Veremos que, entre os três elementos, o fogo sobe, a terra desce e a água percorre uma linha horizontal, para ensinar-nos que a ação das faculdades superiores, da qual os elementos são os órgãos, preenche e mede toda a extensão da circunferência universal. Se considerarmos as propriedades dos três reinos, encontraremos neles o índice dos poderes ocultos, dos quais são o emblema e a expressão. O ouro, por sua surpreendente ductilidade, mostra-nos a prodigiosa extensão das forças da Natureza, que por esforços infinitos transmite suas virtudes até aos seres mais distanciados, estabelecendo com isso uma correspondência universal. As plantas absorvem os vapores impuros da atmosfera. Ao combiná-los às suas emanações, dissolvem-nos, devolvendo-os com qualidades menos maléficas, para ensinar-nos novamente, e fisicamente, que a existência dos seres da Natureza só tem como fim atenuar os males e as desordens. Se as plantas produzem efeitos indiferentes durante a noite, ou mesmo durante o dia quando não estão expostas aos raios do sol, é que, ocupando entre os três reinos a mesma posição da água entre os três elementos, elas são particularmente, como a água, um tipo duplo: podem mostrar alternativamente os efeitos vantajosos realizados por um Agente à vista de seu princípio de reação e os efeitos funestos aos quais fica reduzido aquele que deles se separa. Quanto ao reino animal, vemos uma representação ativa da celeridade com a qual a vida do grande Ser se comunica com toda a cadeia de suas criações por esse movimento rápido e uno, que transmite, ao mesmo tempo, a ação do sangue em todas as artérias, não tendo necessidade alguma de progressão nem de qualquer intervalo para passar do centro aos extremos mais afastados. Por fim temos o ar, ser à parte dos elementos, símbolo sensível da vida invisível, cujo destino é purificar a terra, já que sua ação é mais regulada e mais constante, conforme os climas em que ele age estejam, em grau maior ou menor, expostos às exalações corrompidas. À imagem da ação superior, o ar opera a reação geral dos corpos penetrando até o seio de todos os germes. Torna-se assim um móvel universal, onde os Seres encontram o que deve contribuir, seja para sua existência, seja para sua salubridade. Pois há um ar para a terra, um ar para a água e um ar para o fogo. É verdade, pois, por obscura que seja nossa morada atual, que não podemos dar um passo sem termos à nossa volta os signos visíveis dos móveis criadores vivos que ainda nos são desconhecidos. A Natureza celeste nos apresentará a mesma verdade. Embora estejamos privados da visão do Princípio que move os astros, embora estejamos mesmo prodigiosamente afastados deles, usufruímos sua luz, recebemos a emanação de seu fogo. Podemos até formar conjecturas ousadas e brilhantes sobre a ordem que receberam quando de sua origem e sobre o verdadeiro objeto de sua existência. A tal ponto, os Sábios pensam que todas as leis dos seres sensíveis estejam escritas neste vasto e magnífico Quadro e que a mão divina envolveu a terra para que aqueles que nela habitam possam ler nela, a todo instante, os sinais e os caracteres da verdade. Assim, o conjunto do Universo material nos descreve, num brilho pomposo, a majestade das Potências supremas. Nele vemos astros brilhantes distribuindo sua luz pelo Mundo, os Céus corporais imprimindo as leis e os modelos dos seres no ar da atmosfera, estes trazendo os planos à terra e a terra executando-os com um ardor e uma atividade que jamais têm descanso. É, pois, verdade que a Natureza universal é para o homem como que uma grande árvore cujos frutos ele pode contemplar e saborear o bastante para consolar-se do fato de não poder ainda descobrir-lhe os germes e as raízes. Através desses quadros, a Natureza não somente apresenta ao homem, as marcas daquilo que ele pôde contemplar em sua origem, mas ainda lhe ensina a fixar a vista no quadro primitivo e nos meios que deve empregar para readquirir seu deleite. As leis dos seres da região sensível fornecem ao homem muitas instruções claras do que tem a fazer todos os dias para recuperar o esplendor e a glória. Todos os corpos da Natureza tendem a despojar-se de suas cascas grosseiras para devolver ao Princípio que os anima o brilho que ele traz em si mesmo. O fogo, próprio a cada um deles, coopera sem cessar nessa grande obra purificando continuamente as substâncias de que eles se nutrem. Nosso sangue mesmo está destinado a preencher sem descanso essa importante função: deve preparar nossas bebidas, nossos alimentos, separar o puro do impuro e empregar sua ação para afastar tudo o que eles contêm de maléfico e por demais material. Isso certamente equivale a ensinar ao homem o emprego dos dois principais agentes que nele há: a inteligência e a vontade. Ele dever aplicar o fogo delas sobre as substâncias intelectuais que lhe são oferecidas, separar delas tudo o que não seja análogo ao seu ser pensante a fim de deixar entrar apenas as seivas vivificantes e puras como ele e com as quais possa formar a união, a harmonia e a unidade que é, ao mesmo tempo, o objeto e o termo de todas as ações e de todos os seres da Natureza. Quanto ao fogo em geral, ele ensina aos homens o que seriam os seus deleites e luzes se exercessem com perseverança as faculdades que neles existem, levando-lhes a ação até o ponto que sua essência lhes permitisse atingir. O fogo tem o poder de vitrificar os corpos, isto é, de purgá-los de tal maneira de suas escórias e cascas que seu princípio radical chega, de algum modo, à pureza e simplicidade naturais. Com isso, tais corpos, cuja opacidade os tornava impenetráveis à nossa vista e nos interceptavam os outros objetos, adquirem uma claridade visível e uma transparência cujos efeitos não impõem mais limites a nossos desejos e conhecimentos. Eles dão aos homens o meio de usufruírem a luz dos astros sem se ressentirem dos rigores da atmosfera e de existirem no meio das intempéries da região terrestre não lhes recebendo os ataques, como se eles realmente não ocorressem. Imagem grosseira, mas instrutiva, duma outra espécie de segurança que o homem pode igualmente alcançar no meio das tormentas que resmungam nessa tempestuosa morada. Dão-lhe esses corpos o meio de penetrar nos mistérios da natureza; de perceber, por um lado, maravilhas que a pequenez dos objetos parecia haver para sempre excluído de seus conhecimentos; por outro, de dirigir os olhos à região mais elevada dos astros. Eles colocam o homem em condição de medir-lhe as dimensões, calcular-lhe os movimentos e ler, como que sem disfarce, as leis dos grandes móveis do qual ele se acha separado por uma distância tão prodigiosa que nem poderia supor a existência de muitos que escapam à visão simples. Todos esses fatos são para o homem outros sinais a demonstrar que, tivesse ele coragem de conduzir a própria vontade ao seu verdadeiro ponto de depuração, concederia ao seu Ser intelectual uma careza e uma transparência análogas à sua classe, conseguiria um grau de purificação que o faria não apenas descobrir a marcha dos Seres materiais que o rodeiam, mas também o ajudaria a elevar-se até à ordem intelectual mais acima dele, até à ordem viva da qual hauriu a origem, mas da qual está hoje tão afastado que a julga inacessível à visão. No sensível e no intelectual ele está certo de que só existe esse grosseiro, a mácula formada para o homem pelas trevas, os afastamentos e as distâncias, e de que tudo está claro para ele, tudo está junto dele quando nele tudo é puro. Apesar de todas as belezas gravadas na criação temporal, admitamos que nelas só vemos leis de rigor e violência, fatos não livres e que nem mesmo demostram uma inteligência nos agentes que os operam, embora fora deles haja necessariamente uma inteligência para comandá-los em todos os seus atos, executados com ordem e regularidade. Seria, pois, em vão que na matéria buscaríamos imagens reais e permanentes do Princípio da vida, do qual infelizmente estamos separados. E se o homem não tivesse tido outros sinais além dos objetos materiais para recuperar o conhecimento desse Princípio, a Justiça divina teria pouco a lhe pedir. Já observamos que no homem, por mais corrompido que seja, sempre se encontram vestígios de virtudes e faculdades estranhas a qualquer Natureza material. Vimos que as idéias da justiça e da benignidade eram conhecidas em todos os séculos e Povos, embora as tenham tantas vezes desfigurado, havendo mesmo aplicado seus nomes respeitáveis a objetos criminosos. E além do mais, levando em conta a forma corporal, o homem poderá provar a si mesmo que possui virtudes mais ativas ainda do que essas de que acabamos de falar. Podemos dizer que ele traz em si os sinais vivos de todos os mundos e Universos. E se considerarmos intelectualmente três dos principais órgãos que lhe ornam a cabeça, veremos por que o órgão da audição é completamente passivo, recebendo impressões e nada retornando; por que os olhos são ativos e passivos, exprimindo exteriormente as afeições internas e transmitindo ao interior as impressões dos objetos exteriores; e por que a língua é um órgão totalmente ativo, com o dobro do poder de traduzir com a mesma faculdade as operações do pensamento ou do raciocínio e os movimentos ou paixões da alma. Podemos mesmo levar nossas observações intelectuais até o centro invisível que anima os três órgãos, até a morada oculta do pensamento, cuja sede está no interior da cabeça, assim como a Divindade suprema estabeleceu o seu centro num santuário impenetrável, embora seus atributos lhe manifestem a existência e a ação a todos os Seres. No homem invisível encontraremos o número das faculdades do Princípio divino que formam o tipo de todos os Seres. Embora não mais atuem em nós senão por uma sucessão lenta e penosa, em nós elas são absolutamente indivisíveis como o são na Divindade. Deveriam ter exatamente o mesmo objeto. E se o homem não tivesse o direito funesto de extraviar-se apenas pelo poder da vontade, existem aqueles que não se reconheceriam diferentes de seu modelo. Independentemente dos objetos da Natureza que cercam o homem e lhe exprimem o princípio, ele possui o meio mais vantajoso e mais verdadeiro de reconhecê-lo em si mesmo e nos semelhantes. É certo que, como Deus retratou a si mesmo em todas as obras da Natureza, e mais particularmente no homem, nada existe nas nossas trevas que não leve seu sinal e a imensidade das imagens de Deus. Verdade luminosa que deve servir de guia garantido para descobrir as imagens que possam preencher os desejos do homem. Na união do homem com o Universo, podemos eximir-nos de perceber um esboço ativo da harmonia divina em que o primeiro Ser nos é representado como dominando todas as inteligências e delas recebendo o tributo e a homenagem que devem à sua grandeza? E realmente, que posição ocupa o homem na terra? Todos os seres da natureza agem em torno dele, todos trabalham para ele: o ar, o tempo, os astros, os ventos, os mares, os elementos, tudo age, tudo contribui para seu bem-estar, tudo concorre para sustentar-lhe a existência. Só ele, no meio desse vasto império, tem o privilégio de poder ser superior à ação temporal. Pode, se quiser e para isso tiver coragem, apropriar-se de todos os dons e Virtudes do Universo. O único tributo que a Sabedoria exige do homem ao deixá-lo empregar tais benefícios é que ele lhe renda glória e a reconheça como soberano árbitro de tudo o que existe; que restabeleça em suas faculdades a mesma lei, ordem e regularidade que ele vê dirigir os Seres da Natureza. Em suma, que em lugar de agir em seu próprio nome, como sempre faz, ele aja sempre, como os Seres, apenas em nome do Deus vivo que o criou. Eis a grande obra, ou a mudança da vontade a respeito da qual dissemos que as Potências da Natureza vêm sendo empregadas desde a origem das coisas, sem ainda terem podido operar. "Mas a superioridade do homem sobre a Natureza é demonstrada de maneira mais ativa pelas simples manipulações que ele pode executar na matéria, as quais nos devem dar uma idéia maior da extensão de seus direitos. Não há corpo material algum, por mais duro e cristalizado que seja, do qual não se possam extrair os princípios que servem para gerar todos os corpos dos três reinos. Para isso, basta empreender uma marcha oposta à seguida pelo corpo duro para chegar a esse estado de solidez. É preciso, pois, começar trabalhando em sua dissolução. Embora o homem saiba operar bem poucos tipos de dissolução, não deixa de ser verdadeiro que eles são possíveis, visto que a Natureza, por suas operações segundas, disso nos fornece todos os dias a prova e os meios. Pois, na ausência de ciência, podemos ao menos aproveitar exemplos da Natureza, sempre pronta a suprir nossa fraqueza e ignorância. Mas é preciso nos lembrarmos de que as criações resultantes de nossos procedimentos serão sempre inferiores às realizadas imediatamente pela Natureza, as únicas que merecem ser ligadas ao seu reino, como trazendo sobre si grandes caracteres. "Sem perdermos de vista essa prudente observação, pulverizemos o sal mais compacto, o mármore e o granito mais duros. Exponhamos esse pó, que não podemos tornar fino demais se quisermos ter êxito, deixemo-lo exposto ao ar livre da atmosfera, sem água, protegido o mais possível da chuva, da poeira e dos corpos estranhos já determinados. Pouco a pouco o ácido do ar agirá sobre o sal pulverizado, extraindo-lhe as substâncias análogas a si e deixando de lado as outras que, com o correr do tempo, converter-se-ão inteiramente em terra vegetal. Desde que se tenha a posse dessa terra vegetal, estão feitas todas as descobertas. A umidade do ar une-se a ela, fazendo nascer pequenas plantas. Atingindo o ponto de maturidade, as plantas sofrerão uma nova operação, ou dissolução mais natural que a da infusão grosseira, e delas veremos nascer insetos e até algumas espécies de metais, se soubermos proceder. Isso será uma demonstração completa de que o princípio universal está distribuído em todos os corpos. Que não se creia que aqui eu esteja contradizendo o que foi anteriormente adiantado sobre a fixidez dos caracteres dos Seres, que jamais podem elevarse a outra posição além da que lhe foi dada pela Natureza. Nos procedimentos de que falamos, as transmutações só acontecem porque os diferentes germes inatos em cada corpo separam-se uns dos outros para agirem livremente segundo sua lei, mas nenhum deles deixa seu reino. É preciso observar ainda que os resultados das transmutações caminham sempre para a degeneração e que, quanto mais se repete o procedimento com as mesmas substâncias, tanto mais fracas são as reproduções delas procedentes, o que as torna cada vez mais inferiores às produções primeiras da Natureza. Podemos, contudo, admirar os direitos do homem, já que, por sua liberdade de uso para fazer diversas substâncias materiais ele tem o poder de transmutar tudo o que se encontra em seu recinto, converter terras em materiais, plantas em insetos e estes numa nova terra, da qual resultarão novas combinações; com um só procedimento, pode transformar animais e plantas em minerais e sais, os rochedos mais duros em corpos organizados e vivos e, de alguma forma, mudar o aspecto de tudo o que dele se aproxima. Não hesitemos em aplicar essas observações aos objetos imateriais. Para o homem, ou eles estão todos separados, ou como que introduzidos nas substâncias e envoltórios que parecem gerar-lhes a ação. Mas como ele próprio é um dissolvente universal, de alguma forma poderia, se gozasse dos direitos de sua inteligência, realizar na classe dos objetos intelectuais o mesmo que faz nos corpos por meios dos agentes sensíveis e corporais. "Tudo nos incita, pois, a crer que o homem, restabelecido em seus direitos, poderia agir tanto nos Seres imateriais corrompidos quanto nos Seres puros dos quais atualmente está separado por fortes barreiras. À imagem do Agente supremo, teria o poder de dissolver e decompor os envoltórios, pôr a descoberto os princípios aí contidos e concentrados, (fornecendo-lhes com isso os meios de produzir frutos de todos os reinos que lhe são próprios), recompor os simples, manter na inação os insalubres, isto é, fazer com que por toda parte a abundância suceda à esterilidade, a luz às trevas, a vida à morte, e transfigurar de tal maneira tudo o que o rodeia que sua morada venha a ser semelhante à da própria Verdade." Não nos iludamos: o espetáculo maravilhoso da ação interrupta dos Seres corporais, "o próprio espetáculo da superioridade que o homem deveria ter sobre eles pelo uso e a aplicação que pode fazer de sua lei" não passa certamente de uma representação muito frágil e inferior da harmonia divina que liga as três faculdades primeiras aos Seres inteligentes. Nessa classe divina tudo é santo, tudo é verdadeiro, tudo age de comum acordo e tende a um mesmo alvo. O Chefe divino, no centro de suas puras emanações, une-as a si pelos direitos do amor e da ventura ao derramar-lhe no seio as doçuras de sua existência e de suas Virtudes. Neste ponto, os Súditos não podem jamais elevar-se acima do Soberano e se dentre eles alguns tiveram a infelicidade de se revoltar contra suas leis, jamais puderam atacá-lo diretamente, pois perderam-no de vista no próprio instante em que conceberam esse horrível pensamento. Além disso, quaisquer que sejam os crimes, a clemência do Mestre não abandona os culpados: mais do que estimular sua justiça, ele a modera; mais do que subjugar os criminosos, procura ganhá-los. Envolve, por assim dizer, a sua potência com o seu amor para que não se aterrorizem com o seu nome e para mostrar-lhes que é mais cioso de reinar sobre eles pelo amor do que pelo poder. Não acontece assim na classe temporal, em que o Súdito e o Mestre são quase sempre confundidos. Todos os Seres corporais - todos os agentes da Natureza destinados ao serviço do homem fazem-lhe guerra contínua. E ao ficar ele entregue a si mesmo, longe de vê-lo como Rei do Universo, nós o tomaríamos mais por um proscrito ou por um vil escravo daqueles de quem deveria ser o comandante. E mesmo quando usa seus direitos e o império lhe parece em ordem melhor, só nos oferece figuras desse verdadeiro império do qual acabamos de traçar um débil quadro: não são constantes nem inalteráveis o poder e a extensão de suas faculdades. E se ele revelar realmente uma representação das três faculdades divinas, só podemos dizer que ela não passa de um esboço quase irreconhecível. Não somente seu pensamento não lhe pertence, não somente sua vontade não é constantemente pura, mas sua ação mesma é incerta, sem possuir a segurança nem a autoridade do Mestre e do Soberano, de modo que quase não podemos reconhecerlhe quaisquer dos traços vivos da terceira Virtude divina que essa ação deveria representar. Entretanto, é por causa da nossa semelhança com essa terceira faculdade que devemos começar a corrigir as deformidades que nos desfiguram. Se a lei pela qual o primeiro Princípio nos deixa perceber a sua imagem no mundo - está ligada a uma ordem temporal e sucessiva, devemos trabalhar para manifestar os direitos e a vida da ação divina antes de pretendermos manifestar as duas faculdades que a precedem: em toda progressão ascendente é necessário passar pelo inferior antes de seguir para o superior. Todavia, os termos superior e inferior16 só devem ser empregados para indicar os limites em que nossa inteligência está hoje encerrada. Em Deus, nada é superior, nada é inferior: tudo é um no indivisível, tudo é semelhante, tudo é igual na unidade. Mas as conseqüências dos desvios do homem não apenas fizeram com que as Virtudes temporais dos Seres da criação fossem subdivididas: elas até obrigaram a Divindade a só mostrar de maneira progressiva as Virtudes de sua própria essência ao Ser culpado. Há nisso uma prova do amor que ela sente por ele: como o homem não tem mais a força necessária para contemplar sem perigo a unidade divina, ela se reparte em seu favor a fim de que ele encontre sempre os meios de reconhecê-la sem que ela o ofusque, como aconteceria se surgisse diante dele em todo o esplendor. Ora, nessa espécie de subdivisão, relativa apenas ao homem, é da terceira faculdade divina, ou ação, que devemos aproximar-nos de início, já que seu número a coloca depois das duas outras e, como conseqüência, muito perto de nós. 16 Negritos da tradutora. Se nos for demasiadamente difícil conceber as palavras ação, vontade e pensamento (que apresento como distintas umas das outras, embora essas três faculdades sejam uma em sua essência), bastará que nos limitemos a essa idéia geral para termos a compreensão perfeita desse escrito: como o homem perdeu de vista a unidade das potências divinas por causa do crime, contempla-os separadamente, e as potências, transmitindo-se a ele, só se mostram sob uma multidão inumerável de fatos, signos, emblemas, sob uma multiplicidade de Agentes e de meios que o faça sentir quão privado está da unidade e das delícias da qual é ela a fonte e o foco. Se na espécie humana, considerada com relação à ordem física, vemos homens notáveis pela beleza e proporção de seus corpos, sua força, agilidade e as diversas vantagens da forma e dos órgãos, devemos pensar que o mesmo acontece na ordem das faculdades intelectuais. E que, se o número maior está reduzido às noções mais comuns e menos elevadas, em todos os tempos deve ter existido homens que se distinguiram dentre seus semelhantes e que estão mais próximos que eles da luz - diferenças observadas ainda todos os dias com relação ao que vulgarmente chamamos de Ciências. Embora todos os homens da terra estejam destinados a manifestar, no mundo mesmo, alguns raios das faculdades divinas, podemos crer que alguns dentre eles são convocados a essa obra por uma determinação mais positiva do que os outros homens, possuindo feitos mais vastos e mais consideráveis a realizar. Uns, encarregados somente da própria regeneração, só terão de contemplar o quadro dos socorros que a Sabedoria suprema lhes apresenta e se esforçar para aplicar os frutos a si mesmos. Outros, destinados a difundir esses socorros, deverão ter forças maiores e dons mais extensos. Para fixarmos nosso pensamento nesse objeto, consideraremos todos os homens da terra como Eleitos, mas divididos em duas classes: a dos Eleitos particulares e a dos Eleitos gerais. Acrescentaremos que dificilmente os Eleitos gerais poderão descer até a posição dos Eleitos em particular, mas que a todos é dado, pela coragem e pelos esforços contínuos da vontade, elevar-se à posição dos primeiros. Porque é mais difícil a um homem consumado na Ciência esquecer o que sabe do que um homem ignorante adquirir conhecimentos. Isso nos força a examinar por um instante o sistema da pretendida facilidade vinculada ao destino do homem. As dificuldades suscitadas na matéria vêm do fato de que atribuímos aos Eleitos particulares aquilo que foi dito apenas sobre os Eleitos gerais. Já que está claro que a maior parte dos homens, ao permanecer como depositária de seu livre arbítrio permanece também depositária de suas ações - e, como conseqüência, do resultado que as acompanha -,a partir do fato de que haveria na espécie humana alguns seres privilegiados e destinadas a obras maiores, deveríamos concluir que todos os homens devem ser predestinados? Não teríamos razão, em suma, em assimilar todos os eleitos e concluir, a partir da minoria, pela universalidade dos homens. Certamente não nos limitaremos a isso e perguntaremos por que tal homem foi escolhido de preferência dentre todos os outros e colocado na posição dos Eleitos privilegiados, ou gerais. Para atingir o núcleo dessa dificuldade, seria preciso que nos elevássemos até às leis simples, mas universais, da Sabedoria divina que, tendo deixado marca em todas as suas obras, gravoua na espécie humana, bem como nas outras criações. Acrescentemos que, como a Natureza humana é o quadro figurativo universal da Divindade, assim como de suas Virtudes e Potências, deve ver que todos os tipos se repetem nos diferentes indivíduos de sua própria espécie. Eis por que deve haver alguns homens encarregados de manifestar as coisas divinas; outros, as coisas intelectuais; outros, as físicas e naturais, sem falar de outro tipo de manifestação cuja necessidade é igualmente absoluta entre os homens, mas que não seria prudente revelar à multidão. A lei que dirige os tipos de eleição é semelhante à lei que constitui a própria Divindade: tem como base a propriedade sagrada das faculdades do primeiro princípio e a ordem numérica agindo sobre os Seres que devem representá-los. Propriedade co-eterna da essência suprema, e para a qual não pode haver outra razão senão a de sua existência, já que esta razão e sua existência são a mesma coisa. E é somente através desse conhecimento que compreenderíamos aquilo a que demos o nome de liberdade nesse grande Ser. Assim, não jamais saberíamos por que motivo certos homens têm tais ou quais tipos a manifestar de preferência a outros homens sem conhecerem antecipadamente a lei numérica à qual a Sabedoria suprema sujeitou-lhes a origem. Ou antes, seria preciso saber por que é que as faculdades divinas são tão diversas, embora intimamente unidas e para sempre inseparáveis. Por que o pensamento não é a vontade, a vontade não é a ação e a ação não é nem o pensamento nem a vontade. Mas, se em rigor essas questões não estão acima da inteligência do homem, são quando nada inúteis e com freqüência muito perigosas para ele, sobretudo quando ele não as persegue no verdadeiro caminho, que é a ação. Se a ação é o germe essencial de nossa reabilitação, é necessário, a princípio, que o germe opere para em seguida nos fornecer os conhecimentos e as luzes, seus frutos verdadeiros. Permanecendo, pois, fiéis a esta ação, reconheceremos que compete somente a ela confirmar as verdades até aqui expostas e dissipar-nos todas as obscuridades. Entremos novamente no nosso assunto para descobrirmos os caminhos físicos e intelectuais pelos quais os Eleitos gerais, ou os privilegiados, foram admitidos a esse título sublime. Se eles houvessem tido apenas os recursos naturais e humanos cujo quadro percorremos anteriormente, se jamais houvessem tido nem mesmo o socorro dos outros homens privilegiados como ele, só teriam visto nisso tipos secundários e inferiores, através dos quais não teriam descoberto por que razão o homem existe. E sem conhecerem ainda as Virtudes eficazes do grande Princípio, teria sido impossível elevarem-se à posição sublime da qual haviam descido, e Deus teria pronunciado ao homem um decreto que jamais poderia ser cumprido. É preciso, pois, segundo a ordem da imutabilidade divina, que a Sabedoria superior haja apresentado aos Eleitos privilegiados sinais ativos, evidentes e diretos das virtudes e faculdades com os quais o homem deve encetar o curso de sua regeneração. Por fim, é indispensável que as próprias Virtudes da Sabedoria divina se hajam aproximado dos homens privilegiados, fazendo-os tocar sua própria substância a fim de lhes fornecerem os meios para que eles manifestassem sua ação e começassem a cumprir a tarefa para a qual haviam recebido a existência temporal. Não teremos dúvida alguma sobre essas verdades quando refletirmos que as virtudes divinas, irradiando-se em todos os sentidos como o fogo solar, vivem numa atividade contínua que as faz proceder ao mesmo tempo em todas as progressões do infinito: dúvida de que assim, no seu percurso, é-lhes obrigatório encontrar o homem e que, quanto mais o homem for análogo a elas, tanto mais elas tendem a unir-se a ele pelas relações essenciais de sua natureza. E é essa a reação que, independentemente da universalidade da ação divina, é demonstrada em particular em cada um de nós: por não ter o homem o pensamento por si próprio, todos os dias ele recebe pensamentos vivos e luminosos. Se algum homem se queixar de que nada recebe de semelhante, essa falta não é um vício de sua natureza, mas conseqüência da negligência por não se haver apoderado dos raios oferecidos na primeira idade e apresentados como guias para conduzi-lo ao gozo permanente de uma luz maior. Quando dizemos que as Potências de Deus se transmitem aos homens de maneira indispensável, falamos de uma necessidade apoiada em leis fundamentais que Deus imprime nos Seres e sobre a imutabilidade de seus decretos. Assim, ela não deve diminuir perante os nossos olhos a grandeza de seu amor e menos ainda fazer-nos acreditar que estamos dispensados de contribuir com ele na obra, como se ele devesse operar sozinho e sem o concurso de nossa livre vontade. Formando uma classe à parte dos Eleitos gerais, que, por estarem sempre unidos ao próprio grande Princípio não nos permitem fazer distinção alguma entre a Ação divina desse Princípio e o próprio livre Arbítrio, diremos o mesmo que ocorre tanto com o amor quanto com a justiça. Ambos não passam de apoios apresentados para nos ajudar a sair do abismo, mas nos deixam, de ordinário, a mais inteira liberdade para apropriarmo-nos deles, assim como para deles fugir e abandoná-los. Embora os socorros que a Sabedoria suprema concede ao homem sejam uma conseqüência do amor que a constitui, ele ainda deve pedir-lhe até a força para deles fazer uso e empregar todas as Potências de seu Ser para que os socorros não lhe sejam dados em vão. Como a Sabedoria impõe sempre uma condição às suas graças exigindo sempre um trabalho do homem, cabe à vontade do homem, posteriormente, determinar-lhe a eficácia. Semelhantes aos traços da luz colorida, que se prolongam quando encontram meios por demais divididos e débeis para neles se apoiarem e refletirem, os raios supremos atingem inutilmente o homem, deixando-o para trás quando não há nele base alguma para fixá-los. Se os homens pudessem agir segundo sua lei verdadeira, sem o socorro de Deus, ou se Deus devesse agir nos homens sem o concurso deles, os Teólogos e Filósofos teriam fundamento para fazer tantas perguntas sobre o livre arbítrio e os efeitos da graça divina, a qual nada mais é que o amor. Mas como o bom uso do livre arbítrio atrai a graça, ou o amor e, de modo recíproco, esse amor dirige o livre arbítrio e o purifica, é evidente que não devemos jamais separá-los. Está claro que o amor e a liberdade auxiliam-se continuamente e que essas duas ações, embora distintas, estão sempre unidas por relações íntimas e recíprocas. Entretanto, não é preciso crer que a vontade humana possa tornar nulos os decretos das manifestações do Poder supremo que deveriam ser feitas através do órgão do homem; porque, se o homem não cumprir o alvo de sua emanação, é esse poder mesmo que se mostra. Assim, aqueles que devem ser seu objeto jamais podem deixar de tê-lo presente diante de si, seja para seu proveito ou molestamento. Prossigamos com o nosso assunto. Não bastaria que as Potências divinas, subdividindo-se, trouxessem até o homem as virtudes que as constituem. Seria necessário ainda que cada uma delas o fizesse de maneira proporcional à região tenebrosa habitada pelo homem. Seria necessário que empregassem os próprios meios por ele empregados para até aí descer; que passassem pelos mesmo caminhos; que se cobrissem com as mesmas cores e seguissem as leis com a mesma aparência que o cerca, e isso pelas relações, que em seguida darei a conhecer, existentes entre o corpo do homem, a origem das línguas e os caracteres da escrita. Sem isso, a vista enfraquecida do homem não teria podido suportar o brilho das Potências. Ou, não lhes percebendo analogia alguma consigo mesmo, elas lhe teriam parecido estranhas ou demasiado acima dele, o homem teria desconfiado delas e, desviando os olhos, teria perdido os únicos meios que conseguiu atingir para se lembrar de seu primeiro brilho. É assim que o fogo dos astros nos ofuscaria ou consumiria se pudesse percorrer o espaço que os separa de nós sem atravessar os fluidos da atmosfera que, por sua natureza úmida e densa, moderam ao mesmo tempo sua atividade e seu esplendor. É assim que esses próprios fluidos, por demais sutis e rarefeitos para nossa região, seriam inúteis e mesmo nocivos à terra se pudessem descer à sua superfície sem se condensarem mais uma vez em orvalho, chuva, neve, e sem se ajuntarem em glóbulos sensíveis e análogos às substâncias que acabam de fertilizar. E por fim, o pensamento do homem seria assim nulo para os semelhantes se ele não empregasse de início formas e caracteres sensíveis para transmiti-lo. Ora, esses meios, necessários ao homem em seu estado atual, não passam de uma imagem do que lhe acontece na realidade numa ordem mais vasta e mais elevada, já que tudo deve ser sensível aqui. Verdade que será mais desenvolvida a seguir. Em suma, por uma lei constante e invariável, de conformidade com as classes em que penetram, todas as virtudes, ações e faculdades se colocam em proporção exata, modificandose de acordo com os canais pelos quais passam e com os objetos que têm como alvo identificar consigo mesmas. E é tão violento o estado das coisas temporais que os Princípios que aí descem não podem fazê-lo sem canais sensíveis que os preservem, ao passo que deveriam, por sua natureza, comunicar-se entre si sem intermediários. Sendo obrigados a produzir tais envoltórios preservativos para si próprios, a ação que empregam nessa obra depende sempre de sua verdadeira ação. Percebemos já, então, a necessidade de haverem aparecido, entre os homens, sinais visíveis, Agentes substanciais e Seres reais, revestidos como nós de formas sensíveis. Mas, ao mesmo tempo, Seres que fossem depositários das Virtudes primeiras perdidas pelo homem e por ele buscadas sem cessar em torno de si, das quais só conseguia ver indícios fracos e impotentes em tudo o que o cercava e que, embora subdivididas, deviam ser apresentadas novamente ao homem com seu caráter primitivo. Seria até possível que entre os sinais e agentes houvesse aqueles que tivessem existido e os que ainda existissem no meio dos homens sem que os ignorantes ou corrompidos deles se apercebessem. Como sua ação e marcha só devem ser desveladas aos que têm pureza bastante para as captar, são quase nulas para os outros, assim como todos os meus atos intelectuais são desconhecidos da matéria da qual meu corpo é formado, porque nada há neles que não lhe seja estranho. E é aí que lanço tanta obscuridade, tantas dúvidas e incertezas sobre a existência desses sinais e Agentes. Vamos expor uma terceira lei, igualmente indispensável: é que, se pelo destino sublime pelo qual está fundada a origem do homem, não bastasse que as virtudes da Sabedoria o alcançassem de maneira visível mesmo depois de seu crime, tomando o cuidado de traçar-lhe novamente o modelo, ainda assim seria necessário que os depositários desses dons o instruíssem sobre os caminhos pelos quais ele poderia regenerar-se voltando ao seu primeiro estado. Seria necessário que os Agentes cumprissem seu destino através de atos sensíveis, já que habitavam junto de um Ser sensível e obscurecido por sua matéria. Seria necessário, enfim, que deixassem o homem em condições de exercer e transmitir ao semelhante os dons e os conhecimentos deles recebidos, tanto para a instrução e o proveito dos outros homens quanto para os próprios - o que nos leva a reconhecer a necessidade de um culto sensível e físico na Terra, ao mesmo tempo que nos descobre o objeto para o qual há Eleitos que foram privilegiados. Em sua verdadeira definição, um culto é apenas a lei pela qual um Ser, buscando apropriar-se das coisas de que precisa, aproxima-se dos seres para os quais sua analogia o está sempre chamando novamente momento e foge daqueles que lhe são contrários. Assim, a lei de um culto funda-se sobre uma verdade primeira e evidente, isto é, sobre a lei que resulta essencialmente do Estado dos Seres e de suas relações respectivas. No estado de coisas do mundo, não há ser algum que não apresente necessidades. Já que tudo é separado e dividido, estão todos obrigados a procurar reunir-se e organizar sua ação dispersada; são todos movidos pelo impulso de sua analogia natural, que os força a tender incessantemente uns para os outros, segundo as leis e o anseio de sua natureza. Daí, se não pudermos atribuir exatamente o nome de culto às leis dos Seres materiais e não livres, pelo menos devemos reconhecer que todos os Seres - da classe que forem - o nosso sangue e os nossos corpos, colocados entre as criações do Universo, têm atos a realizar e uma ordem a seguir para cumprirem o alvo de sua existência, seja para se curarem ou se preservarem das diversas enfermidades às quais estão continuamente expostos pelas influências elementares. Entretanto, em que se fundamenta essa lei, a não ser na analogia encontrada, por exemplo, entre nossos corpos e os alimentos ou os remédios cuja ação e Virtudes vêm reanimar e renovar nossas forças, devolvendo-nos a saúde?

Ora, reconhecida a analogia entre o nosso Ser intelectual e as outras Virtudes da Divindade; provando, além disso, que existe fora de nós uma fonte de pensamentos falsos e desordenados que nos obsidiam, deixando o espírito do homem exposto a tantas enfermidades quanto o próprio corpo - segue-se que as nossas relações naturais com as Virtudes divinas nos colocam, com relação a elas, na mesma dependência e necessidade em que os nossos corpos se situam com relação às substâncias elementares. Segue-se que, para essas Virtudes divinas estamos igualmente sujeitos a um culto ou a uma lei que, de sua parte, nos fornece os socorros que dela aguardamos. Segue-se que, tendo que curar ou preservar nossos Seres das influências intelectuais nocivas e os corpos das influências corporais maléficas, devemos, por uma necessidade evidente, buscar os socorros análogos a essa necessidade intelectual e empregá-los ativamente quando os encontrarmos. Deve ter sido a falta de tais reflexões o que conduziu, em todos os tempos, os homens das diversas Religiões à indiferença quanto a esses objetos, fazendo com que não apenas negligenciassem as substâncias, tempos e formas que devem entrar no culto, mas a própria prece, sob o pretexto de que o primeiro Ser não tinha necessidade dela e que bastava aos homens não fazer o que chamam de mal - ao passo que a prece é para o Ser intelectual o que a respiração é para o corpo. Talvez tivessem razão se seu pensamento pudesse ler no pensamento supremo, como ele lê no nosso, porque então, completos e garantidos os seus deleites, não teriam outra ocupação que a de saboreá-los e celebrar-lhes a doçura em algum combate empreendido para obtê-los. Mas, no estado atual do homem, há, entre o pensamento supremo e o seu, uma ação que os impede de se reunirem e ele só pode demolir e destruir essa Barreira através de um meio análogo a ela, ou seja: através de uma ação. Por fim, percebemos na própria Natureza física as provas de que os Seres devem render homenagem ao princípio da vida se quiserem receber socorros e benefícios. Para que a terra produza, é preciso que se ergam vapores de seu seio e que eles se unam às Virtudes celestes, descendo em seguida sobre a superfície para umedecê-la com o orvalho fecundo, sem o qual ela nada pode gerar. Lição viva, que ensina ao homem que há uma lei a seguir se ele quiser conhecer os direitos e as doçuras de sua existência. Ele só poderá alcançar isso quando seu ardor pelo verdadeiro fizer sair dele violentos desejos; quando desejos e movimentos criadores se elevarem das faculdades de seu Ser subindo até a fonte da luz e, depois de haverem dela recebido a unção salutar e sagrada, lhe trouxerem de volta as influências vivificantes que devem fazer germinar os tesouros da Sabedoria e da Verdade. Mas ao fazer o culto derivar do homem, de suas carências e da necessidade de combater o obstáculo que lhe serve de barreira, pareceria que estou admitindo uma multiplicidade inumerável de diversos cultos. Já que em geral o homem está exposto a carências tão diversas e variadas no Ser intelectual quanto no corporal, caminharíamos contra a ordem e a razão se quiséssemos determinar uma lei uniforme para as diferentes espécies de carências. Algumas palavras bastarão para fazer com que essa dificuldade desapareça. Se a unidade de um culto é uma verdade incontestável e fundada na própria unidade daquele de quem deve ser o objeto, tal unidade não exclui a multiplicidade dos meios aos quais a variedade infinita de nossas necessidades nos obriga a recorrer. Então o culto poderia receber extensões inumeráveis nos detalhes, sem deixar por isso de ser perfeitamente simples e sempre um em seu objeto: aproximar de nós aquilo que falta ao nosso Ser e é necessário à sua existência. Assim, quais são os Deuses do homem em sua infância e sua juventude? - são os objetos naturais e físicos; são os que lhe revelam a beleza; são seu pai e sua mãe; são aqueles que, guiando-o e sustentando-o em todos os passos, tornam-se para ele agentes visíveis da Divindade, porque, como sua inteligência ainda não está aberta às grandes verdades, ele só recebe suas noções através de sinais e agentes corporais, sensíveis como ele. Na idade madura, o homem sábio, admitindo idéias mais justas sobre a Divindade, não tarda a reconhecer que aqueles que foram os Deuses de sua juventude são, assim como ele, enfermos e impuros, que dependem também de um ser inteligente e invisível que a ele se demonstra pelo pensamento, fazendo-o compreender que recebeu a vida e a inteligência para, por sua vez, manifestar os títulos de seu verdadeiro Autor. Então concebe que, como ele próprio está encarregado de sua obra, produzi-la depende de seus próprios esforços, o produzi-la depende de sua própria inteligência. Concebe que o Ser supremo, por ser puro e sem mácula, deve ter Ministros puros e incorruptíveis nos quais a confiança do homem possa repousar sem risco nem inquietação. Mas embora vejamos que o culto do homem se diversifica nos diferentes estados, ou antes, que ele se estende e se eleva à proporção que vai descobrindo melhor a extensão e a natureza de suas verdadeiras necessidades, esse culto, enquanto conforme à ordem natural, é sempre um, já que tende sempre ao mesmo alvo: o de prover às necessidades do homem segundo os diversos estados pelos quais passa, fazendo isso segundo os meios mais verdadeiros e mais naturais dos quais seja suscetível. Pois os caminhos da Sabedoria são tão fecundos que ela se transforma a cada instante para estar na proporção exata em todas as nossas situações. E se pela plenitude de suas faculdades abraça todos os Seres, tempos e espaços, em qualquer posição em que nos encontremos, jamais deixar esgota-se a fonte de seus dons. E por mais multiplicados que eles sejam, têm todos a mesma unidade por princípio e por fim. De acordo com isso, seja qual for a superioridade apresentada por um culto, seria imprudente proibi-lo àqueles que, não tendo ainda atingido essa superioridade, exercessem os cultos menos perfeitos. Porque não apenas as leis da reabilitação dos homens estão sujeitas aos tempos e a uma ordem sucessiva quando se combinam com as leis das coisas sensíveis, mas ainda porque ignoramos se, sob aparências pouco imponentes, ele encontra luzes ocultas e secretas virtudes. Por fim, o homem não é o juiz da prece: é apenas seu gerador e órgão. Assim como as emanações dos corpos terrestres desaparecem para os nossos olhos materiais ao se elevarem nos ares - deixando-nos na incerteza tanto sobre seu curso quanto sobre o lugar que as espera na imensidão dos reservatórios da natureza - assim também as preces dos homens, não permanecendo na terra, tornam-se inacessíveis à nossa visão e aos nossos julgamentos. Não podemos pronunciar-nos sobre seu valor nem sobre o curso que seguem para se aproximarem da luz, nem sobre a posição que o primeiro dos Princípios lhes destina ao redor de seu Trono. Apesar da superioridade de um culto sobre os outros, talvez a Terra inteira participe nos direitos que distinguem o culto perfeito; talvez haja, em todos os Povos e instituições religiosas, homens que encontrem acesso junto à Sabedoria. E, longe de querer diminuir o número dos verdadeiros Templos do Eterno, devemos crer que depois dos dons universais por ele distribuídos em nossa morada, não há homem algum na terra que não possa, se o quiser, servir de Templo a esse grande Ser. Em qualquer lugar a que o homem vá, por mais isolado que esteja, há sempre três juntos, e esse número é suficiente para constituir um Templo. Deixemos, pois, de julgar os caminhos da Sabedoria e de traçar limites às sua Virtudes. Creiamos que os homens lhes são igualmente caros e que, se ela cumulou a alguns com seus favores mais preciosos e gratuitos, isso é uma razão a mais para eles lhe imitarem o exemplo, empregando para com os semelhantes a mesma indulgência. E essa indulgência, que nada mais é que o amor divino, é doce, benigna e nada proíbe, mesmo quando deixa os Seres em privação. Ah! Como poderia essa Virtude proibir? Ela é viva por si mesma e tende somente a multiplicar ao infinito a ordem e a vida que nela existem. É a única pela qual o homem pode adquirir uma idéia verdadeira e íntima de seu Ser, tanto no estado atual como no vindouro. É a única que desenvolve, ao mesmo tempo, todas as faculdades do homem. E é a única, talvez, pela qual o primeiro de todos os Princípios pode ser compreendido e afirmar-se em toda a sua grandeza. Do ponto ao qual chegamos, o Leitor pode ver estender-se o quadro das relações existentes entre Deus, o homem e o universo. O culto verdadeiro e os Agentes encarregados de o difundirem tiveram como alvo restabelecer a harmonia entre esses três Seres, mostrar ao homem o emprego das substâncias da Natureza e suas propriedades e retratar-lhe de maneira visível aquelas que existem nele mesmo e que, combinadas às outras virtudes naturais, devem ser a imagem e a expressão completa do grande Ser do qual tudo provém. Realmente, não podemos deixar de reconhecer essa cadeia imensa que liga os seres de todas as classes e que distribui a cada um deles as Virtudes necessárias. Na ordem física, vemos que as faculdades criadoras do grande Princípio produzem e vivificam os móveis da Natureza e estes espelham a atividade de seus modelos até às últimas subdivisões do Universo sensível, celeste e terrestre. Na ordem superior ou física, vemos que as virtudes pensantes desse mesmo Princípio universal repousam em Agentes intelectuais, de onde se transmitem aos homens privilegiados e a todos os ramos da posteridade do homem. Por fim, o próprio homem representa sem artifícios essa dupla atividade: ele é um quadro vivo das duas leis fecundas que servem para expor em substância todos os seres. Do interior de sua cabeça emana sem cessar um fluido poderoso e sensitivo que, descendo progressivamente nas diversas regiões de seu funcionamento animal, transmite força e ação até às fibras mais tênues e distanciadas de sua fonte radical. Do interior desse mesmo órgão, o homem sábio e puro sente nascer pensamentos luminosos e profundos. E exprimindo-os exteriormente em seus discursos, pode por meio deles vivificar os homens que o cercam e fazer com que as suas próprias luzes cheguem gradativamente a todos os pontos do círculo que habita. É claro, pois, que o homem apresenta em tudo a marca de seu Princípio, do qual é a expressão no Universo físico e no Universo intelectual. Percebemos também o alvo da Sabedoria na distribuição de seus dons benignos e o objeto de sua ação constante e contínua. Assim como as exalações insalubres da terra são perpetuamente corrigidas pelas influências físicas superiores, assim também os pensamentos falsos e pecaminosos dos homens e os dos seres corrompidos que com ele residem são contidos e purificados pelas impressões ativas da vida ou pelos Agentes virtuais, que devemos considerar como órgãos primeiros e necessários do culto e dos meios sensíveis concedidos ao homem para ajudá-lo a continuar cumprindo os Decretos supremos. Não é preciso deixar de revelar aqui que o culto e os meios sensíveis transmitidos ao homem pelos Agentes puros requerem, de sua parte, atenção muito vigilante, firmeza invencível e discernimento muito hábil para não confundir as ações verdadeiras, que devem animar o culto, com as ações falsas, que sempre tendem a desfigurá-lo, sempre prontas a extraviar o homem, de maneira visível ou não. Pois tanto no intelectual quanto no físico, diversas exalações insalubres, furtando-se à ação pura que as combate, costumam elevar-se acima da região onde deveriam permanecer sepultadas e é isso o que, em ambas as classes, gera as tormentas e as tempestades. Se fosse perguntado por quais indícios deveríamos reconhecer a qualidade boa ou má das ações intelectuais, eu aconselharia um estudo particular dessas diversas impressões, seja de pensamento, seja de sentimentos, à quais estamos diariamente expostos e que por sua variedade nos ocasionam tantas incertezas. Com isso, descobriríamos que quando o homem está limitado pelas impressões sensíveis materiais ou pela impressão intelectual falsa, de nada pode ter certeza. Essas duas classes estão submissas a várias ações todas relativas, sem que nenhuma delas seja fixa, e assim expõem os seres que recebem seus ataques a nada distinguirem de positivo, a somente emitirem julgamentos confusos ou a permanecerem na mais tenebrosa dúvida. Mas quando o homem recebe a impressão intelectual boa, não pode cair nos mesmos erros porque a ação do Ser intelectual puro, sendo sensível, leva consigo a prova de sua simplicidade e de sua unidade e, como conseqüência, de sua realidade. Veríamos então que, como essa realidade se encontra apenas no Ser puro e verdadeiro que é seu depositário, é somente nele e somente por ele que podemos aprender a conhecê-la. Veríamos também que, quando se operam semelhantes impressões, o homem fica protegido de qualquer incerteza e de qualquer equívoco: os olhos impuros estão sujeitos a enganos, visto que só vêem os resultados mistos e compostos. Mas os olhos puros da inteligência não se enganam jamais, porque vêm os princípios, que são simples. Finalmente, saberíamos que, por um desses favores concedidos ao homem em sua penosa carreira para lhe servirem de guia, as impressões intelectuais falsas estão submetidas a leis semelhantes às da ordem física e material e que, assim como os corpos - que depois de terem exibido uma aparência graciosa e leve acabam por tornar-se feios e disformes - também na classe intelectual os Quadros impuros mais sedutores não tardam a decompor-se e a manifestar sua ilegitimidade. É tudo o que posso dizer sobre esse ponto. Resumamos em poucas palavras as verdades que acabam de ser expostas. Elas nos ensinam que, por causa de seu amor pelo homem, a Sabedoria teve de conservar-lhe raios proporcionais à debilidade de sua visão - mesmo quando pela primeira vez ele desviou os olhos de sua luz - e que, a qualquer grau que o crime o tivesse feito descer, ele só poderia cair nas mãos de Deus. E mesmo não sendo importunado, como nós, pelas idéias falsas e pelos véus de trevas que sua infeliz posteridade não pára de acrescentar à degradação original, por mais criminoso que isso seja, ele estava ainda bem mais próximo que nós desse Deus que o formara. Podia perceber melhor a fonte pura da qual acabara de separar-se. Não padecia, como nós, no nada e na insensibilidade dos males que nos devoram. E tanto isso é verdade que só sentimos pesares pelo estado de nossa primeira existência na mesma medida em que o primeiro homem sentiu, ao mesmo tempo, pesares e remorsos. À medida que se multiplicava a posteridade do homem e o tempo se escoava, a grandeza e a bondade da Sabedoria suprema tiveram de manifestar-se cada vez mais, colocando junto dele Imagens vivas de si mesma ou Agentes suficientemente virtuais para levá-lo a recuperar a semelhança. Os Agentes tiveram de iniciá-lo nos atos que eles mesmos exerciam, pois os atos eram instituídos para ele, para ajudá-lo a separar de si o que contraria a sua verdadeira natureza e aproximar-se do que falta para atingir a perfeição e a vida de seu Ser; para apresentar-lhe a visão das Virtudes a serem contempladas em sua unidade quando do estado glorioso do homem, tornando-o capaz de exprimi-las na sua pureza e com isso cumprir seu destino e o Decreto que o primeiro dos Princípios pronunciara sobre ele ao dar-lhe existência. É aí que reconheceremos as bases e os caminhos apresentados à vontade do homem para levar a cabo sua obra. Pois, assim como essas bases seriam inúteis se a vontade do homem não tirasse proveito delas, também a vontade do homem, sendo embora o princípio móvel de sua obra, permaneceria sem eficácia se não tivesse bases em que exercesse sua ação. Foi isso o que fez com que alguns Anciãos dissessem que as Preces sagradas nos tinham sido dadas pelos Deuses. Mas há um gênero de preces destinadas a nos fazer conseguir esses dons preciosos: as preces da dor, que não podem vir-nos do centro superior e supremo, visto que ele não sofre. "A Sabedoria infinita tomou, entretanto, o cuidado de antecipar-se à nossa fraqueza e à nossa negligência para satisfazer à necessidade que temos da prece, mas alguns pensam que ela colocou na terra um animal que só canta a horas marcadas e freqüentes a fim de avisar os homens para que se apliquem a essa salutar ocupação." Tal é o quadro das leis e das verdades por nós estabelecidas com solidez, com apoio nas relações e na natureza do seres. Procuremos confirmar-lhe a evidência pela universalidade dos signos e dos indícios visíveis por elas oferecidos entre todos os Povos da Terra. 0 A sublime origem do homem, sua queda, o horror da privação atual, a necessidade indispensável de que Agentes invisíveis trouxessem socorros superiores à Terra e empregassem meios sensíveis para tornar eficazes as virtudes, eis tantas outras verdade gravadas de tal forma no homem que todos os povos do Universo as celebraram, deixandonos tradições que as confirmam. Todas as narrativas históricas, alegóricas e fabulosas encerradas nessas tradições falam do primeiro estado do homem na sua pureza, dos crimes e da punição do homem culpado e degradado. Expõem com igual evidência os favores das Divindades para com ele a fim de minorar-lhe os males e libertá-lo das trevas. Não bastou a deificação dos homens virtuosos que deram aos semelhantes os exemplos de justiça e benignidade e que com suas ações reproduziram alguns vestígios de nossa primeira lei. Não se receou fazer as próprias Divindades descer à Terra para levarem ao homem os socorros superiores que não podiam ser dados a conhecer pelos Heróis mortais e para exortálo a tornar-se semelhante a elas, como o único meio de ser feliz. Ao mesmo tempo, aqueles que tiveram o cuidado de nos transmitir tais narrativas são acordes em representar as Divindades benignas sob formas sensíveis e análogas à região em que habitamos, porque sem isso seus socorros teriam ficado, de algum modo, perdidos para os seres corporificados da forma tão grosseira como nós. E em todas as Nações os socorros das Divindades benignas foram celebrados através de cultos. Quem ousaria mesmo garantir que todas as leis, usos, convenções sociais, civis, políticas, militares e religiosas que vemos estabelecidas na Terra não sejam vestígios claros das instituições primitivas? Que não sejam emanações, alterações ou degradações das primeiras dádivas feitas ao homem após a queda para trazê-lo de volta ao Princípio? É preciso não esquecer que os homens tudo podem alterar e tudo corromper, mas que nada podem inventar. Teríamos, pois, diante dos olhos, um meio a mais para ler e reconhecer em todas as obras do homem a lei que lhe diz respeito e à qual ele devia ligar-se, visto que, apesar das diferenças infinitas na forma das instituições humanas em todos os lugares da Terra, todas têm o mesmo alvo, o mesmo objetivo, sendo esse alvo manifesto em tudo o que o envolve. Entretanto, é preciso admitir que as tradições alegóricas e fabulosas, à força de quererem tornar os Deuses semelhantes ao homem, com freqüência conferiram-lhes suas paixões e vícios; fizeram-nos agir como os seres mais corrompidos e, aviltando-os assim aos nossos olhos, acabaram perdendo todos os direitos à nossa crença. Mas não devemos sentir que, se a Mitologia se manifesta sob aparências ridículas, tais como os furores, o ciúme e o ardor dos sentidos - que parece ser quase o único móvel dos Deuses e Heróis - é que, por ser um quadro universal, ela dever expor os males e os bens, a ordem e a desordem, os vícios e as virtudes que circulam na esfera do homem. Além disso, as interpretações errôneas das palavras e a ignorância de seu verdadeiro significado conferiram às narrativas simbólicas uma multidão de sentidos ambíguos e forçados que não possuíam na origem, quando representavam objetos tão regulares, elevados e respeitáveis quanto hoje esses símbolos nos parecem imperfeitos, ridículos e merecedores de desprezo. É dessa maneira que podemos explicar em parte as contradições apresentadas pela Mitologia. A ignorância do verdadeiro sentido dos nomes levou a atribuir ao mesmo Ser, a um Herói, a uma Divindade, feitos e ações que pertenciam a seres diferentes. Não devemos, pois, ficar surpresos se virmos o mesmo personagem mostrar em suas ações ora o orgulho e a ambição dos seres mais culpados, ora o mais vergonhoso excesso de libertinagem, ora as virtudes dos Heróis e dos Deuses. Não devemos espantar-nos se virmos o Júpiter mestre do Céu, Chefe dos Deuses terrestres, seus irmãos, e o Júpiter entregue às paixões mais viciosas; se virmos Saturno ao mesmo tempo como Pai dos Deuses e devorando seus filhos; e se virmos a Vênus Urânia e a Vênus Deusa da prostituição. Assim, embora encontremos todos os feitos e tipos reunidos na Mitologia, embora ela apresente, sob o mesmo nome, vários quadros opostos, a inteligência deve discernir-lhes as cores e os verdadeiros objetos. Ainda assim, eu mostraria agora mesmo um ponto de vista claro sobre esse objeto importante, com o qual descobriríamos soluções satisfatórias, porque nele veríamos que é do próprio homem que sai a verdadeira fonte de todas as Mitologias. Não é preciso procurar fora dele a origem natural dos fatos submetidos às suas especulações. Se refletíssemos sobre a universalidade das opiniões dos Povos com relação às manifestações visíveis das Potências divinas, sobre as provas apresentadas de que elas são necessárias ao cumprimento dos Decretos supremos e sobre os vestígios que nos restam de quaisquer instituições estabelecidas na Terra, ficaríamos bem dispostos a crer que tais manifestações realmente ocorreram entre os homens. Confirmaremos essa idéia se considerarmos que se encontram tradições parecidas entre os Povos separados de nosso continente por distâncias consideráveis e mares imensos, entre as Nações que respiraram o mesmo ar que nós e que usufruíram do mesmo sol durante muitos séculos, sem nos conhecerem e sem serem por nós conhecidas. Os diversos Povos da América tinham idéias uniformes sobre a criação do Universo e sobre o número que lhe dirigiu a origem. Admitiam, como os povos Antigos, uma multidão de Deuses benignos e malignos a preenchê-lo e aos quais ofereciam numerosas vítimas em sacrifício. Concordavam com todos os Povos sobre a perfeição de um estado anterior do homem, sua degradação e o destino futuro dos bons e dos maus. Tinham Templos, Sacerdotes, Altares e um fogo sagrado mantido por Vestais submetidas a leis severas, como entre os Romanos. Os peruanos tiveram chefes visíveis, que, como Orfeu, diziam-se filhos do Sol, ganhando as homenagens de suas regiões. Tinham um ídolo cujo nome, segundo os Intérpretes, significa três em um. Os mexicanos tinham um ídolo que consideravam como um Deus que tomara um corpo em favor da Nação. Talvez bastasse mudar os nomes para encontrarmos nesses povos a mesma teogonia e tradições que existem desde a mais remota antigüidade no Velho Mundo. Se a persuasão das manifestações visíveis das potências divinas e de suas necessidades não fosse no homem um sentimento essencial e análogo à sua própria natureza, essas opiniões seriam transmitidas apenas pela tradição, progressivamente. Não teriam existido entre esses Povos se eles jamais se houvessem ligado a nós por algum elo, ou teriam sido apagadas da lembrança deles com o correr do tempo, já que as tínhamos compartilhado com eles em tempos tão primitivos, depois de nossa separação. Com essa alternativa não pretendemos fortalecer as incertezas e desconfianças que posam ter reinado sobre a diversidade de origem de todos esses Povos. Hoje17 não há mais dúvida de que o norte da Ásia se comunica estreitamente com o norte da América, de que o estreito que separa esses continentes não esteja repleto de Ilhas que lhes tornam mais fácil a comunicação, enfim - de que seus habitantes não comerciem juntos e até mesmo de que no norte da Ásia não haja Povoamentos americanos. Independentemente dessa via de comunicação entre os dois continentes, é preciso crer que, no intervalo transcorrido desde os primeiros séculos, vários Navegadores, do Oriente ou do Ocidente, foram lançados a essas praias desconhecidas, onde, criando povoamentos diferentes em diversos lugares, lhes terão transmitido os vícios e as virtudes, a ignorância e as luzes que traziam. 17 1782. (N.T.) Se considerarmos a diversidade das Nações que habitavam a América, a variedade extrema de seus costumes, usos, línguas e mesmo de suas faculdades físicas; se considerarmos que a maior parte dessas Nações ou famílias eram desconhecidas umas das outras, sem mostrarem indício algum de um dia ter havido relações entre elas, demonstraremos sem dificuldade que devem a existência a vários náufragos ou a emigrações do antigo continente, tendo seus antepassados sido atirados a essas costas em épocas diversas e em séculos distantes. Sem nos determos por mais tempo nessa questão, e seja qual for a maneira pela qual esse povoamento aconteceu, não podemos deixar de reconhecer uma unidade de origem primitiva nos Povos cujas distintas espécies podem procriar conosco e cujos frutos, provenientes dessas alianças, procriam por sua vez; nos Povos onde descobrimos os vestígios das verdades que já afirmamos sobre a necessidade da manifestação das faculdades e potências do Ser divino no Universo e perante os homens, e nos Povos totalmente semelhantes a nós por sua natureza, suas idéias fundamentais e tradições. Digamos mais: mesmo que sua origem primitiva não fosse comum à nossa, assemelhando-se eles a nós, devem participar nas mesmas vantagens. Se são homens, se como nós estão privados e necessitados do Ser superior e universal que os formou, esse Ser une-se a eles como a todas as suas outras criações. Assim, mesmo que jamais tivessem tido comunicação alguma com nosso continente, o Ser sempre poderia ter feito chegar a eles as provas e manifestações de seu amor e de sua sabedoria. Quanto à antigüidade dos tempos em que as manifestações das Virtudes superiores começaram a operar entre os homens, as tradições da maior parte dos Povos antigos nos oferecem ainda índices mais seguros. A origem dos Povos está quase sempre envolvida num véu maravilhoso e sagrado. Quase todos se dizem protegidos por alguma Divindade que lhes presidiu ao nascimento, e até mesmo descendentes dela, que os estabeleceu e os sustém por um poder invisível. Isso não nos mostra que há muito tempo o olho da Sabedoria vela sobre o homem apesar de seu crime? Não nos diz que, desde o instante em que o homem se tornou culpado e infeliz, a luz apressou-se a vir-lhe ao encontro repartindo-se, por assim dizer, a fim de ficar ao seu alcance e não deixando, desde então, de espalhar os mesmos benefícios em toda a sua posteridade? A partir das tradições, não seria tão fácil determinar o número de atos solenes de manifestação feitas pelas Potências divinas entre os homens desde essa primeira época. Não estando de acordo neste ponto, as doutrinas antigas, fazem surgir dúvidas sobre a maior parte dos Agentes que nos apresentam, de modo que ficamos reduzidos a pensar que possa haver algumas doutrinas cuja memória a tradição não nos tenha transmitido e que vários daqueles que elas declaram como verdadeiros Agentes da faculdades supremas jamais existiram, ou não passaram, talvez, de impostores. Certamente as observações bem atentas e fundadas sobre o conhecimento das verdadeiras leis dos Seres poderiam servir-nos de guia para numerar essas manifestações e calcular-lhes as épocas. Segundo as noções mais naturais, devem ser iguais e relativas ao número das faculdades e virtudes abandonadas pelo homem, ou seja: análogas à verdadeira natureza do homem, cujos complemento e exatidão devem operar por seu número. Mas a geração presente ainda não chegou a esse ponto. As falsas idéias que concebeu sobre o homem e seu destino fecham-lhe mais uma vez as rotas que conduzem ao Santuário da Verdade. Pelas mesmas razões não devemos ficar surpresos se o sentido sublime que deixamos entrever nas tradições mitológicas dos Povos antigos parecesse imaginário à maior parte das pessoas. De tal forma elas perderam de vista a ciência de seu Ser e a de seu Princípio que não mais conhecem quaisquer das relações que os ligarão eternamente um ao outro. De fato, nas narrativas mitológicas o vulgo só vê um jogo de imaginação dos Escritores ou a corrupção de tradições históricas, ou talvez os efeitos da idolatria, do temor ou da tendência que dos Povos para com os feitos maravilhosos. Assim, excetuando-se algumas alegorias engenhosas, tudo na fábula lhe parece bizarro, ridículo ou extravagante. Homens estimáveis, colocados na classe dos Sábios, empregaram a mais vasta erudição para a esse respeito estabelecer sistemas mais sensatos do que a opinião comum. Mas, como não se aprofundaram bastante na natureza das coisas, sua doutrina permanece, por mais imponente que possa ser, abaixo das tradições que tentaram interpretar. Não podemos emitir outro julgamento sobre os que limitaram o sentido das tradições mitológicas exclusivamente a um objeto inferior e isolado e que se esforçaram por fazer ver nele, em todas as situações, o sistema particular que haviam abraçado, sem percebermos que as tradições, por não possuírem todas o mesmo caráter, não podiam tolerar a mesma explicação;. sem percebermos que umas, ligadas à alta antigüidade, encerravam os emblemas das verdades mais profundas; que outras, muito mais modernas, só deviam a existência à superstição e à ignorância dos Povos que, não tendo compreendido as tradições primitivas, alteraram-nas, confundindo-as com as tradições posteriores e particulares de cada Nação; que a mistura dessas tradições, os preconceitos dos Historiadores e os frutos da imaginação dos Poetas lhes haviam aumentado a obscuridade. De modo que, longe de querer concentrar a Mitologia num objeto particular, deveríamos antes admitir que ela apresenta fatos que não têm analogia alguma. E se se permite que os Observadores nela busquem relações com a classe das coisas que lhes são conhecidas, a razão nos proíbe que sejamos cegos para não vermos nada além e reduzirmos emblemas que podem ter um alvo mais vasto e mais elevado a um objeto inferior e com limitações. Ela se opõe, bem mais ainda, a que se dêem a essas tradições e emblemas um sentido e alusões que jamais poderia convir-lhes. São essas aplicações falsas e estreitas que tenho o propósito de destruir a fim de elevar o pensamento do homem a interpretações mais justas, mais reais e mais fecundas. Entretanto, para não mais nos desviarmos de nossa marcha, da qual essas observações são meros acessórios, limitar-nos-emos a examinar os dois principais sistemas mitológicos, o que bastará para fixar nossa opinião sobre todos os outros. O primeiro desses sistemas apresenta, em todas as Fábulas da Antigüidade, símbolos dos trabalhos campestres, indícios do tempo e das estações próprias à Agricultura e todas as leis que a Natureza terrestre e celeste é forçada a seguir para o crescimento, a manutenção e a vida das produções da vegetação. Tendo concebido esse sistema, os Observadores fizeram esforços admiráveis para justificá-lo, nele encontrando relações com todos os detalhes da Mitologia. Mas, para perceber-lhe a imperfeição, um pouco de atenção será o suficiente. Em tempo algum e em Povo algum se viu fazerem figuras que fossem mais belas e mais nobres do que as coisas figuradas. Se pretendêssemos que o homem empregou o superior como emblema do inferior ao imaginar símbolos e hieróglifos mais elevados e mais espirituais do que o objeto que queria designar, não estaríamos lançando por terra todas as noções que temos da marcha do espírito do homem? Pelo contrário, não é certo que o verdadeiro alvo do símbolo seja o de velar ao olhos do vulgo alguma verdade, cujo emprego errôneo ou profanação deveríamos temer se ela fosse revelada? De fazer com que aquele que não é digno dessa verdade tenha dificuldade em descobri-la ou em subir até ela através do símbolo, enquanto os ditosamente preparados perceberão com um relancear de olhos todas as relações que ele encerra? Não é certo que os símbolos e os hieróglifos são quadros ou signos destinados a fazer com que as verdades e as Ciências úteis se tornem sensíveis à maioria das pessoas, tornando-se compreendidas por aqueles cujo espírito limitado não poderia percebê-las nem conservar-lhes a lembrança sem o socorro dos signos grosseiros? Essas definições simples demonstram de modo satisfatório que os emblemas, as figuras e os símbolos não podem ser superiores e nem mesmo iguais a seus tipos, porque então a cópia se elevaria acima do modelo, ou poderia confundir-se com ele - o que a tornaria inútil. Basta, pois, comparar a maior parte dos emblemas mitológicos aos tipos que os Intérpretes quiseram dar-lhes para decidirmos, de acordo com a inferioridade dos tipos, se sua aplicação pode apresentar alguma exatidão. Examinemos o que parecer mais nobre e mais engenhoso, ou os detalhes grosseiros e mecânicos da Lavoura ou das Pinturas vivas nas quais se representam todas as paixões e onde são personificados todos os vícios e virtudes. Examinemos, além disso, se podemos considerar as constelações celestes e suas influências sobre os corpos terrestres, com referência à vegetação, como o tipo da Mitologia. Como essa opinião apresenta a mesma inferioridade do tipo quanto à figura, os mesmo motivos a tornam inadmissível. Quanto aos signos astronômicos vulgares, sobre os quais gostaríamos de fixar exclusivamente o nosso pensamento, digamos que, por ignorância, o homem estabeleceu quase todos eles em divisões ideais, com nomes arbitrários de animais, personagens e outros objetos sensíveis. Imaginárias e convencionais, as relações que deles nos são apresentadas não oferecem a idéia de um verdadeiro tipo, não passando de figuras vagas, estranhas aos Verdadeiros signos astronômicos e às Virtudes que lhes servem de móveis. Isso deve bastar para abrir os olhos àqueles que, por perceberem apenas um objeto isolado nas tradições das fábulas, crêem que a Mitologia dos antigos deve a origem somente à Agricultura e à Astronomia. O erro provém de que, posteriormente, alguns símbolos dessas duas Ciências foram confundidos com as tradições simbólicas primitivas. Com isso, os homens se viram ainda mais afastados das verdades simples e importantes que formavam o objeto dessa tradições. Assim, sem pretender negar os poucos símbolos fornecidos à Mitologia pela Agricultura e pela Astronomia, podemos prestar um serviço aos nossos semelhantes advertindo-os de que essas tradições, tais como as recebemos dos Antigos, encerram um infinidade de outros símbolos para os quais é totalmente impossível admitir o mesmo sentido e as mesmas relações, porque seu tipo não se encontra na terra, nem nos astros, ou em qualquer Ser corpóreo. Aqueles que propuseram essas interpretações da Mitologia também fizeram originar dela a Arte da Escrita e da Pintura como transmissoras dos signos visíveis das leis e dos fatos cuja memória e inteligência as Nações queriam perpetuar. Explicaram por esse mesmo princípio todos os símbolos da idolatria, pretendendo que as figuras hieroglíficas por ela empregadas não passavam da repetição simbólica de seu culto. Acreditaram encontrar provas disso nas tradições dos hebreus, nas quais um Profeta fala das Pinturas sacrílegas que vira nos muros do Templo de Jerusalém, diante das quais os Anciãos de Israel, e o próprio Sumo Sacerdote com o incensório nas mãos, pareciam oferecer sacrifícios pecaminosos. Tudo o que poderemos dizer sobre essa interpretação é que seria de se desejar que ela fosse tão verdadeira quanto é engenhosa. Antes de mim, outros observadores refutaram o sistema que acabo de combater com referência à agricultura, mas, depois de o terem destruído, não lhe colocaram outro no lugar. Dizer aos homens que a Mitologia só quis retratar o fogo vivo da Natureza com o único objetivo de dele disporem para reparar as próprias forças e conservar a forma corporal dálhes, na verdade, uma grande idéia, mas não lhes dá o complemento da verdade: os homens têm ainda um destino mais elevado. Assim, caímos no caso dos Filósofos herméticos, cujos dogmas e doutrinas vamos observar. A regra que exige serem os tipos superiores às figuras, símbolos e hieróglifos aplica-se igualmente à opinião daqueles que nas tradições antigas só vêem procedimentos da Arte hermética e que nas Divindades da Mitologia só percebem os emblemas das matérias ou das substâncias primeiras, sobre as quais pretendem operar. O alvo mais geralmente conhecido da Arte hermética jamais se eleva acima da matéria. De ordinário, limita-se a dois objetos: aquisição de riquezas e prevenção e cura das enfermidades, o que, segundo a vontade de seus Sectários, não impõe mais limites aos desejos e ao poder do homem, permitindo-lhe esperar dias felizes e de duração infinita. Alguns partidários dessa sedutora Ciência em vão pretendem conseguir através dela uma Ciência ainda mais nobre, que os elevaria acima dos adeptos, assim como estes estariam acima do vulgo. Tais homens, mui louváveis em seus desejos, deixam de sê-lo quando levamos em conta o caminho pelo qual procuram cumpri-los. Qualquer substância só pode produzir frutos de sua natureza, e mui certamente os frutos pelos quais esses homens parecem suspirar são de natureza bem diferente das substâncias que submetem às suas manipulações. Se a Arte hermética não vai além dos objetos materiais, tal arte não está situada numa classe mais elevada do que a agricultura. Os signos e símbolos da Mitologia lhe são igualmente estranhos, já que apresentam a linguagem da inteligência e dão vida e ação a faculdades desconhecidas da matéria. Aqueles que acreditaram ver tantas relações entre coisas tão diferentes apenas as confundiram ao se deixarem seduzir pela uniformidade das leis que lhes são comuns. É preciso observar tempos, graus, medidas, pesos e quantidades para a direção dos procedimentos herméticos. É preciso igualmente um peso, um número e uma medida para nos dirigir de conformidade com as leis da nossa Natureza inteligente. É preciso correção e exatidão extremas em todas as operações herméticas. É preciso, muito mais ainda, seguir uma ordem fixa e regular na caminhada intelectual. Foram essas semelhanças que iludiram os Observadores. Atribuíram a operações absolutamente materiais uma multidão de princípios que só podiam convir a objetos superiores por sua ação e por todas as propriedades que lhes são inerentes. Com isso, não há dúvida de que eles aviltaram os antigos símbolos, em vez de no-los explicarem. O desprezo dos Sectários da Ciência hermética vem do fato de que, tanto na doutrina quanto na obra, eles sempre confundiram duas Ciências perfeitamente distintas. O amor do princípio supremo apresentara aos homens as leis na Natureza material apenas para ajudá-los a reconhecer os vestígios do modelo que haviam perdido de vista. Pelo contrário, os Filósofos herméticos serviram-se dessa semelhança entre o modelo e a imagem para confundi-los e formar com eles um único Ser. Enganados por essa idéia precipitada, os Filósofos herméticos não viram que a simples Física material, à qual aplicaram todos os seus esforços, não merecia esses mistérios nem a linguagem enigmática e velada apresentada pelos antigos símbolos. Não viram que, se existia uma Ciência digna do estudo e das homenagens do homem, era aquela que colocava em evidência a sua grandeza, esclarecendo-lhe a origem e a extensão de suas faculdades naturais e intelectuais. Podemos dizer, pois, que se o objeto deles não é quimérico em todos os sentidos possíveis, o caminho que seguem é pelo menos muito estranho ao verdadeiro emprego a ser feito pelo homem e completamente oposto ao da verdade que todos parecem honrar. Em primeiro lugar, atacam essa verdade pretendendo igualá-la em sua obra e procurando fazer as mesmas coisas que ela, mas sem seguir sua ordem, embora se defendam dessa incriminação dizendo, com razão, que não crêem em nada. Em segundo lugar, atacamna da maneira mais insensata, procurando realizar sua obra por um caminho oposto ao por ela seguido em todas as criações. Assim, não agindo por um caminho virtual, tentam em vão obter o esboço de todas as Naturezas, retirando somente frutos mudos, silenciosos, sem vida e sem inteligência, diante dos quais se prosternam, é certo, como se os tivessem recebido da própria Verdade. Mas deixariam de exaltá-los se lhes conhecessem a fonte e a origem e, mesmo gozando desses frutos, lamentariam os procedimentos obtê-los e a mediocridade das vantagens que deles podem esperar. De fato, os procedimentos da Arte hermética não podem abalar a sede do Princípio sem abalar o próprio Princípio, uma vez que é nele que ele reina e age. Ora, querer governar o Princípio dos Seres materiais por uma outra ação além da que é análoga à sua própria essência não implicaria em manter uma marcha absolutamente contrária à natureza dos Seres? Não se viola com isso a ordem estabelecida, tanto pela Natureza temporal material quanto pela Natureza temporal imaterial? Além disso, como esse Princípio é acionado por uma outra lei além da que lhe é própria, recebendo assim um abalo fraco e passageiro, da mesma forma não apresenta senão uma ação fraca e passageira. Eis por que os resultados só falam à visão, por que motivo só podemos percebê-los a favor da luz elementar natural ou artificial, por que é que eles só têm um tempo e por que motivo, passado esse tempo, não se manifestam mais. E também por que motivo eles não têm nenhuma das condições indispensáveis para serem verdadeiros, para fornecerem provas de que foram trazidos à luz através do bom caminho e para mostrarem que têm em si, efetivamente, o germe de seu fogo e sua vida. Isso, eu sei, só será compreendido pelo Filósofos herméticos e por homens instruídos nas Ciências mais profundas e essenciais que a deles. Entretanto, os que ignoram os procedimentos da Arte hermética e nem conhecem quaisquer dos frutos que dela podem provir, esses irão entender-me o suficiente para aprenderem a discernir tais frutos, se um dia tiverem ocasião de percebê-los, e para se manterem em guarda contra o uso incorreto das expressões empregadas pelos Partidários dessa Ciência. Pois, dentre eles, alguns pareceriam hábeis e persuadidos para serem perigosos. Mas seria possível que fossem de boa fé ao renderem culto às substâncias corruptíveis e ao dissimularem que buscam com tanto ardor um espírito que seja matéria senão para poderem dispensar aquele espírito que não o é? O uso incorreto de expressões, a confiança, ou antes, as ilusões, mostram-se claramente nas pretensões da maior parte do Filósofos herméticos que se gabam de serem capazes de operar sobre a matéria prima. Todos os procedimentos sensíveis e materiais, longe de cair na matéria prima, só poderão acontecer na matéria segunda e mista, visto que a matéria prima não é sensível às nossas mãos, nem aos nossos olhos, nem a quaisquer de nossos órgãos, que não passam de matéria segunda e composta. Além do mais, que desproporção haveria entre o fogo grosseiro e já determinado por eles empregado e o fogo fecundo e livre que serve de agente da Natureza? E que podem eles esperar de seus vãos esforços se comparam o objeto de seus desejos com o que receberiam pela fruição e pelo emprego de um fogo mais puro e menos destruidor? Não repetiremos o que foi dito na Obra já citada sobre a diferença entre a matéria prima e a matéria segunda, ou, se quisermos, sobre a diferença entre os corpos e o seu Princípio. Basta dizer que a matéria prima, ou Princípio dos corpos, é constituída por uma lei simples e participa da unidade - o que a torna indestrutívelenquanto a matéria segunda, os corpos, são constituídos por um lei composta, que jamais se mostra nas mesmas proporções e que, por isso, torna incertos e variáveis todos os procedimentos materiais do homem. Por não terem feito essas distinções importantes, os Filósofos herméticos a todo instante são vítimas de seu primeiro engano. E assim como seu progresso, sua doutrina induz em erro todos aqueles que se deixam seduzir pelo maravilhoso dos fatos apresentados. Seu costume de usar a prece para o sucesso da obra e a persuasão de jamais poder consegui-la sem esse caminho, não deve impressionar-nos. É aqui onde seu erro se manifesta com mais evidência, já que o trabalho, limitando-se a substâncias materiais, não se eleva acima das causas segundas. Ora, como as causas segundas estão, por sua natureza, abaixo do homem, não o enganaremos se lhe dissermos que ele é feito para dispor delas. Se os Filósofos herméticos têm experiência e conhecimentos suficientes para prepararem de maneira conveniente as substâncias fundamentais de sua obra, e se essa obra for possível, devem então chegar a ela com segurança, sem que para isso seja preciso interpor outra Potência, a não ser a já inerente a toda matéria e que constitui sua maneira de Ser. Aliás, isso é um perigo quase inevitável, ao qual o Filósofo hermético está exposto: ao fazer preces por sua obra, muitas vezes acontece que ele faz preces à própria matéria. Quanto mais perfeitos e libertos de substâncias grosseiras parecerem os frutos obtidos, tanto mais ficará tentado a crer que eles se aproximam da Natureza divina: como os seus sentidos vêem algo de superior ao que ele ordinariamente percebe, fica seduzido pelas aparências e crê ter motivos bem legítimos para justificar o erro. Por esse caminho, os Filósofos herméticos, mergulhando em novas trevas, perpetuam as tristes conseqüências de seu entusiasmo e suas prevenções. Detenho-me pouco no motivo que os impede de revelarem seus pretendidos segredos, pelo temor que fingem ter de que, se sua ciência se tornasse universal, aniquilaria as Sociedades civis e os Impérios, destruindo a harmonia que parece haver na Terra. Como poderia a ciência deles tornar-se universal se, conforme ensinam, ela é o quinhão do pequeno número de Eleitos de Deus? E além do mais, que teriam a lamentar as Sociedades civis e os Impérios se, mudando de forma, encerrassem em seu seio apenas homens virtuosos e bastante instruídos para saberem afastar de seus corpos as enfermidades, do coração os vícios e do espírito a ignorância? Reunindo a todas essas observações a grande lei da inferioridade que os símbolos devem ter para com o próprio tipo, reconheceremos que a filosofia hermética não foi o primeiro alvo nem o tipo real das alegorias da Fábula. Seria totalmente inverossímil que a natureza do homem esclarecido o tivesse levado a imaginar que as Divindades interviessem para encobrir uma Ciência que se contradiz e as injuria; uma Ciência que nutre o homem com a esperança da imortalidade e que o isenta de recebê-las das mãos das Divindades; que lhe promete, sem o socorro delas, os direitos mais eficazes sobre a natureza; que, tanto quanto lhe seja possível, deve ser encontrada nas simples leis das substâncias elementares e, por isso, inferiores à ciência verdadeiramente própria ao homem; que, se tiver uma fonte mais elevada, não estará mais à nossa disposição. Finalmente, uma Ciência que encerra, somente em si, mais ilusões e perigos do que todas as outras Ciências materiais em conjunto, porque, mesmo sendo falsa como elas na base e no objeto, no entanto tem mais semelhança com a verdade por seus procedimentos, doutrina e resultados. Se nas diversas classes de filósofos herméticos houver quem pareça empreender um vôo mais elevado, pretendendo atingir a obra sem empregar qualquer substância material, não poderemos negar que sua marcha seja muito distinta. Mas não acharemos o objeto mais digno deles, nem o alvo mais legítimo. 1 Quanto mais demonstrei com evidência que a Agricultura e a Ciência hermética não foram o objeto dos emblemas e alegorias, mais me empenhei em mostrar claramente qual pode ser seu verdadeiro alvo. Vários Observadores já deram às tradições uma interpretação mais viva, mais nobre e mais análoga a nós mesmos do que as que acabamos de percorrer. Não temo enganar-me ao adotar abertamente a doutrina desses judiciosos Intérpretes. Quanto mais sublime for ela, menos erro haverá em nos aproximarmos deles. O homem, sua origem, seu fim, a lei que deve conduzi-lo a seu termo, as causas que dele o mantêm afastado e a Ciência do homem, indissoluvelmente ligada à do Primeiro dos Princípios - eis os objetos que os Autores das Tradições primitivas quiseram retratar, a única coisa que pode enobrecer e justificar seus símbolos, o único tipo digno dos mesmos, porque aqui o tipo é superior à alegoria, embora a alegoria convenha perfeitamente ao tipo. Nenhum homem instruído sobre sua verdadeira natureza e que busque penetrar o sentido das Tradições mitológicas deixará de perceber nelas, com uma espécie de admiração, os símbolos dos fatos mais importantes para a espécie humana e mais análogas a si mesmo. Alcioneu, Pandora, Deucalião, Sísifo, as Danaides, Hércules, a Túnica de Nesso, o Caduceu, Argos, as Parcas, os Campos Elíseos, o rio Letes, o número dos circuitos do Estige, Sêmele consumida pela presença de Júpiter em sua glória, Pigmalião, Circe, os Companheiros de Ulisses, Tirésias cegado instantaneamente por haver visto Palas vestindo-se, os Centauros - em suma, quase todos os detalhes da Mitologia oferecem ao homem instruções profundas que o confirmam na Ciência por ele obtida com seus esforços. Mas não terão esses símbolos outro fundamento além da imaginação ou do gênio dos que nolos transmitiram? Os Mitólogos propuseram-se voluntariamente semelhantes quadros ou receberam os planos todos traçados? É uma questão que importa resolver. Simples relações entre os diferentes episódios da Mitologia e a história do homem não irão mostrar-nos uma ciência suficientemente ampla nem suficientemente certa se não alçarmos o pensamento até sua origem. Para fazer isso com sucesso, lembremonos de que a epígrafe deste escrito nos impõe a lei de explicar as coisas pelo homem, e não o homem pelas coisas. Ao considerarmos aqui o homem em sua natureza inteligente, repetiremos que hoje ele está sujeito a receber uma grande quantidade de pensamentos diversos: luminosos e obscuros, vastos e limitados, justos e falsos, vantajosos e maléficos. Além disso, pela lei dos Decretos supremos, há homens escolhidos que, vivendo os seus dias nas delícias da verdade, devem ser considerados como verdadeiros tipos das virtudes, ao passo que outros, por negligência ou pusilanimidade, tornam-se tipos completos dos vícios. Exporemos novamente agora a necessidade da manifestação dos sinais visíveis das virtudes superiores na Terra, a lei invariável pela qual os Seres ligados ao tempo, sejam eles bons ou maus, nada podem conhecer a não ser pelo sensível: veremos se não é natural admitirmos que deve haver uma analogia e uma proporção entre os signos visíveis de todos os gêneros e os diferentes pensamentos do homem e se devem todos eles seguir a mesma marcha e o mesmo curso. O reflexo dos raios solares não é proporcional e análogo à natureza das substâncias que os recebem - nulo nas superfícies negras, fraco nos fluidos sem cor, mais forte nos fluidos coloridos, vivo nos sólidos coloridos e compactos, imenso nos sólidos puros e coesos como o vidro e o diamante? Não há nisso uma prova clara de que os resultados intelectuais estão ligados à nossa maneira de ser, refletindo-lhe necessariamente o brilho ou a obscuridade, a força ou a fraqueza, os vícios e as virtudes? Em nós mesmos se encontra um novo índice da existência dos sinais sensíveis. Não podemos transmitir qualquer pensamento nosso que não seja precedido por um quadro gerado por nossa inteligência. Quando nossos pensamentos são ativos, o quadro que os representa costuma ser bastante sensível para oferecer-nos uma espécie de realidade. E em todas as nossas artes de expressão estamos ora mais ora menos satisfeitos, conforme os traços sensíveis, sob os quais nos são apresentados os pensamentos, delas se aproximam, marcando-lhe o caráter. Se quisermos uma prova mais completa ainda da relação dos signos visíveis com os nossos pensamentos, podemos tirá-la do estado atual de nosso Ser e da lei violenta que o subjuga. É evidente que a parte intelectual só é alcançada através da parte sensível. Entretanto, como não duvidamos de que o intelectual do homem haja recebido pensamentos, como recebe todos os dias, resulta o seguinte: que esses pensamentos sofreram uma modificação sensível antes de chegar até ele; que essa modificação, ou signo sensível, existe de maneira invisível ao redor de nós, assim como a fonte dos pensamentos; que, se em vez dos pensamentos secundários recebidos dos homens nós nos elevássemos até os pensamentos vivos e primitivos, hauridos na fonte mesma, eles seriam necessariamente precedidos por signos análogos e vivos a eles pertencentes, da mesma maneira que os signos grosseiros e convencionais (como a escrita e a palavra) antecedem os pensamentos comunicados pelos homens. Por fim, se a educação do homem não fosse tão falsa e abusiva, os sinais primitivos e naturais seriam os elementos de sua instrução e ele começaria o desenvolvimento da existência intelectual pela percepção e pelo conhecimento físico desses sinais, cujo sentido só lhe seria comunicado numa idade mais avançada. Embora não se possa apoiar esse princípio em um número bem pequeno de exemplos, erraríamos em negar-lhes a certeza. Consideremos a criança débil e concentrada em seus órgãos: a ternura vigilante daqueles a quem a Natureza a confiou emprega todos os meios sensíveis próprios para confortá-la. Ela recebe seus efeitos e, mesmo que desconheça as pessoas que os transmitem e o motivo benéfico que as faz agir, isso não lhe destruirá a existência. Nem é menos certo que, sem elas, jamais a criança receberia algum socorro ou alguma sensação favorável. Tal é a imagem do que se passa na ordem dos pensamentos com relação aos órgãos e aos signos que lhes são necessários para chegarem até nós provindos de sua fonte. Não me estenderei mais sobre a natureza dos sinais, que devem ser bem semelhantes aos que empregamos para comunicar os pensamentos, já que nada podemos inventar. Digamos que, se há uma variedade extrema entre os pensamentos do homem, também pode haver diferenças consideráveis entre os sinais visíveis que lhe pertencem, já que eles são os órgãos e as modificações dos pensamentos. Então a proporção que estabelecemos entre os pensamentos e seus signos análogos tornase ainda mais indispensável para evitar a confusão. Segundo esses princípios, a criança que cresce também vai percebendo, embora de maneira obscura, os objetos que a cercam. Assim acontece com aquele que pelos primeiros progressos de suas faculdades intelectuais estivesse em condições de começar a receber pensamentos: poderia perceber de maneira incerta os símbolos que as representam. Mas, à medida que esses pensamentos e símbolos se fossem aperfeiçoando com a idade assim como as faculdades físicas do homem - o crescimento natural do Ser intelectual levá-lo-ia a ser favorecido por pensamentos vivos, justos, extensos, e a receber deles o signo análogo. Ou seja: um sinal completo de regularidade, com traços tão perfeitos e completos que ele seria tomado por um homem realizado, um Agente superior, um Ministro da Divindade, do mesmo modo que o homem, ao sair da infância, reconhece claramente como pessoas humanas os agentes sensíveis que atenderam às suas primeiras necessidades e aquelas das quais recebe a existência e a vida. Pelo contrário, aquele que tivesse pensamentos falsos, depravados e malignos, poderia distingui-los por sinais disformes e bastante irregulares para que lhe parecessem provir dos próprios Agentes do erro. Como o homem é o mais nobre pensamento de Deus, não deveria surpreender que os pensamentos divinos que lhe chegam tenham analogias com a mais bela das formas: a do homem. E é aqui que se aplica com justeza a passagem de Sanchoniathon, citada anteriormente, em que ele apresenta o Deus Thot fazendo o retrato dos Deuses para com ele formar os caracteres sagrados das letras: pois o corpo do homem é a mais bela letra de todos os alfabetos que existem na Terra e, conseqüentemente, a cópia mais correta do retrato invisível da Divindade. Poderíamos mesmo estender essa indução até à forma dos astros que, como o homem, são letras vivas do grande alfabeto. E se eles nos parecem esféricos, é que tal é a forma que os objetos têm para o homem na infância, quando tudo lhe parece igual e uniforme, pois não podemos negar que, com relação ao verdadeiro conhecimento dos astros, no mundo ainda estamos na infância. Finalmente, é preciso aplicar ao desenvolvimento de nossas faculdades intelectuais, e a todas as maravilhas que lhes pertencem, a mesma progressão observada no desenvolvimento das faculdades físicas da criança. Há uma seqüência igual de graus, das trevas à luz, a mesma mistura de impressões suaves e de impressões desagradáveis, a mesma percepção de objetos graciosos e de objetos contrários ou prejudiciais. Se a isso ajuntarmos as misturas em nosso ser, onde os vícios se aliam às virtudes, a luz à escuridão, encontraremos como análogos seus uma nova espécie de signos, isto é, signos mistos contendo verdades e falsidades, com variedades infinitas relativas às diferentes medidas de pensamento justo ou falso das quais são formadas as medidas. Mas, uma verdade mais vasta e convincente é que, de acordo com os princípios expostos sobre a degradação do homem e os meios pelos quais ele permanece ligado ao Princípio do qual descende, é preciso que esse Princípio haja comunicado, aos homens encarregados especialmente de concorrer na grande obra, todos os pensamentos relativos ao estado antigo, atual e mesmo futuro, a fim de mostrar-lhes o que tinham perdido, o que sofriam e o que deveriam esperar. É preciso, pois, que os homens escolhidos tenham visto de maneira sensível o quadro universal da história do homem, no qual devem ser compreendidos: seus deleites primitivos, todos os combates que tinha de sustentar, renovados e multiplicados ao infinito desde a demolição de seu primeiro templo; os socorros perpétuos e poderosos que a mão suprema sempre coloca junto de nós; a harmonia e o progresso de todos os princípios da natureza; a forma e a estrutura do Universo; as leis da Terra, as virtudes dos astros brilhantes que nos iluminam; e os Astros, mais vivos ainda, que são da mesma natureza do homem e que, razão pela qual ele terá permissão de um dia contemplá-los. Em suma, era preciso que cada um desses pensamentos, ou conhecimentos, fosse acompanhado do sinal sensível análogo para que os homens escolhidos, a quem a Sabedoria quisesse transmitir suas luzes, recebessem o complemento das instruções que lhes eram necessárias. Mas se todos os dias o homem traça a mesma verdade sob imagens e quadros variados, não nos surpreenderíamos de que os diversos homens escolhidos para servir de Colunas do Edifício hajam recebido o conhecimento dos grandes feitos e das grandes verdades por sinais diferentes e sob relações das quais nem todas oferecem os mesmos caracteres, assim como vemos que as Línguas só se multiplicaram e diversificaram porque cada Povo considerou o mesmo Ser sob uma face e uma aceitação particular. Nem deveríamos espantar-nos com fato de que a sucessão dos séculos haja multiplicado para o homem os quadros da verdade e os signos a eles relativos, de modo que os homens estivessem hoje em condições de abeberar-se nos reservatórios mais abundantes do que teriam podido nos primeiros tempos - porque as fontes que se abriram desde o instante da queda do homem não deixaram e não deixam de fluir sobre sua infeliz posteridade. Podemos ver facilmente que, do que acaba de ser exposto, descendem todas as tradições da Terra e as diferentes Mitologias dos Povos. Os homens favorecidos por grandes luzes haviam-nas recebidos para a utilização e a instrução de seus semelhantes: a fim de cumprir esse objetivo, não teriam podido eximir-se de transmitilas ao pequeno número daqueles que julgavam preparados de maneira conveniente, e a comunicação teve de ser feita de duas maneiras: uma, por discurso e instruções; a outra, pelo exercício e emprego dos atos ensinados aos Sábios pelas virtudes superiores, cujas existência e relações conosco foram suficientemente demonstradas. Os Sábios, exercendo os atos em presença daqueles em quem haviam depositado a confiança, deles faziam testemunhas de todos os resultados sensíveis que daí provinham. Como os conhecimentos e signos recebidos das virtudes superiores continham a História completa do homem, em sua glória ou em estado de aviltamento e sofrimentos, os resultados recebidos pelos discípulos continham a mesma mistura de luz e escuridão, de mal e bem, de perfeição e desordem, de padecimentos e remédios, de perigos e meios de libertação. Esses mesmo Discípulos, por ordem de seus Mestres ou por zelo, terão comunicado, cada um deles, às Nações entre as quais habitavam, quando não os fatos, pelo menos as narrativas deles e os discursos instrutivos aos quais haviam assistido. Eis por que, nos Povos antigos, as tradições falam de uma idade de ouro, de Gigantes, de Titãs, da usurpação do fogo celeste e do trono da Divindade, da cólera do pai dos Deuses contra os prevaricadores, dos diversos padecimentos por eles experimentados na Terra e nas diferentes Regiões no Universo; das virtudes derramadas sobre os mortais piedosos e fiéis, a quem as próprias Divindades concedem seus favores e da esperança de que elas o admitirão a venturas ainda maiores se observarem a lei do Princípio e souberem respeitar-lhe o Ser. Não devemos admirar-nos de que essas tradições e doutrinas sejam universais porque na origem elas formaram o fundo dos depósitos históricos de todos os Povos. Foi somente com o decorrer dos tempos e dos acontecimentos políticos que a História civil tomou-lhe o lugar. Isso faz com que tenhamos tão poucos documentos da História política das Nações na antigüidade e muitas das Tradições Teogônicas, ao passo que nos tempos modernos vemos poucas tradições e fatos relativos à História natural e religiosa, embora tenhamos muita coisa das Histórias civis. Raramente essas duas classes tiveram entre si uma perfeita afinidade. Embora os Sábios instruídos pelas virtudes superiores e os Discípulos instruídos pelos Sábios tenham conseguido essencialmente os mesmos conhecimentos e os mesmos resultados, cada um deles só recebeu as grandes luzes e os grandes traços da História universal do homem através dos símbolos e dos quadros que lhes eram particularmente análogos. Porque, se é verdade que todos os homens têm o mesmo Ser quanto à essência, também é certo que há entre eles uma variedade universal de dons, faculdades, e modos de apreender os objetos. E a Sabedoria, enviando fisicamente seus presentes aos homens, presta-se sempre a essas diferenças. Comunicando as mesmas coisas, os Sábios e os Discípulos apenas agiram, cada um, de conformidade com a idéia que seus dons particulares lhes permitiam apreender. Disso resulta a variedade infinita que percebemos em todas as narrativas dos diferentes Povos da Terra, embora neles o fundo das verdades seja geralmente uniforme. Os Discípulos admitidos a esses conhecimentos e manifestações não apenas não conseguiram apreendê-los todos com a mesma inteligência, mas alguns acrescentaram-lhes interpretações particulares e arriscadas. Outros confundiram as coisas simbólicas com os tipos que deviam exprimir e em seguida tomaram a alegoria pelo próprio fato, esquecendo que a semelhança dos símbolos naturais e superiores com os objetos sensíveis só acontecia com referência à sua forma e à razão da nossa sujeição às leis inferiores e materiais, mas que essa similitude jamais pode acontecer quanto à sua essência. Outros, abandonando-se à depravação, alteraram de propósito os tipos e símbolos, ou não se ligaram a todas as maravilhas das quais participavam, exceto aos objetos irregulares desordenados. E em seguida, professando cada um deles as ciências assim amesquinhadas ou corrompidas, deram lugar às tradições absurdas, à multidão infinita de narrativas ridículas, ímpias e insensatas de que as diversas Mitologias estão repletas e que em nada se conciliam com as verdades fundamentais e primitivas, porque muitas delas atêm-se tão pouco à verdadeira fonte que não podem ter relação alguma conosco. Daí derivam principalmente as diversas Seitas das Religiões dos homens e todos os ramos da idolatria. Se é habitual haver uma idolatria onde só se percebe a ignorância e o nada, há uma que se prende, evidentemente, à depravação, conduzindo a crimes ainda maiores do que os gerados na terra pelo fanatismo e a superstição. São ambas uma alteração do culto verdadeiro; colocam igualmente um Deus falso no lugar do Deus real. A diferença de origem dessas duas espécies de idolatria está no fato de que numa, o homem abusou de seus conhecimentos para com eles formar uma ciência culpada e na outra, recebeu uma instrução grosseira. Mas tais erros proclamam de maneira igual a idéia e o conhecimento de um Ser soberano. Se a idéia de um Deus não fosse análoga à nossa Natureza, jamais os objetos de nossas afeições sensíveis ou a própria instrução dos Agentes superiores a teriam feito nascer, fosse no espírito dos instituidores, fosse no dos outros homens. Da mesma maneira, se um homem jamais houvesse conhecido sensivelmente objeto algum que fosse superior e digno de suas homenagens, não teria concebido a Idolatria soberanamente criminosa: para ser verdadeiramente Idólatra, é preciso não somente começar conhecendo-se um Princípio divino, mas ainda tê-lo conhecido de maneira a não se poder ignorar que lhe é devido um culto puro e legítimo. Assim, quando nos enchemos de admiração pelas belezas naturais, de veneração pelos heróis, de ternura por um amigo, ainda estamos longe da Idolatria. Jamais atribuiríamos a qualquer Ser inferior os nomes ou os títulos que pertencem à Divindade se a idéia da perfeição suprema não houvesse sido anteriormente desenvolvida em nós, seja em natureza, seja pelo exemplo e pela própria instrução alterada de nossos educadores e daqueles que nos cercam. E mesmo, quando nos esquecemos ao ponto de divinizarmos homens ou objetos puramente terrestres, não é a eles que elevamos realmente à qualidade de Deus - eles são por demais fracos para nos induzirem à uma verdadeira idolatria - mas é a majestade de nosso Ser que rebaixamos do ponto de elevação onde o exemplo e a instrução a haviam levado, deixando-a repousar em objetos inferiores. É esse Ser que, sabendo-se destinado a prestar homenagem e a contemplar a Divindade suprema, desce até aqueles que estão abaixo dela, tomando-os como objeto de sua adoração. Foi, pois, menos por divinizar os objetos sensíveis do que por materializar a si mesmo que o homem se tornou idólatra. Não foi por afeições sensíveis que o homem se elevou à idéia da Divindade e à de seus Agentes: foi, ao contrário, aviltando essa idéia sublime e natural que ele perdeu de vista os objetos superiores, de quem sua essência o aproximava, para ligar-se a Seres grosseiros e perecíveis que desses objetos não tinham a realidade nem as virtudes. Pois, repito-o, se o homem não houvesse tido primitivamente a prova da existência dos Seres superiores, se não a houvesse transmitido a seus descendentes através de feitos ou tradições, nenhum deles jamais teria hesitado sobre um princípio do qual não tinham conhecimento algum. E podemos considerar como uma verdade indubitável que, se um homem ficasse separado inteiramente dos outros desde a infância, teria mais possibilidade de receber e praticar o culto supremo do que de começar por criar um ídolo para si. Os mesmos que adoram o Sol e os que queriam proclamar-lhe o culto como o mais natural, por estar esse objeto mais próximo de nós, não destroem o princípio que exponho. Os Povos que exerceram o culto do Sol só chegaram a essa Idolatria pela alteração de um culto mais sublime. Para nos convencermos disso, basta confrontarmos sua antigüidade com a dos Povos que adoraram o Ser invisível. As tradições chinesas relatam um culto puro e esclarecido nessa Nação, longo tempo antes que o culto do Sol se estabelecesse em qualquer outra Nação da Terra. Os que pretendem justificar a idolatria material fecham os olhos à natureza do homem, nem mesmo vêem que semelhante culto não pode satisfazê-los por muito tempo. Porque o homem é um Ser ativo, sente necessidade de fazer preces, de colaborar na obra que deseja realizar e o Sol exerce regularmente suas funções para conosco sem que precisemos agir e dirigir-lhe preces. Porque o homem está destinado, por sua origem, a exercer uma função sagrada que o põe em correspondência com seu Princípio. E porque o homem, assim como todos os Seres, só pode ficar satisfeito com os Seres nos quais reconhece sua semelhança e o Sol, por majestoso que seja, não tem qualquer semelhança verdadeira com o homem. Vimos anteriormente a necessidade de que as virtudes superiores, ao serem transmitidas ao homem, lhe fossem apresentadas numa forma análoga à dele, como sendo a mais expressiva das formas e a fim de que os socorros dessas virtudes não fossem inúteis para ele. É, pois, sob formas semelhantes que os Sábios e seus Discípulos devem ter recebido os principais sinais e os resultados mais essenciais dos atos puros e regulares que empregavam para sua própria instrução e a propagação da verdade. Os Êmulos, ao transmitirem às diferentes Nações as narrativas e feitos cujo conhecimento queriam comunicar, tê-los-iam representado em seu discurso através de expressões e quadros análogos ao que lhes fora transmitido. Querendo conservar a memória de tudo o que ouviam, os Povos por eles instruídos traçaram, pintaram e entalharam monumentos materiais que seus descendentes acabaram por ver como a realidade da própria coisa que eles se destinavam a representar, mas da qual tais monumentos não passavam de cópias e símbolos. Eis por que, entre as antigas Divindades dos Idólatras materiais e ignorantes, várias foram honradas sob a forma de figuras corporais humanas e representadas por estátuas. Mas é igualmente verdade que, juntamente com os signos regulares e semelhantes à forma humana, os Sábios e seus Discípulos devem ter recebido símbolos e formas relativos e similares a todos os objetos da Natureza, porque os socorros superiores, tendo por alvo pintar aos olhos do homem sua antiga grandeza, representavam-lhe, uma após a outra, todas as partes de seu domínio. Os Discípulos dos Sábios transmitiram às suas Nações essa nova classe de conhecimentos, assim como haviam feito com as que se atinham essencialmente à Natureza superior do homem. E havendo os Povos igualmente confundido os símbolos com os objetos terrestres, não é de se admirar que os diversos povos da terra tenham tido tantos ídolos informes e monstruosos, tomando como objeto de culto os Astros, os Animais, as Plantas, os Répteis e outras substâncias da Natureza. E na verdade, se refletirmos sobre o ponto de degradação ao qual o espírito do homem foi capaz de descer por causa da ignorância e do pouco cuidado em cultivar a inteligência, se considerarmos os graus tão numerosos e variados nos quais se deteve na desordem de suas idéias, acharemos a origem evidente da multidão de Ídolos reconhecidos entre elas sob formas e poderes tão diferentes. Em toda a extensão do círculo dos Seres, nenhum há, verdadeiro ou falso, no qual o homem não possa deixar de confiar e ao qual não possa dirigir seu culto. Assim, não nos surpreendemos ao ver que na Terra se honram, materialmente, Deuses do Empíreo, Deuses celestes, Deuses terrestres, Deuses aquáticos, ígneos, vegetais, minerais, e até Deuses infernais mesmo e Deuses do crime e da abominação. Porque o homem tem o direito de se dirigir-se ao objeto que quiser escolher e conferir-lhe a honra e o respeito que somente deve à Divindade suprema. Mas se é verdade que a forma do homem é a mais expressiva de todas, - pois nela se baseiam todas as relações e correspondências - quanto mais afastados delas estiverem os signos e monumentos da idolatria, tanto mais eles serão inferiores e alterados. É, pois, comparando com a regularidade de nossa forma todo o sensível que nos é representado que poderemos julgar, não apenas os diferentes graus da Idolatria material dos Povos, mas também aquilo que se apega ou a uma idolatria mais criminosa ou a um culto puro, ativo e legítimo, porque as correspondências dessa forma são universais. Admitamos por ora que nas narrativas aparentemente mais sensatas e regulares a Mitologia deve ser como que inexplicável para os que não penetraram na ciência do homem e da Natureza. Até aqueles que tenham penetrado devem ainda encontrar grandes dificuldades nesse tipo de estudo porque, para termos certeza da exatidão das relações, seria preciso passar em revista os próprios símbolos originais sobre os quais elas repousam. Ora, as cópias apenas de tais símbolos não bastam para tais verificações, sendo preciso buscar os originais nos próprios depósitos de onde foram tiradas pelos Escritores, isto é: em seus reservatórios naturais. Não nos admiremos de que um grande número de Observadores, utilizando seus trabalhos para explicar a origem e o alvo das tradições mitológicas para nos persuadirem da verdade de seus diferentes sistemas, consumisse em vão o tempo, uma vez que não tiveram por base nem um Princípio geral nem verdadeiras luzes. Como teriam podido esclarecer a obscuridade da origem das Fábulas e das Alegorias sem uma idéia justa do homem e sem conhecer suas relações primitivas fundamentais? Mas, perguntaríamos, se as mesmas luzes, signos e fatos permanecem sempre ao alcance dos homens, por que a linguagem alegórica e os símbolos estão hoje quase desaparecidos da face da Terra? Já respondi em parte a essa pergunta ao expor o quanto as tradições religiosas são mais antigas do que a história civil dos Povos e ao mostrar por que é que esses dois tipos de tradição seguiram uma ordem inversa. Bastará, pois, dizer que os homens atuais gozam menos, em geral, dos grandes socorros do que na origem - e talvez sejam culpados disso, uma vez que os sinais e os símbolos continuam ao seu alcance e disposição. Além do mais, mesmo dispondo deles hoje, estão de tal forma próximos das realidades que nem mesmo pensam nas figuras. Embora a origem e o alvo das narrativas mitológicas sejam quase universalmente conhecidos, embora sejam alterados com tanta freqüência - ou pela ignorância dos Traidores e dos Êmulos, ou pela dos Escritores e dos Poetas - indicamos várias que mostram relações evidentes com as verdades expostas nesta Obra. Vamos apresentar alguns exemplos tomados das Fábulas egípcias e gregas. Quem não reconheceria em Alcioneu - o Gigante famoso que socorreu os Deuses contra Júpiter, atirado por Minerva do Globo da Lua, onde se postara, e que tinha a virtude de ressuscitar - o antigo Prevaricador, excluído da presença do Princípio supremo, reduzido ao horror da desordem e acorrentado num recinto tenebroso, onde as forças superiores não deixam de coagi-lo e de molestar-lhe a vontade que sempre renasce? Seria vista com a mesma clareza a história do homem criminoso em Prometeu, e a dos diversos crimes de sua posteridade, em todos os infelizes cujos nomes e suplícios que nos são apresentados pela Mitologia? É o caso de Epimeteu abrindo a caixa de Pandora. Observaremos aqui que Prometeu significa o que vê antes, ou primeiro vidente, e que Epimeteu significa o que vê depois, ou segundo vidente, expressão da qual tiraremos em seguida outras relações. É o caso de Íxion, que projeta uma relação incestuosa com a mulher de Júpiter, seu pai, mas que, abraçando nada mais que uma nuvem, produziu os Centauros, monstros metade homens, metade cavalos, nos quais, evidentemente, se representa a nossa natureza mista. Seu suplício é uma imagem fiel do homem lançado nas extremidades da roda em torno da qual circula e onde apenas encontra inimigos furiosos e implacáveis. É o caso de Sísifo, revelando os segredos do Rei, seu senhor, condenado a viver empurrando um Rochedo enorme montanha acima, o qual o sempre torna a descer - isto é, perseverar em empreendimentos audaciosos para ser continuamente molestado ao vê-los continuamente lançados por terra. É o caso, por fim, das Danaides, que matam os maridos e que, sem a virtuosa conduta de Hipermnestra, teriam para sempre degradado o número centenário perfeito do qual a família é formada. Ficando também reduzidas a tirar água sem descanso em vasos sem fundo18, fazemnos compreender o que podem os seres que afastaram de si seus Guias e seu sustentáculo, figurado pelo chefe ou o marido dessas jovens criminosas. Em todos os símbolos os olhos adestrados talvez entrevejam relações mais diretas e mais sensíveis, tais como o quadro da marcha dos seres culpados que, condenados a um só ato, realizam-nos sempre da mesma maneira e que, por causa dessa monótona uniformidade, traem a si mesmos, pondo o homem bem intencionado ao abrigo de seus ataques: conforme experimentamos pelas diversas paixões que nos obsedam, apresentando-se sempre com a mesma cor que cada uma tinha ao começar a nos perseguir. Mas, como essas noções não estão ao alcance do vulgo, contentemo-nos com observar, no quadro de Tântalo, as penas às quais estamos sujeitos: ver no Cão de três cabeças19, nos três rios dos Infernos, nas três Parcas e nos três Juízes os três gêneros diferentes de combates, padecimentos e suspensões que temos de sofrer em razão das três Ações superiores das quais estamos separados e os três graus de expiação que todo homem deve escalar antes de chegar ao termo de sua reabilitação. As Tradições mitológicas gregas e egípcias não se limitam a nos apresentar os efeitos da Justiça dos Céus sobre o Homem. Pintam-nos, igualmente, os traços de seu amor oferecendonos, embora debaixo de véus, os raios de sua própria luz. 18 Na verdade, as Danaides despejam água num tonel sem fundo. Veja-se o Glossário. (N.T.) 19 Cérbero. (N.T.) É verdade que, como conseqüência de nossa infeliz situação, essa luz não pode exibir todo o seu esplendor porque, como também espalha claridade sobre os perigos e os males que cercam o homem, este só experimentaria horror e pavor se percebesse de uma vez todos os inimigos que o rodeiam e os obstáculos que deve combater e superar. Também faz parte da ordem da Sabedoria que ele seja exposto aos poucos aos Adversários tremendos, só lhe permitindo abrir os olhos com precaução e gradativamente, velando por ele como por uma criança que fremisse de medo e terror se, em sua fraqueza, pudesse conhecer o rigor e a violência dos elementos ou dos agentes ativos que lhe disputam o insignificante envoltório. E se vemos que tantos homem ainda são como crianças a respeito desses grandes objetos, é que há fatos como os da classe elementar, onde milhares de homens, recebendo as ações e contra-ações dos agentes da Natureza durante toda a vida material, estão, mesmo assim, dispostos a não lhe reconhecerem leis nem causas regulares, por não terem observado sua marcha. É que, pela fraqueza de sua inteligência, eles deixam passar diante de si esses fenômenos sem deles retirarem qualquer instrução. Mas se é incontestável a doutrina acima estabelecida sobre nossas relações com o nosso Princípio, não podemos mais desconhecer os signos do amor vigilante da Sabedoria pelo homem no símbolo de Minerva, filha de Júpiter, cobrindo seus favoritos com uma Égide impenetrável; na esperança deixada a Epimeteu depois que ele abriu a caixa fatal; nos conselhos dados pelos Deuses20 à sua filha Pirra e a Deucalião, seu esposo, para repovoarem a Terra depois que a raça humana fora destruída. Foi por uma conseqüência desse mesmo amor que a piedade do rei Átamas fê-lo obter dos Deuses o tosão de ouro, que a coragem e a virtude de Teseu fizeram-no merecer o fio de Ariadne, que Orfeu imobilizou a roda de Íxion, que Júpiter fez presente às Náiades da cornucópia em troca da que lhe fora arrancada ao pai e que os Deuses colocaram na Terra um caduceu para que nela reinasse a ordem e a paz, um tripé para sobre ele emitirem seus oráculos e homens escolhidos para os pronunciar. Todos esses símbolos demonstram claramente o interesse da Divindade pelo homem e a idéia indestrutível que dela tiveram aqueles que os traçaram. Sabemos de antemão o que devemos pensar do famoso Hércules, eleito pelos Intérpretes de todos os gêneros como um modelo de seus sistemas. Seus numerosos trabalhos, realizados em benefício da espécie humana, declaram bem de que modelo é ele a figura simbólica. E, mesmo sem contar todos os trabalhos em detalhe, devemos sentir o que ele nos ensina ao matar o abutre pelo qual o infeliz Prometeu acreditava que deveria ser eternamente devorado; ao sufocar o gigante Anteu, que fizera voto de erguer a Netuno um templo de crânios humanos; ao encarregar-se do peso da terra para aliviar Atlas que, no sentido etimológico, significa um Ser que carrega, um Ser sobrecarregado. Ora, a quem convém melhor esse sentido senão ao homem oprimido pelo peso de sua região terrestre e cheia de trevas? Por fim, é preciso lembrar que, para recompensar Hércules por seus inúmeros trabalhos, depois de sua morte corporal os Deuses fizeram-no desposar Hebe, ou a Juventude Eterna. As verdades físicas abrem passagem igualmente através dos símbolos mitológicos. Argos é um tipo do Princípio vivo da Natureza, que jamais afrouxa sua ação sobre ela, que a penetra e anima em todos os pontos, que lhe entretém a harmonia e vela em toda parte para impedir que a desordem dela se aproxime. A Divindade, que presidia ao mesmo tempo aos Céus, à Terra e aos Infernos, anunciava o triplo e quádruplo elo que une todas as partes do Universo, laço do qual a Lua é para nós o signo real: recebe a ação quaternária do sol, reúne em si não apenas as virtudes de todos os outros astros, mas, habitando o céu como eles, exerce, ademais, ação direta sobre a terra e as águas, emblema sensível dos abismos. 20 V. Têmis, no Glossário. É certamente em razão dessa grande virtude que os Neomênios, ou Luas Novas, foram tão celebrados pelos Antigos. Como a Lua era o carro e o órgão das ações superiores a ela, não era de se admirar que seu retorno fosse honrado com regozijo. E se os Antigos houvessem considerado esse retorno apenas com relação à luz elementar, não teriam instituído Festas para celebrá-lo. Não obstante, esse uso era tão natural que, numa Língua primitiva, da qual não tardaremos a nos ocupar, os termos planeta e influência são sinônimos. Por fim, o famoso Caduceu, que separa duas serpentes em luta, é uma imagem expressiva e natural do objeto da existência do Universo, o que se repete nas mínimas criações da Natureza, em que Mercúrio mantém o equilíbrio entre a água e o fogo para sustentar os corpos e para que as leis dos Seres, sem disfarce diante dos olhos dos homens, possam por eles ser lidas em todos os objetos que os rodeiam. O emblema do Caduceu, transmitido pela Mitologia, é, pois, um campo inesgotável de conhecimentos e instrução, porque as verdades mais físicas figuram ao homem as leis do Ser intelectual e o termo para o qual ele deve inclinar-se a fim de recuperar o equilíbrio. Isso nos leva aos símbolos e hieróglifos que por suas relações pertencem, como os outros emblemas, aos signos de pensamentos diversos dos quais, como reconhecemos, o homem é susceptível, e que, nos fatos sensíveis, devem mostrarlhe o verdadeiro quadro do estado do Ser intelectual. Se no mundo o homem conseguiu provas sensíveis da existência das Potências supremas e se, com mais razão ainda, conseguiu provas sensíveis da existência das Potências inferiores que compõem toda a Natureza e estão compreendidas em seu Domínio, há sinais análogos e fixos que dirigem o homem na carreira de sua instrução, não apenas para todas as classes intelectuais, mas também para todos os Seres físicos da Natureza geral e particular. De outro modo, sua ciência ficaria despojada de base e de apoio. Como conseqüência, os signos e hieróglifos relativos à Natureza física não puderam depender da convenção arbitrária do homem, conforme querem as pessoas que não caminham em sendas sólidas e que se rendem cegamente às primeiras opiniões que lhes são apresentadas. E a prova de que tais sinais são independentes de nossas convenções é que com signos arbitrários o homem só formaria hieróglifos mortos e sem virtude; portanto, eles seriam nulos e impotentes para representar a Natureza, onde tudo é vivo. É preciso, pois, que os próprios objetos naturais sejam acompanhados de sinais análogos para servirem de índice tanto à sua essência como às suas propriedades. E não duvidemos de que os Sábios não tivessem sido guiados por esse princípio ao aplicarem caracteres distintivos a todas as substâncias, aos planetas, ao metais, ao fogo, à água e a todos os elementos. Os homens que os sucederam quiseram talvez imitar-lhes o exemplo ao trazerem de volta sinais diversos e caracteres diversos a várias criações naturais, tais como as que são tidas pela Química como objeto de conhecimento e estudo. Mas é indubitável que, supondo serem verdadeiros os caracteres empregados pelos imitadores, os homens caminharam como cegos na aplicação que fizeram deles, como fica evidente quando deram aos metais os nomes vulgares e os signos compósitos dos Planetas. De acordo com isso, não podemos deixar de crer que tudo o que nesse gênero nos foi transmitido nas Ciências, nas Artes e nos alfabetos das Línguas peca não somente na aplicação, mas está até mesmo alterado na figura e na forma dos caracteres. Ora, de sinais e caracteres assim desfigurados devem resultar, nas ciências materiais, os mesmos erros feitos nos símbolos das Potências supremas, cujo mau uso, gerado pela ignorância, deu nascimento à Idolatria sobrematerial. Essa verdade por um momento nos servira de facho para que conheçamos a desconfiança com que se deve caminhar nas ciências e nos sistemas dos homens. Mas é preciso esclarecer aqui uma questão sobre os hieróglifos e a escrita; saber se os sinais hieroglíficos são anteriores aos sinais da palavra e da linguagem. Homens célebres chegaram perto do alvo ao dizerem que toda escritura e sinal era hieroglífico, isto é: que devia trazer em si os indícios do objeto que se propunha apresentar à inteligência. E realmente a própria palavra só se torna inteligível ao homem tornando-se hieroglífica para ele, que só compreende as palavras das Línguas depois que seu sentido se lhe torna familiar com o auxílio das coisas sensíveis às quais as palavras correspondem. Entretanto essa decisão, adotada de maneira por demais irrefletida, arrastaria consigo a necessidade de considerar como uma coisa única os sinais hieroglíficos e as Línguas. Ora, não podemos duvidar de que essas duas coisas sejam muito diferentes, apesar de intimamente ligadas, e se for permitido empregar uma comparação, elas formam juntas um fruto do qual uma é o sumo e a outra, a casca. Finalmente, não podemos duvidar de que, se todos os sinais das línguas são hieroglíficos, como dependentes das propriedades essenciais do princípio que exprimem, também todos os demais objetos, independentemente de serem hieroglíficos em si, devem ainda ser depositários de um nome que possa passar na linguagem do homem e servir de tema e guia para sua inteligência quando o objeto não estiver mais sob seu olhos. Essa verdade é confirmada pela experiência geral dos povos que têm duas maneiras de comunicar os pensamentos: a saber, os próprios objetos e mais as palavras que a eles correspondem em suas Línguas. E se foi dito que, quando os objetos intelectuais não estivessem presentes os homens não deveriam ter palavras para exprimi-los, eu voltaria ao que disse acima sobre a necessidade da presença sensível das Virtudes supremas entre os homens. E mesmo que a objeção se transformasse em vantagem para o Princípio que defendo uma vez que no estado atual do homem as palavras estão como que envolvidas nos objetos sensíveis - se em suas Línguas os homens tiverem palavras para exprimir os objetos intelectuais, isso é uma prova evidente de que os objetos intelectuais foram sensíveis para eles ou para aqueles que lhes transmitiram as idéias sobre eles. Podemos, pois, decidir aqui a questão proposta dizendo que, na ordem natural e perfeita, os sinais hieroglíficos precedem universalmente as línguas; que, se reconhecemos com razão que os homens, no estado de degradação, tiveram Línguas antes de terem escrita, nosso princípio é igualmente confirmado. Não é preciso considerar os caracteres da escrita atual e popular como os hieróglifos primitivos nem como a fonte da palavra do homem, mas como sinais hieroglíficos secundários destinados a fazer a inteligência e a palavra reagirem naqueles a quem os próprios hieróglifos seriam transmitidos. E não poderemos duvidar de que os sinais hieroglíficos inferiores não tenham esse emprego se observarmos que os mudos se fazem entender por sinais e que vários homens escrevem Línguas que não sabem falar nem entender. Se quisermos convencer-nos de que os sinais e hieróglifos primitivos são anteriores às línguas, basta ver que todas as nossas palavras são precedidas intelectualmente em nós pelo quadro sensível daquilo que queremos exprimir. Basta, por uma razão bem mais forte, observar que o homem passa a primeira parte da vida corporal nos entraves da infância e nos laços dos órgãos materiais antes de estar de posse da palavra. Mas voltemos aos signos naturais das Potências inferiores que agem no Universo e reconheçamos novamente a existência necessária de símbolos para todas as classes de seres, todos os Reinos e regiões, porque tudo é governado por essa lei irrevogável. Como cada Povo e cada homem é livre para aplicar-se a tal ou qual objeto, cada um deve também ser dotado de uma abundância maior de sinais relativos ao objeto do qual se ocupa. É até um índice garantido para reconhecermos as Ciências cultivadas por um Povo: não é preciso considerar por muito tempo os hieróglifos dos egípcios para vermos que eles se aplicavam menos às verdadeiras Ciências do que vulgarmente se crê. A multidão de répteis, pássaros, animais aquáticos que aí dominam demonstram que eles agiam particularmente sobre os objetos elementares e mesmo sobre objetos ainda mais inferiores, porque a água de onde todos os animais saíram é, pelo seu número, o verdadeiro tipo de uma origem confusa e desordenada. Se pretendêssemos que eles houvessem tirado os hieróglifos apenas dos objetos mais comuns em seu país aquático, bastaria lembrar o que já dissemos sobre a origem da Idolatria: apenas uma alteração do culto verdadeiro, necessariamente precedida pelos sinais primitivos e hieroglíficos. Da mesma forma, há testemunhos seguros para termos certeza da ignorância de uma Nação: é quando ela não tem escrita natural hieroglífica e os monumentos são ornados de figuras arbitrárias, nulas, e às quais não se presta senão um sentido convencional e ideal. Então podemos ter certeza de que os Sábios mais célebres dessa Nação não têm nem mesmo a primeira idéia do título com que são honrados e que, se possuem uma posição de destaque na opinião vulgar, ocupam uma outra muito inferior na ordem verdadeira dos conhecimentos. Vem a propósito apresentar aqui alguns exemplos dos sinais naturais que devem ter relações com os objetos temporais e indicar as propriedades dos Seres. Se todas as Nações da Terra empregaram o triângulo em seus monumentos hieroglíficos, poucas lhe conheceram ou desvendaram as verdadeiras relações e o verdadeiro sentido. Aquelas que o tiveram como símbolo do Ternário sagrado devem ter mostrado um símbolo intermediário entre esse Tipo supremo e o ternário corruptível, porque, sem isso, do Ser invisível e invariável à figura morta, como um triângulo, há uma distância grande demais para que possamos elevar-nos de uma a outra. Ora, o símbolo intermediário é o homem, como veremos em seguida. É preciso, pois, considerar simplesmente o triângulo corruptível em suas relações temporais. Assim, ele se torna o símbolo perfeito dos Princípios da Natureza elementar, em número de três. Torna-se, portanto, o símbolo de todos os corpos individuais, constituídos pelo mesmo número e leis da Natureza universal. Ele é a expressão sensível da base fundamental das coisas e, como a primeira figura e a mais simples que o homem pode produzir ou conceber - pois a circunferência é menos uma figura do que o conjunto e o quadro geral de todas as ações e figuras - é talvez a imagem clara da lei particular seguida pela Sabedoria na produção de suas obras materiais. Com relações tão vastas, não admira que essa figura ocupe uma posição tão distinta entre os hieróglifos das Nações. Os Químicos que em suas pesquisas se interessavam mais nas partes separadas do que no conjunto, empregaram esse símbolo em sua ciência, mas, em vez de considerá-lo na verdadeira relação, estabeleceram-no como símbolo do fogo ou do flogístico. E muito embora sob esse ponto de vista isolado houvesse ainda uma certa exatidão da aplicação, se os Químicos tivessem sabido desvendar-nos o que está contido no fogo, claro está que, não o sabendo, o símbolo fica como que morto em suas mãos e seu significado torna-se arbitrário. Alguns Químicos, acreditaram ver o fogo expresso nas faces triangulares da pirâmide, e fundavam-se nisso pelo fato de que a primeira sílaba, pyr, em grego significa fogo e de que havia um grande número de pirâmides entre os egípcios, que celebravam o culto do Sol, ou do fogo, e de quem os gregos colhiam a maior parte de seus conhecimentos. Mas se a pirâmide tinha relações com o fogo, não seria precisamente por causa de suas faces triangulares, mas pela direção vertical e pela forma, que vai diminuindo até atingir um ponto insensível. Aí é que se encontrariam as leis do fogo, porque ele sobe sempre verticalmente, desde que grandes causas estranhas não lhe bloqueiem a ação natural; porque diminui, para nós, à medida que se eleva e porque termina, como a pirâmide, tornando-se imperceptível a nossos sentidos. Os Alquimistas cometeram os mesmos erros sobre a figura cruciforme que adotaram para representar o ácido universal. Esse símbolo, correspondendo ao próprio círculo da circunferência e formado por dois diâmetros, é o indício visível da unidade. Sabe-se que o fogo é um em todo lugar, que ocupa o centro de todos os corpos e que sua tendência incessante é separar-se das substâncias grosseiras com as quais está combinado. Então a figura cruciforme seria, com razão, o verdadeiro símbolo do fogo, e não do ácido. Embora o ácido seja um fogo, como jamais deixa de ter água, não é um fogo puro. Assim o símbolo da simplicidade e da pureza não lhe pode convir. Também os Antigos estavam tão persuadidos de que essa figura cruciforme era o símbolo do fogo que os Sacerdotes do Sol entre os egípcios o traziam nas vestes. Por fim os Químicos, unindo o triângulo e o sinal cruciforme, tomaram essa reunião como símbolo do enxofre: sendo o enxofre composto de ácido vitriólico e de flogístico, símbolos admitidos para representar separadamente o ácido e o fogo, podem ser escolhidos para representar seu conjunto. Mas sem nada mais dizermos sobre essas convenções, senão que elas pouco nos instruem, cremos que nesses dois sinais podemos descobrir relações mais elevadas e mais interessantes, e o tipo delas será sempre o homem. Como símbolo universal das leis particulares que produziram os corpos, o triângulo deve aplicar-se ao corpo do homem, tanto aos seus princípios constitutivos, quanto a todos os outros corpos. Como é o símbolo do fogo do centro, do Princípio, a figura cruciforme convém ao Ser universal do homem, ligado diretamente ao centro do Princípio superior e universal de todas as Potências. Reunindo os dois sinais na mesma ordem em que são empregados pelo Químicos, ou seja: colocando-se o triângulo acima da figura cruciforme[…], temos, de maneira evidente e sensível, o quadro das duas substâncias opostas que nos formam e, ao mesmo tempo, o da imperfeição de nosso estado atual, em que o Ser pensante se encontra subjugado e como que sepultado sob o peso da forma corporal. Ao passo que, por sua natureza, estava destinado a reinar sobre ela e dominá-la, essa forma deveria ser-lhe absolutamente subordinada - e eis como todas as leis dos Seres poderiam ser úteis à nossa instrução. Podemos mesmo encontrar nisso uma nova prova da necessidade das manifestações superiores para ajudar o homem a se restabelecer em sua ordem natural a fim de que, reconduzida nossa essência intelectual à posição primitiva e superior à matéria, o edifício que fora derrubado segundo essa figura […] se encontrasse erguido assim […]: Por fim, podemos observar que na decomposição dos corpos o fogo princípio, seu flogístico, escapa a todos os meios corporais empregados para contê-lo. Isso equivale a uma idéia visível da distância que há entre a matéria e seu Princípio e, por analogia, de como o Princípio intelectual do homem é estranho ao seu envoltório. Se passarmos dos sinais naturais ao simbólicos, descobriremos neles as mesmas luzes. Os Mitólogos pintam-nos o Amor armado de flechas e Minerva saindo do cérebro de Júpiter. Por um lado, isso nos lembra que todas as afeições sensíveis que provêm dos objetos exteriores são destrutivas; e, por outro, que a sabedoria, a prudência e todas as virtudes que tenham sua sede no germe interior do homem podem nascer dele, à imitação do Ser do qual é a imagem e que tudo produz. Ou seja: que, se o homem intelectual cumprisse seu destino primitivo, não deixando alterar-se porção alguma de sua substância material, viveria menos daquilo que faria entrar em si mesmo do que daquilo que deixasse emanar pelos esforços de seu desejo e de sua vontade. Princípio justo, verdadeiro, fecundo e instrutivo, no qual se encerram todos os segredos da ciência e da felicidade. Mas o que hoje dificulta tanto ao homem usar esse princípio é que a aplicação a ser feita tornou-se dupla e dividida, porque deve referir-se não somente aos objetos de inteligência e raciocínio, cujas operações se passam na cabeça, mas ainda a todas as afeições virtuosas do desejo e do amor pela verdade sediadas no coração do homem. Assim, estando ligado a dois centros afastados um do outro, sua ação é infinitamente mais penosa e mais incerta do que quando esses centros estavam reunidos, ainda mais que, dada a distância imensa que os separa, sua comunicação pode ser interceptada com freqüência. E no entanto, se não agirem de acordo, só produzem obras imperfeitas. Os Mitólogos nos mostram uma Esfinge à porta dos Templos egípcios para lembrarem como a luz está hoje por nós envolvida de enigmas e obscuridades. Mas, ao nos transmitirem o emblema que a Esfinge representou quando foi enviada a Tebas21 pelo ciúme de Juno, eles nos ensinam que ela não é inacessível. Sabemos que Édipo, ao explicar o enigma que a Deusa mandava propor através de sua Enviada, não lhe deixava outra opção senão matar-se. Convenhamos, no entanto, ser bem fora de propósito que no símbolo a Esfinge acabe chegando a esse extremo, uma vez que Édipo apenas dava a explicação do homem animal e sensível e que há em nós um Ser infinitamente superior, única resposta pela qual todos os enigmas podem ser verdadeiramente explicados. Quando nos falam da moeda de ouro que as Sombras davam a Caronte para atravessar o rio, os mesmos Mitólogos nos mostram a que preço podemos ter esperança de alcançar essa luz. O homem jamais encontrará acesso às moradas de paz sem ter conquistado, durante sua permanência no mundo, riquezas intelectuais suficientes para ganhar e submeter aqueles que defendem os recintos da luz. E também não pode, durante a existência sensível e material, dar um só passo na direção da verdade sem pagar adiantado, por seus desejos e seu devotamento, ao Guia fiel que deve dirigi-lo na carreira. Enfim, os Mitólogos nos lembram, de maneira evidente e sem artifícios, a presença desse Guia junto do homem, ao nos pintarem o Paládio, ou a estátua de Minerva que desceu do Céu com o auxílio de Abaris, quando era erguido em Tróia o Templo dessa Deusa. Mostram-nos, ao mesmo tempo, a confiança que devemos ter nesse dom supremo, pois, a exemplo de Tróia e segundo o Oráculo que anunciara de que é que dependia a conservação da Cidade, estaremos para sempre em segurança, enquanto não deixarmos os Inimigos penetrarem pelos subterrâneos no Templo, chegarem até o Altar e roubarem nosso Paládio. Todas as alegorias que acabamos de ver bastam para convencer-nos de que, a começar pela primeira origem das coisas temporais, as Tradições mitológicas apresentam ao homem uma multidão de imagens fiéis de todos os fatos passados, presentes e futuros que lhe devem interessar; que ele pode ver neles a história do Universo material e imaterial, a sua própria, isto é, o quadro de seu esplendor original, o de sua degradação e o dos meios empregados para reabilitá-los em seus direitos. Quanto aos que querem limitar as Tradições mitológicas aos fatos históricos, nada vendo nas antigas Divindades além de Heróis ou personagens célebres, cremos que podem ter razão em alguns pontos, mas é preciso que confessem também que a maior parte dessas interpretações particulares só foram feitas posteriormente e segundo tradições mitológicas já existentes. De sorte que não deixamos de reconhecer que a Mitologia primitiva foi hieroglífica e simbólica, ou seja: que encerrou as verdades mais importantes para o homem, e de tal modo necessárias que elas não deixariam de existir mesmo que as Fábulas, outra espécie qualquer de Tradição, não nos tivessem dado uma idéia delas. Terminaremos aqui com as Tradições para não atrasarmos nossa marcha e não arriscarmos interpretações que, por demais profundas para serem entendidas de maneira geral, não pareceriam ter todas a mesma evidência, podendo com isso espalhar dúvidas e desconfiança sobre as que fossem mais claras. Mas as observações que acabamos de ver não se limitam apenas às Tradições mitológicas gregas e egípcias: a Teogonia, a cosmogonia e as Doutrinas religiosas dos Povos antigos, tendo tido um Princípio e um alvo comuns a toda a espécie humana, devem apresentar-nos os mesmos quadros e as mesmas verdades. 21 Tebas grega. (N.T.) De fato, abramos o Shastah dos gentus, o Zendavesta dos parses, o Edda dos islandeses, o Chon-King e o Y-Ching dos chineses; em suma, consultemos as Tradições sagradas de todos os Povos da Terra, sem receio de afirmar que neles reconheceremos com facilidade o homem antigo, presente e futuro, assim como a expressão natural de suas necessidades e idéias porque, sendo o homem um Ser de todos os tempos e lugares, em toda parte só terá as mesmas necessidades e as mesmas idéias Entre as Tradições, tomemos a dos chineses como exemplo, pois, independentemente de serem favorecidas pela antigüidade, elas apresentam as relações mais notáveis com as verdades fundamentais concernentes à ordem das coisas visíveis e invisíveis. Falam da queda dos primeiros pecadores, da formação do Universo pelas Virtudes do grande Princípio, por uma Vida que não recebeu vida. Vemos nelas a origem do gênero humano, o estado do homem na inocência, gozando das doçuras de uma habitação deliciosa, que era regada por uma fonte de imortalidade, dividida em quatro mananciais maravilhosos chamados caminho do Céu, de onde saíra a vida. Tudo era para ele uma perfeita harmonia. Todas as estações eram reguladas. Nada podia ser funesto nem causar a morte - isso chamava-se: a grande unidade. Ensinam que o desejo imoderado da ciência perdeu o gênero humano; que, depois da degradação do homem, os animais, pássaros, insetos e serpentes começaram a fazer-lhe guerra à porfia e que todas as criaturas se tornaram suas inimigas. Aí encontramos que, tendo-se perdido a inocência, surgiu a misericórdia. Reconhecemos mesmo imagens sensíveis dos caminhos da Sabedoria no famoso Fu-hi, ou Fo-hi, cujo fabuloso nascimento é figurado de maneira extraordinária, e que passa por ter instituído o Culto do qual ainda restam traços na China22. Passa também por ter inventado os Kua, sinais hieroglíficos e caracteres da primeira escrita dos chineses, que por seu sentido representam relações com a Língua dos hebreus, em que o termo Kua significa igualmente ele anunciou, ele indicou, sendo essas relações tanto mais fundadas por poder a língua hebraica, por mais de uma razão, passar por ser o tipo das outras Línguas. Observemos que os Kua chineses eram estabelecidos sobre os arranjos e as divisões de três linhas fundamentais, cujas diferentes disposições indicavam tudo que o Mestre queria ensinar a seus Discípulos, isto é, sem exceção, tudo o que é permitido ao homem conhecer, como os três elementos constitutivos do Universo bastaram ao Criador para multiplicar ao infinito as imagens de seus pensamentos aos olhos dos que os sabem ler. Fo-hi fez também o povo conhecer o ki, palavra que se traduz de modo sensível como o sopro do Todo-Poderoso, mas da qual se encontram ainda traços mais expressivos no hebraico, porque ki, ou kai, que dizer Vivo, ou a força da ação virtual do Princípio universal que dá existência a todos os Seres. Segundo os conhecimentos que admitimos ter Fo-hi transmitido aos chineses, não devemos surpreender-nos de que ele ocupe em suas Tradições um lugar tão elevado a ponto de elas não temerem atribuir-lhe a criação do Céu e da Terra. Se perguntassem por que razão aponto a língua hebraica como tipo das outras línguas, responderia que é porque a língua primitiva, da qual deriva, não é mais falada de maneira geral no Mundo; que não podemos ver como primitiva uma Língua sensível, fundada na forma, nas leis, sons e ações de todos os objetos naturais, visto que a língua do pensamento lhe é estranha. Responderia que é por que, em qualquer dialeto que se considere a língua hebraica, seja o siríaco, o árabe, o samaritano, ou o caldaico,23 ela oferece traços de todos os princípios que expusemos; porque suas raízes são quase geralmente compostas de três letras para nos lembrar as raízes universais de todas as coisas; porque essas raízes são verbos e só parecem ser substantivos aos que não observaram a ordem e a progressão da linguagem em sua fase mais brilhante; porque ela exprime essas raízes na terceira pessoa para que, dentre as três faculdades supremas, conheçamos em primeiro lugar a que está mais próxima de nós; porque só emprega os tempos passados e futuros, como se estivesse destinada somente às coisas temporais e aparentes ou nulas, e não às presentes e reais. 22 Observação para o leitor: este livro foi escrito há cerca de duzentos anos. V. nota 29. (N.T.) 23 Escrito antes de surgirem os grandes estudo lingüísticos. (N.T) E porque a linguagem só começou a ser convencional e a corromper-se quando passou a empregar o tempo presente, que não pode convir às coisas incertas e passageiras e pertence apenas ao Ser verdadeiro e fixo, cuja ação está sempre presente, como sempre foi e sempre será. Aproximando-se o nome de Fo-hi da Língua hebraica, com a qual todas as Línguas da Terra têm relações primitivas, poderíamos estender nossas idéias com referência ao célebre Legislador, sobre o qual os próprios sábios chineses são tão divididos que ainda não decidiram se sua existência é real ou se não passa de alegórica. O termo Fo-hi não está distante do termo hebraico Phé, que quer dizer boca; o termo hi está ainda mais próximo do afixo hebraico i, que ligado ao seu nominativo, quer dizer de mim. Estando próximo do hebraico, o termo Fo-hi poderia, pois, ter algumas relações com a expressão a boca de mim, ou minha boca. Digo simplesmente algumas relações porque aquelas que fazemos entrever não são diretas e inteiras e porque o próprio hebraico não traduz os termos minha boca por Phéi, que, parece, deveria ser a expressão natural, mas pela abreviação Phi. Que Fo-hi tenha sido, pois, um dos Agentes, ou uma das Virtudes subdivididas que tiveram necessariamente de mostrar-se no local habitado pelo homem, que não tenha passado de um homem comum, é certo, segundo as Tradições que lhe atribuem a criação do Céu e da Terra, segundo os sublimes conhecimentos dos quais sua Nação o reconheceu depositário, segundo o sentido mesmo que uma etimologia aproximada nos faz descobrir em seu nome, é certo, afirmo-o, que a China recebeu os mais resplandecentes traços de luz. Quanto às ciências naturais, não se pode duvidar de que os chineses se tenham aprofundado nelas quando se vêem traços seus que restaram, seja em monumentos astronômicos, seja em seu sistema musical - essa ciência, a mais simples e mais poderosa das ciências temporais, a única que abraça de maneira ativa e sensível todos as leis dos Seres, a única entre as coisas compostas que está sujeita a uma medida igual e constante, já que os próprios Astros, embora com períodos regulares, têm todos, no entanto, uma marcha cujas progressões não deixam de variar pela lei comum que os faz depender uns dos outros. Não somente os chineses foram profundos na ciência da música, mas também renderam homenagens à sua sublimidade aplicando-a especialmente aos cultos religiosos e às cerimônias com as quais honram os manes de seus antepassados. Pretendem mesmo que ser necessário que seus Músicos tenham costume puros e sejam penetrados pelo amor à sabedoria para tirarem sons regulares de seus instrumentos. De seus antigos e sublimes conhecimentos os chineses possuem apenas os monumentos que lhes transmitiram tais conhecimentos: também aconteceu entre eles o que pudemos ver em todas as Nações - que uns se prosternaram diante deles sem os compreender e que os outros os desprezaram. Ou, melhor dizendo, a Nação chinesa dirigiu seus olhares à moral e talvez a uma sábia administração, mas cujos frutos não se elevam acima da felicidade política. Mesmo seus Letrados, que nela parece exercerem a função de Deuses tutelares, esqueceram a instituição primitiva e como que se enterraram em pesquisas laboriosas sobre a veracidade de sua história comum, as leis civis, o Governo e, principalmente, sobre o conhecimento literal e tipográfico de seus Livros. Os famosos Kua, apresentados como contendo todas as Ciências, não obtêm deles mais do que um respeito estéril. Não lhes conhecendo o uso, eles os substituíram por essa multidão assustadora de caracteres - que se talvez se atenham à expressão sensível dos símbolos e fatos intelectuais realizados na terra, mas que hoje estão limitados a representar coisas aparentes - não sabendo mais aplicá-los à Natureza e às leis dos Seres. E, nessa visão, são outras tantas prisões que erguem para seu espírito. É assim que o homem que por um momento desvia os olhos do Princípio acaba por corromper tudo, vindo a considerar como fabuloso aquilo cuja realidade ele não tem mais inteligência e força para perceber. É por esta razão que não podemos considerar com excesso de prudência e de discernimento as Tradições alegóricas, mitológicas ou teogônicas, tanto dos chineses como dos outros Povos da Terra. Por ignorância e precipitação, todos confundiram e misturaram a maior parte de suas Tradições originais, seja com sua história civil e política, seja com suas leis e costumes convencionais, seja mesmo com as idéias monstruosas de uma imaginação grosseira e desregrada, o que desfigurou totalmente várias dessas Tradições. É, pois, através de uma profunda observação de si mesmo e de todas as leis dos Seres que se poderá encontrar no maior número de narrativas uma confirmação evidente do que dissemos antes: era necessário que as Virtudes divinas se manifestassem para que o homem degradado pudesse regenerar-se diante delas manifestando, por sua vez, a grandeza do modelo que o encarregou de ser seu símbolo e de levar seu caráter no Universo. Com essa precaução ativa e vigilante, reconheceremos facilmente que a Potência suprema só pôde mostrar-se de início aos homens sob uma espécie de subdivisão; como tinham sido feitos pela Unidade, essa subdivisão deve mantê-los num padecimento inevitável e fazê-los sentir o rigor dos Decretos divinos pela severidade da lei que a acompanha, designada nas tradições e alegorias de todos os Povos por traços de violência, de furor e da justiça mais rigorosa. Mas posso apresentar ao Leitor um fio a mais para conduzilo nesse labirinto: preveni-lo de que, como a mesma alegoria encerra verdades de várias ordens, é preciso seguir essas verdades segundo sua expressão natural; é preciso, de início, procurar na alegoria o sentido mais próximo ao da letra como sendo o mais inteligível e mais ao nosso alcance, e em seguida elevar-se ao sentido que o sucede de imediato. Por meio dessa marcha atenta e prudente, chegar-se-á ao conhecimento do sentido mais sublime que uma Tradição possa encerrar. Se essa ordem não for observada, se for omitido qualquer termo da progressão e se quisermos explicar-lhe demais os extremos, só encontraremos confusão, obscuridade, contradições, porque, ao negligenciarmos um sentido intermediário, ficaremos privados do único meio que podia tornar os objetos inteligíveis. Passemos às Tradições dos hebreus. Por mais vantajosas que sejam as descobertas que possamos fazer nos Livros hebraicos, eles não devem ser empregados como provas demonstrativas das verdades que se referem à natureza do homem e à sua correspondência com o Princípio: já que as verdades subsistem por si mesmas, o testemunho dos Livros só lhes deve servir de confirmação. Além do mais, os Livros dos hebreus, tendo em vista sua profundidade e a fecundidade da Língua em que foram escritos, prestam-se a um número tão grande de sentidos que são como que um campo de batalha em que cada Partido e cada Seita encontra algo com que ser atacado e algo de que se defender. É esse o motivo pelo qual nenhum daqueles que advogam a favor da santidade de tais livros, ou contra ela, sem outro recurso além das luzes vulgares, podem convencer-se, porque não dão às suas opiniões uma base natural comum, de modo que todas as suas objeções são reciprocamente insolúveis. Se os princípios até aqui expostos não se baseassem num apoio sólido, estaríamos fazendo pouco para o avanço da ciência ao lhes darmos como base Livros cuja aceitação, não sendo geral, sempre deixariam dúvidas sobre a autenticidade necessária para serem os fiadores da verdade. Mas, havendo estabelecido esses princípios sobre fundamentos inabaláveis, creio que posso pôr em uso tudo o aquilo que pode ampliar ou confirmar-lhes a certeza. E os Livros hebraicos parecem convir a esse fim. Tanto as tradições históricas quanto as alegóricas dos hebreus oferecem-nos as mesmas verdades oferecidas pelos outros povos. Demonstram de modo igual a degradação do homem, os esforços que ele deve fazer para apagar sua ignorância e os socorros que a ordem suprema está sempre a lhe conferir, a fim de apressar seu retorno à luz. Encontram-se nelas os mesmos signos das relações do homem com a Divindade, e da Terra com todas a Potências superiores. Encontra-se a mesma subdivisão das Potências com relação ao homem. Nelas tudo é, de modo igual, vingança e rigor, apresentando apenas a severidade de uma Justiça que não abre mão de quaisquer dos seus direitos. Assim, embora as Tradições somente ofereçam objetos sensíveis e corporais e de algum modo somente mostrem virtudes terrestres e pareçam prometer à espécie bens passageiros e recompensas temporais, devemos crer que tenham o mesmo alvo e que contenham a mesma doutrina das Tradições mitológicas. Com muito mais fundamento, pensaremos que em nossa época foram descobertas relações impressionantes entre vários personagens da mitologia egípcia e os das Tradições hebraicas, dos quais a egípcia, naturalmente, pareceria ser a primeira fonte. E se já percebemos a história do homem nas principais Tradições mitológicas, com muito mais razão devemos reconhecê-la em fatos que parecem ter sido o tipo e o germe das mais célebres da Tradições. Além do mais, vemos nelas os fatos reunidos ao dogmas e a ação à doutrina, ao passo que em todas as outras Tradições essas duas coisas estão quase sempre separadas. As Tradições Mitológicas egípcias e gregas contêm apenas fatos e muito poucas doutrinas. Os livros teogônicos dos parses, do chineses e de todos os Povos que, em sentido oposto, afastaram-se igualmente do tronco primitivo, encerram mais doutrina do que fatos, porque esses Povos negligenciaram a verdadeira ciência do homem, que deve desorientar-se com relação a seus fatos quando não os pauta pela moral, limitandose a moralizar quando não sabe agir. Maomé, que viveu entre os descendentes dos hebreus e entre eles nasceu, imita-lhes os Livros nesta parte. No Corão, alternam-se a doutrina e os fatos históricos. E embora esse Livro, salvo alguns traços de luz, não passe de uma coletânea confusa, repleta de preceitos imponentes; embora não conduza os homens à sua verdadeira natureza e avilte os meios pelos quais a Sabedoria suprema lhes prepara a regeneração, deixa-nos conhecer bem que é filho natural do judaísmo. E é por haver emanado do judaísmo que nos mostra com mais clareza a própria ilegitimidade: as coisas reais, e que tendem a um alvo verdadeiro, com o tempo se aperfeiçoam em vez de se deteriorarem e, quanto mais avançam no tempo, mais devem fazer brilhar sua beleza, grandeza e simplicidade ou, melhor dizendo: sua relação com as leis puras e vivas do tipo primeiro, que todos os Seres estão encarregados de manifestar, cada um em sua classe. Ao invés de o maometismo apresentar-se nesse aspecto e de ser mais perfeito do que o ismaelismo e o judaísmo, está infinitamente abaixo de ambos. Não tem as ciências divinas dos hebreus nem as ciências naturais de Ismael e, separado da força e da inteligência, colocou no lugar delas os direitos do gládio e o reino dos sentidos. Se os Livros dos hebreus, apesar de suas expressões obscuras e de sua singularidade, ou mesmo da atrocidade da maior parte de suas narrativas, nos exprimem outros direitos e poderes; se reúnem os fatos aos dogmas mais relativos ao nosso Ser e mais próprios a nos lembrarem as Virtudes de nosso princípio; se nos apresentam quadros mais expressivos do que as coisas que o homem procura e das que pode conseguir; e se esses Livros não oferecem um único Ídolo material que fale, só colocando em ação animais vivos, homens ou Seres superiores, devemos dar-lhes uma posição distinta entre todos os Livros tradicionais que nos são conhecidos. E até mesmo o nome hebreu (ghibri) não deixa de significar o verdadeiro tipo do homem atual: significa passante ou passageiro, para mostrar ao homem o que é a sua permanência na Terra. Nesses Livros realmente encontramos relações evidentes com as verdades mais profundas, sejam intelectuais ou sensíveis. As criações universais estão neles representadas como o fruto das faculdades invisíveis que precedem qualquer ato. O termo Rosh, que significa Princípio, cabeça, ou a sede do pensamento, pode significar o próprio pensamento. Bereshit, o primeiro termo do texto hebraico, pode ser igualmente traduzido tanto por No pensamento como por No princípio, que só se referem ao tempo. Assim, sem rejeitarmos a tradução No princípio, Deus criou, etc., poderíamos ler intelectualmente: No pensamento Deus criou, etc.", encontrando aí uma verdade a mais. Neles, as criações universais estão representadas como sendo o fruto de diversos agentes através das expressões singulares Bara Elohim (os Deuses criou24): imagem clara da verdade das coisas primeiras, na qual vemos, ao mesmo tempo, um fato e seis agentes colaborando para produzi-lo, visto que o termo Elohim apresenta seis letras distintas na sua pronúncia e as transforma em caracteres na versão grega de Sanchoniathon, embora tenha somente cinco em hebraico. É, pois, uma idéia fraca e falsa o temor que temos de impor limites à onipotência do princípio universal da vida ao admitirmos agentes secundários que realizam para ele as coisas perecíveis, mantendo-as em ação durante o tempo que lhes é prescrito. Essa potência resplandece ainda mais, pondo ordem nos resultados que são executados pontualmente e há obras que a sua grandeza e sublime simplicidade não lhe permitem executar. Os que quiseram lançar no ridículo a extraordinária expressão os Deuses criou apenas demonstraram seu pouco conhecimento das verdades naturais. Fingiram traduzir por ele fez o termo Bara, que também significa ele produziu, ele criou. Não nos deixemos enganar: a expressão ele fez anunciaria uma co-eternidade da matéria com Deus, cuja obra teria sido apenas modificá-la, ao passo que a co-eternidade só pertence ao Princípio imaterial da matéria. Nos Livros hebraicos, as criações universais são representadas como servindo de base e de sede ao espírito de Deus, o qual, segundo as Tradições vulgares, era levado25 sobre as águas, isto é: sobre os germes primitivos e invisíveis do Universo corporificado, a água é o germe primitivo das formas materiais. Em vez de Espírito de Deus, as traduções deveriam ter dito a ação fecundante dos Agentes, Elohim, colocados à frente da produção dessa grande obra, pois no hebraico os nomes próprios são reais e essencialmente constitutivos. Ora, o termo Ruach, traduzido como Espírito, não é dessa classe. Significa apenas sopro, expiração. Então, quando aplicado às emanações e ações superiores, só pode sê-lo por analogia com o sopro dos ventos, a expiração dos animais, a qual, em sua classe, é um tipo de emanação. Mas em nenhum desses exemplos tal tipo de emanação deve trazer o nome do próprio Ser, que é o seu Princípio nem deve confundir a ação com o agente, se quisermos caminhar com retidão. Reunamos agora os três quadros contidos nos termos Bereshit, Elohim e Ruach. Um deles apresenta o pensamento supremo concebendo a produção do Universo; o segundo, o número de agentes, ou o plano ativo de sua execução; o terceiro, o meio pelo qual essa execução é realizada. Reconheceremos nesses três agentes uma relação natural com as três faculdades intelectuais cuja existência no homem já demonstrei antes. Quanto ao desenvolvimento sensível das criações universais, vemos nos Livros que ele foi realizado por um meio semelhante ao empregado pelo homem para a execução de sua vontade, já que, se ele só fala, de qualquer maneira que seja, àquelas que quer fazer agir, essa vontade permanecerá nula e sem efeito. As criações universais são representadas separando as águas inferiores das águas superiores, as trevas da luz. Por conseqüência, é esse o fim de sua existência, já que é esta a lei delas, já que até hoje as menores vegetações corporais só adquirem a vida e a conservam se ocuparem um lugar intermediário entre a trevosa morada de sua formação e a região de onde desce a luz elementar. Quadro sensível de uma separação mais importante que operou pela origem do Universo, que se repetiu no homem prevaricador e em toda a sua posteridade e que, para desaparecer, nada mais espera do que o concurso e o complemento da ação de tudo o que recebeu existência. Este grande fato é indicado mesmo pela palavra Aretz (Terra), que significa igualmente Região, Universo, pois deriva do verbo Ratzats (ele quebrou, estreitou, comprimiu). E devemos desconfiar ainda menos da idéia de que a palavra Aretz conservou, na maior parte das Línguas modernas, uma similitude evidente com sua raiz, tanto pela forma quanto pelo sentido. O alemão chama a terra de erd26; o inglês, de heartz27; o latim, por inversão, terra, donde o francês terre28, arrêter29, hart30. Todas são expressões em que a forma e o sentido primitivo são fáceis de reconhecer - e eis o motivo pelo qual a terra é chamada de teatro de expiação. Nestes livros, as leis da Física estão expostas com inteira justiça; a divisão senária, através da qual o Escriba apresenta simbolicamente por Dias a obra da formação das coisas temporais, está de acordo com a Natureza. 24 Sic! - "les Dieux créa", e não "les Dieux créèrent". (N.T.) 25 Em português, pairava; em espanhol, movíase. (N.T.) 26 Assim está no original. Deveria iniciar com maiúscula, segundo o costume alemão de usar esse tamanho de letra em todos os substantivos. (N.T.) 27 Atualmente, earth. (N.T.) 28 E o português terra. Como o original deste livro é francês, o autor empregou "d'où le français terre", que preferimos manter. (N.T.) 29 Prender ou deter alguém, deter-se. Mas os estudos lingüísticos posteriores não confirmarão tal origem. O acento indica a queda de um s. veja-se o inglês arrest, de origem francesa. (N.T.) 30 Vime verde com que se atam os feixes ou molhos de lenha.. É a lei manifestada na relação do raio com a circunferência, através da qual o Escriba quis ensinar-nos que foi um número de seis ações reunidas que concorreu na corporificação material do Universo; ensinar-nos que, conseqüentemente, este número de seis ações deve dirigir todas as coisas sensíveis, assim como dirigiu lhes a origem; que deve dar-se a conhecer não somente na direção dos corpos universais e particulares, mas também nos períodos de existência que lhes são concedidos. Independentemente da relação metafísica senária do raio com a circunferência, estas verdades são representadas na parte celeste, onde seis astros planetários agem e se movimentam sob o olhar de um sétimo astro que é seu chefe e dominador. São representadas materialmente nas seis potências simples da mecânica que servem de móveis fundamentais a todos os movimentos dos corpos. São representadas temporal e intelectualmente na música, que só tem movimento regular quando sua marcha é senária porque, embora só percebamos claramente uma quinta entre a dominante e a tônica, não deixa de ser verdade que essa quinta encerra duas terças bem distintas. Enfim, são representadas corporalmente nos seis glóbulos linfáticos e brancos que, segundo os Fisiologistas, constituem cada glóbulo vermelho de nosso sangue. Os Povos do Oriente, pelos quais as Ciências foram transmitidas no Universo, oferecem-nos fatos que apóiam o princípio por nós exposto: em todas as suas medidas de tempo e em seus períodos eles procedem pelo número seis ou pelos seus múltiplos e o famoso período de seiscentos anos, conhecido desde a mais remota antigüidade pelas Nações primitivas, está acima de todos os períodos cuja descoberta e emprego foram feitos em seguida pelos Astrônomos em vários lugares da Terra. Por fim, os Povos da América tinham como certo que o Universo fora formado por seis homens que, antes de haver uma terra, eram levados no ar ao sabor dos ventos. Daí podemos inferir que relações tão exatas, conhecidas por essas Nações tão distantes e estranhas umas às outras, não teriam acontecido se, ao seguir a divisão senária da circunferência pelo raio, não houvessem também seguido a verdadeira medida natural das coisas criadas. Daí se pode igualmente concluir que o Escriba hebreu nada nos transmitiu de imaginário ao nos apresentar a formação do Universo pelas leis desse mesmo número. O número de seis dias, deve ser simbólico: Deus, agindo no vértice do ângulo, não conhece tempo algum; nossos dias temporais formam-se apenas pelas revoluções do sol e, segundo o próprio Historiador, o sol foi formado somente no quarto dia. Este número, repito, anuncia, pela sua divisão em dois ternários, a lei de ação e reação necessária à existência e à criação das coisas temporais, sendo o número observado pelo Escriba Hebreu. Ele representa a terra e tudo o que ela contém, como o primeiro ternário, pois foi no terceiro dia que todas as coisas acabaram de ser formadas; representa os astros e tudo o que não está necessariamente contido na terra, como o segundo ternário que domina o primeiro e o faz entrar em ação. É apenas no segundo ternário que nascem os Seres viventes, não sendo indiferente observar que o Sol e a Terra desempenham então funções semelhantes às que os vemos executar hoje em dia. Foi pelo calor do Sol agindo no quarto dia sobre a Terra - formada no terceiro - que os animais ganharam existência: lei que se repete na reprodução de todas as espécies pela união do macho com a fêmea. Aqui a Física nos detém. Apresentamos a criação do Universo como sendo feita sem contagem de tempo, mas o globo terrestre oferece vestígios aparentes de uma formação lenta e contínua. Apresentamos o nascimento do Universo como um fato único, e a superfície da terra está coberta de substâncias que parecem haver nascido e se consolidado somente depois de muitos séculos. E a cronologia dos Livros hebraicos dá ao mundo uma antigüidade medíocre, comparada à que as observações feitas na Natureza parecem atribuir-lhe. É preciso examinar tais dificuldades. Os Observadores da Natureza ensinam que a origem das coisas foi acompanhada de um calor tão grande que o Universo permaneceu por longo tempo inabitável depois do instante de seu nascimento. De início, nós lhes perguntaríamos se seu pensamento não tem aversão a essa progressão tardia, a essa interrupção na execução das obras de uma mão poderosa que, por sua própria natureza, não deixa de agir um só instante. Ao mesmo tempo, perguntar-lhes-íamos que alvo, que objeto irá preencher o intervalo que eles querem admitir entre a origem das coisas e sua formação e que destino imaginariam para um mundo sem Habitantes, pois, mostrar-nos obras sem um alvo, sem um objeto, é retratar-nos, no Autor delas, um Ser desprovido de sabedoria; e, empregar a razão para anunciar um Ser assim, seria fazer uso errado dela. Eles engendraram tais sistemas apoiando-se em fatos secundários que têm diante dos olhos, tais como a reprodução dos Seres particulares, realizada somente em espaços de tempo proporcionais à própria classe, e como os sedimentos e as diversas camadas de substâncias minerais, acumuladas com o decorrer dos séculos. Foram enganados por essas comparações. Não distinguiram os fatos segundos dos fatos primeiros, as criações inferiores e passivas das criações primordiais movidas por uma vigorosa atividade. É uma lei constante que, quanto mais próximos os Seres estão do princípio primitivo, mais poderosa é a sua força geratriz, força que não se mostra somente nas qualidades da criação, mas também na celeridade com a qual é gerada porque, sendo o Princípio primitivo independente do tempo, os Seres não podem elevar-se até ele sem gozar, segundo sua medida e seu número, dos direitos e das virtudes dele. E se quisermos ver a prova disso no próprio homem, basta-nos comparar a lentidão de seus movimentos sensíveis e corporais com a prontidão de seu Ser intelectual, que não conhece nem tempo nem espaço, e que em pensamento transporta-se instantaneamente aos lugares mais afastados. Mas, sem deixarmos a classe física, observemos que, quanto mais lento for o crescimento dos Seres, tanto mais grosseiro é o germe que os produz. É por isso que os germes de os Seres particulares na Natureza são corpóreos e visíveis, visto que suas criações só se formam por uma seqüência de tempo. Porém, sendo a criação geral fruto de um Princípio e de um germe que não são corpóreos, mas invisíveis, como os móveis interiores que nos dirigem em todos os atos, essa criação geral deve ter nascido sem contagem de tempo. Não negaremos, pois, que os princípios que produziram a Terra e o Universo material sejam superiores ao princípios terrestres geradores os animais e as plantas. Além disso, os animais e os vegetais devem ter tido, na origem, uma força e uma vida superiores àquelas das quais desfrutam hoje, já que a Natureza se altera, como todas as coisas corruptíveis. Como conseqüência, os animais, e vegetais atuais poderiam ser considerados como frutos secundários relativamente aos antigos e aos que a terra princípio gerou pelo calor imenso de seu fogo central, da mesma forma que estes últimos são secundários com relação às fontes invisíveis e superiores que constituíram a Natureza universal. Na ordem física atual, dificilmente podemos encontrar provas dessa verdade. Sendo tudo secundário, as diferenças entre as reproduções e seu Princípio, embora bem certas, são por demais sensíveis para encontrarem lugar nas demonstrações rigorosas e, além disso, quando essas reproduções chegam ao termo final, retomam o sentido inverso das produções primitivas, porque o círculo tem de fechar-se. É por isso que ,depois que o verme entra no estado de crisálida, sai dele com o brilho da borboleta, de onde devem sair novos vermes, e é por isso que todos os mortais, ao serem engolidos nos sombrios horrores da terra, tocam mais de perto os raios puros da luz do que quando vagueavam pela superfície. Mas, se não temos provas atuais e ativas da diferença dos Princípios primeiro e segundo, temos pelos menos a sua analogia. Em primeiro lugar, nas várias experiências à disposição daqueles que, sabendo chegar, de certo modo, à idéia do fogo princípio, realizam vegetações materiais em um tempo mais curto do que aquele que é empregado pela Natureza para a reprodução das suas. Em segundo, na nubilidade precoce dos animais que habitam as regiões vizinhas do Equador. Por último, na alteração sofrida pela Natureza à medida que se distancia da época de sua formação, já que, pelos ossos enormes e pelos vegetais petrificados que nos restam dos tempo antigos, é indubitável que as primeiras criações devem ter sido bem mais fortes e mais vigorosas do que as de nossos dias e que, até mesmo pelo esgotamento da Natureza, várias espécies, aquáticas ou terrestre, se perderam. Se é evidente que em todos os gêneros os Princípios secundários são inferiores aos Princípios primitivos, por que, pois, assimilá-los? Por que querer igualar Agentes tão desproporcionados: os que se pronunciam a partir de semelhantes cálculos não estarão expostos a emitir falsos resultados? A lentidão das reproduções diárias da Natureza nada devem fazer, pois, contra a atividade dos Agentes que dirigiram a origem das coisas e todas as criações primordiais. Quando os Observadores querem considerar a origem das substâncias calcárias que percebem em toda a superfície terrestre, elas apresentam duas dificuldades: uma relativa à sua enorme quantidade e a outra relativa às eras necessárias para consolidá-las e convertê-las em pedra. Mas não bastaria a própria doutrina do grande calor central para resolver essas questões sem recorrer a explicações que contrariam a idéia natural que temos da atividade do grande Ser, e que não podem ser confessadas pela razão porque só lhe apresentarem obras sem finalidade nem objeto? Certamente o calor central foi maior do que é hoje, mas não é preciso crer que tenha sido tão grande a ponto de tornar a terra inabitável, o que iria contra a sabedoria da Natureza e o objeto de sua existência. Basta que tenha sido o suficiente para dar nascimento súbito às criações primitivas que, por sua vez, terão dado nascimento a numerosas criações secundárias num tempo mais curto do que o necessário hoje para os mesmo fatos. Foi esse calor que conseguiu consolidar prontamente os minerais, vitrificar o granito, a argila, os jaspe, o pórfiro, a rocha viva e o quartzo, em suma: operar as vitrificações que compõem o cimo das montanhas e a maior parte dos rochedos. Foi esse calor que conseguiu calcinar tão rapidamente a enorme quantidade de conchas das quais resultaram o mármore, o espato, a greda, as estalactites e todas as criações que podem converter-se em cal. Esse mesmo calor teria ligado às substâncias argilosas e às terras calcárias os enormes bancos de conchas inteiras e perfeitamente conservadas, que se encontram em vários lugares da Terra. Além do mais, da mesma forma não poderíamos deixar de reconhecer a ação da água nesses grandes acontecimentos: tudo nos diz que ela agiu com tanto poder quanto o fogo, pois ela ainda hoje tanto consolida quanto dissolve o basalto, as lavas e outras tantas substâncias vitrificáveis metálicas e calcárias, assim como o fogo tanto divide quanto consolida e vitrifica. E se a ação o fogo é ainda demonstrada sob nossos olhos oferecendo-nos vulcões até no meio do mar, a da água não é menos sensível, no sentido de que diariamente realiza decomposições e recomposições terrestres. Acreditar que o fogo possa agir sem a água e a água sem o fogo equivaleria a não se ter a menor idéia sobre o que a Natureza é, já que ambos estão sempre contidos um no outro e porque, sem a sua combinação, combinação esta que é desconhecida dos homens, a própria Natureza não existiria e nada nela teria forma. Se estamos convencidos de que o fogo agiu nos primeiros tempos da explosão das coisas com muitíssimo mais atividade do que age hoje e que a diminuição do calor é a causa da esterilidade atual dos Pólos e da perda de várias espécies de animais terrestres, devemos aplicar à água o mesmo julgamento, visto que a vemos diminuir sensivelmente na terra e que temos também provas de que algumas espécies de animais aquáticos foram destruídas. A própria terra teve sua ação a cumprir nos primeiros tempos, e essa ação teve também mais intensidade do que tem hoje. Se o fogo é o começo e o fim do elemento, se a água é o começo e o fim da corporificação, a terra é o começo e o fim da forma. As forças desses elementos se equilibram, pois, mutuamente. E, só quando deixarem de estar em equilíbrio, deixará o Universo de existir. Digamos de passagem que, sendo o fogo o começo e o fim do elemento, tudo indica que o fogo encerrará a existência do Universo, assim como foi ele que o começou: é esta a marcha desse agente, ao mesmo tempo criador e destruidor. A terra inclina-se desde a origem em direção ao fogo central para com ele se reunir. O céu dos Planetas a acompanha para se reunir a ela. Isso é pouco percebido de maneira corporal porque a atmosfera é levada juntamente com toda a máquina, mas, quanto mais as massas se aproximarem do fogo central, mais a água se dissipará. No fim, nada mais restará do que a massa de sal. Então os Princípios ígneos nela contidos, fermentando sobre si mesmos, irão abrasá-la e atravessá-la para se unirem novamente ao seu fogo princípio. Se a potência da água e a da terra foram outrora maiores do que hoje, temos nelas um meio a mais para explicar os antigos e prodigiosos fenômenos terrestres, bem como as célebres catástrofes da Natureza. sem contar um quarto agente ainda mais ativo do que o fogo, a água e a terra, e do qual teremos ocasião de falar daqui a pouco, quando examinarmos a principal dessas catástrofes. Se quisermos refletir na consolidação súbita que as substâncias terrestres recebem todos os dias pela propriedade das águas de algumas fontes, ou mesmo pelas manipulações dos Artistas que sabem dirigir as forças da Natureza, não mais nos admiraremos de que os elementos primitivos tenham operado os mesmos resultados, sendo inútil recuar, tanto quanto já se fez, a época e a origem do mundo para esclarecer as dificuldades que ele nos apresenta. Os Livros hebraicos nos falam de um sétimo dia, ou do Sábado, que encerrou a Obra da criação. A palavra Sábado, traduzida como Repouso, declara apenas que o número do Universo estava completo. E indica tão pouco uma cessação, um nada na ação da Divindade, que está escrito que ela santificou esse dia, o que significa que ela acrescentou à existência do Universo virtudes superiores às que o haviam formado, uma vez que estas não eram santas. Se não fosse abusar dos privilégios da ciência etimológica, poderíamos encontrar no termo hebraico Shebet, ou Sabath, um sentido de grande sublimidade, pois na raiz esse termo significa ele se assentou, ele se postou. Seria então dizer que Deus, ao sétimo dia, postou-se, veio habitar, veio estabelecer sua sede em todas as suas obras. Relações sagradas e dignas da atividade universal do grande Ser, mas que não podem ser apresentadas de maneira positiva, visto que sofreriam algumas contestações ao pé da letra do texto, embora sejam justificadas pelas mais puras luzes da inteligência. Não é menos verdade que no sétimo dia a Sabedoria suprema apresentou ao homem objetos mais relativos ao seu Ser do que o haviam sido as virtudes senárias. E é bom observar que o homem teve o nascimento temporal, depois de todos os Seres da Criação, ficando assim mais próximo das Virtudes santas e setenárias que deviam consolidar-lhe a existência. Assim, nos livros hebraicos vê-se a dignidade do homem, o único a ter, sobre todos os Seres, o direito sublime de ser produzido pela própria Divindade e, segundo o texto, em imagem de Deus, ou seja como sendo dele a expressão e o símbolo: relações vivas e ativas, que os Tradutores traduziram impropriamente em suas palavras como à imagem e à semelhança de Deus, mas que indiquei no início desse Escrito e que encontram aqui uma feliz confirmação. Vemos aí o homem, colocado num lugar de delícias, junto à própria Vida, da qual corriam quatro rios e sem ter recebido outra proibição senão a de aproximar-se da ciência do bem e do mal, que se achava com ele no mesmo recinto, do mesmo modo que ainda hoje habita conosco. Vemo-lo estabelecido pelo Autor das coisas sobre todas as obras de suas mãos, na posição de comandá-las e submetê-las ao seu domínio. Não podemos duvidar de que o homem, em sua própria degradação, manifeste essa lei gloriosa, conduzida exclusivamente em seu favor, visto que ele ainda apresenta no corpo a base sensível de todas as medidas e que, apesar de sua ignomínia e fraqueza, não deixa de trabalhar para sujeitar a Natureza. Mas vemos também o homem despojado ignominiosamente desse domínio e conservando hoje dele apenas a figura mais imperfeita, como se houvesse feito aliança com a ilusão e o erro, pois o termo hebraico crb31 Nacash , do qual é tirado o nome da serpente, significa sedução, encantamento. "E até a serpente, animal tão desproporcionado, Ser desprovido de qualquer armadura corporal, sem escamas, sem plumas, sem pelo, sem pés, sem mãos, sem nadadeiras, possuindo toda a força nas fauces, força que não passa de peçonha, morte e corrupção, a serpente, repito, traz consigo sinais físicos e análogos à sedução à qual o pensamento do homem é susceptível. Dentre todos os animais ela é o único que tem a propriedade de formar um círculo perfeito com o corpo, com isso apresentando-nos, sob uma aparência regular, a forma e a base de todos os objetos sensíveis e compostos. Ao formar um círculo vazio, em que não vemos um centro, ela tem a propriedade de nos fazer perder de vista o Princípio simples do qual tudo descende e sem o qual nada existe. Portanto, não é de se admirar que vejamos tanto antagonismo entre o homem e a serpente, pois o homem, ao contrário, está ligado ao centro pela proporção da forma, ao passo que, na sua, a serpente só apresenta a circunferência ou o nada. Que isso não seja tomado como um jogo de imaginação: sob essas relações há importantes verdades veladas. E é nisso que encontraríamos, para nos instruirmos, relações metafísicas que existiram outrora entre o homem, a mulher e a serpente e que hoje se manifestam materialmente entre eles, em toda a regularidade dos números." Vemos, nos Livros, dolorosas punições ligadas ao erro e ao crime do homem. Ao buscar a luz em outro Princípio além daquele que o possui, ele perdeu de vista até mesmo o menor dos raios, como todos aqueles que, desde então, ao buscarem instrução e ciência em outro lugar fora dos princípios imateriais de todas as classes, tornaram-se estranhos à inteligência. E foi essa nudez que fez o homem envergonhar-se depois do pecado, mantendo igualmente toda a sua posteridade no opróbrio até que ela haja reencontrado suas primeiras vestes. "Pois a nudez que os Livros hebraicos lhe atribuem antes de seu crime e da qual se diz que ele não se envergonhava, apresenta uma outra verdade. O termo gharoum (nu), provém da raiz árabe ghoram, que significa "um osso despojado da carne". Ora, o osso é o símbolo sensível do termo força, virtude, pois o osso é a força e o sustentáculo do corpo. Por outro lado em nossa língua o termo osso, remonta, através do termo latino ossum, até à raiz hebraica ghatzam, que significa uma força, uma virtude. Assim, pois, apresentar-nos o primeiro homem em estado de nudez equivale a dizer-nos que ele era um Ser imaterial, uma virtude, uma força, uma potência desnudada de carne, ou sem corpo de matéria. Isso parece tão mais verdadeiro que na passagem seguinte o homem é apresentado sem mais enrubescer por causa da nudez. Realmente, já que a confusão que inspira o pudor só se prende aos sentidos carnais, o fato de o homem, embora puro e esclarecido, não experimentar então vergonha pela nudez nem quaisquer impressões de pudor, é uma prova evidente de que ele não possuía sentidos carnais." 31 ckn. O que está no original parece mais barash, pois as letras são beth, resh e shin. Se os Livros hebraicos ensinam sobre a horrível degradação do homem, confirmada por nosso estado atual, declaram de maneira ainda mais clara, os diversos socorros concedidos para a regeneração e dos quais vimos a necessidade, fundada no laço indissolúvel do chefe divino com sua imagem e no amor no qual vive abrasado pelo homem, extrato de sua essência e de suas virtudes. É por isso que no meio de todos os flagelos que acompanharam as muitas prevaricações da posteridade do homem, sentidas pela natureza até mesmo nos Princípios fundamentais, os Livros hebraicos que conservaram as narrativas sobre eles apresentam virtudes poderosas, postas em ação uma após outra para reparar as desordens. Nelas vemos, em épocas diferentes, seres virtuais: uns agem sobre a água, outros sobre o fogo, outros sobre a terra, repetindo nessas regenerações particulares o que aconteceu quando da regeneração primitiva, em que, antes de reabilitar o homem, seria preciso restabelecer seu domínio. O primeiro exemplo oferecido pelas Tradições hebraicas sobre essas verdades é a narrativa das prevaricações antigas, em que Nações inteiras dos primeiros tempos foram apresentadas como entregues ao império dos sentidos materiais a ponto de corromperem todos os caminhos da natureza, tendo merecido a punição pelo elemento da água. É ao mesmo tempo o quadro dos meios então empregados pela Sabedoria suprema para conservar na terra um asilo para as virtudes do homem justo e de todos os seres da criação. Quanto mais assombrosa parecer a influência geral dos crimes do homem sobre o elemento, mais somos forçados a concordar que somente a grandeza de seu ser pode resolver esse problema. Sua origem sublime é um testemunho verídico da extensão de seus direitos. Se não se deve impor limite às suas virtudes nem, conseqüentemente, aos frutos que são a recompensa delas, também não se deve impor limite às suas prevaricações nem às conseqüências que devem naturalmente acompanhá-las. Assim como o homem pode exercer o império de seus direitos legítimos e receber da natureza inteira as homenagens devidas a um Soberano, também pode mostrar sinais de traidor e de rebelde, atraindo sobre si o rigor das Potências que tivesse querido usurpar. Se quisermos descobrir a verdadeira causa do dilúvio, não nos detenhamos exclusivamente nos crimes carnais das primeiras Posteridades do homem: há uma desproporção grande demais entre a influência desses tipos de excesso sobre a dissolução dos corpos e o fenômeno destruidor apresentado pelo escriba como produzido pelo concurso de toda a Natureza: o enfraquecimento corporal do indivíduo que se abandona a tais excessos é a sua punição natural, o que deixa a justiça superior satisfeita, sem que precise estender a ação dos elementos primitivos universais. É preciso então admitir que as primeiras Posteridades puderam entregar-se a extravios mais consideráveis e a atos criminosos com poder suficiente para atrair sobre si flagelos sem limites e sem medida. Se o primeiro crime do homem o deixou sujeito aos elementos, mergulhando-o na imensa região das ações sensíveis e confusas, que erro cometeria ele se cresse que, por causa de semelhantes crimes, iria expor-se novamente ao furor dos elementos? A única diferença que devemos observar é que, como o homem primitivo não estava ainda materializado à época do primeiro crime, ele ressentiu a ação do próprio Princípio dos elementos, ao passo que, nas prevaricações de sua posteridade os elementos agiram sobre o homem através da ação grosseira, porque ele próprio está corporificado de maneira grosseira. Ora, segundo as noções físicas apresentadas neste escrito, devemos saber que a primeira aparência da corporificação das coisas grosseiras e sensíveis é a água. Esse flagelo extraordinário deve deixar de parecer impossível, visto que não é impossível ao homem ficar exposto a ele. E se os homens têm em si o direito de poder provocar a justiça de diversas maneiras, ela deve estar também pronta a deixar cair sobre eles o tipo de punição que seus crimes lhes acarretam, pois a possibilidade do pecado não deve ultrapassar a possibilidade da punição, sem o que a verdade estaria em perigo. Observemos, tomando sempre o físico sensível como guia, que, como nos indivíduos humanos a maior efervescência dos sentidos se faz sentir no primeiro terço da vida, ela deve ter seguido a mesma época para o homem em geral, e que os crimes intelectuais que puderam acompanhar os desvios e atrair as grandes catástrofes devem ter, por analogia, a mesma data. Donde, com atenção, poderíamos conseguir alguns esclarecimentos sobre a idade do Mundo e a época do Dilúvio. Foi em vão que os Observadores atacaram a realidade do Dilúvio, pela impossibilidade, segundo seus cálculos, de haver sobre a terra um volume de água suficiente para cobrir-lhe toda a superfície e elevar-se até às mais altas montanhas. Essa objeções têm por base apenas a falta da inteligência dos Tradutores e os erros espalhados pelos sistemas sobre a natureza da matéria, não reconhecendo nela outros princípios além dela mesma. Embora ao pé da letra o vocábulo hebraico hbra32 (arubboth), signifique cataratas, não seria, segundo os mesmos Intérpretes, derivado do verbo bbr (rabab), ou rbr33 (raba), que quer dizer ele foi multiplicado? Então o texto apresenta a idéia natural de uma ação mais extensa no agente que produz a água e, de modo algum, a do simples escoamento de uma água já existente, porque então haveria somente união, agregação, sem que víssemos o ato de um Ser vivo que cria e multiplica. De acordo com esse princípio, não poderíamos contestar a possibilidade das grandes revoluções da Natureza, o excesso de um elemento sobre outro e, como conseqüência, os flagelos universais que podem desabar sobre Regiões, Povos, e a Terra inteira. Seria preciso que começássemos negando a existência do próprio Mundo, já que ele é resultado aparente da ação viva e combinada dos elementos que alternativamente se combatem e se sobrepujam no seu recinto, manifestando uns para com os outros a vida e as leis recebidas das Potências supremas Os Observadores contestaram igualmente a existência da célebre Arca, construída pela ordem suprema, para conservar um rebento da raça humana. Qualquer que tenha sido essa Arca, por representar o Universo, ela teve, como ele, de encerrar, em natureza ou em princípios, todos os Agentes e faculdades que o compõem. E se as coisas parecem inexplicáveis para o homem que caminha na sua lei, elas não o são mais para aquele que a conhece e tem a idéia que deve ter de sua grandeza e dos direitos de seu Ser. Acrescentemos que, como o primeiro germe vivificador das coisas, a Arca foi levada sobre as águas; que como ele, ela flutuava sobre o caos e sobre o abismo terrestre para devolver, no tempo prescrito, a vida da qual estava privado; e que, como esse germe vivificador, continha um Agente puro, uma fonte viva de justiça e santidade, na qual os homens nascituros deveriam encontrar ainda vestígios do primeiro esplendor. Com relação à Arca, não posso eximir-me de convidar os Observadores a lançarem os olhos sobre as Tradições chinesas. Verão nelas que "o caráter que exprime barca, navio é formado pela figura de um navio, pela figura de boca e do algarismo oito, que pode fazer alusão ao número de pessoas que estavam na Arca. Encontram-se ainda os dois caracteres oito e boca, juntamente com o de água para exprimir navegação feliz34." Se isso for acaso, está bem de acordo com o fato. Dirijamos o olhar por um instante para os vestígios tão confusos e variados da inundação geral e do transtorno universal, cuja certeza em toda parte é atestada pelos sinais gravados em toda a superfície terrestre. 32 hbra ou tbra ? 33 rbr ou hbr, abr, br? 34 Este itálico é da tradutora.

No ponto da Física do qual já tratei, com relação à origem do Universo, tive em vista os resultados regulares que parecem ter acompanhado seu nascimento. Aqui considero-lhe as desordens. Nessa inundação geral que não podem negar, os Observadores querem ver apenas um fato físico, isolado e independente das relações que ele deve com a grande obra na qual estão empregadas todas as potências dos Seres. Mas se o plano imenso exposto nesses Escritos puder ampliar suas idéias sobre a natureza do homem e sua ligação com todas as coisas visíveis e invisíveis, eles encontrarão novos esclarecimentos nas mesmas tradições hebraicas, em que as leis das coisas são delineadas com fidelidade porque lançam em jogo todas as causas e todos os Seres. Verão nelas que, para terminar o Dilúvio, independentemente da ação dos elementos em convulsão, uma força superior fez cessar a ação do princípio da água, enviando ao mesmo tempo um ar, ou um sopro ativo, que, agitando em todos os sentidos as águas espalhadas sobre a terra, ocasionou enormes transposições de substâncias terrestres de um clima para outro, provocando, num tempo muito curto, revoluções que exigiriam tempos sem limites se não tivessem sido apenas o resultado de simples ações elementares. Não nos surpreenda, pois, que de uma combinação de ações tão opostas e violentas hajam resultado efeitos físicos tão bizarros e inexplicáveis quando se suprimem alguns dos Agentes que devem ter contribuído para produzi-los. Acostumemos nossos olhares a captar o conjunto dos princípios se quisermos captar o conjunto dos fatos. À famosa época do Dilúvio sucede um novo extravio da posteridade do homem, na qual os criminoso tentam usurpar as Virtudes dos Céus por vias terrestres, materiais e impuras, escondidas sob a expressão de um edifício audacioso que, construído de tijolos e tendo como argamassa o betume, proclamava simultaneamente a tola impiedade dos que o construíam e o pouco de consistência que sua obra devia ter. A seqüência desse crime foi a célebre confusão das Línguas, que dividiu um mesmo Povo em diversas Nações. Esse símbolo declara bem mais ainda a obscuridade e a confusão da inteligência dos Povos do que a variedade de sua linguagem sensível e intelectual - embora seja verdade que, formando a partir daí várias Seitas esparsas e separadas, em seguida eles viram a sua língua comum e primitiva alterar-se com o tempo, produzindo uma multidão incontável de outras línguas, quase absolutamente estranhas umas às outras. A divisão das línguas, perpetuada por toda a superfície da terra, reflete de maneira típica a situação atual do homem para quem, depois da queda, a Língua de todos os Seres verdadeiros que o cercam é ininteligível, e que não sabe qual meio empregar para revivificar sua correspondência com elas e retomar seu antigo domínio. Como conseqüência, as duas punições, sendo semelhantes, mostram que são o fruto do mesmo crime e que o homem só se encontra hoje tão estranho à língua da verdade por ter ousado, no princípio, falar outra língua além dela - assim como as posteridades primeiras só deixaram de entendê-la ao deixarem de ter como alvo a dominação exclusiva do Primeiro de todos os Seres e ao formarem o desígnio de substituí-lo por um outro Princípio. Exporei aqui uma verdade que irá lançar alguma luz sobre a origem primitiva e a degradação das ciências. Pretende-se que a princípio os homens se encontravam na mais profunda ignorância, reduzidos unicamente ao recurso dos instintos. São retratados com as cores que damos aos Povos selvagens, que só têm a Natureza a combater, as necessidades corporais a satisfazer e só se comunicam entre si através de suas idéias sensíveis. E querem que acreditemos que foram essas as bases sobre as quais foram erguidos, um após outro, os diversos andares do edifício dos conhecimentos humanos. Houve engano ao se situar nisso a origem cumulativa das ciências do homem. Quando, após a degradação, ele foi admitido na Terra, nela chegou com mais luz do que talvez nem mesmo sua posteridade veio a possuir, embora elas tenham sido inferiores às que ele fruía antes de descer. Ele foi como que o tronco dos Eleitos gerais, empregados pela bondade divina na reparação de seu crime. Transmitiu aos Descendentes as luzes das quais então gozava: eis aí a verdadeira herança da qual os primeiros homem eram tão ávidos e da qual os homens dos séculos posteriores conservaram apenas a figura em suas hereditariedades materiais. Mas as posteridades primitivas deixaram que essa herança fosse alterada, assim como o próprio homem perdera aquela da qual fruía durante sua glória; e a ignorância, aliando-se à iniquidade, apenas aumentou até que, havendo ambas chegado ao auge, os flagelos da justiça reduziram os homem às mais densas trevas e a uma dispersão absoluta. É à época derradeira que nos deveríamos transportar para encontrar o homem padecendo na incerteza e na miséria, reduzido somente aos recursos de seu instinto. É nessa época que se deve buscar a origem das línguas convencionais porque, estando todo conhecimento perdido para os homens, era necessário que eles empregassem objetos sensíveis para os signos de suas idéias. Tal foi a sorte de todo trabalho no qual foram obrigados a buscar recursos depois de haverem abandonado os móveis infalíveis que ainda podiam dirigi-los na Terra. Excitados pelas necessidades, seus esforços levaram-nos logo, por diversos meios, a descobertas, embora imperfeitas, dos móveis universais que lhes eram necessários, sem que qualquer Povo, qualquer Tribo, e qualquer indivíduo, talvez, tivesse caminhado nesse percurso com o mesmo passo ou pelas mesmas sendas. Foi então que as Ciências foram progredindo entre os homens, podendo nós seguir-lhes o encadeamento como que ininterrupto desde a época secundária até nossos dias. Se refletirmos nos inúmeros meios descobertos para disseminá-las, devemos mesmo garantir que elas irão desenvolver-se cada vez mais. Aconteceu com a espécie geral do homem o mesmo que com os seus indivíduos. Nada há de mais puro do que os primeiros raios de luz que iluminaram nosso Ser quando este se tornou susceptível de recebê-los. Bem depressa esses raios preciosos foram detidos, muitas vezes mesmo obscurecidos por paixões tempestuosas, que fazem o homem perder até a lembrança dos primeiros favores da inteligência saboreados ao sair da infância. Mas bem depressa também o vemos livrar-se dessas amarras para elevar-se às regiões das ciências e da razão e caminhar nas sendas imensas de luz e de verdades que, estendendo-se a cada dia diante de seus olhos, vão perder-se no infinito. Foi por conseqüência desse crescimento progressivo que, em meio às prevaricações e à dispersão dos antigos Povos, foi escolhido um Justo entre os caldeus para ser o depositário do conhecimento das diversas leis naturais do nosso Ser. Esse Justo foi tirado da cidade de dy (Ur), que em hebraico significa luz, para lembrar-nos a emanação do primeiro homem e de toda a sua espécie, que teve nascimento no seio da própria verdade e que por sua natureza pertence e corresponde ao centro universal da Vida. Esse Justo parecia sensivelmente favorecido por três sinais superiores ou pela presença de três Agentes imateriais corporificados em forma humana, que chegaram a receber sua hospitalidade. Fazendo alusão às três virtudes supremas, tais sinais anunciam a posição sublime à qual o homem era convocado. E essa posição seria: ser o Pai de uma Posteridade tão numerosa quanto as estrelas do Céu e o pó da Terra; penetrando no sentido dessa expressão figurada, recuperar as Virtudes superiores da qual o homem fora despojado e reconduzir os seres inferiores ou extraviados; ser o Chefe e o pai de um povo eleito entre todos os povos da Terra, destinado a ser o objeto dos favores da Divindade e a servir de farol a todas as Nações. O pensamento nos mostra que a escolha de um povo era necessária a fim de que o homem tivesse diante dos olhos e na sua própria espécie a repetição viva do que ele própria fora. Para cumprir essa gloriosa tarefa, eis a ordem que ele recebeu antes de tomar posse da terra que lhe fora prometida. Foi-lhe recomendado percorrê-la em latitude e longitude, novo índice da superioridade quaternária do homem com seus dois diâmetros, dos quais já falamos. Vemos esse homem privilegiado cometer um adultério, não apenas impune mas também autorizado, já em que nada prejudica sua eleição. Mas se, no entanto, vemos o adultério passar em seguida a ser considerado um pecado tão grande entre os hebreus, é que a lei não fora ainda publicada, é que a obra apenas atingia sua aurora e os homens, só conhecendo suas próprias virtudes pelas gerações carnais, não tinham alcance para regular-lhe a ordem através de uma lei superior e luminosa. E tal é o poder das leis sensíveis aos quais o homem está sujeito que, quanto mais nos aproximamos delas, tanto mais a sua verdadeira natureza torna a entrar no silêncio para deixar que reinem apenas as leis sensíveis. Eis por que na origem era permitido desposar a própria irmã, embora em seguida os homens só tenham podido formar alianças no quarto grau de parentesco: sendo esse número o da ação universal, ele dá a um mesmo sangue o tempo de se renovar e demonstrando ao homem que seu Ser intelectual ou quaternário deve ser o ordenador de suas faculdades. Após as promessas gloriosas feitas ao primeiro Chefe do Povo eleito, foi possível reconhecer com facilidade nesse homem Justo, em seu filho Isaac e em seu neto Jacó a expressão sucessiva e subdividida das três faculdades supremas, cujos sinais ele havia recebido ao mesmo tempo e que servem de tipo às que se manifestam na alma humana. De maneira visível, ele próprio demonstra o pensamento pela posição de sua eleição, que dele fez o primeiro depositário dos desígnios do grande Ser sobre a posteridade dos homens. Seu filho é o emblema da vontade, pelo sacrifício livre que faz de sua pessoa, e o filho de seu filho anuncia a ação pela luta que mantém contra o Anjo e pela numerosa família que dele sai. Aqui a liberdade da Inteligência não poderia estender-se mais: ver em Rebeca a imagem do mundo sensível e, nos dois filhos que lutam em seu ventre, reconhecer a imagem do homem e de seu irmão mais velho, seu inimigo, com o qual está aprisionado no Universo? Em seguida, os descendentes desse Justo hebreu tornaram-se escravos da Nação egípcia, cujo socorro haviam solicitado. O sentido do nome Egito, exprimindo a dor e a tribulação, a união da posteridade judia com essa Nação, declarava a união feita pelo primeiro culpado com a própria abominação, mostrando que ser algum pode precipitar-se em tal abismo sem ficar condenado a sofrer e nele permanecer durante um tempo proporcional à sua iniqüidade. Os Livros dos hebreus mostram as seqüências dessa criminosa aliança. Esse Povo, reduzido a consumir seus dias e trabalhos na poeira, exposto às injustas exações de seus tiranos, reflete a humilhante situação do homem no mundo, onde, mesmo com a ação horrivelmente restringida, ele tem de sustentar lutas maiores e mais multiplicadas do que no primeiro estado e onde tem de viver, embora, esteja, por assim dizer, separado da vida. Mas ele vê surgir um Agente célebre, que, como Filho dos hebreus, escapara à crueldade do Rei do Egito, ou às virtudes impuras que se opõem aos primeiros esforços do nosso Ser pensante e que trabalham a fim de impedir que ele reconquiste sua liberdade. Esse agente célebre está flutuando como o homem sobre as águas do abismo, preservado da voragem por um berço, assim como o homem o está pelas virtudes de seu corpo, elevado, dirigido por um Preceptor fiel, assim como o homem seria sempre se fosse ativo e dócil, e está encarregado como ele de velar pelo restabelecimento da ordem e da destruição da iniqüidade. Por seus trabalhos e vitórias sobre os egípcios, esse Justo mostra-nos então os poderes do homem sobre as virtudes do Universo e sobre o Princípio do Mal. Aqueles que afirmaram que o legislador estava de posse das Ciências dos egípcios não observaram que, antes de combater os Sábios dessa Nação, esse justo havia passado vários anos na casa de seu sogro Jetro, que era Sacerdote, onde se assentava junto a um dyb35, (Beur), vocábulo traduzido como um poço, mas que, pela análise - b (Beth - em) e dy, (ur - luz) nada mais significa do o lugar onde moram a ciência e a verdade. 35 Não seria ryb, com resh em vez de daleth? A superioridade do homem sobre as coisas sensíveis e os seus poderes sobre a corrupção nos foram traçadas no quadro da saída do Egito e no da travessia do Mar Vermelho. O primeiro nos mostra os egípcios aniquilados pelas pragas que haviam atraído sobre si, mas cedendo somente à décima. Pinta-os despojados de suas riquezas, nas quais devemos certamente compreender os instrumentos criminosos de seu culto. Mostra-os perseguindo por rotas incertas o povo hebreu, o único que gozava de maneira visível da luz, ao passo que as trevas se haviam espalhado sobre seus inimigos e sobre todo o Egito. O segundo nos representa os elementos obedecendo à voz que lhes ordena abrir uma passagem livre para os que eram conduzidos pela Sabedoria e voltar ao curso natural à aproximação dos ímpios, que, não tendo as virtudes necessárias para se defenderem, deviam ser suas vítimas. O segundo quadro nos ensina ainda que as substâncias corruptíveis do sangue são os verdadeiros entraves que retêm os homens no castigo e que é pela ruptura desses meios, ou separando-se o seu Ser intelectual do sangue, que ele recupera qualquer tipo de liberdade, o que já fora indicado pelo espírito do preceito da circuncisão, e que foi indicado em seguida pela proibição de que o Povo ingerisse sangue, porque a vida da carne está no sangue e porque a alma da carne fora dada ao hebreus, ou aos homens, para a expiação da alma. Expressões bastante claras para justificar o Legislador pela reprovação feita por vários não haver ele distinguido no homem um ser diferente do Ser sensível. Finalmente, através dos muitos acampamentos e muitos trabalhos que se seguiram depois da saída do Egito, o Legislador nos pinta as muitas interrupções que o homem deve suportar depois de sua passagem corporal para realizar o que no mundo só pôde conhecer em aparência. De modo que Moisés, sozinho, apresenta em si um tipo inteiro do curso universal do homem, desde sua origem terrestre até o final, para onde sua natureza primitiva não deixa de chamá-lo. Chegamos à época em que a voz divina se faz ouvir pelos hebreus, em que o próprio Legislador escuta, como todo o povo, a palavra sagrada que se transmitia aos homens para ensiná-los a se conduzirem somente por ela, a não confiar em Deuses estranhos e em seus ídolos que não falavam. Nos fatos que então irão passar-se, vemos figuradas a lei primeira do homem no estado de esplendor e a segunda lei desse mesmo homem no estado de reprovação. De fato, a primeira lei lhe foi retirada desde que ele se afastou do centro da verdade, assim como as primeiras Tábuas foram quebradas quando da idolatria do Povo hebreu. A segunda lei, embora contendo os mesmo preceitos que a primeira, ou seja: a obrigação indispensável de manifestar as propriedades de nosso Princípio e ser, de algum modo, o órgão vivo de suas virtudes, é inferior à primeira e infinitamente mais rigorosa. Além da experiência diária que nossa situação atual nos obriga a fazer dela, temos um seu indício nas mesmas Tábuas que as Tradições hebraicas nos apresentam. As primeiras Tábuas da Lei são apresentadas como tendo sido não somente escritas, mas também talhadas pela mão de Deus. Quadro instrutivo, cujo sentido verdadeiro é a emanação do homem a partir do seio da luz sobre a qual a mesma mão, que lhe dava o ser, gravava, ao mesmo tempo, o nome ou a convenção sobre a qual deveriam fundar-se todo o seu poder e toda a sua glória. Ao contrário, as segundas Tábuas nos são realmente dadas pelo Escriba como tendo sido escritas, assim como as primeiras, pela mão de Deus, mas a diferença entre elas é que as últimas tinham sido talhadas pela mão do homem e que foi sobre esta obra do homem que o Ser necessário, repleto de amor por suas criações, dignou-se ainda gravar seu selo e sua convenção, como o fizera sobre a substância pura da qual as primeiras Tábuas eram a imagem. Desse modo, a lei do homem, não estando hoje gravada em sua matéria natural, opera nele esse estado violento e doloroso que todos sofrem quando buscam essa lei com sinceridade e se aproximam dela, porque os padecimentos e a irritação são inevitáveis entre seres heterogêneos. O esplendor majestoso e terrível que acompanhou a promulgação dessas leis nos faz lembrar o quadro da origem das coisas, onde a desordem cedia lugar à harmonia; onde cada ser recebia sua ordem e sua lei; onde a luz, misturada e como que confundida com as trevas, tendia violentamente a separar-se delas; onde os criminosos que deviam habitar nas trevas eram arrastados com os estilhaços dessa medonha explosão e onde aqueles que haviam permanecido fiéis ao próprio Princípio juntavam-se à sua claridade divina para ler nelas os Decretos irrevogáveis de sua eterna Sabedoria e para exercê-los no Universo. É sempre em lugares elevados que nos são apresentados os grandes feitos. Em lugares em que o ar, sendo mais puro, parece transmitir ao nosso Ser influências mais salutares e uma existência mais de acordo com a nossa natureza e o nosso primeiro destino. Quando, mais tarde, essa mesma lei condenou o Povo hebreu e os seus Chefes que sacrificavam nos lugares altos, ela não pretendia falar precisamente de montanhas, mas de certos objetos da Natureza nos quais os sempre confiaram cegamente e que, tendo começado por servir de instrumentos ao Sabeísmo, acabaram por gerar os abusos da Astrologia judiciária. Enormes alterações foram introduzidas nas Ciências dos hebreus. Encontramos a prova disso nas águas de ciúme, através das quais o Sacerdote se certificava do pecado ou da inocência da mulher acusada de adultério. Tais provas, despojadas da virtude superior do homem, da qual se considera que o Sacerdote esteja particularmente revestido, parecem suspeitas, apresentando ao espírito apenas o engano e a impostura. Mas quando nos elevamos à natureza do homem e refletimos sobre a extensão de seus direitos, nada nos espanta em semelhantes narrativas, porque as causas segundas lhe estão subordinadas e ele tem o poder de dirigir-lhes os atos para a glória de sua inteligência e à manutenção da lei daquele que está encarregado de representar na Terra. Posteriormente, estando essa virtude superior enfraquecida pelos homens, eles, mesmo assim, conservaram as fórmulas. Vêm daí as provas da água, do fogo, do ferro em brasa e dos braços em cruz, que por longo tempo foram a única jurisprudência criminal de vários Povos. Eles mesmos, reprimidos pela superstição, ou cegados pela ignorância, só julgavam a partir dos fatos, não examinado se aqueles que pareciam presidir a eles tinham ou não títulos suficientes para merecerem confiança e não duvidavam da inocência do acusado quando sua coragem ou sua destreza o haviam feito resistir à prova. Os olhos se abriram tanto para as enganosas pretensões dos Juízes quanto para os abusos dessa Justiça extravagante. Mas o homens, poupando-se com isso de crimes atrozes, não continuaram avançando para o seu Princípio. Suprimiram os abusos sem tornarem seus passos mais seguros. Garantiram-se contra o erro de seus Antepassados, mas com isso não se tornaram mais sábios. Caíram até mesmo num outro excesso, pois, havendo apreciado as provas num tempo em que elas já estavam desprovidas de sua base, acreditaram que elas jamais tiveram base alguma. Assim foi com a lepra. Essa enfermidade era considerada pelos hebreus como uma punição por faltas conta a Lei: só podia, pois, ser curada pelo possuidor ou depositário da Lei. E esse privilégio, ou dom, pertencia verdadeiramente ao Sacerdote. Quando, mais tarde, a Arte de curar deixou de ser apanágio do Sacerdócio, quando o Médico acreditou que podia deixar de ser Sacerdote, as fontes da lepra permaneceram abertas como sempre e as fontes do remédio se fecharam. Então, nas trevas em que se concentrou, o homem sentiu-se inclinado a pensar que a lepra fosse incurável, que não tinha visto o que lhe faltava para curá-la, de modo que os males mais do que duplicaram. pois lhe restam sempre meios de contrair a lepra e ele não mais encontra aqueles que o livram dela. 5 O Sabbat, tão recomendado pela lei dos hebreus, relaciona-se ao Sabbat primitivo, seja por seu número ou por seu objeto. E é seguramente no espírito do Sabbat primitivo que lhes foi ordenado não semearem, não trabalharem a terra nem podarem a vinha durante o sétimo ano - ou ano sabático - não fazerem nesse mesmo ano espécie alguma de ceifa nem de colheita, e aguardarem a subsistência apenas dos produtos naturais da terra para com eles satisfazerem as necessidades presentes, sem inquietude alguma para com as necessidades futuras. Isso não nos exporia novamente a diferença que há entre as leis da matéria e as da inteligência? Não nos indicaria que a matéria só existe, produz e se alimenta por meios violentos e por uma cultura laboriosa, ao passo que a vida intelectual, ativa por si mesma, promete delícias fáceis e nutrição assegurada ao homem que a ela pode chegar? Não nos mostraria antecipadamente qual será o destino do homem quando, chegado o grande Sabbat, ele irá unir-se às próprias Virtudes divinas e possuir a Terra incriada, que está sempre produzindo por si mesma e sem ser cultivada? - quando, estando como que unido às fontes da vida, ele poderá saciar-se nelas continuamente, com a confiança de que elas serão sempre mais abundantes do que suas necessidades e jamais poderão estancar-se para ele. É preciso não esquecer que o verdadeiro Sabbat temporal deve ocorrer no décimo-quarto dia da lua de Março36. Foi nessa época que se fez a libertação do Povo hebreu, sendo essa a época natural em que são entreabertas as primeiras fontes de produção, pois é nesse tempo que os princípios vegetativos recebem as primeiras reações da primavera, tempo que devemos contar segundo a trajetória da lua, e não pela do sol, quando ambos os dois astros não se encontram juntos no mesmo ponto equinocial. Aqui eu acrescentaria que os hebreus perturbaram a hora do seu Sabbat ao começá-lo com a primeira estrela, em vez de começá-lo à meia-noite, que é a hora da primitiva instituição, visto ser essa uma hora central. Mas não é a única negligência que eles têm a se reprovar, pois, ao ser instituída, sua Lei era pura e apoiada em bases invariáveis. Vemos aí que até nos Regulamentos relativos aos alimentos tudo está fundado em princípios da mais sadia Física. A proibição de comer animais tidos como impuros pela Lei está ligada à natureza deles, cuja impureza, com relação a nós, está escrita em sua própria forma. "Aqueles cuja cabeça e corpo forem desguarnecidos de membros ofensivos e defensivos, aqueles cujo pescoço é tão grosso que, por assim dizer, coincide com o corpo, são os Seres menos puros, os menos regulares e, ao mesmo tempo, os mais nocivos ao homem, pois são aqueles cujo sangue é levado com mais abundância à parte superior e, para conservar a linguagem da Lei hebraica, seu sangue está materialmente na cabeça. Ora, o uso freqüente de semelhantes carnes não deixaria de causar a mesma perturbação no equilíbrio de nossos humores. É então que os enxofres grosseiros, dos quais nossa Natureza busca expurgar-se, refluem sobre nosso Ser obstruindo-lhe todos os órgãos. Ser algum está certamente mais interessado do que o homem em evitar esse terrível efeito porque, perturbada a sede de seu Princípio, o próprio Princípio pode sofrer com essa perturbação. Por sua natureza, o homem está destinado a ser superior a tudo o que seja sangue e impuro, já que sua própria cabeça, distinguindo-se do corpo por um pescoço estreito, parece ainda estar colocada verticalmente para que o sangue não possa ultrapassá-la e assim ela reine e domine sobre tudo o que está ligado ao sangue, e já que temos diante dos olhos o exemplo do embrutecimento dos negros, que devem isso em parte ao fato de que não apenas o seu sangue, mas a própria gordura está na cabeça. Tal fato é visível pela cor avermelhada e sombria da substância branda de seus cérebros e pela lã que neles faz as vezes de cabelos. 36 Mais ou menos equivalente ao mês de Nizan. (N.T.) Se não apontamos as mesmas irregularidades nas outras espécies de Nações disformes mas se, no entanto, observamos nelas o mesmo embrutecimento, ou até mesmo costumes mais vergonhosos e inclinações mais malignas ou uma natureza mais frouxa e débil, é que em lugar do sangue e da gordura são outros princípios materiais que37 dominam em suas cabeças ." Inimigos do homem, os princípios imateriais não podem sobrepujá-lo sem que algumas de suas faculdades primitivas estejam oprimidas e embrutecidas, sem serem substituídas pelas faculdades que lhe são contrárias. O que eu disse sobre a disformidade dos animais tidos como impuros deve ser aplicado aos peixes, cujo corpo, formando uma única massa com a cabeça, parece trazer todas as marcas de impureza, de modo que se poderia perguntar: por que é que a Lei hebraica só proibia os que não tinham nadadeiras nem escamas? Em geral, a impureza dos peixes imundos deve ser menor do que a dos animais terrestres porque o sangue dos primeiros é tão temperado pelo fluido aquoso que não há abundância nem calor capazes de produzir grandes devastações. É por isso que a Lei tolerava os que não tinham em conjunto todos os sinais de impureza. Entretanto, como o elemento que habitam traz em si o caráter da origem confusa das coisas materiais, como é pela água que os Seres de matéria tomam sua corporificação, a Lei considerava os peixes como participantes, de alguma forma, na confusão de seu elemento: assim, eles não entravam nos sacrifícios. Não ignoramos que o sal, tão conveniente aos nossos alimentos, era essencialmente recomendado nos sacrifícios e que foi, em quase toda a Terra, o símbolo da Sabedoria. É que em geral os sais são substâncias muito instrutivas para o homem. Surgem através da reunião de suas diferentes partes espalhadas nas águas que as mantêm em dissolução e tornando-se, pela ação do fogo geral ou particular, outras tantas unidades ativas, potentes e depositárias de todas as propriedades que se manifestam nos corpos. Em suma, o sal é um fogo libertado das águas e as águas têm um número tão impuro que os hebreus só exprimem essa palavra pela dupla mym (maim). Acrescentemos que, se era dada preferência ao sal marinho sobre todos os outros, é que ele é quadrado em todas as faces e possui sete centros, que recebe mais diretamente as influências superiores pela ação da Lua sobre os mares e que seu ácido tem menos afinidade com os metais do que os outros sais." O pão ázimo, tão recomendado nas festas, tem certamente grandes significados, pois representa ao mesmo tempo a aflição da privação, a preparação para a purificação e a lembrança da origem. O vocábulo maná deriva de um substantivo hebraico que significa enumerar. E para chegar ao entendimento de sua distribuição diária, que os Livros hebraicos dizem ter sido feito ao povo, eis aqui o que é preciso conhecer. Assim como o Sol todos os dias percorre todos os pontos de nosso horizonte para revivificar toda circunferência, também os homens recebem todos os dias um raio do grande sol, que bastaria para os reanimar intelectualmente se não deixassem que ele fosse interceptado por mil obstáculos estranhos. Para a ordem física existe a cada dia um movimento universal pelo qual todas as esferas agem umas sobre as outras constituindo, reciprocamente, bases sobre as quais imprimem, com sua passagem, ações e números análogos aos traços encontrados nessa ordem. Não podemos negar que assim não seja na ordem intelectual, já que esta é o modelo daquela. 37 Atenção: Peço à revisão verificar se este que está em itálico no original. Porém, em nenhuma das ordens o homem pode ir além dos limites e das medidas de suas faculdades sem as destruir. E apesar de haver recebido essas faculdades por sua natureza, deve esperar que as virtudes e os números superiores as venham completar e nutrir, bem como não deve deixar de descansar nos socorros superiores nem de crer que eles possam renovar-se como as necessidades do homem. É isso o que significam os vasos dos hebreus, o maná com o qual os enchiam todos os dias e a proibição feita ao Povo de ajuntar porções duplas. Se havia dúvidas de que o maná tenha existido em natureza material, bastaria apenas que lembrássemos o que acabamos de ler. E se reconhecemos que em cada dia da vida nos é concedido o maná intelectual, teremos dado um grande passo para crer na possibilidade do outro, pois este poderia realmente provir de um ramo comum da mesma árvore, mas teria caído mais baixo, como se tivesse por objeto o corpo. Quanto às leis criminais, delineadas nos Livros hebraicos, embora estejam fundadas na mais exata justiça, não me proponho a justificar sua origem com tanto cuidado quanto o das leis de preceito e instrução das quais temos tratado até o presente momento: elas apresentam dificuldades demais para que ousemos asseverar que a mão do homem, ao redigi-las não tenha jamais tomado o lugar da mão suprema. A principal objeção é que, se o Chefe da Lei fosse obrigado a consultar a luz superior em todas as circunstâncias duvidosas, ser-lhe-ia inútil ter um Código criminal escrito. De fato, se por essa consulta ele ficasse conhecendo as penas decretadas pela Lei contra tal ou qual crime, ele o conheceria com o depoimento de duas testemunhas verídicas, das quais só posso dar uma idéia melhor comparando-as à assinatura de uma carta e ao seu conteúdo; "pois sabemos que os Antigos iniciavam sabiamente suas cartas com o próprio nome e que esse costume ainda subsiste entre vários Povos e nas Ordenações dos Soberanos." Mas, havendo o Chefe da Lei recolhido várias dessas Sentenças jurídicas, pôde ocorrer que ele as sentisse destinadas a servir-lhe de guias quando se apresentassem casos semelhantes, limitando-se a consultar sobre a culpa ou a inocência do acusado. Em seguida, a forma dessa Jurisprudência ainda degenerou e os sucessores dos verdadeiros Chefes, encontrando leis escritas para a punição de crimes, tomaram-nas como a única regra a consultar e as testemunhas humanas como as que o Legislador tivera em vista, por onde se vê que abusos devem ter resultado desse equívoco. Descubro de bom grado essa dificuldade para que minha marcha não pareça suspeita e para ter o direito de tomar a defesa do tesouro de instruções que, apesar dessa mistura, encontra-se encerrado nos Livros dos hebreus. Contemplemos aqui a Arca da Aliança, depósito de todas as Ordenações que o Povo deveria observar para conservar-se forte contra os inimigos. Comparando o Tabernáculo, e as Cerimônias que se ordenara fossem nele praticadas, com as primeiras ocupações do homem, veremos que oferecem a descrição dos símbolos antigos que a Sabedoria devia mostrar novamente ao homem a fim de jamais poder ser acusada de faltar à convenção com ele feita ao formá-lo. Também ao Agente escolhido para essa obra foi recomendado conformar-se ao plano que lhe fora mostrado na montanha a fim de que, sendo a cópia visível semelhante ao modelo que o homem não mais via, o homem pudesse aproximar-se de sua glória antiga e de seus conhecimentos primitivos. Se quisermos recuperar algumas idéias do modelo dessa cópia, é preciso estudá-la com cuidado: é preciso levar em conta as diversas divisões do Tabernáculo e os diversos véus que separam umas das outras para dar uma idéia das diversas progressões e interrupções da luz para nós; levar em conta o Oráculo envolvido e coberto pelas asas dos Querubins; a coroa, ou círculo de ouro, que o encima e parece colocada assim, como o anel de Saturno, para servir de órgão às virtudes superiores que nela devem descer; as mesas preparadas nas diversas regiões; os doze pães da proposição colocados em fileiras de seis para mostrar-nos as duas leis senárias, fontes de todas as coisas intelectuais e corporais e, por fim, o candelabro de sete braços repetindo o número da luz superior que iluminava e vivificava invisivelmente esse Santuário misterioso, sede de sua glória. Não apenas devia o Tabernáculo ter relações com o destino do Universo, mas devia ainda têlas com o homem, já que o homem era o seu primeiro objeto. Isso ficou suficientemente claro através do altar quadrado a ser colocado no Tabernáculo - ordem dada ao homem - com os vasos e instrumentos relativos ao culto que nele devia ser exercido. A forma quadrada é um símbolo análogo ao número do homem intelectual, símbolo que podemos distinguir com facilidade e que será desenvolvido ainda em seguida: "mas o próprio corpo do homem parecia ter também relações nisso, já que ele próprio forma um quadrado com suas dimensões. Além disso, o altar era sustentado e transportado por quatro varais ocos que não se destacavam dele. E esse tipo encontra-se em natureza física na forma material do homem." Não podemos considerar o fim corporal do Legislador dos hebreus, cuja sepultura permaneceu ignorada, assim como a histórias dos Eleitos, dos quais se declarou que haviam sido arrebatados em carros de fogo, sem formarmos uma idéia vasta e instrutiva de nosso verdadeiro destino. O homem é um fogo concentrado num envoltório grosseiro. Sua lei, como a de todos os fogos, é dissolvê-lo e unir-se à fonte da qual está separado. Se, negligenciando a atividade própria ao seu Ser, ele se deixa dominar pelo envoltório sensível e tenebroso, tal envoltório adquire um império de maior ou menor fortaleza e duração, segundo os direitos a ele concedidos por sua fraqueza, pendores ou deleites. Então seu fogo foi extinguido ou ficou sepultado sob esse véu obscuro e o homem, na hora da morte, encontrase como que embaraçado com as ruínas de sua forma corporal: e esses destroços devem permanecer amontoados sobre ele, tanto que ele não sentirá renascer no centro de sua existência nada de suficientemente vivo para quebrar e destruir os laços que o prendem à região inferior dos corpos. Se, pelo contrário, seguindo a lei de sua natureza, ele soube não apenas conservar a força e os direitos de seu próprio fogo mas também aumentá-los ainda pela ação de um fogo superior, não é de se admirar que na hora da morte seu ardor consuma mais prontamente a forma impura que até então lhe havia tolhido os movimentos e que o desaparecimento dessa forma seja mais rápido. Que será, pois, se o homem inteiro estiver abrasado desse fogo superior? Aniquilará até os menores vestígios de sua matéria. Nada se encontrará de seu corpo porque ele nada terá deixado de impuro, semelhante aos eleitos que, no fim da carreira, pareceram elevar-se às Regiões celestes em carros cheios de luz, que não passavam da explosão de uma forma pura, mais natural ao nosso Ser do que ao nosso envoltório material, e que jamais devemos deixar de ter, apesar de estarmos jungidos à matéria. Que devemos, pois, pensar das traduções em que Jó diz: "Em minha carne verei a Deus"? É preciso pensar que o texto é contrário a elas. E realmente o vocábulo zpqn (niquephu) pertence ao verbo [[qn (naquaph), que significa: ele quebrou, ele cortou, ele corroeu, mas, de modo algum, ele cercou. E Jó, depois de haver reconhecido que seu Redentor vive e que ele deve elevar-se acima do pó, acrescenta naturalmente: Quando eles (meus males) tiverem corroído ou destruído meu envoltório corporal, verei a Deus, não em minha carne, como dizem os Tradutores, mas fora de minha carne. Pois em ydcbm38 (mibbesari), como em mil outros casos, a partícula m (mem) é um ablativo extrativo que representa a existência fora de um lugar, fora de uma coisa, e não na existência nessa coisa ou nesse lugar: assim o texto traz aqui exatamente o oposto das traduções.39 38 Não será yrcbm? - beth em vez de resh? Deixo de lado essa multidão de fatos e quadros contidos nos Livros hebraicos desde a época em que Moisés foi substituído por um digno sucessor até o tempo em que mudou a forma de Governo. Com os princípios que estabelecemos, podemos facilmente descobrir o que é representado por Josué quando ele introduziu o Povo na Terra prometida aos seus Pais, quando se encontrou com o Príncipe dos Exércitos do Senhor e tomou aos Inimigos de seu Povo as Cidades de Cariat-sepher e de Cariat-arbé, ou a Cidade das Letras e a Cidade dos Quatro. Compreender-se-á o que o próprio Povo hebreu nos lembra ao deixar subsistirem várias Nações criminosas que tinha por ordem exterminar, esquecendo isso a ponto de fazer aliança com elas. Para os outros quadros que se encontram nos Livros, facilmente poderemos descobrir interpretações naturais e instrutivas; ainda mais que em nossos dias ficou demonstrado que a maior parte dos fatos que tinham parecido inconcebíveis eram-no muito menos do que as traduções nos faziam pensar: as raposas de Sansão, por exemplo, que se demonstrou serem feixes de matérias combustíveis, à quais, entretanto, é possível que ele tenha acrescentado fogos mais ativos do que os fogos vulgares. Da mesma forma, deixo todos os fatos que poderiam parecer revoltantes, tais como execuções sanguinárias, crueldades cometidas ou comandadas pelos Chefes e Depositários da Justiça, propondo-me falar delas no seguimento desse Escrito. Ainda assim, empreender a explicação universal de tudo o que está contido nos Livros hebraicos seria demonstrar que se é pouco versado no conhecimento da Sabedoria, já que não somente a vida de um homem bastaria para isso, mas também que seria preciso, talvez, a consumação dos séculos para desenvolver-lhe todos os pontos. Observemos pois, que, mesmo quando ainda se encontrarem vários pontos inexplicáveis, seja qual for a causa, isso em nada deveria diminuir, aos olhos dos homens sensatos, o mérito dos fatos cujas relações com nosso Ser e com a natureza das coisas são da mais perfeita evidência. Pertence a esse número a mudança sofrida na forma do Governo dos hebreus. Em qual tempo, sobretudo, ocorreu essa mudança? Foi quando a santidade da lei foi profanada. Foi quando a avareza de seus Sacerdotes se apropriava das Vitimas dos Sacrifícios e eles exerciam sua profissão sagrada como recurso para sua cupidez. Foi quando esses mesmos Sacerdotes, não mais sendo capazes de defender a Arca incorruptível da aliança do homem, haviam-na deixado cair nas mãos do inimigo, encontrando-se o Povo assim despojado de tudo o que constituía sua força e seu sustentáculo. 39 Jó, 19:26: No texto original deste livro: "Lorsqu'ils (mes maux) auront corrodé ou détruit mon enveloppe corporelle, je verrai Dieu, non pas dans ma chair, comme disent les Traducteurs, mais hors de ma chair." - Como curiosidade, vão algumas traduções de línguas conhecidas: "Quand ma peau sera détruite, il se levera; quand je n'aurait plus de chair, je verrai Dieu." (Quando minha pele for destruída, ele se erguerá; quando eu não tiver mais carne, verei a Deus). - Nouvelle édition d'après la traduction de Louis Segond. Trinitarian Bible Society. "Depois do meu despertar levar-me-á junto dele e em minha carne verei a Deus. - "Bíblia de Jerusalém. "Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus." Almeida, revista e atualizada no Brasil). Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. "And though after my skin worms destroy this body, yet in my flesh shall I see God." (E embora, depois de minha pele, os vermes destruam este corpo, ainda - ou contudo em minha carne verei a Deus). - Oxford University Press, sem data (adquirida na década de 50). "And after my skin has been destroyed, yet in my flesh I will se God." (E depois que minha carne for destruída, ainda - ou contudo - em minha carne verei a Deus) - The NIV Study Bible. The Zondervan Corporation, 1995. "Y después de deshecha esta mi piel, en mi carne he de ver a Dios." (E depois de desfeita minha pele, em minha carne hei de ver a Deus). - Antigua versión de Casiodoro de Reina (1569) revisada por Cipriano de Valera (1602). Otras revisiones: 1862, 1909, 1960. Sociedades Bíblicas Unidas. Revisión de 1960. "E quando, doppo la mia pelle, sarà distrutto questo corpo, senza la mia carne, vedrò Dio." (E quando, depois de minha pele, for destruído meu corpo, sem a minha carne verei a Deus). Versione nuova riveduta. Società Biblica di Ginevra. 1994. (NN.TT.) Foi então que, apesar dos sábios avisos do último dos Juízes, o Povo hebreu quis ser governado por um Rei, como as outras Nações. Mas da mesma forma que o primeiro homem, ao se separar do centro da luz, reduziu-se a ter como guia apenas uma débil centelha dessa Luz, assim também o Povo hebreu, ao abandonar seus guias naturais e submeter-se a um Rei, tinha como recurso apenas as únicas virtudes de um homem, ora frágil, ora mau, e a história dos Reis é, nesse gênero, o quadro mais instrutivo que a Tradição hebraica pôde transmitir-nos. De todos os Reis de Israel, ela não mostra um único que não haja cometido o crime e, entre os Reis de Judá, oferece apenas um pequeno número que dele estiveram isentos, tais como Asa, Josafá e Josias. E ainda faz reprovações ao primeiro por se haver aliado aos Reis estrangeiros e de ter tido, em sua enfermidade, menos confiança em Deus do que nos Médicos. Apressemo-nos a chegar à época célebre do Templo erguido ao tempo do terceiro Rei: monumento que as Tradições hebraicas representam como a primeira maravilha do mundo e ao qual os bastardos de Ismael prestam ainda uma espécie de homenagem. A construção desse Templo, feita pouco depois de o Povo hebreu ter abandonado seus guias naturais, é uma repetição perfeita da sorte que o homem sofreu depois de se haver separado da fonte de sua glória, quando ficou reduzido a ver a harmonia das virtudes divinas somente numa subdivisão grosseira e complicada. Essas imagens, por mais materiais que possam ser, ainda apresentam ao homem culpado os traços de seu modelo: sempre o autor dos Seres, ciumento de sua felicidade, oferece-lhes o quadro de seu poder, de sua glória e de sua sabedoria para fixar-lhes a vista na grandeza e na perfeição de suas perfeições e para reconduzir-lhes a inteligência à luz, depois que a luz lhes tiver fixado o sentido através de seus próprios emblemas. Assim, o edifício do Templo reunia tudo o que fora anunciado pelos sinais sensíveis das manifestações anteriores. Nessas proporções, e nas medidas verdadeiras e não literais, havia relações com a Arca, mencionada na tradição hebraica por ocasião do flagelo da justiça divina sobre os prevaricadores pelo elemento água: e assim o Templo foi, como a Arca, um nova representação do Universo. Ele oferecia os mesmos atributos que o Tabernáculo, cujo modelo fora dado ao povo judeu quando da promulgação da Lei. No Templo havia um lugar para os sacrifícios, tal qual eram realizados no Tabernáculo. Havia em ambos um lugar destinado à prece, que era como que o órgão das luzes e dos dons derramados pela mão do Eterno sobre o Povo eleito e seus chefes. Mas tudo no Templo era mais numeroso, mais abundante, mais vasto e mais extenso do que nos Templos anteriores para nos ensinar que as virtudes iam sempre crescendo e que, à medida que os tempos avançavam, o homem via multiplicarem-se em seu favor os socorros e os apoios. É para instruir-nos sobre essas verdades que cada um dos três Templos foi marcado por uma distinção particular. A Arca do Dilúvio era errante e flutuava sobre as águas para retratar-nos a incerteza e as trevas dos primeiros tempos. O Tabernáculo estava, alternativamente, em movimento e em repouso e, além disso, era o próprio homem que o transportava e o fixava nos lugares escolhidos a fim de nos simbolizar os direitos concedidos ao homem em sua segunda época - direitos aos quais pode aspirar ocasionalmente à posse da luz. Por fim, o terceiro Templo era estável e preso à terra para nos ensinar de maneira sensível os privilégios aos quais o homem pode um dia pretender - privilégios que se estendem até o ponto de fixar para sempre sua permanência na morada da verdade. Assim, o Templo de Jerusalém representava não somente o que acontecera em épocas anteriores, mas era ainda um dos símbolos visíveis mais instrutivos que o homem pôde ter diante de si para recuperar a inteligência do primeiro destino e a dos caminhos que a sabedoria tomara para aí reconduzi-lo. Nos sacrifícios e no derramamento do sangue dos animais, feitos no templo, ele encontrava a imagem do Sacrifício universal que o Seres puros não cessam de oferecer ao soberano Autor de toda existência, empregando com atividade sua própria vida ou sua ação para o sustentáculo de sua glória e de sua justiça. Acrescentemos por antecipação que, como tudo é relativo ao homem no mundo, era para o próprio homem que o sacrifício devia ser realizado, não tendo os sacrifícios animais, senão de maneira secundária, a faculdade de manifestar a glória do grande Ser. Na Natureza, somente o homem tem o direito de oferecer-lhe tributos dignos dele. Mas estando hoje na extremidade da cadeia dos Seres, ele se eleva gradativamente por meio deles: deixando a descoberto as virtudes dos seres mais inferiores, ele pode subir até às virtudes que os dirigem, chegando com essa progressão até uma força viva que o deixa em condições de cumprir a Lei, isto é, de honrar dignamente seu Princípio, apresentando-lhe oferendas nas quais estejam impressos os caracteres de sua grandeza. Se o Povo judeu foi o depósito de semelhantes instruções, se possui um templo que parece ser o hieróglifo universal, se os que desempenhavam funções nos foram anunciados como depositários das leis do culto e até mesmo realizando todos os feitos cuja fonte demonstrei estar no homem, é provável que o Povo judeu seja em verdade o povo escolhido pela Sabedoria suprema para servir de símbolo para a posteridade do homem. De acordo com isso, não poderíamos crer que esse Povo foi colocado, de preferência a todos os outros Povos, na posse dos meios de regeneração de que falamos, assim como do culto trazido necessariamente à Terra pelos agentes depositários das virtudes subdivididas do grande Princípio a fim de entregar ao homem o conhecimento desse Princípio. Cremos nisso, tanto mais que no culto desse Povo reconhecemos relações com a verdadeira natureza do homem e com suas verdadeiras funções, como já observamos existirem entre os Templo de Jerusalém e a harmonia do Universo. Veremos que as abluções freqüentes, os preparativos cuidadosos, os holocaustos de todo tipo, sejam de animais ou dos produtos da terra, e o fogo sagrado, sempre iluminando os sacrifícios e oferendas, eram emblemas bem instrutivos de todas as funções dos Seres para com o primeiro do Princípios e da superioridade desse Princípio sobre os Seres. Somente a ordem dos tempos fixados para os diferentes sacrifícios, a disposição dos instrumentos nele empregados, a qualidade das substâncias que nele entravam, o número e o arranjo das lâmpadas, enfim, todas as partes desse culto seriam certamente outros tantos indícios de algumas das virtudes superiores divididas pela Sabedoria suprema para o homem desde sua corrupção. Entretanto, esses objetos, comuns a todos os cultos, sendo exteriores e estranhos ao homem, não lhe davam o sentimento de seu verdadeiro caráter. Era preciso, pois, que os grandes símbolos fossem expressos por ele, fossem representados e postos em ação por Seres de sua própria espécie a fim de que ele tivesse o testemunho pessoal e íntimo de haver sido formado por uma obra assim. Se, na época de sua origem, ele pudesse ter simultaneamente três grandes objetos de contemplação - a Fonte de todas as potências, as virtudes que dela provêem para o cumprimento das Leis e os Seres que jamais cessam de prestar-lhe homenagem - seria preciso que no estado de degradação lhe restassem os indícios e os vestígios desse espetáculo sublime; que todos os grandes objetos estivessem presentes diante de seus olhos e que fossem apresentados por homens. Assim, no exercício e no conjunto do culto dos hebreus podemos observar essas três classes com a maior exatidão. O povo postado em ordem ao redor do templo, ou no átrio, lembrava ao homem a multidão de produções puras do Infinito que permanecem fielmente ligadas ao Princípio, tanto pelo amor à sua glória quanto pelo interesse pela própria felicidade. Os Levitas ocupados ao redor do Altar representavam-lhe, com sua ação, as funções dos Agentes privilegiados e escolhidos para fazer com que os dons e as virtudes do grande Princípio chegassem até as menores das criações. Por fim, o Sumo Sacerdote, entrando sozinho uma vez por ano no Santo dos Santos para trazer as súplicas de todo o Povo e fazer fluir até ele os socorros da vida, tornava-se para o homem uma imagem clara do Deus invisível, do qual bastava um ato de poder para animar de uma vez todo o círculo dos seres, ao passo que dentre todos os seres, que dele recebem perpetuamente até os germes da própria existência, nenhum deles jamais penetrou no santuário inacessível de sua essência. Eis como o homem conseguiu recuperar a idéia de sua primeira morada, uma vez que teve diante dos olhos um quadro reduzido, mas regular, e que viu ser representada em sua própria espécie o Deus dos Seres, seus Ministros e Adoradores. Neles ele até via os sinais sensíveis, tanto de seus antigos deleites quanto os frutos que serviam de recompensa à sua prece, uma vez que as Tradições hebraicas dão a entender como os sacrifícios eram coroados ao nos ensinarem que o templo se enchia da glória do Eterno ou dos indícios positivos de pensamentos puros dos quais já vimos que o homem estava cercado. Quanto à multidão inacreditável de animais que se diz terem sido imolados quando da dedicação do templo e, de maneira geral, nos sacrifícios dos hebreus, não tentaremos justificar essas narrativas nem refutar tudo o que foi dito sobre a impossibilidade de que o pequeno país dos judeus encerrasse um rebanho tão grande para fornecer tantas vítimas e que houvesse um número suficiente de sacrificadores para os imolar. Os que gastaram tempo e exercitaram o espírito para criticar os textos das Sagradas Escrituras podiam ter empregado ambos de maneira mais útil. Teria sido mais prudente buscar os meios de penetrar nos símbolos do que nos determos em seu invólucro. Seria preciso observar que, quanto mais as Tradições dos hebreus oferecem exatidão e profundeza nos pontos em que são claras, tanto mais devemos supor que elas, ao nos parecerem obscuras ou invariáveis, são-no de propósito para nos ocultarem verdades que só pertencem ao homem inteligente e que seriam nulas ou nocivas a qualquer outro que não estivesse preparado. Teria valido mais se nos fosse lembrado como a Língua hebraica está próxima dos objetos da inteligência, uma vez que nem mesmo possui uma palavra para exprimir a matéria e os elementos. Teria valido mais, repito, se nos fosse mostrado como o sentido primitivo de seus vocábulos mais comuns é espirituoso, justo e sublime, e ensinado que, longe de limitar a Língua hebraica a um sentido particular e literal, ela é tão vasta que, para apreendê-la no seu verdadeiro espírito, devemos ocupar-nos somente em ouvi-la. Pois na ordem verdadeira, cabe ao assunto e à inteligência guiar as Línguas, e não às Línguas guiar a inteligência e o assunto. Por fim, teria sido mais útil se nos fosse ensinado que cada Ser corpóreo é um símbolo de um faculdade invisível que lhe é análoga. Então, poderíamos tomar a idéia da força no touro, a da doçura e da inocência no cordeiro e a da putrefação e da iniqüidade no bode, bem como de todas as espécies de animais e mesmo das substâncias oferecidas em espécie nos sacrifícios. Talvez que com essa atenção já tivéssemos chegado a romper o véu. Pois é possível que a espécie de animal sacrificado fosse o símbolo físico da faculdade que lhe corresponde e que a quantidade ou o número das vítimas fosse a expressão alegórica dessa mesma faculdade que a Sabedoria buscava combater, de tão má que era; que ele se esforçasse, ao contrário, para conseguir do soberano Ser que ela fosse pura, ou pela qual lhe prestasse homenagem ao obtêla. 6 Dentre os objetos apresentados pelas Tradições o que mais deve interessar-nos é a eleição dos Justos, suscitados pela Sabedoria divina que, não podendo abandonar os homens, signos de sua glória, apresenta-lhes modelos de tempos em tempos. Nenhum desses tipos foi mais semelhante do que o justo Elias, cujo nome abarca todas as classes de Seres superiores à matéria e que se deu a conhecer pelas ações mais extraordinárias. Mas é por ele participar na força do Princípio de todas as coisas que o assombro deve cessar à vista de semelhantes fatos. Se ele estava ligado ao Ser que tudo criou, à fonte da qual manam todos os sinais sensíveis materiais ou imateriais em ação no universo, que dificuldade haveria em ter ele, sob o símbolo de um Corvo, recebido alimento de uma mão superior? Que dificuldade em ter desvendado a impostura dos Sacerdotes de Baal, manifestando as forças do verdadeiro Deus? Que dificuldade, até mesmo por ter devolvido a vida a um cadáver, já que agia por esse mesmo Deus que a havia dado? Não fiquemos surpresos, pois, com os direitos a ele concedidos para multiplicar os alimentos da viúva de Sarepta, para reter ou fazer cair, como lhe aprouvesse, as chuvas e os orvalhos; para consumir os Capitães de Acazias com o fogo do céu. Se não perdermos de vista os desígnios da Divindade para conosco, se lermos o livro do homem, nele encontraremos os elementos dessas maravilhas. Vemos mesmo aqui a nossa vantagem por estarmos fortemente unidos por pensamento, desejo e ação às virtudes dos Seres privilegiados, pois o discípulo fiel e sucessor de Elias repetiu quase todos os prodígios de seu Mestre. Mas uma das belas instruções deixadas por Elias é que, enquanto estava na montanha, reconheceu que o Deus do homem não se encontrava nem num vento violento, nem no estremecimento do ar nem no fogo grosseiro e devastador, mas numa brisa doce e leve que anuncia a calma e a paz com que a Sabedoria preenche todos os lugares de que se aproxima e realmente, é um dos sinais mais seguros para desenredar a verdade da mentira. Os diversos Justos que seguiram a mesma carreira estavam encarregados de anunciar aos Reis e aos Povos a sorte que deveriam esperar se viessem a afastar-se de sua Lei. E como há caminhos sem número para nos extraviarmos e como os males que respondem a esses desvios são igualmente inumeráveis, os Eleitos, com o dever de apresentar-nos o quadro de todos eles, cumpriram a tarefa pelos meios e sinais mais análogos àquilo que deveriam anunciar. É por isso que a Justiça suprema, com o desígnio de fazer o povo hebreu sentir o horror de suas alianças idólatras, apresentou-lhe como sinal a união de um de seus Enviados com uma prostituta40, união que reproduzia também a realizada pelo primeiro homem com substâncias impuras, tão contrárias ao seu Ser. É por isso que a Justiça, querendo anunciar a esse Povo a dispersão que o ameaçava e o estado vergonhoso ao qual iria ser reduzido por seus inimigos, ordenou a um outro de seus Agentes que se apresentasse, despido de suas vestes, saindo por uma abertura feita por ele mesmo em sua própria casa e empreendendo uma fuga secreta. É por tudo isso que, querendo representar ao Povo hebreu os tratamentos indignos que iria sofrer na servidão, não receou fazer com que ele visse um Justo mergulhado na dor mais atroz41 e tendo como alimento os objetos mais repugnantes. O homem pode reconhecer-se nesses vários quadros desde que os compare à sua deplorável situação. Tal foi a fonte da multidão de alegorias e fatos emblemáticos que a história dos Profetas nos oferece com traços tão extraordinários que não podemos concebê-los quando os separamos dos acontecimentos secretos que deles foram objeto e ocasião. 40 Livro do Profeta Oséias 1:2-3. (N.T.) 41 Jó. (N.T.) Vêm daí os erros multiplicados daqueles que ousaram julgar tais narrativas sem lhes reconhecer o sentido nem as relações: os Observadores criaram fantasmas para combatê-los com mais vantagem. Assim, só conseguiram alcançar vitórias imaginárias. Quando, menosprezando as instruções dos diversos Eleitos, o Povo e os Mestres se abandonaram aos pecados da putrefação, os Livros dos hebreus nos relatam a história de uma nova servidão mais humilhante e mais dura ainda do que a primeira: na do Egito, os hebreus haviam descido voluntariamente a uma terra estrangeira, ao passo que na segunda servidão o inimigo vinha atacá-los dentro do próprio recinto de sua Cidade, espalhando seu sangue, arrancando-os de seus lares, arrebatando e profanando-lhes os objetos mais caros do culto. Podemos mesmo notar que foi dito que esses inimigos cruéis mandaram arrancar os olhos ao Rei dos hebreus e esse Chefe, simbolizando a luz do povo, mostrava que a maneira pela qual a Justiça usa de rigor contra os Prevaricadores é apagar-lhes a tocha da inteligência. Esse tipo foi repetido durante a servidão pela evasão de várias Tribos que, subtraídas ao jugo de seus Tiranos em Babilônia, distanciaram-se, e foram, por caminhos ocultos, habitar um país desconhecido na Terra. Nele elas ainda exercem o Culto do Eterno em sua pureza, segundo as Leis do hebreus; nele expiam, no luto e na tristeza, as prevaricações de seus Antepassados e representam o órgão vivo e puro de nossos pensamentos, que se distancia quando somos pusilânimes e que sofre longe de nós por causa de nossos extravios voluntários, a fim de que suas lágrimas sejam oferecidas como tributo a Justiça da Sabedoria suprema, que se esquece do crime dos culpados para prestar atenção às dores do inocente. Acontece o mesmo com a Arca da Aliança, que os Macabeus nos ensinam ter sido depositada por Jeremias, durante o cativeiro, em lugar desconhecido, onde deverá permanecer até a consumação das coisas. Mas em todos esses tipos vemos que a clemência acompanha constantemente a justiça, deixando sempre a esperança aos infelizes condenados à privação. É por isso que foi anunciado que no fim dos tempos as Tribos exiladas virão reunir-se ao seu Povo e que a Arca sairá do lugar escondido que a encobre, com o mesmo brilho e a mesma majestade que cercaram a Montanha célebre onde a Lei da aliança foi dada ao homem. Um Rei vencedor da Assíria42, sábio e participante das Ciências dos hebreus, reconhece que chegou o termo da escravidão. Encarrega um Justo43, indicado pela Sabedoria divina, de conduzi-los à Terra de seus Pais para aí reconstruírem o Templo abandonado durante todo o tempo da terrível servidão, na qual se viram privados de seu culto e de seus verdadeiros sacrifícios e na qual, mergulhados na tristeza, haviam pendurado seus instrumentos de música nos ramos dos salgueiros para não misturarem seus cantos aos concertos impuros de seus Mestres. Tais quadros são tão naturais e semelhantes que se torna inútil expor-lhes as relações. É o que acontece com a diferença encontrada entre o segundo Templo e o primeiro. Era tão chocante que aqueles que haviam conhecido o Templo antigo e viram a construção do novo não puderam deixar de derramar lágrimas amargas, tanto sentiam o preço daquele que haviam perdido. Isso nos faz lembrar que o templo corporal habitado hoje pelo homem não passa de uma cloaca, um calabouço tenebroso, se comparado ao Templo no qual teve sua primeira morada. O Sacerdote encarregado da reedificação do Templo reencontrou um dos exemplares da Lei. Aqueles que haviam crido que poderiam rejeitar as Profecias dos Livros hebraicos supondo que o próprio Esdras havia forjado tais livros, poderiam ter feito com que essa objeção valesse para as Profecias, cujo advento o havia precedido, mas não para aquelas cujo cumprimento só deveria ocorrer depois deles, mas não podem negar que estas eram em número muito maior. 42 Ciro, rei dos persas. Esdras 1:1-8 e 5:12-17, 6:1-5. (N.T.) 43 Zorobabel. Esdras 2:2 e 3:8. (N.T.) Ao restabelecer o culto, Esdras restabeleceu as oferendas de trigo, vinho e óleo usuais nos bons tempos do Povo hebreu. Não ocultarei que essas três substâncias combinadas constituem os fundamentos materiais sobre os quais se assenta o edifício intelectual da Grande Obra do restabelecimento das coisas, porque uma é o recipiente, outra é o agente ativo e gerador e a terceira é o elo intermediário. Para dar uma idéia das propriedades do óleo, observarei que ele se compõe de quatro substâncias elementares que lhe proporcionam relações ativas com os quatro pontos cardeais da circunferência universal. Dentre os diversos tipos de óleo, o de oliva ocupa o primeiro lugar porque como a polpa de seu fruto é exterior, ela recebe, através desse meio, as primeiras ações das influências, sem nos esquecermos de que, por sua qualidade natural, ela fixa e detém em si as mesmas influências. E vem daí que, para retratar as prevaricações dos Caldeus, Baruque nos apresenta mulheres queimando caroços de oliva diante de seus falsos deuses." Pouco tempo após a libertação do segundo cativeiro, os Fortes deixam de combater e tornamse semelhantes a mulheres. Vemos as suas virtudes se consumirem e corromperem. Vemos a Árvore escolhida tornar-se tão frágil e estéril que, segundo a expressão alegórica dos Profetas, não produzia nem mesmo um único Ramo bem forte para dele se fazer um Cetro para o Príncipe. Vemos o Povo cair em tal estado de cegueira que não receia ir, a preço de dinheiro, solicitar junto aos Idólatras o grande Sacrifício de seu próprio Templo. Vemos em seguida um inimigo poderoso cercar-lhe os muros, fazê-lo experimentar todos os horrores da guerra e da escassez. E reconhecemos nesses males sem número e flagelos terríveis o cumprimento das ameaças muitas vezes reiteradas ao Povo hebreu, caso ele não guardasse a Lei da aliança: esposos infelizes, nutridos com comidas delicadas, viam-se de tal modo premidos pela fome que chegariam a arrancar o próprio fruto e, depois de o haver devorado, ainda disputariam a massa informe e repugnante pela qual o homem se liga ao ventre de sua mãe. Imagem horrível que ensina ao homem corporal tanto a sua abominável origem como a dura necessidade que tem de devorar diariamente o amargor e a impureza com as quais o primeiro crime o confundiu. Logo o Sacrifício perpétuo é interrompido por falta de vítimas, montões de mortos se acumulam ao redor do Altar, soldados armados e cobertos do sangue de seus irmãos se estabelecem naquele lugar temível, onde somente o Sumo Sacerdote podia entrar uma vez por ano. É então que, subjugado pelo número e pela miséria, ele se torna errante, sem Templo, sem Sacrificador, sem Altar, assim como o homem, depois da queda, rasteja vergonhosamente na privação dos primeiros direitos e das funções sublimes que deveria exercer no Universo. Considerados nesse conjunto e sob esse ponto de vista, as Crônicas do hebreus, apresentamnos um espelho fiel onde podemos contemplar a história do homem. Não podemos deixar de também reconhecer neles os vestígios de uma luz e de uma força superiores, da qual o homem entregue a si mesmo é totalmente incapaz. Falo das virtudes que tiveram de trazer socorros visíveis à sua morada cheia de trevas ou dos Agentes, muitos dos quais são anunciados nas Sagradas Escrituras como não possuindo Genealogia nem Antepassados. O número dos Agentes e as diferentes épocas em que se manifestaram designam a subdivisão das potências divinas que fazem no mundo o tormento do homem, mas que ele deve suportar antes de recuperar o domínio, e cujos quadros não podem ser figurados diante dele sob condições por demais severas visto que, para aquele cujo sentimento derradeiro foi o desprezo da verdade, o primeiro deverá ser o terror dessa mesma verdade. Temos agora de fixar nossas idéias nas aparências de crueldade e injustiça oferecidas pelas Tradições dos hebreus e na escolha feita pela Sabedoria de um Povo que tão mal respondeu aos seus benefícios. Detenhamo-nos a princípio nas execuções cruéis, o enorme derramamento de sangue realizado pela mão dos hebreus, apesar da Lei formal que lhes proibia derramá-lo. Falemos dos flagelos lançados sobre Povos inocentes para a expiação das faltas de seus Chefes. Falemos dos sofrimentos de que muitos foram vítimas, não somente pela prevaricação dos Antepassados, mas também pela de outros culpados com quem eles não pareciam ter as mesmas relações. A primeira dificuldade é resolvida pela para contradição. Quanto mais era precisa a proibição feita ao Povo hebreu de derramar sangue, tanto mais a Sabedoria fazia conhecer que o direito de Justiça estava reservado a ela somente e que, como somente ela podia dar vida aos homens, somente ela tinha o poder legítimo de dispor da vida. Mas, ao reservar-se o direito exclusivo de agir sobre o homem, a Sabedoria não perde o direito de agir por ele. Assim, seja qual for a maneira pela qual demonstre sua ação, ela nada muda nas leis que a constituem, pois é sempre ela que opera e, ao empregar a mão do homem, não faz senão exercer, de maneira mais aproximada do estado grosseiro dos culpados, o império contínuo que exerce em toda a posteridade do homem, como em todos os Seres. Sendo o homem então apenas o agente ou o órgão da Justiça, não existe para ele prevaricação nem pecado e, enquanto não derramar sangue por sua própria autoridade e sua própria causa, não é culpado aos olhos da justiça. Verdade que os homens freqüentemente aplicam inadequadamente à sua Justiça convencional e a todos os estágios da ordem social, ao passo que ela só convém ao homem em sua Lei verdadeira: verdade mesmo assim, da qual a Justiça humana ainda conserva os vestígios e a marca, uma vez que considera inocentes todos os que julgam e matam em nome do Príncipe e que apenas usa de severidade contra aqueles que julgam e matam em seu próprio nome. O Escriba hebreu nos mostra como a mão do homem era passiva nesses grandes acontecimentos e como era dirigida por uma força superior, já que, num instante e com uma quantidade insuficiente de homens, apresenta-nos com freqüência números prodigiosos de imolações à Justiça. Quanto às execuções sanguinárias e cruéis, para pecados nos quais o Povo não havia participado, sem lembrar aqui o que foi dito sobre o pecado do homem, devemos distinguir os pecados particulares dos pecados comuns a toda uma Nação. Pois a constituição dos corpos é tal que tanto o mal como o bem são reversíveis em todos os membros. Vemos até exemplos deles na ordem simples das coisas humanas. Além do mais, o que deveria abafar qualquer murmúrio é a incerteza em que vivemos de que a Sabedoria suprema pague os serviços que exige de nós; de que, depois de ter exercido seus poderes sobre os objetos de sua Justiça para aterrorizar os olhos do culpado, ela os ressarça pelos trabalhos por eles suportados e de que, sendo mais nobre e mais fecunda do que todos os Soberanos da Terra, não possa verter na alma dos homens alguns raios de sua glória que apresentem aos seus olhos as recompensas, acima de qualquer relação com as penas e os trabalhos. Considerando, sob esse ponto de vista, a marcha da Sabedoria, que temos a dizer quando ela nos emprega? A injustiça não é fazer com que o obreiro trabalhe, mas fazê-lo trabalhar e reter-lhe o salário. Se em seguida quisermos reunir no pensamento os males que em toda a terra afligem a posteridade do homem e compará-los aos flagelos de todo tipo, cujo rigor, seguindo as Tradições hebraicas, o Povo judeu tantas vezes experimentou, veremos que essas penas foram mais freqüentes e mais multiplicadas no Povo destinado a manifestar os efeitos das virtudes divinas. Em que pese a dificuldade de admitir flagelos tão gerais e males tão numerosos, infligidos ao mesmo tempo a um único País e a um único Povo - já o disse - a prevaricações gerais devem ter atraído molestamentos gerais. E, de acordo com o que deixamos entrever sobre os direitos da vontade do homem, por si ou contra si, não há meios nem fatos que devam surpreendê-lo, nem parecerem sobrenaturais à sua verdadeira essência. É verdade que, em geral, os males naturais que afligem as nações, operando sem o concurso da mão do homem, não podem ser comparados aos feitos relatados nos Livros dos hebreus, em que a Justiça divina contra os culpados é quase sempre exercida por homens. Mas se a Sabedoria suprema escolher de um Povo dentre todos os outros Povos para o cumprimento de seus desígnios, se verdadeiramente fez essa escolha para apresentar ao homem a posição privilegiada que lhe dera outrora entre as outras potências, qualquer que seja o Povo escolhido, é preciso que vejamos reunidas nele as ações diversas que constituiriam uma ordem de Seres, se eles estivessem em estado de perfeição. Mas, estando a posteridade do homem na degradação, ela só pode representar essa ordem de Seres de maneira muito irregular. E a irregularidade consiste em mostrar, numa mesma espécie, todas as ações de espécies contrárias. Consiste em restringir de tal modo o quadro que, na mesma ordem de Seres, vemos virtudes ativas e virtudes passivas; consiste em que, numa mesma Raça e num mesmo Povo, se encontrem, ao mesmo tempo, o Juiz, o vingador e o culpado, enquanto que tais nomes deveriam pertencer a Seres diferentes. "Quanto à proibição de derramar sangue, busquemos saber por que é que está dito nos Livros hebraicos que Deus reclamará a alma do homem da mão do homem, e até mesmo da dos animais. E a respeito do termo mão, rebatamos de início um erro dos Tradutores. dy (iad, mão), vem hdy (iadah, ele lançou), porque realmente é a mão o instrumento que lança. Mas o termo dy (iad) significa também força, poder. Ora, se a inteligência tivesse guiado os Tradutores, eles teriam dito nos Provérbios que a morte e a vida estavam na força da língua, o que teria sido muito mais expressivo, em vez de nos dizerem, como o fizeram, que estavam na mão da língua, o que oferece uma idéia ininteligível e extravagante. Transformemos aqui pois, o termo mão no termo poder, lembrando-nos dos perigos que ameaçam o homem impuro que deixa o corpo antes do tempo.44 Sendo a Lei dos Seres irrevogável, eles são forçados a cumpri-la. Ora, se o homem intelectual deve permanecer durante algum tempo no sangue, caso seja privado do seu, liga-se a outro sangue, geralmente ao de seu assassino, seja homem ou animal, porque então esse sangue está mais próximo e mais desenvolvido. Em ambos os casos, só podem resultar grandes desordens para ele, já que um Ser só pode habitar o corpo que lhe é próprio e natural. Ao se ligar ao sangue de outro homem, ele o incomoda sem encontrar repouso, porque um outro ser situa-se em cima: unindo-se ao sangue do animal, liga-se a amarras ainda mais grosseiras e mais estranhas a ele e todos esses males são outros tantos obstáculos que o retardam e molestam em sua marcha. Podemos ver, pois, por que é que Deus irá reclamar a alma do homem da mão ou do poder de tudo o que é sangue, uma vez que o homem é seu dízimo pelas relações originais do seu quaterno com dez. Podemos ver em que é que se funda o horror que os homens costumam ter dos assassinos. Enfim, por é que as nações da Terra consideraram como cobertos pela mais extrema reprovação aqueles cujos cadáveres ficam expostos para servirem de pasto às aves e outros animais." Tomemos a segunda questão, com relação à gratidão do Povo escolhido. A maior parte do Observadores fica chocada com o fato de que, havendo os Livros hebraicos apresentado um Povo eleito pela Sabedoria suprema para ser como que o espelho de suas virtudes e leis, esse Povo se haja tornado o mais grosseiro, mais bárbaro e ignorante da Terra; com o fato de que, longe de combater pela mão que o escolhera, ele se arma a todo instante contra ela; com o fato de que, observando somente a letra dos preceitos dessa Sabedoria, ele tornou-se como que inútil aos desígnios dela. 44 "A morte e a vida estão no poder da língua; o que bem a utiliza, come do seu fruto." (Provérbios 18:21.) (N.T.) Se os Observadores houvessem aberto os olhos para o verdadeiro destino do homem, para o amor inextinguível de seu Princípio, inflamado de zelo e de ardor por ele, para persuadir a todos os Povos de que o Princípio não deixa de ocupar-se em livrá-los das trevas e privações, teriam reconhecido que os Livros hebraicos, assim como as outras Tradições, nada mais eram do que a história do homem. Teriam reconhecido que esse Princípio primeiro, cuja imagem o homem estava encarregado de manifestar na terra, fornecia-lhe ainda no mundo os meios para cumprir seu destino; que o mais sensível entre todos era mostrar-lhe a própria posteridade, o tipo daquilo que ele teria sido se houvesse conservado os direitos de sua origem. Assim esse Princípio primeiro teria podido e devido escolher, dentre a posteridade criminosa, algum Ser menos culpado e mais próximo de si, fazê-lo depositário das virtudes que sua Justiça permitia outorgar à Terra para conduzi-la ao seu centro; dar a esse ser, como prosseguimento da convenção primitiva, a promessa que de que se ele fizesse delas um emprego legítimo, não somente as conservaria para si mesmo e sua posteridade, mas ainda que as aumentaria infinitamente e a um número inimaginável; ao contrário, se ele e seus descendentes viessem a desprezá-las, todos os dons lhes seriam retirados e então, em vez de iluminar as Nações e conduzi-las ao centro, tornar-seiam objeto de sua Justiça e opróbrio da Terra. Os Observadores teriam visto que isso equivaleria a repetir em um quadro sensível e temporal a convenção primeira na qual estava baseada a emanação do homem e pela qual ele devia gozar de todas as vantagens inerentes ao esplendor de sua fonte, se permanecesse unido a ela, como devia esperar todos os males e aviltamentos se dela se separasse. Mas, embora a Sabedoria suprema tenha podido e devido fazer temporariamente a escolha de que falamos, embora haja eleito um Ser justo para confiar-lhe o tesouro de seus benefícios - pois ímpio algum pode nisso tomar parte - se em seguida a posteridade desse Justo viesse a afastar-se de sua lei, tornando-se ela, por conseqüência, um receptáculo de ignomínia e objeto do desprezo de todos os Povos, diríamos, por causa disso, que a escolha da Sabedoria foi indigna dela? E teria sido menos pura a primeira escolha que tivesse feito, embora ela se houvesse transformado na própria impureza? Seria preciso então dizer que o homem, emanado da Sabedoria suprema, fosse sem glória e corrompido na origem, porque hoje nós o vemos rastejar-se no pecado e no opróbrio. Confessemos, pois, que esse Povo, em que pese ter auxiliado tão pouco a mão que o escolhera, não deixava de ser, quando de sua eleição, a chama viva que devia brilhar em nossas trevas e nos apresentar novamente os quadros temporais dos quais o homem invisível é o modelo. Reconheçamos, por fim, que ele devia ser a prova clara do princípio exposto sobre a necessidade da comunicação das virtudes subdivididas da Sabedoria suprema entre os homens. Não podemos nem mesmo negar que, na dispersão absoluta à qual ficou entregue, ele apresente ainda indícios dessa verdade. Esse Povo, escolhido pela Sabedoria para ser seu símbolo na Terra, representava o estado glorioso do homem na pureza de sua origem e as sublimes funções que o chamaram para manifestar essa Sabedoria no Universo.

Esse Povo representava mesmo a ordem e a harmonia da Unidade suprema que todos os Seres deveriam contemplar ininterruptamente a fim de se conformarem à regularidade de seu modelo; em suma, era como que o farol das Nações e a tocha que devia iluminá-las pouco a pouco. Quando o Povo hebreu caiu em culposas divisões, quando, por seus crimes, foi arrastado a esquecer seus títulos num culto falso e ímpio e na rigorosa dispersão que devia ser sua seqüência, sua natureza primeira em nada mudou: embora o exercício de seus direitos e faculdades lhe fosse retirado, sua unidade de eleição em nada foi reduzida; embora os membros desse corpo fossem inteiramente dispersados e subdivididos, continuaram conservando suas relações fundamentais. Assim, esse Povo oferece sempre a marca primitiva que o constitui: traz sempre sobre si o selo do Ministério para o qual foi chamado e leva por toda parte sua essência indelével, assim como o homem conservou a sua, apesar do crime e da degradação. Assim, quando a Justiça deixa esse Povo errar entre todas as nações, mostra-lhe sempre que há nele traços, embora alterados, de origem respeitável, que atestam a existência de virtudes e perfeições divinas. Apresenta-lhe ainda as colunas do Templo, embora as ofereça derrubadas. Com isso, ela dá ainda às Nações, em imagens desfiguradas, os indícios secretos das virtudes que o amor e a sabedoria fizeram penetrar nas moradas dos homens para mostra-lhes sempre quadros vivos do Ser verdadeiro segundo o qual foi moldada sua existência; e estando o Povo disperso entre todas as nações da Terra, elas têm diante dos olhos, ao mesmo tempo, tanto os Agentes que deveriam ser os órgãos da verdade quanto os flagelos que os perseguem por haverem ousado desprezá-la. Não podemos encerrar de maneira melhor o que se refere às Tradições dos hebreus senão mostrando sobre o que é que repousam os sublimes privilégios dos quais o Povo é depositário. É que foi ele que teve na Língua o primeiro Nome positivo e coletivo de todas as faculdades e atributos do grande Ser, Nome que encerra distintamente o princípio, a vida e a ação primordial e radical de tudo o que pode existir; Nome pelo qual os astros brilham, a terra frutifica, os homens pensam; Nome pelo qual eu pude, Leitor, escrever-vos estas verdades e pela qual podeis entendê-la. É verdade que esse Nome passou de uma a outra em todas as Línguas da Terra, mas a nenhuma delas levou a imagem completa que apresenta na Língua dos hebreus. Umas fizeram dele apenas uma denominação indicativa da existência de um Ser superior, sem nada exprimir de suas virtudes. Outras conservaram alguns de seus traços principais; porém, fazendo abstração de todos os outros, não retrataram à nossa inteligência um quadro justo do nosso Deus. Outras, por fim, como as Línguas vizinhas do hebraico pela sua antigüidade, conservaram em grande parte as letras que compõem o Nome do Deus universal, mas, havendo-lhe alterado a forma e a pronúncia, bem depressa deixaram de atribuir-lhe as vastas e profundas idéias das quais ele era o germe. Somente o hebraico possui intato o Nome supremo, tronco sobre o qual serão enxertados todos os outros. Nome destinado à sustentação da posteridade humana. Não nos espantemos, pois, de que esse Povo nos seja apresentado como o farol das Nações e o foco invisível sobre o qual, desde a queda do homem, têm-se refletido os primeiros raios do grande Ser. Cremos haver apresentado até aqui um conjunto de princípios suficientemente ligados, conseqüentes e verdadeiros para derrubar as doutrinas do erro e do nada, e não duvidamos havê-las substituído por uma mais sólida, mais luminosa e consoladora. Se o homem descuidou-se até o presente de procurar manifestar as propriedades da fonte da qual descende, pelo menos não pode mais acusá-la nem queixar-se de que ela não lhe tenha fornecido meios para isso. Pois, embora o homem, por uma seqüência natural de seus desvios, tenha ficado reduzido a contemplar as imagens das faculdades divinas numa subdivisão dolorosa e penosa, elas se multiplicaram para ele de tal forma que não lhe deixam motivos de queixas. Não somente cada substância e cada ação da Natureza exprime um traço das faculdades criadoras que as produziram; não somente os feitos do homem proclamam que ele emanou de uma fonte pensante, que foi separado dela por um crime e que, por uma necessidade indestrutível e pela lei que o constitui, a Sabedoria e ele devem tender continuamente a reunirse. Mas ainda todas as Tradições da terra demonstram que essa fonte não deixou de aproximar-se do homem, apesar de sua mancha, e que ela circula em torno dele através de canais inumeráveis em todas as partes de sua habitação corrompida, mostrando-se visível em todos os seus passos. Assim, tudo o que o homem percebe pelo olhos corporais, todos os atos que exerce e produz segundo as leis da Região sensível, tudo o que recebe pelo pensamento, tudo o que até mesmo aprende pelas Tradições, pelas diversas doutrinas de seus semelhantes, pelo espetáculo de um culto sublime dado à Terra, pelo estado vergonhoso e desprezível dos que o perderam por o haverem profanado, e pelo quadro passado e presente de todo o Universo, tudo isso são outros tantos testemunhos irrevogáveis que lhe falam a língua de seu Princípio e de sua lei. Se a sabedoria forma o homem com a condição expressa de que ele a manifeste no Universo, não a creiamos por isso mais injusta nem impotente ao contemplarmos os caminhos que ela não deixa de empregar para restabelecer a união que deveria ter sempre reinado entre ela e nós, reconhecendo que, enquanto estamos sempre faltando à nossa convenção, a Sabedoria se ocupa em cumprir a sua. 7 Busquemos agora colocar-nos em guarda contra o emprego errôneo que os homem fizeram das verdades e consideremos os diversos ramos da Ciência que, em suas mãos, foram com tanta freqüência separados do tronco natural. Eu cumpriria mais prazerosamente esta tarefa pois parece aproximarem-se os tempos em que, de algum modo, se torna necessário lembrar aos homens esses objetos importantes. Apagaram-se os vestígios da barbárie; estamos cansados dos estudos vagos e ociosos que os sucederam. Os sistemas absurdos que se haviam erguido com excesso de precipitação sobre suas ruínas enterram-se nas trevas e parecem dirigir-se ao fim. E embora essas plantas venenosas hajam deitado profundas raízes em vários lugares, lançaram, ao mesmo tempo, toda a sua semente, não lhes restando, por isso, mais força para crescerem, de modo que devem aniquilar-se por sua própria impotência. Entre os escombros informes desses colossos da imaginação e da corrupção vemos aparecer uma classe de Observadores prudentes e judiciosos que, instruídos pelos desvios dos que os precederam, interessam-se em tornar a sua marcha mais segura. Uma propensão secreta fixa-lhes a atenção nos indícios das verdades esparsas pelo Universo. Sua emulação, dirigida, de algum modo, pela Natureza, faz com que diariamente descubram vestígios de luz de cuja existência, alguns momentos antes, não teriam suspeitado. Em suma: os espíritos fermentam e se purgam de maneira sensível através das substâncias estranhas com as quais foram por tanto tempo confundidos. É provável, pois, que os Observadores, estando ainda ocupados por algum tempo com leis, Seres, fenômenos celestes e terrestres, relações físicas do homem com tudo o que existe, com a comparação das Línguas e o verdadeiro sentido das Tradições, irão perceber por fim o imenso território dos conhecimentos do homem, gozando então de um sistema de ciência verdadeiro, conseqüente e universal. Observemos aqui que a mais importante e principal das descobertas seria reconhecer a sensibilidade da Terra, pois é fácil garantir que o nosso planeta desfruta dessa faculdade, uma vez que todos nós a desfrutamos corporalmente e que nosso corpo provém da terra. Assim como todas as pequenas partes de nosso corpo comunicam realmente a sua sensibilidade ao Princípio corporal imaterial que nos anima, também todos os seres terrestres comunicam a sua de maneira invisível ao Princípio sensível da Terra. E podemos julgar qual seja o extremo grau de sua sensibilidade, já que ela reúne tanto a nossa quanto a de outros seres sensíveis de nossa Região, sem contar que tem outra relações de outro gênero com outras classes de seres que pareceriam ainda mais distanciados, só podendo corresponder-se com ela através de seu número e suas ações secundárias. Mas, para compreendermos melhor a importância da doutrina sobre a sensibilidade de nosso Globo, saibamos que ele é a base de todos os fenômenos sensíveis, assim como o homem é a base de todos os fenômenos intelectuais, e que assim a Terra e o homem são os dois pontos sobre os quais refletem as ações das virtudes destinadas a se manifestarem no tempo. Eis aí uma das fontes dos sublimes conhecimentos em direção aos quais o homem parece caminhar sem saber e que um dia deverão ensinar-lhe qual é a verdadeira ocupação e o verdadeiro destino de seu Ser. Mas não podemos refletir sobre o homem sem reconhecermos que esta época pode ser para ele tão temível quanto desejável. Pois em qual tempo a árvore da Ciência não esteve sobrecarregada com o peso de ramos estranhos que lhe foram enxertados? Vimos que a Idolatria provém do fato de que o homem desceu da idéia pura e do culto simples de seu Princípio para objetos inferiores. Ora, se o tempo material só começou para o homem a partir do pecado, vemos o quanto lhe é difícil viver no tempo material sem ser Idólatra. Realmente, que aconteceu ao culto simples ao qual o homem era convocado por sua natureza e do qual distinguiu tão poucos vestígios em redor de si desde a degradação, a esse Culto oferecido ao Eterno pelos Seres puros e independentes das amarras que nos comprimem, segundo suas virtudes e seu número? Sublime demais para a Terra, ele se furta aos nossos olhos e não permite que o contemplemos. Como o esquecimento desse culto foi o primeiro passo dado pelo homem ao se afastar do Princípio, seu único recurso estava nos Agentes puros, noutros tempos seus Ministros, agora seus Mestres; Agentes ligados ao tempo como ele, porém não mais encerrados como ele nas amarras de um corpo grosseiro e corruptível; Agentes nos quais Deus escreve sem cessar hoje em dia, como escrevia no homem e que por sua vez escrevem em todas as partes do Universo, a fim de que o homem em toda parte seja levado a instruir-se. De algum modo, poderíamos dizer que vivemos habitualmente nas leis da segunda classe, já que recebemos pensamentos diários que nos vêm daqueles que a compõem e nela habitam. Entretanto, como somos quase sempre passivos nessas comunicações e como um simples culto denota atividade, devemos presumir que aos nossos estudos a segunda classe apresente objetos mais físicos, mais decisivos e mais positivos e que, por isso, exija cuidados mais vigilantes e mais bem dirigidos do que aqueles que ocupam a maior parte dos homens. Essa classe, sem ser tão perfeita como a primeira, é o mais alto termo ao qual o homem pode sabiamente dirigir o olhar durante o curto instante que passa na terra. Não exige nenhuma matéria, nenhum instrumento, nenhum órgão estranho àqueles com que o homem foi provido pela natureza. Desde o nascimento o homem traz consigo todos os materiais e bases dessa lei; sem isso, jamais esse edifício poderia ser erguido. No entanto, em suas ações essa classe conhece tempos e suspensões que lhe são permitidos, visto que tal é a lei dos Agentes encerrados no tempo. E se há Mestres que ensinam o contrário, não passam de ignorantes ou de impostores. Mas, quanto mais sublime é essa classe, mais difícil é ao homem manter-se nela. Para consegui-lo, é preciso que tudo o que nele houver de ilusão dos sentidos desapareça e seja aniquilado para deixar que brilhe apenas sua essência pura e real. Conservando sempre a integridade indestrutível de seu Ser, as ilusões que o ocupam devem dar lugar a substâncias sólidas e verdadeiras, assim como os vegetais tenros que na terra perdem a flacidez, recebendo em seus ductos uma matéria durável que, sem lhes mudar a forma, dá-lhes uma consistência à toda prova. Enfim, o homem, unindo a vida de um outro Ser à sua própria, deve renovarse perpetuamente sem deixar de ser ele mesmo, e a vida desse outro Ser é a do Infinito. Não fiquemos surpresos de que essa classe parecesse tão elevada aos que a conheceram, de que desde a queda do homem muitos dentre eles limitassem a esse ponto sua adoração e de que isso fosse a primeira fonte da Idolatria temporal. Há uma classe inferior a essa. Embora na terceira posição, é a que tem mais conformidade ao estado enfermo e degradado do homem. É mista como ele e como ele encerra duas bases consideráveis. A primeira tem como objeto os conhecimentos análogos à verdadeira natureza do homem; a segunda abrange a natureza sensível. Ambas são puras, respeitáveis, plenas de maravilhas para quem souber seguir-lhe as relações trazendo a elas uma intenção simples, tranqüila, humilde e, de preferência, disposta a contemplar e admirar esses belos espetáculos, em lugar de reinar sobre eles e glorificar-se de fazer parte deles. Ambas são os depósitos dos sinais hieroglíficos que serviram de germe aos símbolos da Fábula. Ambas foram conhecidas por vários Sábios antigos e modernos. Ambas são a fonte de diversos Cultos exercidos na Terra de maneira visível, porque não há nenhum deles que não tenha pelos menos vestígios de tais Cultos. E quando esses traços estiverem ainda mais alterados, os desejos mais puros e constantes do homem que os percorre na simplicidade de seu coração poderão fazer com que ele lhes recupere a eficácia primitiva. Se a primeira dessas bases deve servir de modelo à segunda, a segunda deve apoiar-se na primeira para satisfazer às leis de nosso Ser e estabelecer um equilíbrio perfeito em todas as faculdades que nos compõem. Se o homem, aspirando à ciência espiritual, negligencia os recursos que a Natureza lhe apresenta, corre o risco de passar da ignorância para a loucura. Se a Natureza elementar nos é nociva, é-o quando nos deixamos escravizar por ela e não quando lhe penetramos nas virtudes. Em suma, ignorar a Natureza é rastejar diante dela, subordinar-se a ela, ficando-se entregue a seu curso tenebroso. Conhecê-la é vencê-la e elevar-se acima dela. E aqueles que se ocupam com os objetos verdadeiros reconhecem tão bem sua utilidade que, quando se sentem fatigados por causa de uma abundância por demais grande dos frutos de seus estudos, basta-lhes às vezes fixarem-se num objeto físico para se aliviarem. Além do mais, se estamos colocados no meio dos objetos físicos, isso é uma prova de que o Ser supremo quer que comecemos a conhecê-lo dessa maneira. Se ele nos colocou este livro diante dos olhos, é para que o leiamos antes dos livros que ainda não vemos. É um dos maiores segredos que o homem pode conhecer: o de não ir logo a Deus, mas de ocupar-se longamente com o caminho que conduz a ele. Entretanto, evitemos separar a base inferior do móvel intelectual que deve vivificá-la e que é seu verdadeiro alvo ou seja: procuremos não contemplar os objetos físicos sem tomarmos como guia a tocha da inteligência, pois ela é o Deus da Natureza. Sem essa luz, veremos em tais objetos apenas uma aparência confusa sem jamais penetrarmos na sabedoria da ordem e da harmonia que os constituem, assim como jamais nos aproximaremos do Deus superior à inteligência se começarmos a divinizar nosso coração, visto que nada se realiza sem analogia. Evitemos perder de vista o alvo superior limitando-nos exclusivamente aos conhecimentos sensíveis e elementares. Foi nesse perigo que caíram os homem de quase todos os tempos. Foi nele que caiu Ismael, depois Esaú, que por ele perdeu seu direito de primogenitura. É por esse motivo que os árabes, descendentes de Ismael e que foram fontes tão fecundas das Ciências naturais, que nesse gênero passam como os Instituidores de todas as Nações, ficaram, no entanto, abaixo do verdadeiro destino do homem. Foi afastando-se ainda mais dessa classe que os maometanos reduziram a Religião dos árabes a simples observações de ritos corporais sem inteligência nem luz; e assim, entre eles a liberdade dos sentidos, é, por assim dizer, sem freios; e talvez não seja sem razões relativas a esse objeto que Maomé se dizia inspirado pelo Anjo da Lua. Assim, para se obter um exemplo completo de conhecimentos e de virtudes, é claro que as duas bases, a intelectual e a elementar, devem socorrer-se mutuamente. Da divisão das duas bases realizada pelo árabes, bem como pelos primeiros homens, resultou uma fonte imensa de abusos e erros que formam uma quarta classe. Arrastados em direção às substâncias naturais, os homens dessa classe, à força de se fixarem somente nelas, tiveram uma visão menos aguda. Como alvo, tiveram apenas o Ser inferior do homem e, se se ocuparam algumas vezes do Ser superior, foi apenas para lhe apresentarem objetos que não são dignos dele. Daí surgiram, em todos os tempos, as Ciências baseadas em fórmulas e segredos, Ciências cujo sucesso, segundo aqueles que as ensinam, depende exclusivamente de uma matéria morta, de amuletos, pentáculos e talismãs; ou da observação de objetos sensíveis, do vôo dos pássaros, do aspecto de certos astros, das feições e da estrutura do corpo humano, o que fica compreendido sob os nomes de Geomancia, Quiromancia, Magia, Astrologia, todas elas Ciências nas quais o Princípio, subordinado às causas segundas, deixa o homem na ignorância da verdadeira Causa. Ora, da ignorância ao erro e à iniqüidade é só um passo, como um terreno inculto coberto de sarças, que logo se torna um covil de serpentes. É com isso que Mestres cegos e impostores, abusando da fé dos Povos cujas paixões e vícios lisonjeiam, vivem desviando os homens de seu destino original e do verdadeiro objeto de sua confiança. Não falo daqueles que, gozando da reputação mais célebre entre os homens, ainda estão abaixo dos que acabo de descrever. Não somente afastaram, como os outros, o móvel visível que preside a todas as leis dos Seres; não somente tornaram-se cegos quanto ao destino e o Princípio das coisas naturais, mas também perderam o conhecimento das propriedades das menores substâncias; observaram apenas os efeitos exteriores dos corpos sem se ocuparem com as verdadeiras relações dos Seres com o homem. Entretanto, como a inteligência do homem não pode ficar sempre adormecida, eles buscaram pelo menos as leis e as relações que os Seres podiam ter entre si, mas, por haverem separado os Seres do Princípio, viram-se forçados a explicá-los por conta própria. E daí resultaram as doutrinas materiais e incoerentes da criação dos astros por divisões de uma mesma massa de matéria incandescente, as comparações tão aviltadas do nascimento desses grandes e vivos móveis com as fusões passivas e mortas de nossas substâncias terrestres - sistemas que custam aos seus Autores esforços infinitamente maiores do que fora preciso para se elevarem desde o início a um Princípio ativo ordenador de todos os Seres, que em cada um infunde uma medida de força, virtudes e vida análoga aos seus desígnios. Nessas corporações só existem a falsidade e o erro que mantêm o homem no sofrimento e ele realiza uma ação pacífica e natural quando permanece na verdade. Mas isso eu já disse e não devo mais falar dessa ordem de sábios: são nulos com relação à ciência e aos objetos de que tratamos. Existe, por fim, uma quinta classe de Ciências: a da própria abominação, que possui meios, símbolos intelectuais e sensíveis como as classes precedentes; conhece o número e as propriedades da fumaça; tem um culto, que exige mesmo uma certa pureza para ser realizada; e há na Terra uma Nação que vende aos outros Povos uma parte dos ingredientes necessários a esse culto, mas os resultados são horríveis. Seus sinais são comumente traçados sobre os que a professam e exercem a fim de que os homens tenham diante deles os exemplos patentes da justiça. Como o objeto dessa Ciência é falso e corrompido, ela conduz os homens por sendas contrárias às da verdade. Mas como também essa verdade está em toda parte, os monstros de que falamos não podem dar um passo sem encontrá-la e, não se apresentando a ela pelas sendas naturais, só se aproximam para serem repelidos. Conhecem-na somente para lhe provarem os rigores, sem poderem gozar da paz que lhe é própria. A essas diversas classes de Ciências é preciso acrescentar as nuanças intermediárias. Não devemos esquecer que cada uma dessas classes pode conduzir a termos indefinidos - seja no número de ramificações que encerra, seja na extensão dessas ramificações - e que pode aliar-se às outras classes no todo ou em parte, com as mais próximas ou com as mais distantes, formando amálgamas em que o pensamento do homem tem dificuldade em reconhecer-se. Desde as areias do mar até às regiões mais elevadas dos Seres, em toda parte o homem é capaz de assentar símbolos multiplicados e variados de seus títulos primordiais. É capaz, conforme prova a cada dia através das Artes, de seus gostos e paixões, de pôr sua alma nos olhos, nos ouvidos, nas mãos, nos pés, no paladar, na cabeça, no coração e nos órgãos impuros. E essas coisas, ligadas corporalmente a ele mesmo, não são mais do que a imagem de objetos distintos dele, com os quais pode identificar-se. De acordo com isso, não devemos admirar-nos da mistura que notamos entre as doutrinas da Terra e de nelas vermos combinações diversas do divino, do espiritual, do material e do impuro - porque essas classes estão abertas ao homem e porque, quando ele não regula sua marcha por um guia infalível, deixa entrar em sua obra vestígios impuros de sua corrupção e ignorância. Por sua natureza, é indubitável que o homem pode agir em Deus, com Deus, por Deus, sem Deus e contra Deus. Dentre todas as Ciências, não é difícil ver por qual teríamos interesse de nos decidir. Mas, tendo em vista a mistura à qual ficam expostas ao passarem pela mão dos homens, poderia acontecer que, sob aparências ilusórias, fôssemos induzidos em erro. Defendamo-nos, então, dos Mestres que apoiarem sua Ciência apenas numa base material, em fórmulas e receitas científicas, sempre concentradas nas causas segundas, pois - repito - das causas segundas às causas corrompidas não há quase intervalo algum. E já é muito, se aqueles que se apegam exclusivamente a semelhantes meios e os ensinam não merecem mais do que a nossa compaixão. Os que anunciam uma Ciência mais alta e meios superiores exigem ainda mais nossa vigilância e reflexões porque, sendo a sua marcha menos conhecida, deve ser-lhes mais fácil enganar-nos. Há então duas maneiras de julgá-los: através de suas instruções e através de seus feitos. Deixo os feitos em último lugar para aqueles que não passam de testemunhas, embora sejam muito úteis para os que têm a felicidade de serem seu instrumento. Mas, como essa senda é também a da ilusão, da astúcia e da má fé, o primeiro dever da prudência é observar com cuidado tudo o que é anunciado e empregado, a fim de não tomarmos como efeito das causas superiores o que seria o das causas naturais ou subordinadas. Há também uma medida a ser guardada nessas observações, que é a de não nos deixarmos cegar ao ponto de querermos tudo explicar pelo mecanismo das causas segundas. Foi o que aconteceu a alguns Comentadores dos Livros hebraicos que, ao falarem da Lei dada no Monte Sinai, representaram como simples meteoros o brilho, os fogos e os sons imponentes que acompanharam esse acontecimento. A instrução é, pois, a pedra de toque mais segura para se julgar a Ciência apresentada por um Mestre, conhecer a meta que o anima e a marcha dada por ele às suas faculdades. Essa instrução, ousamos dizê-lo, é a que foi apresentada nesta Obra. Instrução fundada na natureza do homem, em suas relações com seu Princípio e com os Seres que o cercam. É essa instrução que lhe ensina o quanto ele é superior à natureza elementar. Não passando de uma unidade composta, ou de uma fração da grande unidade, ela segue necessariamente a lei das frações numéricas: diminuir a sua exaltação ou ser sempre mais numerosa nas raízes do que nas potências; assim, quanto mais o universo material avança em idade, mais se aproxima do nada, uma vez que se eleva às suas potências. É essa instrução que apresenta o Ser intelectual do homem como um inteiro - pois que ele se prende à raiz intelectual e divina da qual todas as potências são inteiros; por conseqüência, ela que anuncia que, segundo a lei dos inteiros, ele deve ampliar-se e estender-se à medida que se eleva às suas potências - pois que o privilégio dos inteiros é manifestar cada vez mais sua grandeza e a indestrutibilidade de seu ser. É essa instrução que mostra o número do homem como o mais vasto à medida que ele se eleva às suas potências e nos faz compreender que deve haver um termo em no qual, achandose completa a ação temporal desse número, ele só pode agir no infinito e, como conseqüência, fora dos limites materiais, particulares e gerais. Realmente, é este o quadro do curso progressivo do homem intelectual: na infância, ele não pensa por causa do corpo; na juventude, pensa pelo corpo; na idade madura, pensa com o corpo; na velhice, pensa apesar do corpo, depois da morte, pensa sem o corpo. É essa instrução que não podemos acusar de querer dominar sobre a crença dos homens, pois, ao contrário, ela os exorta a não darem um passo sem exame; é essa doutrina que, mostrando no homem os vestígios e as ruínas de um magnífico Templo, apresenta-lhe as ações da Sabedoria e da Verdade como sempre inclinadas a reerguê-lo sobre seus alicerces. Ela lhe ensina que os caminhos traçados pelos homens esclarecidos, ou Eleitos gerais, lhe são necessários na idade média de sua reabilitação, mas que as verdadeiras luzes que convêm a cada um em particular chegam por um canal mais natural ainda, e ao abrigo de toda ilusão, quando o homem fez por longo tempo uma negação absoluta de si mesmo, quando não se torna arrogante, quando não foi sábio aos seus próprios olhos e quando, como a filha de Jefté, chorou sinceramente a sua virgindade. É essa instrução que lhe demonstra ter que o crime do homem fez subdividir, com relação a si, todas as virtudes cujo vasto conjunto ele outrora podia contemplar de uma vez só; mas como é indelével a natureza dos Seres, já que o homem é a expressão característica do Princípio supremo, há uma necessidade eterna de que essa lei opere. É essa instrução que o leva a reconhecer que a multidão de feitos, ações, Agentes e virtudes derramados no Universo, seguindo as tradições de todos os Povos, não passam da própria execução dessa lei co-eterna e indestrutível que, havendo constituído o homem, acompanha-o e acompanhá-lo-á para sempre em todos os momentos de sua existência. Por fim, é essa instrução que o faz considerar os feitos da natureza como expressão de sua verdadeira ciência e da sublimidade de suas funções primitivas, o que podemos ver no arcoíris, fenômeno formado pela reflexão dos raios solares assim como as virtudes intelectuais são reflexos da Ação do Deus supremo. Aparecendo somente quando há nuvens, ele parece situar o limite entre o seu caos cheio de trevas e a morada da luz; traz um número regular em suas cores; apresenta-se na forma de uma circunferência de tal modo subordinada ao homem que este lhe ocupa sempre o centro, fazendo-se seguir por ela em todos os passos. Com isso, oferece a seus olhos um quadro imenso, onde ele pode ver as primeiras relações que tinha com a unidade, com os Agentes submetidos dos quais dispunha conforme sua vontade, e com a morada da desordem e da confusão da qual os Ministros fiéis o mantinham cuidadosamente separado. Em suma, o arco-íris apresenta um quadro tão fecundo que a Sabedoria não podia ter escolhido um símbolo mais belo, quando, por ocasião do Dilúvio, quis anunciar as virtudes superiores e universais das quais, desde os tempos mais remotos, fez os órgãos e os sinais de sua aliança com o homem. Aqueles que, com uma doutrina tão sublime, se apresentassem para nos guiar na carreira da verdade poderiam merecer nossa confiança. Pois, se acontecesse que sua marcha não fosse conforme aos seus princípios, tais princípios nos bastariam para abrir-nos a inteligência o suficiente para sentirmos a falsidade dessa marcha e para que a pureza de nossos desejos lhe tornasse impotentes os esforços. Mereceriam ainda mais essa confiança se nos ensinassem a discernir a ciência da sabedoria, complemento e alvo de toda ciência. Não é necessário crermos que essa sabedoria esteja unicamente à nossa disposição e que dependa absolutamente de nós, como o hábito dos exercícios corporais com os quais podemos fortalecer-nos à força de repetições, ficando certos assim de alcançarmos bons resultados Temos em nós, é verdade, várias faculdades intelectuais e espirituais que podem aperfeiçoarse pelo nosso trabalho: são as virtudes secundárias e até mesmo a ciência. Mas, quanto à sabedoria, não é à viva força que a alcançaremos: é à Corte dos Reis que precisamos marchar com humildade, submissão, cuidado e atenção constante para cativar-lhes a benevolência; onde, a qualquer instante que nos reparem, é preciso que nos encontrem prontos a agradarlhes e a nos sacrificarmos por eles. É tanto pela paciência quanto pela autoridade e pela violência que devemos afastar os rivais que se nos deparam. A doçura e o amor, eis as rotas que conduzem à ventura. E ainda assim, apesar de todos os cuidados, o Príncipe talvez não se digne honrar-nos com um olhar. Julguemos agora se a sabedoria é uma coisa preciosa e se não há nada a que ela possa ser comparada. O homem deveria querê-la continuamente, mas com palavras de fogo que exprimissem o quanto a deseja. Seu rosto deveria trazer antecipadamente a alegria com a qual esse tesouro pode enchê-lo. É uma sede ardente, uma necessidade voluptuosa, é todo o seu Ser interior que deve falar. Poderíamos ouvir nossos Mestres se eles nos mostrassem as imprudências às quais o espírito do homem fica exposto em sua marcha por causa de seus julgamentos por demais precipitados, se eles nos dissessem que em qualquer grau de conhecimento, de virtudes ou de sabedoria em que possamos estar, sempre nos resta mais para adquirir além do que temos: se nos dissessem que as plantas que prosseguem em pacífica perseverança o curso de sua ação deveriam servir-nos de modelos, que todos os momentos empregados pelo homem em contemplar-se são subtraídos ao tempo destinado ao seu crescimento; poderíamos ouvi-los se nos dissessem que não apenas não deveríamos dar importância aos deleites mais amplos aos quais podemos inclinar-nos como homens (mas que seria preciso considerar bem menos ainda os deleites e os favores particulares, como o complemento da obra) nem a uma ciência isolada como a universalidade das maravilhas encerradas na aliança do homem com o Princípio, pois essa falsa maneira de ver seria o primeiro obstáculo aos nossos progressos. E se viéssemos a insinuar isso a outras pessoas, poderíamos estar certos de que estaríamos enganando a elas e a nós mesmos. Poderíamos ouvir os Mestres com atenção se, depois de nos termos instruído por esses princípios, eles nos exortassem a examinar se não há um complemento da grande obra. E aqui vamos ver que nasce uma nova ordem de coisas. Que coisa seriam os conhecimentos do homem, que coisa seria esse Ser feito para possuir a unidade das ciências e das verdades se ele não tivesse a esperança de conhecer, quando nada, uma subdivisão das virtudes divinas? Se sua natureza o convida a contemplar a reunião dessas mesmas virtudes e a ser delas o símbolo vivo, como recuperaria privilégios tão sublimes se apenas tivesse visto raios esparsos dessa unidade? Que coisa são os Heróis, os Semideuses e os Agentes célebres cuja correspondência com a Terra as Tradições históricas estão sempre a nos apresentar? Cada um deles foi depositário de apenas algumas virtudes particulares da unidade. Um manifestou-lhe a força pela grandeza de seus empreendimentos e imensos trabalhos. Outro manifestou-lhe a justiça pela punição dos malfeitores e pela sujeição dos rebeldes. Outros manifestaram-lhe a bondade e a beneficência pelas Ciências e socorros por eles trazidos aos infelizes, e pelas doçuras que deram a experimentar aos homens de paz. E o mesmo pode ser dito dos Agentes, sem excetuarmos aqueles dos quais, nas Tradições dos hebreus, falamos que mostravam ao homem virtudes isoladas, temporais e passageiras e por isso não lhe davam um idéia perfeita de seu Ser nem dos direitos ligados à sua natureza. Faltava-lhe ainda o complemento desse conhecimento para conceber o sentido de todos os emblemas grosseiros que tinham bem representado a lei do homem, porém que fazendo isso de maneira material, quando, pelo contrário, ela deveria ser representada pela virtude do homem e pelos feitos que emanassem dele mesmo. Era preciso então que uma AÇÃO PODEROSA demonstrasse a real e fecunda existência do homem facilitando-lhe o entendimento de seu Ser e elevando-o a um estado de superioridade para o qual, desde a queda, ele não deixava de tender por uma lei simples e mais una do que todas as que a haviam precedido, uma lei mais análoga à verdadeira natureza do homem, cuja grandeza e sublimidade não deixaremos de defender. Finalmente, era preciso que a Sabedoria abrisse para a posteridade humana uma porta a mais do que as que estão contidas no quadrado da potência do homem. Ou seja: que a Sabedoria devia abrir uma qüinquagésima porta para abolir o número de servidão operado pelo duplo poder do mal, a fim de que o homem, depois de se haver libertado, pudesse ainda libertar o seu recinto, "e era esse o espírito da lei hebraica que, ao fim de cinqüenta anos, dava liberdade ao escravos e fazia com que os bens alienados tornassem a passar para as mãos de seus primeiros Mestres". Por essa virtude nova, não somente o homem devia ver desaparecerem em si as leis do instinto e das afeições dos brutos, mas também substituí-los pelos direitos e afeições da inteligência. Não somente devia reconhecer os poderes da ordem e da justiça, mas também aprender a elevar-se acima da própria justiça, conduzindo-se por uma lei bem diferente daquela que fora escrita apenas para os escravos e os malfeitores. Em suma: devia aprender a julgar o verdadeiro destino de seu Ser, que não fora feito para permanecer preso em amarras, mas para fazer o bem, como Deus, por natureza, por amor e sem ser movido pelo sistema das punições e recompensas. Durante o primeiro período de expiação, o homem, tal como a criança nos laços cheios de trevas da matéria, certamente experimentava os benefícios da Sabedoria. Mas, ao receber esses benefícios, como a criança, sem os perceber nem reconhecer a mão que os derramava sobre ele, era passivo e seu Ser real e inteligente não saboreava ainda o verdadeiro alimento, que consiste na atividade e na vida. No segundo período, suas faculdades mais desenvolvidas deixavam-no em condições de tirar proveito dos dons a ele prodigalizados. Foi então que Agentes virtuosos e esclarecidos, colocados junto dele, sujeitavam-no a sacrifícios para fazê-lo compreender o estado de violência e sujeição em que toda a Natureza se encontrava com relação a ele, uma vez que tudo dava a vida por ele. Com isso, os Agentes, o instruíam sobre o destino das diversas artes do Universo. Ensinavam-lhe que na criação universal não havia um único Ser que não fosse à imagem de uma das virtudes divinas, que a Sabedoria multiplicara essas imagens em torno do homem a fim de que, quando ele lhas apresentasse, ela fizesse, com relação às virtudes, sair de si mesma uma nova unção, transmitindo assim ao homem todos os socorros de que precisa e a fim de que, quando o modelo se unisse à cópia, o homem pudesse possuir a ambos. Representar-lhe o Universo como um grande Templo, em que os astros são as tochas, a terra é o altar, os Seres corpóreos são os holocaustos e o homem é o sacrificador equivale a mostrarlhe seu destino em cores vivas. Com isso, ele podia recuperar idéias profundas sobre a grandeza de seu primeiro estado que o chamava a ser no Universo nada menos que o SACERDOTE DO ETERNO. Porém, apesar dessa luz brilhante, transmitida ao homem pelos Eleitos do segundo período, quando lhe anunciaram ser ele o Sacerdote do Eterno, ele não tinha ainda a explicação desse título sublime. Por mais magnífico que fosse, o quadro das relações representadas pelos Eleitos oferecia-lhe objetos inferiores à sua própria natureza. Ele apenas via potências esparsas e divididas e holocaustos corruptíveis; não via os indícios de uma oferenda imperecível nem a unidade dos agentes que deviam concorrer nesse quadro para através deles gozar da plenitude de seus direitos. Estava, pois, reservado a um terceiro período o fazê-lo adquirir o conhecimento mais perfeito da verdade e o ensinar-lhe que, se a partir de simples imagens temporais foi possível fazê-lo descobrir algumas virtudes superiores, ele não deve impor limite algum às suas esperanças apresentando à verdade uma imagem emanada dela própria. Pelos socorros que envia ao homem, essa verdade anima-o com a mesma unidade, garantindo-lhe a mesma imortalidade. É pois aí que o homem, descobrindo a ciência de sua própria grandeza, aprende que, quando se apóia numa base universal, seu Ser intelectual torna-se o verdadeiro Templo; que as tochas que deviam iluminá-lo são as luzes do pensamento que o cercam, seguindo-o por toda parte; que o Sacrificador é a confiança que ele tem na existência necessária do princípio da ordem e da vida, é a persuasão ardente e fecunda, diante da qual a morte e as trevas desaparecem; que os perfumes e as oferendas são a sua prece, são o desejo e o zelo que ele tem pelo reino da exclusiva unidade; que o altar é a convenção eterna, fundada em sua própria emanação e à qual Deus e o homem vêm render-se como que de conformidade para renovarem a aliança de seu amor e nela encontrarem, um, a sua glória, e o outro, a sua felicidade. Em suma: que o fogo destinado à consumação dos holocaustos, esse fogo sagrado que jamais deveria apagarse, é o da centelha divina que anima o homem. Houvesse ele sido fiel à lei primitiva, esse fogo tê-lo-ia tornado para sempre como uma lâmpada brilhante e compassiva, colocada na senda do Trono do Eterno, a fim de iluminar os passos daqueles que se haviam afastado dele, porque o homem não deve mais duvidar de que recebeu a existência para ser o testemunho vivo da luz e o símbolo da Divindade. Para melhor nos convencermos de como era necessário que uma Unidade de virtudes viesse completar diante dos homens o quadro de seu Ser, apenas ligeiramente esboçado pelas manifestações particulares, direi alguma coisa sobre os Números. Mas antes devo prevenir que essa senda é tão vasta que jamais o homem, ou ser algum, a não ser Deus, poderá conhecer-lhe toda a extensão. Além do mais, ela é tão respeitável que dela só posso falar com reservas, seja por ser impossível fazê-lo às claras e de maneira manifesta em nossa língua vulgar, seja porque ela encerra coisas às quais não se deve aspirar sem preparo. Entretanto, esforçar-me-ei para que o homem de desejo me compreenda o quanto lhe for necessário, nada negligenciando para conciliar sua instrução com a prudência. Mas, se acontecer que ele não me compreenda, rogo-lhe não consultar, para seu próprio interesse, sobre o que lhe confio, os Sábios consagrados na opinião humana, pois eles ressecaram a Ciência não a usando como substância para si. Só possuem seu esqueleto descarnado, havendo-se evaporado diante deles os sumos mais nutritivos sem que tivessem a sabedoria de contêlos. A Ciência é livre. Pretenderam fixar-lhe leis e interditar ao gênero humano a esperança da descoberta fora das decisões por eles tomadas, mas ela fugiu deles e eles caminham num vazio obscuro. Ela é incompressível como a água. Quiseram comprimi-la: ela partiu as amarras por eles infligidas e eles permaneceram na aridez. Que o Leitor não se dirija a eles para esclarecer suas dúvidas: nada mais fariam do que aumentá-las ou substituí-las por coisas enganosas. Se no que vai ler alguma coisa o embaraçar, concentre-se em si mesmo e tente, por uma atividade interior, tornar-se simples e natural, não se irritando se o sucesso se fizer esperar. As suspensões que experimentar costumam ser os próprios caminhos que o preparam secretamente e que devem conduzi-lo até ele. Os números são os envoltórios invisíveis dos Seres, assim como os corpos são os seus envoltórios sensíveis. Não podemos duvidar de que não haja um envoltório invisível para os Seres, porque todos eles têm um Princípio e uma forma. Situados nos dois extremos, ficam a uma distância grande demais um do outro para poderem unir-se e se corresponderem sem intermediários. Ora, é o envoltório invisível, ou o número, que faz as vezes de intermediário. Assim, nos corpos a terra é o envoltório invisível do fogo, a água é o da terra e o ar é o da água, embora essa ordem seja muito diferente nos elementos não corporificados. Não ignoramos que as leis e as propriedades dos Seres estão escritas nos envoltórios sensíveis: todas as aparências pelas quais eles se comunicam com nossos sentidos são a expressão e a própria ação de tais leis e propriedades. O mesmo podemos dizer dos envoltórios invisíveis, que devem conter e trazer em si as leis e as propriedades invisíveis do Seres, assim como os envoltórios sensíveis indicam as propriedades sensíveis. Se estão escritas neles, a inteligência do homem deve então poder lêlas, assim como os sentidos lêem ou experimentam os efeitos das propriedades sensíveis delineadas nos corpos e que age pelo envoltório sensível dos Seres. Eis o que o conhecimento dos números pode prometer àquele que, não os tomando como meras expressões aritméticas, sabe contemplá-los segundo a ordem natural e ver neles os princípios co-eternos da verdade. Além disso, é preciso saber que, como os Seres são infinitos e de vários gêneros as suas propriedades, há também um infinidade de números. Assim, há números para a constituição fundamental dos Seres; para sua ação, seu curso, bem como para seu começo e seu fim, caso estejam sujeitos a ambos. Há o mesmo para os diversos graus da progressão que lhes está fixada. E são como tantos outros limites em que os raios divinos se detêm e se refletem em direção ao Princípio, não apenas para apresentar-lhe as próprias imagens, não apenas para oferecer-lhe gloriosos testemunhos de sua exclusiva superioridade e infinidade, mas também para haurirem a vida, a medida, o peso e a sanção de suas relações com ele. Tudo o que vimos só podem existir no primeiro Princípio dos Seres. Há também números mistos para exprimir as diversas uniões e composições de Seres, ações e virtudes. Há números centrais, números mediais, números circulares e números de circunferência, e também números impuros, falsos e corrompidos. E, repitamos, todas essas coisas indicam os diversos aspectos sob os quais podemos considerar os Seres e as diferentes propriedades, leis e ações, visíveis ou invisíveis, das quais não podemos duvidar que eles sejam susceptíveis. E talvez a verdadeira causa pela qual os números têm parecido tão quiméricos à maioria dos homens é o hábito dos Calculadores de derivarem todos os números do zero, ou seja: começarem em suas divisões geométricas contando a partir de zero antes de numerar a primeira unidade. Não viram que essa unidade visível e convencional que se torna a primeira base de suas medidas nada mais é que a representação da unidade invisível, colocada antes do primeiro grau de todas as medidas, dando origem a todas, nem que, se foram forçados a representá-la por um zero, era para exprimir seu inacessível valor e não para considerá-la como um nada, pois ela é a fonte de todas as bases sobre as quais o homem pode operar. Vemos aqui que, assim como os números são infinitos, também é simples e natural a idéia que devemos ter deles. Ela se tornará ainda mais simples quando observarmos que a multidão imensa de números, que se subdividem e se estendem até o infinito, remontam, por uma marcha direta, até dez números simples, os quais entram nos quatro outros números, e estes na unidade da qual tudo saiu. Eis o motivo pelo qual, existindo no meio de todos os objetos da Natureza, temos, no entanto, somente dez dedos, quatro membros e um só corpo para apalpar os objetos, aproximar-nos deles e deles dispor; "pois os dedos dos pés têm como objeto o dar-nos flexibilidade, elasticidade e rapidez na marcha, assim como solidez e força quando estamos firmemente erguidos: e se, por força do hábito, já vimos homens servindo-se com sucesso dos dedos dos pés, o exercício forçado para conseguir isso e as tentativas inúteis de tantos outros, provam suficientemente que tais dedos não foram dados pela natureza com vista a tal destino: se trazem o número dez, como os dedos das mãos, é que tudo se repete, mas com qualidades e propriedades inferiores, segundo a inferioridade das classes." A alegoria do Livro de dez folhas na Obra já citada oferece claramente diversas propriedades ligadas aos dez números intelectuais. Basta acrescentar que de seus diversos conjuntos e combinações resulta a expressão de todas as Leis e ações de quaisquer dos Seres, assim como da combinação ativa de diversos Elementos resulta a variedade infinita das produções corporais e dos fenômenos elementares. Entre os exemplos que poderia citar, limitar-me-ei a um apenas. Mas o homem será objeto dele, como o é desta obra e com isso aprenderemos a julgar os exemplos sobre os quais me calarei e sobre outras propriedades dos números. Os filósofos antigos nos transmitiram a soma dos quatro primeiros números, a qual, dando dez como resultado, oferece um meio natural de ler claramente a imensa virtude do quaternário. Os novos filósofos contentaramse em lançar o ridículo sobre essas idéias numéricas sem compreendê-las nem refutá-las. Vimos nesta Obra qual é o destino original do homem, que devia ser o símbolo e o Ministro da Divindade no Universo. Vimos também que ele estava marcado com o selo quaternário. É bem singular que esse sublime destino do homem se encontre escrito nas expressões dos antigos Filósofos. Pois, levando-se o número quaternário até o resultado das potências que o constituem, ele produz dois números, ou duas ramificações que, reunidas, formam o numero dez, desta maneira:
Ora, encontrando-se o número quatro situado entre a unidade e o número dez, não parece ter a função de transmitir a unidade até a circunferência universal, ou zero? Melhor dizendo: não parece ser o intermediário colocado entre a Sabedoria suprema, representada pela unidade, e o Universo, representado pelo zero? Eis a figura natural:

Traço aqui esta figura com caracteres numéricos primitivos, atribuídos aos árabes, pois foram por eles transmitidos, mas que os Sábios desta Nação reconhecem pertencer a povos mais antigos. Esses caracteres que, para os olhos experientes, trazem a marca exata dos mais altos segredos das Ciências naturais e físicas, foram traçados para os homens comuns por Sábios e para estes por uma mão ainda mais pura a fim de ajudá-los a caminhar com passo firme na estrada das verdades. Não podemos, pois, pela lei dos números e pela figura que acabo de traçar, convencermo-nos da primeira dignidade do homem, que, correspondendo do Princípio da luz aos Seres mais distantes dela, era destinada a comunicar-lhes as suas virtudes. Nesses números encontraremos igualmente a caminhada pela qual o homem se extraviou. Se, em vez de manter-se no centro de seu posto eminente, o homem, ou o quaternário, afastou-se da unidade aproximando-se da circunferência figurada pelo zero, até confundir-se com ela e nela encerrar-se, tornou-se, a partir de então, material e tenebroso como ela. Eis a nova figura produzida por esse crime: "No número de dias necessários para que o feto humano tenha vida não poderíamos mesmo encontrar vestígios dessa união do quaternário com o zero? Os Fisiólogos nos garantem que são necessários cerca de 40 e ainda seria difícil duvidar de que tal tenha sido a fonte e a conseqüência do pecado do homem, uma vez que esse número se apresenta aos nossos olhos na reprodução da espécie humana.45" 45 A gestação humana é contada em 40 semanas. (N.T.) Observemos, contudo, para confortar a inteligência do Leitor, a quem essas verdades podem parecer muito estranhas, que não é necessário aplicar esse número de 40 dias ao crime do homem, pois o vemos reinar hoje em sua reprodução corporal. O número atual dessa Lei não passa de uma conseqüência e uma expiação do número falso que agiu interiormente. Por fim, encontramos ainda nessa figura simples
uma prova evidente de todos os princípios precedentemente expostos sobre a necessidade de haver a comunicação das virtudes superiores até na infeliz morada do homem. De um a dez há vários números diferentes, todos ligados por um laço particular ao primeiro elo da corrente, embora tenhamos o direito de separá-los para examiná-los sob um aspecto particular. Se o quaternário, ou o homem, tinha descido até a extremidade inferior dessa corrente, ou até o zero, e se, no entanto, o Princípio supremo o escolheu para seu regime representativo, não seria necessário que os números, ou as virtudes superiores e intermediárias entre um e dez, descessem até ele - que não tem o poder de transpor o limite que lhe está prescrito para remontar até elas - que descessem até sua circunferência para que ele pudesse recuperar o conhecimento do que perdeu? Eis aí todas as potências de subdivisão cuja correspondência com o homem, apoiada nas tradições e alegorias dos Povos, já expus. Mas isso não basta ainda para a inteira regeneração do homem: se a Unidade não houvesse penetrado na circunferência por ele habitada, ele não teria recuperado sua idéia completa e teria permanecido abaixo de sua lei. Foi preciso também que essa Unidade fosse precedida por todos os números intermediários porque, como a ordem foi invertida pelo homem, ele só pode conhecer a primeira Unidade que abandonou depois de haver conhecido todas as virtudes que dela o separam. Isso lança uma grande luz sobre a natureza da manifestação universal, cuja necessidade reconhecemos para o cumprimento dos decretos supremos. Qualquer que seja o Agente encarregado de realizá-la, é certo que ele não pôde ser inferior aos Agentes particulares que manifestaram as faculdades superiores apenas em suas subdivisões e, se os Agentes particulares, embora reduzidos a virtudes parciais, representaram, no entanto, as potências da Sabedoria - sem o quê eles teriam sido inúteis para os seus desígnios - com muito mais razão o Agente universal devia ser depositário dos mesmos direitos e poderes. Assim, a manifestação universal das potências divinas, sucedendo-se às leis rigorosas da justiça que resultariam da subdivisão delas, teve de coroar todos os bens que o homem podia esperar, fornecendo-lhe a visão das verdades positivas entre as quais ele teve origem. Ao mesmo tempo, admitamos que bastava um Agente revestido de tal poder para reerguer o homem da queda e ajudá-lo a restabelecer a semelhança e as relações com a Unidade primeira. Se pelo mais elevado dos homens foram gerados todos os males de sua infeliz posteridade, era impossível que eles fossem reparados por algum homem dessa posteridade: seria preciso supor que seres degradados, despojados de todos os direitos e virtudes, fossem maiores do que aquele que era iluminado pela própria luz; seria preciso que a fragilidade estivesse acima da força. Ora, se os homens se encontram em estado de fragilidade, se estão todos ligados pelas mesmas amarras, onde encontrar entre eles um Ser em condições de romper-lhes e desprender-lhes as correntes? E, em qualquer lugar que esse homem fosse escolhido, acaso não ficaria forçado a esperar que lhe viessem partir as suas? Verdade é que, como os homens se encontram respectivamente na mesma impotência e que, mesmo assim, são todos chamados por sua natureza a um estado de grandeza e liberdade, só poderiam ser restabelecidos nesse estado por um Ser igual a eles: o que prova que o Agente encarregado de lhes apresentar novamente a unidade divina deve ser, por si mesmo, mais do que o homem. Mas se dirigirmos a vista para acima das virtudes do homem, encontraremos as virtudes da Divindade da qual o homem foi emanado diretamente e sem o concurso de qualquer Potência intermediária. Possuindo mais do que as virtudes do homem, o Agente do qual falamos não pode ter menos do que as virtudes de Deus, visto que nada existe entre Deus e o homem. É preciso admitir então que, se a Virtude divina não houvesse doado a si mesma, jamais o homem teria recuperado o conhecimento dela. Assim, jamais lhe teria sido possível remontar ao ponto de luz e de grandeza para onde os direitos de sua natureza o haviam chamado. Assim, o selo do grande Princípio teria sido impresso em vão em sua alma. Assim, esse grande Princípio teria falhado no mais belo de seus poderes, o amor e a bondade, pelos quais não deixa de conseguir para o homem os meios de ser feliz. Esse grande Princípio teria sido frustrado em seu decretos e na convenção indelével que liga todos os Seres a ele. Quando declaro que nada há entre o homem e Deus, digo-o na ordem de nossa verdadeira natureza, na qual veramente nenhum outro poder, além do poder do grande Princípio, devia dominar-nos. No estado atual, há realmente alguma coisa entre Deus e nós: e é a falsa maneira de ser, a transposição de poderes que, imprimindo em nós a desordem universal, causa o nosso suplício e o horror da nossa situação passageira no tempo. Nova razão para a Virtude divina ter-se aproximado de nós a fim de restabelecer a ordem geral, reconduzindo todos os poderes às suas posições naturais, restabelecendo a Unidade primitiva; dividindo a corrupção que se reunira no centro, distribuindo as virtudes do centro para todos os pontos da circunferência, ou seja, destruindo as diferenças. É uma verdade, ao mesmo tempo profunda e humilhante para nós, que aqui no mundo as diferenças sejam as únicas fontes dos nossos conhecimentos, uma vez que, se é delas que derivam as relações e as distinções entre os Seres, são essas mesas diferenças que nos privam do conhecimento da Unidade, impedindo que dela nos aproximemos. Ora, sentimos que se a Virtude divina não houvesse dado os primeiros passos, o homem jamais teria esperado retornar a essa Unidade. De duas Virtudes separadas, como iria a mais fraca, a totalmente impotente, remontar sozinha e por sua conta ao seu termo de reunião? E sem o Agente universal, o homem bem teria sabido, através das as manifestações anteriores, que havia potências e virtudes espirituais, porém jamais teria sabido, por experiência, que havia um Deus, já que somente a Unidade de todas as suas virtudes é que poderia fazer com ele o conhecesse. Assim, reconheçamos com confiança que o Agente depositário de todos os poderes, seja qual for o nome que lhe dermos, deve ter possuído o conjunto de todas as virtudes supremas, que antes dele jamais se haviam manifestado, a não ser em sua própria divisão; que esse Agente teve de levar consigo o caráter e a essência divina e que, penetrando na alma dos homens, pôde fazê-los sentir o que é o Deus deles. E aqui eu lembraria a figura precedente, que representa o estado de privação em que todos nós padecemos por estarmos separados do nosso Princípio. Veremos que, aproximando-se os caracteres e fazendo a unidade penetrar no quaternário do homem, desse modo, [figura: círculo, dentro dele o 4 com a unidade] fica restabelecida a ordem universal, uma vez que os três caracteres se acham em sua progressão e harmonia naturais. Essa ordem certamente existia quando mesmo da subdivisão desses tipos, pois é indestrutível, mas aí só existia horizontalmente, ou em latitude, enquanto que na figura que os reúne aqui no mesmo ponto e no mesmo centro, ela existe segundo o seu verdadeiro número e sua verdadeira lei, que é a perpendicular. Por fim, para falar sem mistérios, foi nessa época que o Grande NOME dado aos hebreus teve toda ação. Sob a lei da justiça ele agira exteriormente: era preciso penetrar no centro para operar no homem a explosão geral da qual seu ser intelectual é suscetível e libertá-lo do estado de concentração ao qual fora reduzido pela queda. De acordo com as idéias profundas apresentadas por essas demonstrações, não nos admiremos das diferentes opiniões nas quais os homens se detiveram a respeito do Agente universal. Seja qual for a idéia que deles hajam formado, nada há relativamente a virtudes, dons e poder que não tenham encontrado nele. Uns dizem que era um Profeta; outros, um homem profundo no conhecimento da Natureza e dos Agentes espirituais; outros, um Ser superior; outros, por fim, uma Divindade. Todos tiveram razão, todos falaram de conformidade com a verdade e todas essas variedades provêem apenas das diferentes maneiras como os homens se colocam para contemplar o mesmo objeto. O erro cometido pelos primeiros foi o de querer tornar exclusivo e geral o ponto de vista particular que a eles se apresentava; o dos segundos, o de não se proporcionarem à fragilidade de seus Discípulos e de quererem fazê-los admitir, sem o concurso da inteligência, as verdades mais fecundas que o espírito do homem possa abranger. Os diferentes graus de Ciência e de vontade são então as únicas causas da diversidade das opiniões que reinam entre os homens a respeito desse grande objeto. Existem aqueles para quem o Agente veio, outros para quem ele vem e outros para quem ele não somente não veio, mas também para quem não vem ainda. Os mesmos princípios expostos nos ajudaram a descobrir qual deve ter sido a época conveniente à manifestação desse Agente. Pois se ele foi colocado pela Sabedoria suprema para a cura dos males ligados à esfera estranha e cheia de trevas que habitamos, deve ter seguido todas as suas leis. Segundo a ordem física, uma doença só se cura depois que o remédio penetrou na própria sede da vida, no centro do Ser. É o que se vê com evidência na maior parte das desordens corporais, que só são perfeitamente remediadas pela purificação do sangue. Mas o sangue é o centro dos corpos animais, o seu princípio corporal mais interior, pois, cercado dos outros princípios, pode ser considerado como no centro da circunferência animal, de onde envia as emanações de sua própria vida às subdivisões corporais mais extremas. Foi então preciso que o Agente universal, encarregado da grande obra da regeneração das Potências, penetrasse as substâncias mais íntimas de todo ser impuro, que comunicasse seus poderes ao próprio centro das coisas temporais, que por esse efeito surgisse no meio do tempo - como no meio das ações dos seres emanados - a fim de agir com mais eficácia e ao mesmo tempo sobre o centro e sobre a vida de todas as circunferências. Se desejássemos conhecer uma época positiva e determinada sobre essa manifestação, seria bem possível descobri-la ajuntando-se várias noções esparsas nas Tradições do hebreus. Seria necessário nos lembrarmos de que as suas Escrituras nos ensinam sobre a lei temporal senária que dirigiu a criação das coisas e sobre a Lei santa e setenária que lhe fez o complemento. Seria preciso compreender o sentido da passagem que declara que mil anos são para Deus como um dia, pois não parece que os que a empregaram em seus discursos e os que a combateram a tenham compreendido, uns melhor do que os outros. Seria necessário conhecer a relação de todas essas expressões, seja com o número ternário e aparente dos elementos corporais, seja com o número real da unidade do Princípio. Veríamos que as leis e as ações superiores estão designadas nos números ou envoltórios intelectuais dos Seres, com tanta clareza quanto as leis materiais nos corpo. Mas como seria preciso que o Leitor tivesse noções muito detalhadas sobre tais assuntos, seria inútil oferecer-lhe, sobre eles, resultados que permaneceriam nulos para a sua instrução, até que ele mesmo tivesse certeza. Eu me contentaria de levá-lo no caminho, falando-lhe ainda do número quaternário, cujas propriedades mostramos acima. O homem, a quem convém de maneira especial o número quaternário, foi emanado para ocupar o centro intermediário entre a Divindade e o Universo. Pela queda, foi precipitado numa circunferência muito inferior à que ocupava antes. Porém, como sua natureza não mudou apesar da degradação, ele teve de ocupar o centra da nova região, como havia ocupado o da antiga, e isso porque, a qualquer grau que os Seres desçam, seu caráter se conserva e se manifesta. Se na queda o homem ainda ocupou um centro, sempre trouxe em si o seu número primitivo e quaternário, alguma alteração que esse número deve ter sofrido pela oposição de uma região que lhe é tão contrária. Se o homem, conservando seu número quaternário, ocupe ainda um centro na própria morada da confusão que habita, o Agente universal, encarregado de apresentar-lhe seu modelo, teve de fazer isso de conformidade com todas as leis. Ou seja: que, surgindo no centro do tempo, ele teve de imprimir o número quaternário até sobre a época de sua manifestação temporal, sendo o quaternário dos tempos e o centro dos tempos uma única coisa. "Realmente, o quaternário, que dirige necessariamente a grande obra, deve dirigir-lhe as conseqüências, assim como lhe dirigiu as diferentes preparações. Pois esse número, que se liga ao mesmo tempo à expiação e a regeneração, estende-se ou se restringe, em razão do objeto que os seres têm a cumprir. O primeiro homem caminhou por quarenta para conseguir a remissão de sua falta e a reconciliação da posteridade temporal. Jacó caminhou por quarenta para conseguir a reconciliação de sua posteridade espiritual. O Libertador dos hebreus caminhou por quarenta para conseguir a libertação de seu Povo. O grande Regenerador preparou a reconciliação universal por um quádruplo cubo decenário, porque, sendo o eixo, o centro e o primeiro de todos os tipos, somente a ele convinha a obra do meio dos tempos, pela qual ele abrangia os dois extremos como depositário do complemento de todos os números." Desde sua chegada, esse número de ação quaternária se simplifica e se simplificará cada vez mais em razão das futuras oposições extremas pelas quais será necessário que o homem possa regenerar-se em menos tempo do que pelo passado. Essa progressão irá diminuindo até que o quaternário aja de maneira tão rápida e instantânea que acabe confundindo-se na unidade da qual saiu. É então que as coisas temporais acabarão e que o amor e a paz reinarão no coração dos homens de desejo. Se refletirmos sobre o número Sabático, ou Setenário, que completou a origem das coisas, ficaremos sabendo que esse mesmo número deve completar-lhe a duração e que, sendo quatro o centro dos tempos, é também o centro de sete. Mas evitemos numerar o curso temporal da sétima ação, como o das seis outras ações que a antecedem. Por não cair exclusivamente nos corpos, ela se furta aos nossos cálculos, e seria impossível ao homem marcar-lhe o termo, porque ela é governada por números superiores dos quais ele não saberia dispor. Temos aqui algo em que exercer a inteligência, mas temos também algo com que compensá-la pelos esforços que lhe restam fazer para ter certeza da idade e da antigüidade do mundo. Tudo o que posso dizer é que, para calcular esse ponto com exatidão, é preciso tomar como escala o ano terrestre. Por que, irão perguntar-me, tomar como escala o ano terrestre, em vez dos dias, semanas, meses, e até mesmo as revoluções de um outro planeta além do nosso? É que, como o tempo é a expressão de seis e uma ações primeiras e constitutivas da Natureza, seria preciso que nesses períodos e épocas especiais ele tivesse uma relação direta com ela; seria preciso que nos apresentasse quadros reduzidos, porém completos e proporcionais ao grande quadro da origem do Universo, de sua duração total e destruição. Ora, sabemos que o ano terrestre é o período que representa com mais exatidão os grandes traços do Princípio das coisas, pois nesse curto espaço ele nos mostra a imagem de tudo o que foi, de tudo o que é e de tudo o que será; o único período cujo curso encerra para nós a vegetação, a criação e a destruição universais, a verdadeira repetição de todas as coisas passadas, presentes e futuras, reunindo todos os tipos e épocas, materiais ou imateriais, concedidas à inteligência do homem para fazê-lo renascer e ajudálo a sair de seus abismos. Diz-se que esse período é o mesmo de todas as revoluções terrestres, que é o verdadeiro cálculo da terra e que no seu período particular a terra pinta em ação viva todos os traços do período geral. Não é preciso mais do que isso para demonstrar que o ano terrestre é o número simbólico do período universal e que, como tal, torna-se a base de nossos cálculos. E isso mesmo é o que poderia vingar a terra pelo desprezo que lhe votaram os homens ignorantes, que na sua pouca extensão quiseram ver motivos para desdenhá-la com relação ao Universo. Se a terra não estivesse mais ligada do que qualquer outro Ser corporal às leis e Princípios primeiros que dirigiram e criaram todas as coisas, não traria, de modo tão claro como o faz, o seu número e todos os seus caracteres. Quanto à revivificação ligada ao ato universal, central e quaternário, temos dela sinais indicativos nas Tradições dos hebreus sobre a origem do Universo. Ensinam-nos que o Sol foi formado no quarto dia e que antes disso nenhum ser animalmente animado tinha vida. Foi o seu fogo de reação que concorreu para fazer sair do seio da terra e das águas todos os Seres corpóreos que habitam o Universo material. Por esse quadro, isso não nos declara que, tornando-se o homem pecador e sujeito ao tempo, só recobraria sua verdadeira luz na época quaternária da duração das coisas temporais? Não fixa o número dessa luz e traça a lei pela qual ela se dirigiu e se dirigirá eternamente? É por isso que a Lei dada ao Povo hebreu só estendia a punição dos pecados até a quarta geração. Ora, o Reparador universal, surgindo na quarta idade do Universo, satisfazia plenamente à Lei, podia nessa época consumar a expiação universal das prevaricações de toda a posteridade dos homens. Por conseqüência, podia realizar a expiação das máculas e da ilegitimidade de seus próprios antepassados e a de todas as maldições a que seu ministério podia expô-la por parte dos homens. Entretanto, desejo apresentar a formação do Sol no quarto dia como o sinal profético de um acontecimento previsto então, visto que, de acordo com muitos, o pecado que a ocasionou não podia ser previsto sem que o Autor das coisas fizesse dele o pró e o contra e participasse no erro de sua criatura? Não devo, de preferência, apresentar essa formação do Sol no quarto dia como uma simples confirmação da ação do número quaternário - que devia ser completa antes que o homem culpado e cheio de trevas pudesse recuperar a vida de seu Ser intelectual - assim como os animais permaneceram na inércia e, por assim dizer, no nada até o momento em que o Sol elementar veio dar impulso à ação que lhes era própria? É fora de dúvida que, se já foram cometidos tantos erros sobre a presciência divina, é que aqueles que disputam sobre esses objetos confundem duas ordens de coisas muito diferentes: a ordem visível das coisas corruptíveis em que vivemos e a ordem das coisas incorruptíveis, que era a da nossa verdadeira natureza. Em lugar de fazerem essa importante distinção, imputam à Sabedoria suprema um concurso universal com nossas obras, que ela tem, talvez, por alguns de nós em nosso estado atual, no qual estamos ligados às ações variadas dos Seres não livres, mas que não saberíamos imputarlhe no nosso estado primitivo sem injuriá-la nem desnaturar-lhe todas as Leis. Não nos detenhamos por mais tempo nessa questão. Ela está entre aquelas que são inúteis e perigosas de tratar pelo raciocínio separado da ação. Devemos agir para conseguir bases de meditação e não meditar antes de termos conseguido essas bases. Sem isso, cada um erra no vazio e no espaço cheio de trevas. Cada um apreende um sentido particular que, por ignorância e leviandade, quer generalizar. Tudo se obscurece porque tudo se divide. Tudo se aniquila porque o homem reduzido a si mesmo esgota suas forças e nada recebe para renoválas. Eis de onde provêem os Cismas, as Seitas, ou seja: o nada. Uma das grandes ciências é saber deter-se oportunamente. Limitemo-nos então a reconhecer que o Agente universal, surgindo no meio dos tempos, numa época quaternária, e dando ao homem a verdadeira reação de que precisava, colocou-o em condições de entrar em seu antigo domínio e de percorrer-lhe todas as partes. Se o corpo do homem lhe apresenta dois diâmetros, se com isso esse corpo é um símbolo perecível da medida universal, seu Ser intelectual, que depende do princípio infinito, está, com muito mais razão, revestido do sinal quaternário que participa do infinito e com o qual pode medir eternamente todos os Seres. Mas os dois diâmetros corporais do homem estão, por assim dizer, confundidos, insensíveis, desfigurados e sem ação no seio da mulher até o momento em que, alcançando a luz elementar, lhe é permitido desenvolvê-los. Isso nos indica então que a medida quaternária do homem intelectual estava restringida e como que nula desde que ele cometera a desordem; e que ela só poderia estender-se e desenvolver-se na época da grande luz, época em que as virtudes da Unidade sensibilizaram a si mesmas, a fim de fluir nos quatro canais que formam o caráter hieroglífico do homem. Essa época fornece, pois, ao homem os meios positivos de exercer por sua vez a mesma reação sobre tudo o que ainda lhe é obscuro e oculto. E nada mais há nas leis e na natureza do Seres que possa recusar-se ao seu império, uma vez que os Seres são subdivisões da medida universal e dependem todos parcialmente do grande quaternário. Mas para que o desenvolvimento universal produzisse semelhantes efeitos, teve de operar-se no meio do tempo universal e no meio do tempo particular, a sua representação abreviada e que divide em quatro o curso da Lua. O Agente encarregado dessa obra teve de completá-la não somente entre a Lua nova e a Lua cheia, mas ainda no meio de um período setenário de dias, submúltiplo do período lunar. Foi, ao mesmo tempo, no centro de uma semana, no centro do mês periódico da Lua e no centro do curso universal da Natureza que esse Agente divulgou aos homem a Lei secreta a eles velada desde o exílio nessa morada de expiação a fim de que, agindo virtualmente nesses três centros, abrisse a passagem às virtudes das três faculdades supremas, as únicas que podem revivificar os três órgãos intelectuais do homem e conceder a audição, a vista e a palavra à sua inteira posteridade. É nessa época tríplice que ele teve de entrar no Santo dos Santos, vestir-se com o Éfode, a Túnica de linho, o peitoral, a Tiara usada pelo Sumos Sacerdotes em suas funções, e que eram para eles o símbolo das verdadeiras vestes com as quais um dia o Regenerador deveria cobrir a nudez da posteridade humana. Nesse ponto, ele teve de desenvolver a Ciência aos olhos daqueles que havia escolhido. Teve de restabelecer diante deles as palavras apagadas no velho Livro confiado outrora ao homem e pelo homem desfigurado. Teve até de dar-lhes um novo Livro mais extenso que o primeiro para que com isso aqueles que a quem ele fosse transmitido pudessem reconhecer e dissipar os males e as trevas com que a posteridade do homem estava envolvida e ainda aprendessem a evitá-las e a se tornarem invulneráveis. Nesse ponto, ele teve de preparar o perfume antigo do qual se fala no livro do Êxodo, composto de quatro aromas de peso igual, e que os Sacerdotes só podiam usar no Templo, sob as mais rigorosas proibições. Teve de encher o incensário sagrado e, depois de haver perfumado todas as regiões do Templo, teve de convencer os Eleitos de que eles nada podiam fazer sem esse perfume. Por fim, sua obra teria sido inútil para eles se ele não os houvesse iniciado em seus conhecimentos, ensinando-lhes a colher eles mesmos esses quatro preciosos aromas, a com eles comporem por sua vez esse mesmo perfume incorruptível e a extraírem dele as exalações puras que, por causa de sua viva salubridade são destinadas, desde a origem da desordem, a impedir a corrupção e a sanear todo o Universo. Pois o Universo é como um grande fogo aceso desde o início das coisas para a purificação dos Seres corrompidos. Seguindo a lei dos fogos terrestres, ele começou cobrindo-se de fumaça. Em seguida a chama desenvolveu-se e deve continuar, de maneira imperceptível, a consumir todas as substâncias materiais e impuras a fim de retomar sua primeira brancura e devolver aos Seres as suas cores primitivas. É por isso que na ordem elementar, depois a chama de ter irrompido, depois de ter-se elevado acima das matérias combustíveis, continua a dissolvêlas delas até a destruição total. É por isso que, à medida que foi atraindo a si todos os Princípios de vida das matérias, que as libertou, unindo-as à sua própria essência, eleva-se com eles nos ares concedendo-lhes a existência livre e ativa da qual não desfrutavam no corpo. Como eles, o Chefe Universal de todos os Instituidores espirituais do culto puro e sagrado teve de reapresentar na terra o que acontece na classe superior. E isso de conformidade com a grande verdade de que tudo o que é sensível é apenas a representação daquilo que não o é, e que toda ação que se manifesta é a expressão das propriedades do Princípio oculto ao qual pertence. O Eleito universal deve até ter cumprido essa Lei de maneira mais eminente do que todos os Agentes cuja obra acabava de completar, uma vez que estes somente haviam mostrado na terra o culto de justiça e de rigor, e que ele próprio vinha trazer-lhe o culto de glória, de luz e de misericórdia. Assim, em todos os atos e no culto que exerceu, ele teve de demonstrar tudo o que se realiza na ordem invisível. Do alto de seu trono, a Sabedoria divina não deixa de criar os meios para a nossa reabilitação. No mundo, o regenerador universal não deve ter deixado de cooperar no consolo corporal e espiritual dos homens transmitindo-lhes diversos dons, relativos à própria preservação e à de seus semelhantes, ensinando-lhes a afastarem de si as armadilhas que o cercam e a se preencherem com a verdade. Do alto de seu trono, a Sabedoria divina não deixa de atenuar o mal que cometemos e de absorver nossas inquietações na imensidão de seu amor: no mundo o Regenerador universal perdoou os culpados e, quando os acusaram diante dele, mostrou que absolvê-los seria uma obra muito maior do que condená-los. Por fim, do alto de seu trono, a Sabedoria divina concede suas próprias potências e virtudes para anular o tratado pecaminoso que submeteu toda a posteridade do homem à escravidão: no mundo, o Regenerador universal teve de dar seu suor e sua própria vida para que pudéssemos conhecer de maneira sensível as verdades sublimes e para nos arrebatar à morte. É assim que a ordem visível e a ordem invisível, movidas por uma correspondência íntima, apresentam aos homens a unidade indivisível do móvel sagrado que tudo faz agir. Para a Inteligência nada mais há, inferior ou superior, entre os poderes supremos. Em todas as partes da grande obra ela não vê mais do que um único fato, um único conjunto e, por conseguinte, uma única mão. É uma verdade indubitável que tais fatos jamais teriam acontecido ao homem se aquele que vinha realizá-los não houvesse permanecido em junção, em todos os atos de seu ministério, com a Unidade, com à está eternamente ligado por sua essência. Do mesmo modo, as manifestações possíveis das potências divinas que a Sabedoria envia para o socorro do homem seriam nulas para ele se houvesse a menor separação, a menor divisão entre essas potências: estando o homem no último elo da corrente, jamais veria chegarem até ele as virtudes da extremidade superior se alguns dos elos intermediários fossem rompidos. E para afirmar nossa confiança, seja sobre a união necessária das virtudes com o Princípio, seja sobre a possibilidade em geral de todas as manifestações de que falei, lembrarei aqui que a matéria, embora verdadeira com relação aos corpos e aos objetos materiais, é aparente para o intelectual; que em razão dessa aparência as ações superiores podem alcançar-nos e que podemos elevar-nos até elas. Isso seria impossível se o espaço que nos separa fosse fixo, real e impermeável. Assim também não haveria intercâmbio algum de influências entre a terra e os astros se o ar entre eles não fosse fluido, elástico e compressível. Toda recompensa que desejo daquele a quem revelo essas verdades é que ele medite sobre as leis da refração, que observe que ela é maior em razão da densidade dos meios e que assim reconheça que o objeto do homem na terra dever ser o de empregar todos os direitos e toda a ação de seu Ser para rarefazer, o quanto puder, os meios que se situam entre ele e o verdadeiro Sol, a fim de que, estando como que nula a oposição, a passagem seja livre e que os raios da luz cheguem até ele sem refração. Devemos ver que o próprio homem, embora separado da Sabedoria da qual hauriu a vida, só o está relativamente a si mesmo, e de modo algum aos olhos da suprema Inteligência que, abrangendo a universalidade dos Seres e sendo a única a lhes dar a existência, demonstra a impossibilidade existir um ser que lhe seja desconhecido. Mas desde que, apesar de nossas máculas e nossa degradação, não podemos jamais subtrairnos à visão íntima, inteira e absoluta do grande Princípio, talvez ele estivesse menos distanciado da nossa visão do que julgamos se, para percebermos a sua presença, seguíssemos caminhos mais verdadeiros e menos obscuros. Talvez todos os obstáculos fossem nulos e insensíveis se, para restabelecer nossas relações com ele, empregássemos todos os esforços que empregamos para destrui-las. Se tais relações são o privilégio das Potências puras que a Sabedoria queira comunicar-nos, é que essas Potências, não as alterando como nós por uma marcha desregrada, permanecem unidas à Sabedoria por sua própria vontade, como o são por sua essência, e conservam assim a unidade de suas faculdades e correspondências com ela. Devemos então concordar em que as manifestações superiores, cuja necessidade sentimos para nos apresentarem novamente os direitos de nossa primeira Natureza, só apresentam separação relativamente a nós que estamos cerceados em limites estreitos e que, pela fragilidade de nossos olhos, só vemos uma parte do quadro, ao passo que aquele que o mantém na mão vivifica-o, contempla-o e o vê sempre por inteiro. Assim, tudo está ligado por Deus, tudo se relaciona, tudo existe em conjunto. Todas as virtudes, inerentes a ele ou dele emanadas, todos os seres por ele escolhidos, todos os homens que ele fez nascer e todos os recursos que empregou desde a origem das coisas e que empregará até o seu fim e na eternidade de si mesmo, estão sempre presentes diante dele. De outro modo, sua obra seria perecível; ele só produziria seres mortais e qualquer coisa poderia ser subtraída à sua universalidade. Devemos repetir também que a vontade falsa do Ser livre é a única causa que pode excluí-lo da harmonia universal da Unidade, pois ele depende sempre dessa Unidade por sua natureza. Daí resulta que, ao se esforçar para imitar as potências puras que manifestam diante dele as virtudes divinas, unindo-se a sua vontade à vontade do grande Princípio, ele desfrutaria como elas de todas as suas relações com esse Princípio. Seria semelhante a ele pela indestrutibilidade de seu Ser, fundada sobre a lei de sua emanação; estaria englobado na harmonia de todas as faculdades divinas. E entre todas as virtudes que a Sabedoria lhe faz manifestar, não nenhuma haveria que não lhe fosse conhecida e da qual não pudesse desfrutar: de outro modo ele não conheceria a sua unidade. Como o amor pela felicidade dos Seres é especialmente a essência da Sabedoria, quando ela faz as potências divinas subdivididas e a sua própria potência chegarem até nós, tem como objeto conduzir-nos à unidade harmônica, na qual todos os Seres podem desfrutar da plenitude da própria ação. Ela semeou essas virtudes ao nosso redor a fim de nos levar a recolhê-las, a ajuntá-las e fazer delas o nosso alimento diário. Em suma: a compor com elas uma unidade, aproximando os tempos e as distâncias que a mantêm afastadas e desviando delas todos os obstáculos e véus que a ocultam aos nossos olhos, impedindo-nos de percebê-las. Assim todas as virtudes divinas, ordenadas pelo grande Princípio para cooperarem na reabilitação dos homens, existem sempre ao nosso redor e junto de nós, não deixando jamais o recinto em que estamos encerrados - assim como as criações da Natureza elementar cercam continuamente nossos corpos, sempre prontas a nos transmitirem suas propriedades salutares, a nos curar e até mesmo a nos preservar de nossas enfermidades se nossas visões falsas e contrárias a essa Natureza não nos afastassem com tanta freqüência do conhecimento de seus tesouros e dos frutos que poderia obter. Assim, sem os obstáculos que nós mesmos contrapomos às ações benéficas do grande Princípio, não haveria nenhuma dessas virtudes que pudéssemos colher e da qual pudéssemos apropriar-nos, se assim podemos dizer, como poderíamos apropriar-nos de todas as virtudes das substâncias salubres da Natureza elementar. Assim, sem a depravação ou a fragilidade de nossa vontade, não estaríamos separados de todos os Seres e Agentes salutares - cujos benefícios estão consagrados nas diferentes Tradições - apenas na aparência, ficando mais perto deles na realidade. Todas as obras do grande Princípio nos estariam presentes, e desde o princípio dos tempos até agora, nenhum Ser, nome, potência, feito ou Agente permaneceria desconhecido de nós, de modo que os Eleitos que operaram na terra a seqüência de fatos a nós transmitidos pelas Tradições dos Povos. Todas as suas luzes, conhecimentos, nomes, sua inteligência e suas ações compor-nos-iam um único quadro, um único ponto de vista, um único conjunto, com detalhes destinados à nossa instrução e submetidos ao nosso uso. Isso demonstra quão inúteis os Livros seriam se fôssemos sábios, pois os Livros são coletâneas de pensamentos e vivemos em meio a pensamentos. Realmente, se tudo é necessariamente ligado, inseparável, indivisível, como que provindo da essência divina; se as virtudes que emanam do grande Princípio estão sempre unidas e numa correspondência perfeita e íntima, é evidente que o homem, não podendo aniquilar nem mudar a própria natureza - que o liga necessariamente à unidade universal - nunca deixa de estar em meio a todas as virtudes divinas enviadas no tempo. É evidente que está cercado por elas, que não pode dar um passo nem fazer um movimento sem se comunicar com elas, que não pode agir, pensar e falar na solidão mais profunda sem tê-las por testemunha, sem ser por elas visto, ouvido e tocado. E, se entre ele e elas não houvesse o fruto de sua vontade covarde e corrompida, ele as conheceria tão intimamente como elas o conhecem, teria sobre elas os mesmos direitos que elas têm sobre ele. E não iremos longe demais ao afirmar que ele poderia estender seus privilégios até conhecer, de maneira visível, Fohi, Moisés, o próprio Regenerador universal, uma vez que esse privilégio abrange de maneira geral todos os seres que desde o princípio dos tempos foram convocados à terra. Que razão nos impediria até mesmo de crer que, sem estar corrompida a nossa vontade, teríamos direitos semelhantes sobre os grandes fatos e as grandes ações vindouras? Se nossa natureza nos chama para participar nas propriedades da unidade, não devemos, como ela, abranger todos os espaços e tempos, por estarmos, como ela, acima de tudo o que é passageiro e temporal? Sim, se é verdade que na nossa essência estamos inseparavelmente ligados à unidade, devemos estar ligados em todos os fatos que lhe são próprios, nos que existiram antes dos tempos, nos que existirão até o fim do tempos, nos mesmos que acontecerão depois da dissolução e do desaparecimento das coisas aparentes e compostas. Pois não dependeríamos mais da Unidade se nossos direitos fossem apenas parciais e não pudéssemos contemplar-lhes o conjunto em todos os detalhes do espetáculo da imensidade. Vemos, com isso, como se simplifica a idéia que temos dos Profetas. Sua glória e suas luzes deveriam ser a de todos os homens. Todos os homens são profetas por natureza. É a sua fragilidade e a sua depravação que os impede de manifestarem esses privilégios. A etimologia desse nome prova-o. Os hebreus exprimiam-no por Roëh, particípio do verbo Raah, ele viu. Assim chamavam os profetas de Videntes. Assim podemos derivar daí os direitos e as virtudes dos Reis, a quem, segundo o verdadeiro significado, deveria pertencer principalmente a qualidade de Vidente. Assim o primeiro Rei de Israel recebeu seus títulos e sua autoridade do Vidente Samuel, porque então os Chefes temporais dos hebreus eram Videntes, como o homem o era em seu primeiro estado e como sua posteridade deveria ter sido. Por fim, os dois mundos estão cheios de tesouros, nascidos ou por nascer, que se manifestam de acordo com a vontade do homem quando ele é sábio. Se existe um Seminal universal em ambos, esse Seminal é sem limites, sem número e sem fim. Para produzir e se mostrar só espera um choque ou uma razão conveniente, e essa razão é a pureza dos desejos do homem. Pode ele, pois, queixar-se de sua ignorância, pode ter males e penas uma vez que a todo instante tem o poder de instruir-se ou de rogar com eficácia ao seu Deus? Quanto ao mais, os que não quiseram crer nas próprias almas, porque nelas não lhes seria mostrado tudo o que lhes dizem que deve estar, demonstrariam com isso bem pouca inteligência. Realmente, mostrá-la no estado de trevas em que se afundam não seria mostrá-la. Mas, antes de garantir que as maravilhas que lhes atribuímos não são encontradas nessa alma, seria preciso que eles houvessem feito alguns esforços para procurá-las, e talvez esses esforços as teriam feito nascer. Talvez reconhecessem que não lhes seria tão difícil, como pensam, tornarem-se felizes e que, se quisessem sê-lo, bastaria que falassem. Aqui apresenta-se uma questão importante: saber quais são os meios sensíveis empregados pelo Agente universal para apresentar de maneira visível a unidade de suas virtudes ao Universo no meio dos tempos e no centro de todas as imensidades temporais, universais e particulares. Mas sobre esse assunto eu pouco diria. Não ficou esquecido que virtude superior alguma ou pensamento algum chega junto ao homem sem condensar-se, por assim dizer, e unir-se às cores sensíveis da região que habitamos, observando-se, todavia, que seguem as Leis terrestres sem serem por elas comandados, e que as dirigem e aperfeiçoam, em vez de permanecerem ligados e encerradas por suas ações passivas. Nem ficou esquecida a dignidade da forma do homem. Assim, basta saber que o Agente universal teve de seguir a lei comum a todos os Agentes que se haviam manifestado. No entanto, acrescentemos que, assim como por sua Natureza divina ele congregou em si as virtudes intelectuais dos Agentes que o tinham precedido, também a sua forma corporal teve de encerrar as virtudes subdivididas e contidas em todos os corpos do Universo. Acrescentemos ainda que, segundo a obra já citada, se é verdade, que o primeiro homem terrestre não teve mãe - pois que antes dele nenhum corpo material havia existido - era necessário que o único que podia transmitir a luz à sua posteridade não tivesse pai. E isso não nos surpreenderá se penetrarmos no conhecimento do Princípio que primitivamente formou esses corpos. Por fim, como o primeiro homem colocou o mal ao lado do bem, era necessário que o Ser regenerador colocasse o bem ao lado do mal a fim de equilibrar o peso e ação do pecado e completar os temos da proporção. Ora, a matéria à qual o homem se uniu de maneira criminosa não será a fonte do erro e dos padecimentos por ele experimentados? Não o mantém ela como que acorrentado entre as substâncias que na ordem sensível lhe apresentam todos os signos da realidade, mesmo não tendo símbolo para seu Ser pensante? Ao se unir voluntariamente e de maneira pura a uma forma sensível, o Regenerador universal agiu de maneira oposta, ou seja: apresentou aos olhos da matéria todos os indícios da imperfeição e da fragilidade da qual ela é susceptível, sem que quaisquer dessas fontes de corrupção chegassem até ele. Em suma: se a matéria havia encantado o homem e subjugado os olhos de seu espírito, era preciso que o regenerador universal encantasse a matéria e demonstrasse o seu nada, fazendo reinar diante dela o verdadeiro, o puro e o imutável. Assim, de conformidade com as leis, ele só se mostrou na terra para retratar ao homem a própria situação e traçar-lhe a história inteira de seu Ser. Ou seja: se o Regenerador apresentou ao homem o quadro de seu estado misto e degradado, manifestou-lhe também o de seu estado simples e glorioso. E para esse fim, é preciso que sua morte haja operado nele, diante dos homens, uma separação visível das substâncias que nos compõem a fim de que, por essa visível análise não tenhamos dúvida de esse amálgama impuro é formado hoje pela união de um princípio superior e sublime com um princípio terrestre e corruptível. "Em suma: era preciso que o hieróglifo fosse apagado para que surgisse a língua. Vimos que o hieróglifo é anterior às línguas, o que autorizaria a afirmar que os Eleitos anteriores não passavam de hieróglifos dos quais o Eleito universal era a língua. Havia dois alfabetos, visto que era preciso que ele soubesse duas línguas: a dos Eleitos anteriores e a sua. Os números desses dois alfabetos são fáceis de conhecer, pois que são o duplo do número do homem. E o número do homem existe simultaneamente para sua eleição, seu termo e seu progresso em cento e quarenta e cinco mil oitocentos e sessenta e sete." Era preciso, ao mesmo tempo, que a separação visível fosse realizada através de um meio violento para lembrar ao homem que foi um meio violento que outrora uniu seu Ser intelectual ao sangue. Era preciso ainda que essa separação fosse voluntária, uma vez que a primeira união o fora. Não era preciso, entretanto, que a Vítima voluntária imolasse a si mesma, pois que então não seria mais irrepreensível e o sacrifício teria sido sem efeito. Era preciso também que aqueles que imolavam a Vítima não a conhecessem pelo que ela era, porque então não a teriam imolado. Recolhamo-nos aqui e contemplemos a universalidade das virtudes divinas em oposição à universalidade das desordens que haviam maculado todas as classes dos Seres. Consideremos a unidade dos bens apagando a unidade dos males, suportando e anulando simultaneamente todos os seus esforços. Mergulhemos nesse abismo de sabedoria e de amor, onde a própria Vítima generosa se sacrifica sem pecado e onde os cegos sacrificadores, destruindo-lhe o envoltório aparente, deixam a descoberto o único modelo da ordem e da pureza extraindo, sem o saber, um eletro universal. Os benefícios do qual o Agente é o órgão e o depositário não tiveram de limitar-se ao lugares onde ele surgiu nem aos homens por ele escolhidos, nem mesmo a todos aqueles que existiam então na face da terra. Ao comunicar seus dons aos Eleitos, dera-lhe o germe da obra, devendo em seguida desenvolvê-lo e realizá-lo em vastas proporções em todas as regiões atingidas pelas conseqüências do crime, ou seja: em todas as classes dos Seres, pois nenhuma delas deixara de ser abalada. Assim, os corpos dos elementos, expostos pela fraqueza e o crime do homem à contra-ação que continuamente lhe perturba leis, devem ter recebido, por aquele que tudo vinha regenerar, preservativos próprios para mantêlas na harmonia que as constitui e a afastar as ações destrutivas. Com isso, devem ter sido preparados, para receberem ainda em si tanto os direitos mais possantes do homem quanto os mais manifestos. E se o ferro, se mantido na direção correta em relação ao ímã, pode adquirir uma parte das qualidades magnéticas, seria surpreendente se os homens que seguiram com constância a vereda das virtudes do Agente universal se enchessem dessas mesmas virtudes e, ardendo de zelo e confiança, tenham acalmado os ventos e as vagas, detido o efeito do veneno das víboras, devolvido o movimento aos paralíticos, curado os enfermos e até mesmo arrebatado vítimas à morte? Essa influência universal sobre a terra e os elementos foi-nos marcada por alguns sinais visíveis da parte daquele que vinha regenerá-la - do mesmo modo quando da saída do Egito surgiram, de maneira manifesta, os indícios de um socorro e de um virtude superior, através do sangue aplicado nas três diferentes partes das portas dos hebreus. Ora, os sinais da obra que o Regenerador realizava de maneira invisível no Universo tiveram de ser encontrados nas leis da decomposição de seu próprio corpo, já que seu corpo encerrava os princípios mais puros e mais ativos da Natureza. Ele manifestou três atos sucessivos de purificação, realizados pelas três substâncias puras de sua forma material em dissolução nos três elementos terrestres que serviram de princípios a todos os corpos; elementos que o pecado infectara, infectando, através deles, toda a Natureza; elementos novamente maculados pela prevaricações das primeiras posteridades do homem e cuja purificação os Eleitos anteriores, por mais virtuosos que fossem, não haviam completado. Realmente, a unidade ternária que tudo produzira, só podia tudo restabelecer pelo mesmo número. Mas com a diferença de que, agindo então sobre as coisas compostas, ela procedia por ações distintas, enquanto que na origem, operando sobre os próprios princípios, tudo produzira num único feito. Depois de haver regenerado as três bases fundamentais da Natureza, era preciso regenerar as virtudes que lhe servem de móveis e reação; devolver a todos os móveis invisíveis a atividade perdida pela criminosa negligência do homem que, encarregado de presidir à sua harmonia, deixara alterar-se sua pureza e sua justiça. Ou, melhor dizendo, era preciso destruir todos os obstáculos que o pecado do homem deixara nascer junto dos móveis e em todas as partes do Universo. São essas barreiras terríveis que toda a posteridade deve atravessar antes de entrar novamente na morada da luz. São essas as diversas suspensões que se apresentam ao pensamento como inevitáveis ao homem depois que ele se separar da forma sensível. Foi a essas barreiras invisíveis que o Reparador estendeu suas virtudes. Pelo direito do qual era depositário, pôde facilitar-lhes o acesso de tal maneira que todos aqueles nelas detidos desde a origem da desordem, bem como os que não tinham podido ainda aproximar-se pudessem hoje, fortificando-se com as mesmas virtudes, superar os obstáculos sem perigo, como que trazendo de novo consigo o mesmo caráter e o mesmo nome que lhes abriu outrora todos os recintos e, no meio dos mais terríveis malfeitores, garantiu-lhes respeito e segurança. As virtudes dos móveis superiores são reapresentadas e postas em ação de maneira mais sensível pelos sete Astros Planetários. É delas que se trata, na obra já citada, pela alegoria das sete árvores e da escala geográfica do homem. São elas os órgãos do número quaternário, cuja força e existência são demonstradas pelas quatro espécies de astros que compõem a região celeste, a saber: os Planetas, os Satélites, os Cometas e as estrelas fixas. Como tais, têm o mais alto valor para o homem. De fato, são elas as colunas poderosas que devem servir-lhe de defesa e que constituíam para ele o obstáculo mais temível até que uma mão benigna o viesse ajudar a vencê-lo. São elas as sete portas da ciência, que só podem ser abertas por aquele que possui a dupla chave quaternária. São elas os sete dons que, desde o pecado, foram retirados dos homens mas que, circulando sempre ao nosso redor sem que deles desfrutemos, permitiram afirmar-se que o próprio Justo pecava sete vezes por dia, segundo a verdadeira definição da palavra Pecado. Por esse número foram derrubadas as muralhas de Jericó. Por esse número foi curada a lepra de Naaman. São os sete tipos das sete ações que as Tradições hebraicas nos representam como tendo dirigido e completado a origem das coisas. E como antes, enquanto duraram, serviram de colunas ao Templo que o homem deveria ter ocupado no universo." Depois do crime, os sete Tipos permaneciam sem ação, aguardando aquele que devia reanimá-los. Desde que ele surgiu, esses Tipos retomaram vida e, reproduzindo-se em suas próprias virtudes, como o próprio Deus, desde então eles têm manifestado seu ato sensível. Como a primeira potência dessa manifestação era designada pelo número quarenta e nove, depois de sete semanas, ou quarenta e nove dias, após a consumação da obra os dons visíveis deveriam derramar-se. Porque era então que deveria abrir-se a qüinquagésima porta pela qual os escravos aguardavam a libertação, porta que tornará a abrir-se novamente no fim dos tempos para aqueles que, segundo Daniel, terão a felicidade de esperar e de atingir a mil e trezentos e trinta e cinco dias." Não era igualmente necessário que aquele que devia derramar esses dons na terra percorresse o espaço que a separa do primeiro Autor do Seres? Que depois de haver purificado os sete canais, pelos quais as virtudes devem fluir no tempo, fosse tomar, no Altar de ouro, o pão da proposição sempre colocado diante do Eterno? E que, transportando-o a todas as regiões do Universo, o distribuísse não somente aos homens que desde o início dos séculos haviam passado pela habitação terrestre que ocupamos, mas até àqueles que existiam no corpo nesse teatro de expiação, visto que viviam todos eles em escassez de seu verdadeiro alimento? Além disso, não podemos eximir-nos de admitir que esse grande ato devia ser produzido através de uma palavra46. Se não temos outro instrumento para manifestarmos nossas idéias, resulta igualmente que o Ser princípio, de quem somos o símbolo e a representação, somente pela palavra podia ensinar-nos os desígnios sagrados que tinha para nós desde o início de nossa existência e que o homem havia desprezado. 46 No sentido de palavra falada. (N.T.) Como conseqüência, no meio dos tempos, se ele devia manifestar-nos uma unidade de palavra, devia então manifestar de novo a profundidade de seus pensamentos, deixando-nos em condições de recuperar o próprio segredo da sabedoria e de todas as virtudes. Ora, eis a progressão da manifestação de suas potências. O Universo material é a expressão de sua palavra física, as Leis e os tesouros da primeira Aliança do Ser princípio com a posteridade do homem são a expressão de sua palavra espiritual: a grande obra realizada pela segunda Aliança é a expressão de sua palavra divina. Ao mesmo tempo, pareceria necessário que essa grande obra fosse coroada na terra pela multiplicação das línguas. Por se abandonarem a excessos pecaminosos com relação à verdade, as primeiras posteridades do homem, haviam sofrido como punição a terrível confusão das línguas, que tornara todos os indivíduos e Povos estranhos uns aos outros. Os remédios da Sabedoria suprema, sempre em proporção nossos males, deviam então tomar o caminho que nos era o mais favorável: o de multiplicar os dons das línguas naqueles a quem iria encarregar de anunciar essas virtudes e manifestá-las na terra. Em meio à multiplicação das línguas eles deveriam achar-se em condições de fazer com que os remédios chegassem a todos os lugares atingidos pelo mal e convocar à união, à inteligência, e à vida todos os que estavam entregues pelo pecado à dispersão, às trevas e à morte. Ou seja: por essa multiplicação das línguas podiam novamente ajuntar e reunir todos aqueles que a confusão das línguas havia separado. Verdade profunda, instrutiva para os que não são estranhos aos raios da luz e bastante felizes para às vezes contemplar com confiança os caminhos e os frutos da Sabedoria! Se no mundo só conhecemos as coisas através de seus sinais e não de seus Princípios, se numa circunstância tão importante os desígnios da Sabedoria em favor do homem deviam ser exprimidos de uma maneira que estivesse a salvo de qualquer equívoco, seria preciso que ela tomasse línguas de fogo como sinais sensíveis. Eis como as virtudes divinas, estando sempre ligadas umas às outras de maneira invisível, teriam preparado novamente o Universo para o homem e ao mesmo tempo restabelecer o homem nos seus direitos sobre o Universo. É então que se cumpre a obra universal temporal. O Reparador não podia trazer novamente a calma ao Universo, não podia regenerar a vida na alma do homem sem devolver a paz e a felicidade ao Seres de uma outra classe, aos Seres superiores ao tempo por suas funções primitivas e que, por causa do zelo pelo reino da verdade, encontram-se à vista da desordem desde a origem, mas que foram feitos para contemplar para sempre o espetáculo vivificante da perfeição e da ordem. Se a degradação do homem os fez exercer funções estranhas ao seu verdadeiro emprego, o ato realizado para sua reabilitação devolve-lhes a esperança dos primeiro deleites, que são os de ver reinar por toda parte a regularidade, a exatidão e a unidade. É tempo de confessá-lo: a principal verdade que essa época universal temporal descobriu para o homem foi a de ensinar-lhe o verdadeiro uso do benefício praticado por todos os Povos desde que saíram do estado de natureza bruta, a qual, embora ainda separada do estado da lei da inteligência, limitava-se a atos de humanidade, ao alívio das necessidades do corpo e aos deveres de hospitalidade. Quando o exercício dessa virtude começou a aperfeiçoar-se, ela continuou ensinando ao homem os mesmos deveres, mas também ensinou-lhe a prestar outros serviços aos seus semelhantes. Fê-lo compreender que diante desses semelhantes ele é responsável por todas as virtudes que em si existem, uma vez que essa virtude lhe foi dada pela Sabedoria suprema como um caminho de reação para, por sua vez, fazer sair as virtudes que neles há. E assim, por uma obra tão sublime, a tarefa do homem apresenta-lhe deveres mui rigorosos, já que ele não pode permanecer abaixo de si mesmo sem prejudicar seus semelhantes e que uma única de suas fraquezas deve custar aos outros uma virtude. Mas, unindo-se à Inteligência, que deve ter sido descoberta quando da grande época, esse benefício torna-se ainda mais eminente pelo fato de depender da ação imediata do primeiro de todos os Princípios com a qual nossa natureza nos chama a concorrer. O ardor de seu amor por nós faz com que ele, digamos, desprenda de si Virtudes sem número e Potências tão puras e tão ativas quanto ele mesmo. Desprendendo-as, ele as expõe (se é que podemos servir-nos destas expressões) à nudez, ao frio, à fome e a todos os sofrimentos da região temporal. E como ele as desprende apenas para nós, apenas para fazê-las chegar até nós, jamais poderemos honrá-lo melhor, jamais poderemos exercer a hospitalidade mais de acordo com a sua vontade, nem com maior vantagem para nós, do que deixando ao abrigo aqueles que ele nos envia, mas que estão fora e que só pedem para entrar, vestindo aqueles que se despem por nós, dando de comer e de beber ao que sofrem fome, sede e a mais completa pobreza para virem desalterarse, aquecer-se, revestir-se do homem, se assim pudermos dizer; ou antes, para revivificar a ele mesmo, transfundindo o próprio sangue nas suas veias. Seria abominável se o Reparador universal houvesse escolhido uma substância material universal para tomá-la como base de suas virtudes espirituais divinas e se, fazendo-a entrar no culto por ele estabelecido, ela recebesse dele uma virtualidade que não teria por sua natureza? Essa idéia é ainda mais verossímil porque, de acordo com o conhecimento que temos do homem, ele pode transmitir suas frágeis virtudes a uma substância determinada que julgar adequada - o que, tanto na física como na moral, infelizmente foi fonte de numerosas ilusões na terra. "De todas as substâncias da natureza corporal empregadas pelo Reparador no Culto que vinha estabelecer a mais favorável é o trigo. Além de suas qualidades particulares que o tornam apropriado à alimentação do homem, ele tem na língua hebraica o nome de bar, que exprime também a pureza, a purificação, e sua raiz, barar ou barah, significa escolha, eleição, de onde se derivam berith (aliança) e baruch (bênção). Além disso, não é em vão, que, segundo as Tradições judias, o pão, o trigo e a farinha da melhor qualidade aparecem empregadas com muita freqüência nos sacrifícios, seja nas alianças dos homens com os Seres superiores, seja na preparação feita pelos hebreus para as suas Festas. E mil provas tiradas da ordem temporal podem justificar tudo o que acabamos de dizer em favor dessa substância. O vinho pertencia também ao número das substâncias prescritas na lei religiosa dos hebreus para as empregarem nas cerimônias santas. Entretanto, ele não oferece propriedades tão extensas nem tão salutares quanto o trigo. E a vinha até demonstra por sinais materiais que seu número se opõe ao da pureza. Mas o Regenerador universal teve necessariamente de empregar o vinho em seu culto, porque ele é o tipo de sangue no qual estamos encerrados e porque, como a iniqüidade, deve ser consumido e desaparecer a fim de nos mostrar as condições exigidas pela justiça para que sejam apagados os vestígios de nossa privação." Se alguns homens, seduzidos pelas luzes falaciosas de seu julgamento, ficassem chocados de ver que as substâncias materiais têm realmente seu lugar no culto estabelecido pelo Reparador universal; se a partir disso considerassem esse culto e o sacrifício que nele deve ser realizado como totalmente figurativos e como uma simples aparência, cairiam visivelmente em erro porque, desde então o sacrifício seria nulo, e por isso mesmo inútil, aos Seres verdadeiros pelos quais deve ser oferecido. Por outro lado, se o espírito superior do homem, querendo contemplar os direitos desse ato eficaz e real, buscasse-os entre os números passivos, não seria de temer-se que encontrasse apenas a aparência da realidade, em vez da própria realidade? Não perderia de vista os frutos essenciais desse culto que deve restabelecer todos os números em sua ordem natural, a fim de que vejamos simultaneamente, no mesmo ato, manifestar-se a sublimidade dos números verdadeiros, desaparecer a nulidade dos números passivos e retificar a irregularidade dos números falsos - ou seja: que nesse ato a plenitude dos números deva exibir-se diante do homem para apagar a disformidade que resulta da separação entre eles? Por fim, haveria perigo em se crer que nesse ato, simultaneamente corporal, espiritual e divino, nesse ato que apenas tende a libertar o homem de tudo o que é sangue e matéria, tudo devesse ser ESPÍRITO E VIDA, como aquele que o instituiu e que o vivifica e como o homem que deve dele participar? Mas cabe àqueles que são os seus depositários decidir se é correto que esse Culto exista na terra. Limitemo-nos a reconhecer que todas as outras partes de um Culto que é ESPÍRITO E VIDA devem ser de molde a nos esclarecerem em nossas trevas. É preciso que elas sejam como que uma interpretação sensível das maiores verdades que o homem possa conhecer e que são verdadeiramente análogas a ele. É preciso que esse culto, considerado em seus tempos, em seu número e em suas diversas cerimônias, seja um círculo de ações vivas em que o homem inteligente e não prevenido possa encontrar a representação característica das leis de todos os Seres, idades e fatos. Ou seja: que o homem deve reconhecer nele não somente a sua própria história desde a origem primitiva até a reunião futura com o seu Princípio; não somente história a da natureza inteira e dos Agentes físicos e intelectuais que a compõem e dirigem, mas ainda a da mão fecunda que está sempre reunindo diante de nossos olhos os vestígios mais salientes e adequados à explicação da verdadeira natureza de nosso Ser. Eis quais devem ser os sinais sensíveis dos dons que o Reparador universal trouxe à terra. Eis o quadro abreviado de tudo o que ele teve de realizar a fim de que os homens fossem ligados a ele pela unidade de ação, como está ligado pela unidade de essência com a Divindade. Isso equivale a detalhar suficientemente os poderes do Agente universal, a mostrar suficientemente os direitos que ele deve ter à confiança do homem. Basta-nos reconhecer, somente com as luzes naturais, quão necessário nos foi ter semelhante tipo diante de nossos olhos. Seria imprudente e uma ofensa ao Agente querer proclamar isso com mais clareza, pois para fazê-lo com verdadeira eficácia, seria preciso que ele próprio surgisse. Além do mais, se detivéssemos mais longamente os olhos dos homens nessas pesquisas profundas, pareceria estarmos excluindo as pessoas simples e sem estudos dos privilégios concedidos a toda a posteridade humana. O homem, cujo coração ardente consome sem cessar as plantas selvagens que o rodeiam; o homem que considera o Agente do qual recebeu o pensamento como o Ser de ciúme que se aflige quando amamos qualquer coisa além ele; o homem que, imolando perpetuamente a si próprio, está sempre humilde e trêmulo diante de Deus, porque o segredo de Deus é revelado somente àqueles que o temem; o homem simples que segue com fidelidade e confiança os Preceitos que o Agente universal deve ter ensinado e que provêm de uma fonte por demais benigna para conduzir à ilusão e ao nada - esse é o que pode pretender entrar no conselho da paz, enquanto a ciência mais elevada que se possa adquirir é um edifício frágil e vacilante, pois não se firma em todas as bases que serão sempre o seu mais firme apoio. Se o homem dirigisse a visão ao Eletro universal reanimando-se ao calor de um único de seus raios, seria bem mais puro, mais luminoso e maior do que poderia tornar-se com os discursos e raciocínios de todos os Sábios da terra. Além disso, se há verdades que devem ser divulgadas, há muitas que devem ser caladas, e a experiência se une à razão para convidar à reserva mostrando os males inevitáveis provindos, em todos os tempos, do fato de serem dados à publicidade. Dentre as Instituições sábias e religiosas mais célebres que já existiram, nenhuma existe que não haja coberto a Ciência com o véu dos mistérios. Tomemos como exemplo o Judaísmo e o Cristianismo. As Tradições judaicas nos ensinam como o Rei Ezequias foi punido por haver mostrado seus tesouros aos Embaixadores da Babilônia. E vemos através dos antigos Ritos cristãos, pela Carta de Inocêncio I ao Bispo Decêncio e pelos escritos de Basílio de Cesaréia que o Cristianismo possui coisas de grande força e de grande peso que não são e jamais poderão ser escritas. Enquanto as coisas que jamais poderão ser escritas só foram conhecidas por aqueles que devem ser seus depositários, o Cristianismo gozou de paz. Mas quando os Imperadores romanos, cansados de perseguir os Cristãos, desejaram ser iniciados em seus mistérios; quando os Mestres dos Povos puseram os pés no Santuário, querendo dirigir aos objetos mais sagrados do culto olhos que para isso não estavam preparados; quando fizeram do Cristianismo uma Religião de Estado considerando-a somente um instrumento político, quando seus Súditos foram forçados a se tornarem Cristãos, surgindo assim a obrigação de se admitir sem exame todos aqueles que se apresentavam então nasceram as incertezas, as doutrinas contrárias e as heresias. O obscurecimento sobre os objetos da Doutrina e do Culto tornou-se quase universal porque as mais sublimes verdades do Cristianismo só podiam ser bem conhecidas por um pequeno número de Fiéis. Aqueles que apenas as entreviam ficavam expostos a interpretações falsas e contraditórias. Foi o que aconteceu no tempo de Constantino, chamado o Grande. Assim, mal adotara ele o Cristianismo, começaram os Concílios gerais, e esse tempo pode ser considerado como a primeira época de decadência das virtudes e das luzes entre os Cristãos. A exemplo de Constantino, seus Sucessores, desejando difundir o Cristianismo, empregaram os privilégios e as graças a fim de lhe conseguirem Prosélitos. Mas os que eram conseguidos por tais meios viam menos a Religião para a qual eram chamados do que os favores do Príncipe e as atrações da ambição. Por seu lado, os próprios Chefes espirituais, para atraírem novos apoios, favoreceram os desejos e as paixões dos Príncipes. E aliando-se a cada dia ao temporal, foram afastando-se cada vez mais de sua pureza primitiva, de modo que cristianizando uns o que era civil e o político e civilizando outros o Cristianismo, formou-se dessa mistura um monstro com seus membros qualquer relação entre si, do que só puderam resultar efeitos discordantes. Os sofistas das diversas Escolas admitidas ao Cristianismo aumentaram ainda mais a desordem ao misturarem a essa religião simples e sublime uma multidão de questões vãs e abstratas que, em vez da união e das luzes, produziram a divisão e as trevas. Os Templos do Deus de paz foram convertidos em Escolas científicas onde os diversos Partidos discutiam com mais violência do que os antigos filósofos nos pórticos de Atenas e Roma. Suas disputas eram tanto mais perigosas quanto mais prejudicavam as coisas por causa das palavras. A maioria não sabia que a verdadeira ciência tem uma língua particular, somente podendo exprimir-se com evidência através de seus próprios caracteres e símbolos inefáveis. Nessa confusão, a chave da ciência não deixou de estar ao alcance do Ministro dos Altares, como num centro de unidade que ela jamais devia abandonar. Mas a maior parte deles não se servia dela para penetrar no santuário, chegando a impedir que o homem de desejo dele se aproximasse, de medo que lhes percebesse a ignorância. E proibiam que se buscasse conhecer os mistérios do reino de Deus embora, segundo as próprias Tradições dos Cristãos, o Reino de Deus esteja no coração do homem e em todos os tempos a Sabedoria o haja instado a estudar seu coração. Os Chefes espirituais que se preservaram da corrupção, lamentando-se dos extravios da multidão, esforçavam-se, através do ensino e do exemplo, por conservar no homens o zelo, as virtudes e o amor da verdade. Mas foi em vão que se ergueram contra os abusos: o monstro que já havia nascido era por demais favorável aos desejos ambiciosos de seus Partidários para que eles não tomassem o cuidado de fortalecê-lo. Jovem ainda ao tempo dos primeiros Imperadores gregos, embora já demostrasse orgulho, durante alguns séculos ele apenas aplicou alguns golpes fracos de pouca repercussão. Tais foram os frágeis empreendimentos de Símaco contra o Imperador Anastácio. Mas, ao alcançar a idade em que podia exibir sua ferocidade, os primeiros Imperadores franceses facilitaram-lhe os meios. O pai de Carlos Magno viu o papa a seus pés suplicando-lhe que o defendesse contra os lombardos - e antecipadamente, o Príncipe recebera a Sagração de sua mão como recompensa pelos serviços que iria prestar. Essa união bizarra não demorou a ter as mais estranhas seqüências. Os que a princípio apenas haviam unido uma cerimônia piedosa aos direitos políticos de um Soberano afirmaram logo que lhe haviam dado os mesmo direitos; pouco depois, que eram deles os depositários; e por fim, acabaram por declarar que, quando lhes aprouvesse, poderiam retirálos daqueles a quem se haviam persuadido de os haver concedido. Também o filho de Carlos Magno, cujo Pai vira o Papa a seus pés, foi, não somente aos pés do Papa, mas até mesmo no meio de uma assembléia dos seus próprios Súditos, destituído pelo Bispo Ebbon. Segunda época, em que os extravios vieram da parte dos chefes espirituais. Depois que essa torrente rompeu os diques, não houve desordem que não se visse nascer. A ambição e o despotismo, cobrindo-se então com o véu da Religião, fizeram correr mais sangue em dez séculos do que o derramado pelas hordas de Bárbaros desde o nascimento do Cristianismo, e para fremir de horror, basta abrir a história de Comneno em Constantinopla, dos Filipes na França, dos Fredericos na Alemanha, dos Suinthilas na Espanha, dos Henriques e dos Eduardos na Inglaterra. Entretanto, chegou o momento em que os olhos deveriam começar a se abrir. Quando os Chefes do Cristianismo se confundiram com o Templo e o Tabernáculo, dos quais deveriam ser apenas as colunas; quando quiseram sacrificar sua ignorância; quando tinham já levado a extravagância ao ponto de lançar decretos que proibiam aos Soberanos excomungados obter vitórias e até a interditar aos Anjos, pelos mesmos decretos, que recebessem as almas daqueles que haviam proscrito; e quando, ao se erguerem vários pretendentes à Tiara, eles foram vistos a se excomungarem reciprocamente, entregando-se a batalhas sanguinolentas até nos Templos dos Cristãos, os Povos estarrecidos perguntaram-se se essas cabeças, cobertas de anátemas, ainda poderiam ser sagradas, permitindo-se arrefecer seu entusiasmo para substituí-lo pela reflexão. Mas nesses tempos infelizes em que o sagrado e o profano eram confundidos, em que a disputa era a única ciência do Cristianismo público, em que os Clérigos não eram julgados dignos das funções do Altar senão depois de haverem passado pelas frívolas provas de uma escolástica bárbara, podiam as reflexões dos Povos ser susceptíveis de exatidão e de maturidade? Vendo as desordens daqueles que professavam os dogmas sagrados esses homens grosseiros não se contentaram com duvidar dos Mestres, levando a imprudência até ao ponto de suspeitar dos próprios dogmas e, à força de considerá-los com esse espírito de desconfiança, acreditaram ver neles dificuldades insolúveis. Terceira época, na qual os desvios vieram da parte dos membros. Daí as diversas Seitas que vimos nascer no seio do Cristianismo a partir dos séculos terceiro e quarto e que, servindo de pretexto à ambição, foram dele mutuamente os instrumentos e as vítimas. Porém, a esses erros misturaram-se infelicidades de um ou de outro tipo, e mais ainda que se viram, ao mesmo tempo, a crença das coisas verdadeiras e a credulidade pecaminosa confundidas e proscritas por sentenças bárbaras, o que estimulou os maus Obreiros e fez calar cada vez mais os Obreiros legítimos. Então, dentre os Chefes espirituais, os que haviam conservado o depósito em sua pureza não teriam sido mais ouvidos se tivessem querido dirigir o pensamento do homem ao nível elevado do Sacerdócio inefável que o aproxima da Divindade, e se tivessem querido empenhá-lo na busca das Ciências divinas, fazendo com que sua ação se voltasse sobre si mesmo, e despojando ele de tudo o que é estranho ao seu Ser, para se apresentar todo inteiro com um desejo puro aos raios da inteligência. Também as controvérsias apaixonadas e sanguinolentas dos últimos séculos não produziram sistemas absurdos e opiniões mais atrevidas ainda do que as que já havia desorientado os homens desde o nascimento do Cristianismo? Os Observadores, revoltados com a diversidade e a oposição das idéia sobre os Dogmas mais essenciais, atacaram a própria base da Instituição cristã, não tardando a rejeitá-la, depois de tê-la confundido com o edifício monstruoso haviam erguido em seu seio pelo orgulho e pela ignorância. Que se deveria esperar deles, depois de terem aplicado esse golpe à única Religião que apresentara aos homens o caráter admirável de se expandir sem jamais dobrar-se diante dos Povos conquistadores? De haver conquistado, não Nações grosseiras e bárbaras, como se viu acontecer com a religião de Maomé, mas Nações sábias e civilizadas? De as haver vencido não pelas armas, mas pelos únicos encantos de sua doce Filosofia? Os Observadores que assim haviam ignorado a base do Cristianismo não podiam emitir um julgamento mais favorável sobre as outras Religiões. De modo que, não percebendo mais laço algum entre o homem e o Princípio invisível, acreditaram que os homens estavam de tal maneira separados desse Princípio que nenhuma Instituição religiosa poderia reaproximá-lo dele. Quarta época de degradação, em que o homem, tornando-se Deísta, viu-se apenas a um passo da ruína. Os progressos do erro não pararam aí. Apresentaram-se novos Observadores que, para se livrarem da confusão espalhada pelo Deísmo sobre as ciências religiosas, ensinaram opiniões ainda mais destrutivas. Não somente disseram que os Instituidores do Cristianismo e de todas as Religiões eram ignorantes, enganadores, e até mesmo inimigos da moral que professavam; que seus Dogmas eram nulos e contraditórios, já que eram contraditos; que a base sobre a qual tais Dogmas se apoiavam era imaginária e que, conseqüentemente, o homem não tinha relação alguma com as virtudes superiores, mas chegaram até a duvidar de sua natureza imaterial. Com isso, cumpriram a ameaça feita aos hebreus de que, caso negligenciassem a lei, acabariam bem depressa por cair num em grau de miséria e abandono que não creriam mais na própria vida. Finalmente, com isso foram levados a negar a própria existência do Princípio de todas as existências, já que negar a natureza imaterial de uma criação tal como o homem é o mesmo negar a natureza imaterial de seu Princípio regenerador. Quinta e última época de degradação em que o homem, não sendo mais do que trevas, está abaixo até mesmo do inseto. Desse sistema funesto provieram todos os desatinos filosóficos que reinaram nesses últimos tempos. As primeiras posteridades haviam pecado pela ação, querendo igualar-se a Deus através de suas próprias virtudes; as últimas pecam por nulidade, crendo que no homem não há nem ação nem virtudes. Daí veio o delírio de um Ateu moderno47 que, escrevendo contra a Divindade, acreditou ter demonstrado o seu nada pelo fato de que, segundo ele, se ela existisse, ter-lhe-ia punido a audácia. Não podemos responder-lhe que a Divindade pode existir sem punir ataques impotentes? Que se deve, de preferência, crer que verdadeiramente ele não a atacou? Que os escritos vãos não podem incendiar os raios de sua cólera? E que ele não era bastante avançado para elevar a voz até ela, nem bastante instruído para proferir contra ela verdadeiras blasfêmias? 47 Talvez o autor se refira a Voltaire. (N.T.) Vimos qual foi, desde o início do Cristianismo, a progressão da desordem à qual as disputas científicas arrastaram os homens e a desordem que produziu a publicidade fácil demais das coisas que não podem ser bem concebidas pela multidão, nem deixar de ser secretas, sem que se exponham a serem mal compreendidas ou mal interpretadas. Qual é, pois, a via que o espírito do homem deve tomar para sair desse estado desordenado e devotado à incerteza? É aquela que ele irá descobrir quase sem esforços se olhar para si mesmo. Uma consideração atenta do nosso Ser nos instruiria sobre a sublimidade de nossa origem e nossa degradação. Far-nos-ia reconhecer em torno de nós e em nós mesmos a existência de virtudes supremas de nosso Princípio. Convencer-nos-ia de que foi necessário que as virtudes superiores se apresentassem ao homem de modo visível na terra para chamá-lo às sublimes funções que tinha a cumprir em sua origem. Demonstrar-nos-ia a necessidade de um culto a fim de que a presença dessas virtudes não deixassem de ter eficácia em nós. Distinguiríamos os vestígios dessas verdades em todas as Instituições religiosas. E em vez de a variedade dessas Instituições nos fazer duvidar da base em se apóiam, nós retificaríamos, pelo conhecimento dessa base, tudo o que elas podem ter de defeituoso. Ou seja: que ordenaríamos em nosso pensamento as verdades esparsas, mas imperecíveis, que atravessam todas as Doutrinas e Seitas do Universo. Ao nos elevarmos assim de verdades em verdades, com o auxílio de uma reflexão simples, justa e natural, remontaríamos até o plano de um tipo único e universal, de onde teríamos domínio com ele sobre os Agentes particulares intelectuais e físicos que lhe foram subordinados. Sendo ele a chama viva de todos os pensamentos e ações dos Seres regulares, pode expandir ao mesmo tempo a mesma luz em todas as faculdades dos os homens. E é essa luz brilhante que o homem pode fazer brilhar em si mesmo, porque ele é a solução de todos os enigmas, a chave de todas as Religiões e a explicação de todos os mistérios. Mas - ó homem! - quando houveres chegado a esse termo feliz, se fores sábio, guardarás tua ciência em teu coração. A Lei sensível e a subdivisão universal, às quais os homens estão sujeitos, submeteu-os a uma forma de matéria, mas a Terra mostra-se por demais pequena para que todos possam habitar juntos. Foi preciso que eles viessem, progressivamente, haurir nela as forças e os socorros necessários para atravessarem o espaço que os separa da fonte de toda luz. Se o homem duvidava ainda de sua degradação, bastava essa prova para convencer-se dela, já que é impossível conceber alguma coisa mais vergonhosa e triste para os seres pensantes do que estarem eles num lugar em que só podem existir com um pequeno número de seus Concidadãos - pois por sua natureza, por mais numerosos que sejam, foram feitos para habitar e agir todos juntos. Eis por que os homens que ainda não haviam nascido quando da manifestação geral no meio dos tempos não puderam receber-lhe as vantagens efetivas e diretas, como aqueles que já haviam percorrido a superfície da terra ou que a habitavam desde aquela época. Podemos até dizer que o Agente universal, submetido à lei temporal e trazendo a inteligência à terra de maneira visível, não a manifestou simultaneamente por seus atos em todos os lugares de nossa habitação terrestre e que, se ele a manifestou em potência em todas as partes da terra, só o fez em ato nos lugares por ele habitados, ou talvez em algumas outras regiões, mas de maneira estranha à matéria e em favor de alguns Eleitos destinados a concorrer em sua obra. A virtude e os poderes dos sinais visíveis que em todos os lugares do mundo acompanham os pensamentos deviam residir com inteira superioridade naquele que os produz. Mesmo hoje, não havendo ainda nascido todos os homens, a posteridade humana não vê o conjunto dos fatos da unidade. Não vê em ato sobre toda a sua espécie a obra universal da Sabedoria, essa grande obra, cujo objeto é: que os Seres tenham ao mesmo tempo diante dos olhos os símbolos reais do infinito e que, desaparecendo os limites do tempo, tenham todos, como antes do pecado, a prova intuitiva de que é o próprio Deus que tudo conduz. Acrescentemos: como o Universo inteiro é a prisão do homem, jamais a espécie humana poderá ao mesmo tempo, sem que o Universo material seja destruído, ser testemunha do grande espetáculo da imensidade da qual saiu. O curso da vida do homem em particular vem em apoio dessa verdade. À medida que seu Ser intelectual se eleva para a luz, seu corpo se curva dobrando sobre si mesmo. Devemos convencer-nos de que, quando houver reunido em si todas as virtudes comportadas por sua região terrestre, sua forma corruptível não poderá mais existir com ele, como certos frutos que se separam naturalmente de seu invólucro após conquistarem a maturidade - de modo que a vida de um é a morte do outro. Pela mesma Lei, quando estiver completo o número dos homens que devem existir materialmente na terra, a forma universal, recuando sua ação, deixará de existir para eles e a plenitude desse número temporal tornará a existência do Universo inútil para o homem. Por fim, se as faculdades do homem particular não podem gozar da universalidade de sua própria ação enquanto ele estiver ligado aos menores vestígios de sua matéria; se ele não pode ser verdadeiramente livre enquanto estiver submetido às influências dos seres contrários à sua natureza; se não pode contemplar o conjunto da Região sublime onde nasceu enquanto a menor parcela corruptível existir nele e nesses quadros sublimes, o mesmo acontece com a espécie universal do homem. Ora, a terra e todas as grandes colunas do Universo ainda escondem em si os raios das substâncias puras arrastadas com ele na queda. Se o homem está destinado a reaproximar-se delas, é preciso então que desapareçam todos os escombros para que, de um lado, as substâncias superiores e, do outro, as virtudes de todos os homens, formando como que dois feixes de luz, possam animar-se reciprocamente e manifestar todo o seu brilho. Sabemos que os testemunhos universais dos Povos concordam nesse ponto. Todos consideram o estado violento da Natureza e do homem como conseqüência da desordem e uma preparação para um estado mais calmo e mais feliz. Todos aguardam um termo para os sofrimentos gerais da espécie, assim como a cada dia a morte põe um termo aos sofrimentos corporais dos indivíduos que souberam defender seu Ser de qualquer amálgama estranho. Por fim, não existe um Povo - e, podemos dizer, um homem - entregue a si mesmo para quem o Universo temporal não passe de uma grande alegoria ou de uma grande fábula que deve ceder lugar a uma grande moralidade A dissolução geral seguirá as mesmas leis da dissolução dos corpos particulares. Quando o Universo estiver na sétima Potência de sua raiz setenária, todos os princípios de vida difundidos na criação se reunirão no centro, assim como o calor dos animais agonizantes abandona insensivelmente toda a forma para se concentrar no coração. Não podemos deixar de admitir na Natureza um centro ígneo, ativo e vivo, já que cada um dos menores corpos particulares têm um princípio ou um centro qualquer de vida que os faz existir. Como esse centro ativo e universal está aderido à terra, é natural pensarmos que é a ela que os outros seres irão reunir-se. E quando as Tradições dos Cristãos nos fazem a estranha predição de que, no fim dos tempos, as estrelas cairão sobre a terra, falam apenas da reunião dos diversos centros com o centro universal - o que não deve ser difícil de compreender, uma vez que as estrelas não poderão cair na terra sem deixar que sua forma se dissipe - assim como as diversas partes de nossos corpos se dissolvem e desaparecem à medida que seus princípios secundários se reúnem ao Princípio regenerador. Uma única diferença se faz notar entre a morte dos corpos particulares e a morte do Universo: é que, como são fatos segundos, após a morte os indivíduos corporais sofrem as leis segundas: a putrefação, a dissolução e a reintegração. Enquanto que o Universo, sendo um fato primeiro na ordem corporal, precisa apenas de uma lei para completar o curso de sua existência. Seu nascimento e sua formação foram o efeito da mesma operação, e assim será na sua morte e desaparecimento total. Por fim, para que o Universo existisse, bastou que o Eterno falasse. Bastará que o Eterno fale para que o Universo não exista mais. Lembremos aqui que, à imagem do grande Ser, o homem emprega os mesmos meios e faculdades tanto para dar existência às suas obras materiais quanto para destruí-las. Antes do desaparecimento final, haverá enfermidades na Natureza universal, assim como as que são provocadas pela diminuição do calor nos corpos particulares antes que sua ação cesse totalmente. Serão suspensas as virtudes ternárias do homem que servem de colunas ao Universo, assim como a força e a atividade nos abandonam quando nos aproximamos naturalmente do nosso fim. Tal é o sentido das Tradições dos Cristãos quando nos apresentam todos os flagelos ternários manifestando-se à voz dos sete Agentes superiores, ou seja: quando os sete Agentes devolverem ao grande Ser os direitos e as virtudes com que ele os havia dotado para o cumprimento de seus desígnios no Universo. Tal é, repito, o sentido das Tradições quando nos oferecem, com relação aos diversos termos da época setenária, a alteração, o incêndio, a destruição da terceira parte da terra, das árvores e da erva verde; da terceira parte do mar, dos peixes, dos navios, dos rios e das fontes; da terceira parte do Sol, da Lua e da Estrelas; da terceira parte dos homens - quando nos falam do nascimento de novos animais, surgindo do seio da terra sobre sua superfície para atormentar seus Habitantes, assim como às vezes saem, da carne do homem, vermes e insetos repugnantes que o devoram antes de seu termo; quando nos falam da mudança de cor nos astros, do transporte de ilhas e montanhas; e quando nos retratam a combustão de todos os elementos para no fim dos tempos nos descreverem as desordens que os fizeram começar. Mas não é apenas no corpo que o homem avançado em idade experimenta o enfraquecimento: experimenta-o também na inteligência se não teve o cuidado de tirar proveito dos socorros oferecidos em épocas diversas de sua vida e de cooperar no desenvolvimento das faculdades destinadas a um crescimento contínuo. Seu espírito vê-se então numa dupla privação, não desfrutando dos tesouros da Sabedoria, que não soube adquirir, nem da atividade da juventude, cuja época para ele já passou. Tal é também a sorte de homem em geral: os socorros enviados aos homens foram aumentando desde a origem das coisas até o meio dos tempos, embora o uso feito deles não tenha estado na mesma proporção. Esses socorros crescem igualmente desde o meio dos tempos porque então abriram o caminho do infinito. Mas como se simplificam cada vez mais, tornando-se mais intelectuais, seriam imperceptíveis e inúteis para a posteridade humana se ela não seguisse a mesma progressão, de modo que chegaria a perder de vista até mesmo os frutos inferiores que os socorros haviam começado a fornecer-lhe. Imaginemos, pois, as posteridades futuras oprimidas pelas desordens das causas físicas e por aquelas que terão deixado dominar no seu Ser intelectual. Imaginemos os homens dos tempos vindouros perdendo a esperança de se verem renascer e condenados à esterilidade desde que tocaram no complemento do número temporal dos homens. Imaginemo-los ainda mais apavorados com essa esterilidade porquanto ele lhes apresentará a imagem importuna do nada, porquanto ficarão mais atormentados pelas ações corrosivas que sobre eles se acumularão por haverá menos indivíduos entre os quais elas se dividam. Imaginemos esses homens expostos às medonhas convulsões da Natureza, sem nada haverem adquirido em sua inteligência, nem as luzes, nem as forças suficientes para se defenderem delas, nem a resignação para se submeterem às que forem inevitáveis. Vejamo-los de tal modo desligados de seus apoios que não possam mais ouvir-lhes a voz , porém buscando-os ainda pela necessidade irresistível de sua natureza. Esta será a fome e a sede que, segundo os Profetas, devem ser enviadas à terra: não a fome do pão, nem a sede da água, mas a fome e a sede da palavra; desejo tanto mais doloroso que, segundo os próprios Profetas, os homens circularão por toda parte para buscar essa palavra e não a encontrarão. Representemo-nos, por fim, os homens maldizendo, talvez, o Deus supremo, que, no entanto, não deixará de estender-lhes a mão para ajudá-los a transpor o poço do abismo. Pois essa mão benigna, que jamais reteve seus dons dos filhos do homem, retê-los-á bem menos ainda num tempo em que forem extremas as suas necessidades. Para cúmulo das aflições, os homens dos tempos futuros perceberão sem disfarce o quadro dos séculos, assim como o homem particular, ao aproximar-se do fim, vê de ordinário desenhar-se diante de si, com traços rápidos e vivos, todo o círculo de sua vida passada. Esse homens infelizes serão dilacerados pela dor ao compararem no quadro dos séculos a imensa e inesgotável abundância de bens, dos quais a terra nunca deixou de ser cumulada, com a horrível prostituição que a posteridade do homem com eles fez em todos os tempos: de um lado, verão reunidos os numerosos tesouros de virtudes que desde a origem das coisas têm sido enviados em socorro do homem e que estão sempre ao seu alcance; do outro, o homem terá diante dos olhos os frutos impuros da iniqüidade, igualmente acumulados no crisol do mundo, cuja depuração retardaram para um número tão grande dos que o habitaram. No meio dessas desordens, formemos a imagem de homens ignorantes, impuros, impostores, buscando apagar nos semelhantes os raios da luz natural que nos ilumina a todos e esforçando-se por ocupar em seus espíritos o verdadeiro e único apoio cujo socorro os homens podem esperar. Formemos por fim a imagem dos tempos futuros infectados dos venenos de uma doutrina de morte que irá afastar os homens de seu alvo em vez de reaproximá-los dele. O que vai tornar esses Mestres cegos tão perigosos é que o homem pecador, estando então mais desenvolvido do que ainda é, atacará os homem com fatos, enquanto que até agora os atacou quase somente com discursos. Se a posteridade humana aproveitou tão pouco dos socorros que a cercaram, se não fez mais do que deixar as trevas em lugar da luz, como resistirá a tais Adversários? Não vemos aí mais do que um medonho abismo cuja obscuridade e horror só podem ir aumentando até que, não havendo mais lugar algum visível nem invisível entre o Universo corrompido e o Criador, a dissolução geral do Mundo venha ao mesmo tempo acabar com os erros e as iniqüidades dos homens. A própria Lei dada no meio dos tempos não aniquilou o germe das desordens que os homens são sempre Mestres em produzir e multiplicar. Durante sua manifestação temporal o Eleito universal foi encarregado de apresentar e explicar a Lei aos homens, mas não de executá-la sem o concurso de sua vontade. Bastava, pois, dar-lhes uma idéia justa da Ciência divina e ensinar-lhes que essa ciência é a das leis empregadas pela Sabedoria suprema para fornecer ao Seres livres os meios de entrar novamente na sua luz e na sua unidade. Uma vez dado esse conhecimento ao homens, foramlhes concedidos os tempos, não para esquecer e profanar o conhecimento mas para meditar sobre ele e dele tirar proveito. Quando os tempos se houverem escoado; quando, segundo a expressão dos Profetas, os séculos houverem entrado novamente em seu antigo silêncio e os Astros reunido em uma única as suas sete ações, sua luz ter-se-á tornado sete vezes mais brilhante. Então, graças à sua claridade, a inteligência do homem descobrirá as criações que houver deixado germinar em si mesmo e se nutrirá dos próprios frutos que houver semeado. Ai dela, se seus frutos forem selvagens, corrompidos ou maléficos! Não tendo então outro alimento, será forçada a alimentar-se ainda deles e de provar-lhe o contínuo amargor. Como as substâncias falsas e impuras nela gerados por suas desordens não podem entrar na reintegração, somente a violenta ação de um fogo ativo terá força suficiente para dissolvê-los. Ai da inteligência, se derramou o sangue dos Profetas! Não somente se houver contribuído na destruição corporal daqueles que trouxeram esse nome à terra, mas muito mais ainda se repeliu as noções íntimas, as Ações vivas que a Sabedoria lhe transmitia a cada instante. Essas Ações, tendo como alvo apresentar a verdade ao homem para que ele pudesse vê-la como elas próprias a vêm, tornam-se para ele verdadeiros Profetas, cujo sangue será exigido novamente com rigor inflexível se ele tiver sido bastante negligente para deixá-lo fluir sem proveito, bastante depravado para deter-lhe a influência sobre seus semelhantes! Ai da inteligência se, devendo agir somente em concerto com seu Princípio, quis, no entanto, agir sem ele porque, após a dissolução de seus laços corporais, ficará reduzida mais uma vez a agir sem esse Princípio, como terá feito no curso de sua vida terrestre! Tal será a diferença extrema entre o nosso estado atual da vida corporal e o que deve seguir-se a ele e que ainda só sensível ao nosso pensamento. No mundo só conhecemos, digamos, através de nossos desejos a ação viva e intelectual que nos é própria porque, durante nossa permanência na matéria, os meios mais eficazes dessa ação nos são recusados. Mas, ao sairmos dela, se durante nossa vida corporal conservamos a pureza de nossas afeições, esses meios eficazes nos cercam, sendo-nos prodigalizados sem medida; e deleites desconhecidos do homem terrestre o compensam amplamente das privações suportadas. Ora, na morte o homem perde todos os objetos, meios e órgãos que serviam de alimento e canal ao crime. E se durante a vida corporal ele nutriu em si inclinações falsas e hábitos de erro, ao ficar separado do corpo, nada mais lhe resta do que a desordem de seus gostos e desejos corrompidos, como o horror de não mais os poder cumprir. Assim, pois, a situação futura do ímpio será tanto mais terrível quanto, estando dissolvido o invólucro material que hoje nos oculta a luz, ele vir a chama viva da verdade sem dela poder aproximar-se, o que foi previsto com antecedência no Universo temporal pelos satélites de Saturno, os quais, circulando ao redor do anel cujo centro é ocupado por esse astro, não podem penetrar em sua área. A respeito disso, temos ainda um quadro sensível em várias substâncias elementares. Depois e haverem sofrido as diversas operações do fogo, vitrificaram-se e adquiriram uma transparência que nos deixa perceber a luz da qual anteriormente nos mantinham separados. Do mesmo modo, depois das diversas ações dos Seres destinados a cumprir os desígnios do Criador no Universo, eles se libertarão, pelas virtudes de um fogo superior, de todas as substâncias de sua Lei temporal, as quais não passam de impureza com relação ao primeiro estado no qual jamais deviam deixar de estar. Tomarão então uma claridade viva e formarão ao redor do Ímpio uma barreira luminosa, através da qual sua vista intelectual poderá penetrar, mas que ele mesmo não poderá atravessar enquanto sua vontade permanecer impura e ele não houver vomitado até à última gota a bebida de iniqüidade cujo amargor e horror totais terá sido forçado a provar durante os séculos. É aí que se encontrará o complemento de um tempo, dos tempos e da metade de um tempo. Depois do parto universal, haverá um produto como nos partos particulares e isso é o metade de um tempo de Daniel. Ora, de acordo com a idéia que demos da vontade, é impossível marcar outro termo a essa privação ou a esse metade de um tempo, a não ser aquele que o Ímpio marcar para si mesmo. Pois, como medir então a duração de seus atos? Bastaria que eles pudessem ser comparados ao tempo, e a medida do tempo será quebrada. Mas como o Ímpio estará junto à luz sem poder usufruí-la, seus sofrimentos serão inconcebíveis. Não conhecerá o choro e o ranger de dentes, aos quais já se fez alusão na obra já citada pelo número cinqüenta e seis, visto que essa expressão representa simultaneamente o Princípio da idolatria e o limite o separará da morada da perfeição. Estando, pois, excluído da ordem e da pureza, o horror e o desespero serão o seu caminho, o furor e a raiva as suas únicas afeições, até que, reduzido a dilacerar seus flancos para nutrir-se e estancar a sede com o próprio sangue, ele próprio devore a corrupção da qual se infectou e faça passar sua fonte inteira pelos ardores de seu próprio fogo. Se, ao contrário, o homem apenas recebeu e cultivou em si germes salutares e análogos à sua verdadeira natureza; se foi bastante feliz para regar com suas lágrimas essa planta fértil que todos encerramos em nós mesmos; se compreendeu que devia trazer, como todos os Seres, os signos característicos de seu Princípio e que ser algum, exceto o primeiro de todos os Princípios, podia haver-lhe dado existência; se desejou assemelhar-se a esse Princípio conformando-se às suas imagens enviadas no tempo; se tentou torná-lo conhecido por seus semelhantes, amando-os como ele os ama, tolerando seus desvios como ele os tolera, transportando-se pelo pensamento aos tempos de calma e de unidade em que as desordens não mais o afetarão; e se ele se esforçou para atravessar esta morada de trevas sem fazer aliança com as ilusões que a compõem, havendo tomado nessa passagem laboriosa somente aquilo que pudesse ampliar sua própria natureza sem desfigurá-la - então ele colherá frutos cujo gosto, cor e perfume deleitarão os sentidos intelectuais de seu Ser, ao mesmo tempo que estes lhe estimularão continuamente todas as faculdades. Nada os separará das esferas superiores, das quais as esferas visíveis não passam de imagens imperfeitas, e cujo movimento, dirigido segundo relações inalteráveis, gera a mais sublime harmonia, transmitindo os acordes Divinos à universalidade dos Seres. "Aí, como os Anjos no Céu, ele não será mais marcado pelo número da reprovação expressa hoje pela diferença de sexos, porque o Princípio animal, aquele cuja ação geradora e constitutiva refere-se especialmente à produção dos sexos, será enviado de volta à fonte e não mais agirá materialmente. Haverá corpos, no entanto, mas animados por uma ação mais viva do que a da matéria, e neles serão caracterizadas somente as partes da nossa forma que servem de sede ao espírito e que o manifestam, ou as que podem ser empregadas no exercício puro de suas funções." Todas as ciências e virtudes dos Agentes que a Sabedoria divina apresentou para sustentáculo e instrução do homem desde a origem da desordem tornar-se-ão seu quinhão: ele terá a sua força, seu zelo pelo reino da verdade, sua inteligência para compreendê-la e sua pureza para dela usufruir. Havendo deixado longe de si as alegorias e os símbolos, reconhecerá intuitivamente essas mesmas virtudes que a caridade apartou do Princípio para virem guiar e sustentar o homem até mesmo no lugar de sua laboriosa expiação. Nele elas gozarão do fruto de seus trabalhos: nelas ele gozará do prazer inexprimível de poder tocar e abençoar com mãos benignas. Como todos estarão libertados das solicitudes e dos atos dolorosos aos quais a Lei do tempo os sujeita ainda, erguerão com segurança os olhos cheios de alegria e comoção em direção à fonte da qual receberão todos os deleites. Revestindo-se da simplicidade de seu primeiro caráter, terão o direito de levar a mão ao incensório e oferecer, cada um segundo sua medida e seu número, perfumes puros e voluntários àquele que lhes terá feito experimentar a paz sagrada e as virtuais delícias da verdade. Sabemos que os testemunhos universais dos Povos estão de acordo sobre essa Doutrina consoladora. Se todos os Povos têm o seu Minos, se todos têm a idéia de seu formidável Tribunal e a do Tártaro, onde os homens culpados passarão dias de horror e de trevas, também têm a idéia dos campos afortunados onde os Seres virtuosos e pacíficos gozarão sem perturbação nem inquietações do fruto dos dons felizes que tiverem espalhado na terra. O homem puro poderá então recuperar o acesso a esse Templo imperecível cujas maravilhas devia divulgar e da qual o crime o baniu. Ele se aproximará da Arca sagrada sem temor de ser derrubado porque, mais poderosa do que aquela de que nos falaram as Tradições dos hebreus, ela só deixará entrar em seu recinto aqueles que houver purificado. Aí, Ser algum ficará exposto à punição de Oza, porque a Arca sagrada é o depósito da clemência e da vida e, assim como é, ao mesmo tempo, o centro, o germe e a fonte de todas as Potências, para sempre será totalmente impossível que o homem seja admitido ao seu culto sem que ela própria lhe abra seu Santuário. O Sumo Sacerdote da lei anterior ao tempo, o mesmo que presidiu de maneira invisível aos cultos de todos os Povos da terra, - uma vez que não há nenhum dentre eles que anuncie os vestígios da verdade - o mesmo que teve de apresentar ao homem, no meio dos tempos, o quadro de seu Ser e a reunião de todas as virtudes divinas subdivididas para nós por causa do pecado, será também aquele que irá presidir a esse culto futuro e posterior ao tempo, pois sendo o único Agente universal da Sabedoria suprema, é o único que pode distribuir a universalidade das graças que destina a todos os seus filhos. Ele habitará, no meio dos Levitas escolhidos que, havendo vencido a corrupção tal como ele, serão julgados dignos de cumprir as funções santas nos Templo. Lá, ele os verá trazer sem descanso ao seu redor as oferendas de seus louvores e de seu amor e, derramando ele mesmo sobre elas a sua unção vivificante, fará com que dela se exalem perfumes odoríferos e numerosos, que esparzirão a santidade por toda a extensão de augusto recinto. Tais perfumes, sucedendo-se com abundância inexaurível, elevar-se-ão até a fonte primeira de toda vida e de toda inteligência, e essa fonte inesgotável, sempre penetrada pela atividade dos perfumes, entreabrir-se-á sempre para deixar, com a mesma abundância e continuidade, dimanar até a alma dos homens as doçuras de sua própria existência. Assim, o homem poderá nutrir-se para sempre da vida de seu modelo. Assim o grande Ser poderá contemplar-se eternamente em sua imagem, porque, ele próprio regenerando-a incessantemente, dar-lhe-á com isso o direito sublime de ser o signo indelével de seu Princípio. Por fim, cada homem gozará não apenas do dom que lhe será próprio, mas poderá ainda participar nos dons de todos os Eleitos que compuserem a assembléia dos Sábios. Como no mundo os diversos homens, ao se reaproximarem, poderiam multiplicar reciprocamente suas virtudes, nutrir-se cada um com as que brilham em seus semelhantes, derramar sobre todos o talento de um, fazer germinar em um os talentos de todos: tal será o esplendor futuro dessa comunicação mútua pela qual todos os homens, unindo seus deleites aos do grande Ser e de todas as suas criações, farão com que todos os indivíduos vivam no mesmo ser e o mesmo Ser em todos os indivíduos. Esse culto futuro em nada se assemelhará aos sacrifícios severos e sanguinários relatados nos Livros dos hebreus para fazer com que o homem conheça de maneira sensível a severidade da justiça e para lembrar-lhe a separação penosa que neste mundo ele tem a obrigação contínua de fazer de todas as substâncias estranhas à sua verdadeira Natureza se não quiser permanecer na ilusão e na morte. Esse culto será até superior ao culto temporal, à Lei da graça estabelecida pelo regenerador universal, onde deve ainda haver tempos, intervalos, objetos mistos e passageiros. Então não mais haverá diferentes estações, nem mais nascente, nem mais poente para os Astros que nos irão iluminar. Não mais passagem da luz às trevas, não mais momentos estabelecidos para a prece do homem, não mais momentos em que suas necessidades ou máculas o obriguem a suspendê-la. Aqueles que forem admitidos aos sacrifícios nem mesmo serão perturbados pela diversidade de línguas, pois a ordem universal está ligada à uniformidade das línguas e o Princípio supremo é tão majestoso que basta a reunião das vozes de todos os Seres para o celebrar. Assim, pois, todos os sábios reunidos, no mesmo instante, junto ao mesmo Altar e sem jamais cessar, poderão ler, sem perturbação nem desconfiança, no Livro eterno, sempre aberto diante de seus olhos, OS NOMES SAGRADOS QUE FAZEM FLUIR A VIDA EM TODOS OS SERES.....! 2 Homens de paz, homens de desejo, tal é o esplendor do Templo no qual um dia tereis o direito de tomar lugar. Um privilégio como esse não deve surpreender-vos, já que neste mundo podeis lançar os fundamentos desse Templo, começar a erigi-lo, e até mesmo orná-lo em todos os instantes de vossa existência. A natureza inteira vos oferece o exemplo: quando os vegetais são semeados na terra, quando os animais estão no ventre da mãe, todos trabalham, empregando continuamente suas ações para transformar seu estado grosseiro e informe numa maneira de ser ativa, livre e aproximada da perfeição que lhe própria. Mas, para terdes direito a essa sublime expectativa, sondai com freqüência o vosso Ser a fim de terdes a certeza de que ele só anseie pelo reino da verdade, e não pelo vosso. É essa a bússola do Sábio, o pacto que ele deve fazer sempre consigo próprio. Conservai sempre uma idéia bem nobre do Princípio que vos anima para crerdes que, depois daquele que vos deu a existência, nada há para vós tão respeitável quanto vós mesmos. Será isso uma muralha que vos defenderá não somente das aproximações de tudo o que for contrário à vossa natureza, mas também de tudo o que não for digno dela e que não tenha relações verdadeiras convosco. Como os homens são a expressão das faculdades do grande Princípio, cada um deles é assinalado de maneira mais especial por uma dessas faculdades. Mas, embora ele deva manifestar mais naturalmente as propriedades análogas ao Princípio; embora no mundo estejam todos sujeitos a experimentar períodos de lentidão, a percorrer progressões diversas e graus diversos na aquisição e no desenvolvimento do dom que lhes é próprio; não obstante, ligados por sua essência ao Princípio universal dos Seres, todos eles têm relações com a universalidade de suas virtudes e de sua luz, mas de maneira proporcionada à esfera que habitam e à inferioridade da criação com relação ao seu Princípio regenerador. A partir de então, se o homem que atingiu a idade madura ainda for estranho a qualquer ciência e qualquer luz e se ainda for inacessível a qualquer deleite puro, honesto, natural e verdadeiro, não será um homem completo, pois o conhecimento e a felicidade nada mais são que a aplicação do emprego ativo e vivo das virtudes supremas aos diversos objetos, classes e situações onde ele possa encontrar-se. Assim, o homem infeliz está como que morto, já que não conhece a vida; o homem ignorante é um doente e um enfermo que assim se tornou apenas por não haver exercido sua forças; e o homem misantropo e sem caridade é um covarde e um ímpio, já que não faz uso do que nele existe para vivificar o que lhe causa aversão e que não tem confiança suficiente em seu Princípio para crer que esse Princípio tenha força quando ele apelar ao seu socorro. Ó homens! -tentarei apresentar-vos aqui alguns meios de preservação para vos garantir dos desvios e desventuras que vêm como conseqüência. Lembrai-vos de que, segundo o ensinamento dos Sábios, assim como é em cima é em baixo, e imaginai que vós mesmos podeis concorrer nessa semelhança agindo de modo que em baixo seja como em cima. Lá se é simples e puro como o Princípio que tudo tem em si, lá reinam o ardor e o zelo para que as Leis do Templo permaneçam intatas e para sempre honradas pela veneração dos Seres. E lá os anseios e desejos ardentes não cessam de exalar-se diante de Trono do ETERNO, seja para implorar-lhe a clemência para com os infelizes prevaricadores, seja para celebrar suas virtudes e benefícios. Aprendei, pois, nesses atos sublimes, o ministério que vos é confiado: os Agentes que os exercem nada mais fazem do vos indicar as vossas obrigações e não teríeis a faculdades de ler neles se não tivésseis a de imitá-los. "Não negligencieis os socorros da terra sobre a qual caminhais. Ela é a verdadeira cornucópia para o vosso estado atual e, não sem razão, considerada por alguns observadores como contendo um ímã enorme no seu interior. Pois realmente ela é o ponto de reunião de todas as virtudes criadas. Até mesmo é, de algum modo, o reservatório da verdadeira Fonte da Juventude, da qual a fábula nos transmitiu tantas maravilhas, pois nessa fonte é preparada a substância que serve de base e de primeiro grau para a regeneração ou o renascimento de todos os Seres. E é o crisol das almas tanto quanto dos corpos feliz daquele que souber descobrir-lhe as propriedades! Pois não conhecer as coisas por elas mesmas é não saber nada e não basta crer que tudo esteja ligado, que tudo está ativo; é preciso que busquemos estar certos disso e senti-lo. Aprendereis então o que significa ajudar a terra a Sabatizar e por que razão os hebreus mereceram tantas reprovações por se haverem descuidado desse dever enquanto habitavam a terra prometida. Pois no físico ativo acontece o mesmo que no físico passivo, onde vemos que, se o homem não prestar seus cuidados à terra através da cultura, ela apresentará uma vegetação grosseira e selvagem. "As propriedades da água não vos serão menos úteis de conhecer porque, como mina de todos os sais e contendo em si todos os germes de corporificação, ela é, em princípio e potência, o que a terra é somente em ato, na qualidade de uma matéria já determinada. Vereis que a cor verde é particularmente destinada ao reino vegetal, expressão dos princípios da água e que possui nos três reinos a mesma posição intermediária da água nos três elementos e do verde entre as sete cores do arco-íris. Não desdenheis de observar que em toda a superfície do globo terrestre a água permanece sempre em nível mais baixo do que as terras que a circundam embora, por sua natureza fluida, esteja destinada a ser mais elevada: vereis nessa imagem física uma representação natural e sensível da posição inferior que todas as virtudes ocupam hoje para virem em vosso socorro, embora tenham sido feitas para dominar em todas as regiões. Podereis também considerar a água sob um outro ponto de vista, a saber: com relação às desordens por ela causadas na superfície terrestre, porque no sensível todos os tipos são duplos e porque o da água traz especialmente esse número. Comparandose, pois, as diversas regiões por ela submergidas com as que ela deixa a descoberto; considerando-se a figura exterior de nosso globo, na qual a água e a terra estão associadas de maneira tão diversa, podereis estender vossas luzes sobre os efeitos progressivos, gerais e particulares do crime e sobre o verdadeiro estado da Geografia intelectual, antiga, presente e futura. Mas sobre esse artigo, bem como sobre todos os desse gênero, não vos detenhais à primeira impressão. Quanto mais as descobertas são susceptíveis de serem ampliadas, tanto mais é importante não adotá-las, a não ser com bastante precaução e prudência. Se tiverdes a felicidade de adquirir conhecimento das propriedades do fogo, elas vos parecerão preferíveis a todas as outras forças elementares, porque aí tocareis a própria raiz da grande árvore temporal, à qual estão ligados todos os fenômenos físicos e por onde flui a seiva que anima e nutre os Agentes sensíveis. E para mostrar-vos com segurança a verdadeira posição desse elemento acima dos dois outros, observai que o Sol é sempre luminoso por si mesmo e em todos os sentidos, enquanto que a Lua e a Terra têm apenas uma luz emprestada, ficando metade delas sempre nas trevas. Se em seguida quiserdes avaliar o estado penoso e degradado do homem no mundo, tanto com relação aos conhecimentos elementares quanto aos conhecimentos superiores por eles representados, notareis que, dos três Agentes destinados particularmente à nossa instrução, o Sol está sempre na plenitude quando se apresenta aos nossos olhos; a Lua, somente uma vez por mês e a Terra, jamais, já que nela só podemos descortinar um horizonte muito limitado. Mas, para reanimar nossa esperança no meio das privações que sofreis, prestai atenção ao fato de que, a exemplo da ação universal da vida, qualquer fluido, aquático, ígneo, magnético ou elétrico, tende sempre a recuperar o equilíbrio e a se dirigirem aos lugares em que fazem falta. Prestai atenção ao fato de que o ar mais grosseiro, o mais concentrado nos corpos materiais, está sempre em correspondência com o ar da atmosfera, passando continuamente pelos corpos e penetrando até nos menores vasos, mas, quando se sensibiliza, por assim dizer, e se modifica de acordo com as nossas situações e os estados de nossa forma, não deixa por isso de manter a comunicação com o ar mais puro, mais livre e mais destacado do etéreo. Se todos esses conhecimentos elementares vos parecessem indiferentes, é porque talvez ainda não apreendestes o conjunto e a universalidade do império do homem. Mas os Sábios de todos os tempos os pesquisaram cuidadosamente, considerandoos um bem que faz parte de seu domínio e uma via favorável para escalar graus mais elevados. Esses mesmos Sábios foram por demais prudentes para quererem caminhar numa carreira semelhante sem leis nem regras constantes porque sentiram que nada devia haver de arbitrário no culto que o homem está encarregado de exercer na terra. É aqui que os números sensíveis exercem maravilhosamente os seus direitos, classificando numa ordem exata as propriedades de todas as regiões, reinos, espécies e indivíduos do Universo elementar. É aqui que se pode começar a adquirir um conhecimento certo das Leis iniciais, médias e terminativas de todas as coisas corporais porque, como essas coisas são mistas, são suscetíveis de decomposição e análise e porque o número de seus princípios é análogo ao número de as suas ações, sejam primitivas e de origem, de existência e de duração, de enfraquecimento e de destruição. Por fim, é aqui que são feitas as primeiras aplicações do verdadeiro sentido do termo iniciar que, na etimologia latina, quer dizer reaproximar, unir ao princípio, significando o termo initium tanto princípio quanto começo. E, conseqüentemente, nada mais de acordo com as verdades expostas anteriormente do que o emprego das iniciações em todos em povos, nada de mais análogo à situação e à esperança do homem do que a fonte da qual derivam as iniciações e o objeto que elas tiveram de propor-se por toda parte: anular a distância que existe entre a luz e o homem, ou de reaproximá-lo de seu Princípio restabelecendo-lhe o mesmo brilho em que se achava no princípio. Quando os Agentes sensíveis de que acabo de falar houverem consumido com sua atividade as substâncias impuras que maculam vossos órgãos materiais; quando eles vos houverem regenerado corporalmente com sua própria vida, contribuindo assim para que vossas faculdades intelectuais retomem o equilíbrio e a agilidade proporcionados à vossa situação enferma e dolorosa, erguei os olhos para as virtudes esparsas e subdivididas de todos os Seres de uma outra ordem, antecessores da época da inteligência como seus Agentes e Ministros. Buscai, tirando proveito constante dos pensamentos que eles vos enviam, tornar-vos suficientemente análogos a eles para facilitar a reaproximação de sua essência e da vossa. Com essa união, eles vos convencerão, de novo e fisicamente, que estais destinados a contemplá-los na totalidade e na unidade, e vos confirmarão a certeza de todos os conhecimentos elementares cuja descoberta e aquisição já tereis feito, porque o mesmo princípio que produziu os Seres e os Agentes de todas as classes dirige e governa a todos por uma única e mesma Lei. Também na mesma região, no mesmo fato e no mesmo fenômeno em que perceberdes uma verdade naturalmente elementar, estai certos, se fizerdes emprego oportuno de vossas faculdades, de que encontrareis uma verdade natural intelectual; estai certos de que percebereis na nova classe o mesmo plano da classe precedente, de que até mesmo nele reconhecereis propriedades análogas e inclinadas para o mesmo fim, porque tudo se liga, tudo se toca, tudo é um nos meios, assim como no objeto que o Autor das coisas se propôs. É assim que no homem os órgãos corporais que manifestam as mais perfeitas funções animais, tais como as que se realizam na cabeça e no coração, são igualmente a sede dos mais belos traços de seu Ser imaterial, a saber: o amor e a inteligência. Por fim, não somente não há fato físico algum que não seja vizinho de uma verdade intelectual, mas não existe nenhum nos grandes fenômenos e no jogo das grandes molas do Universo que não seja o prognóstico de uma dessas verdades e que não a proclame tal como ela deve chegar em seu tempo - de modo que o Universo material, considerado nesse aspecto, é para o homem intelectual uma verdadeira profecia." Por servirem de intermediários entre os objetos físicos e os divinos, os Agentes superiores vos indicarão, por sua ação, o verdadeiro destino do homem e o verdadeiro lugar que ele deveria ocupar, ou seja; que vos exporão por si mesmos as verdadeiras relações existentes entre Deus, o homem e o Universo. Por um lado, eles vos mostrarão novamente a quantidade e a subdivisão de todas as coisas elementares e inferiores que, em virtude de seu número e multiplicidade, não oferecem em si mais do que confusão e ruína. Por outro, através de sua união mútua e geral e de sua perfeita correspondência, vos convencerão da unidade do Princípio supremo. Mostrar-vos-ão, através de sua harmonia universal, que a unidade é o único número sobre o qual repousam todos os dons que nossas necessidades não deixam de atrair sobre nós, dons que todos os homens da terra, sem exceção, perseguem por movimentos secretos dos quais não são donos. Far-nos-ão conhecer que se, a exemplo deles, nos mantivéssemos constantemente diante dessa unidade, isto é, sob nossa linha superior e divina, desceria sobre nós uma substância fixa e pura de força e de ação que, acumulando-se ao nosso redor, formaria uma base maior ou menor, mais vasta ou menos vasta, conforme lhe abríssemos, para mais ou para menos, os nossos canais imateriais próprios para se alimentarem dela. Como no mundo o homem é mais freqüentemente o tipo do mal do que do bem, ele justifica essa verdade com exemplos funestos, em vez de justificá-la com exemplos consoladores. Assim, o que experimentamos com mais freqüência é que a base da qual acabo de falar diminui para nós à medida que estreitamos os canais intelectuais - que são como que os sentidos de nosso espírito - e quando interceptamos inteiramente a comunicação, nosso centro intelectual, não recebendo mais a substância que deveria formarlhe a base, vacila sobre si mesmo e tomba, ficando exposto à revolução das circunferências inferiores e horizontais que o arrastam, deixando-o errar segundo suas leis desordenadas: "é o que as justiças humanas têm representado pelo costume de lançar aos ventos as cinzas dos criminosos". Ao contrário, os Agentes puros e intermediários, oferecendo senão os tipos do bem, devem dar-nos a conhecer que, se não fechássemos nenhum de nossos canais imateriais, veríamos nossa base estender-se a uma distância imensa e conseguir, talvez, extensão suficiente para cobrir o Universo inteiro. Nem mesmo podemos duvidar disso se refletirmos sobre nosso destino primitivo e nos lembraremos de que era esse o estado da majestade do homem, que as virtudes do Universo eram necessárias para contê-lo e servir-lhe de sede - da mesma forma que, em seu estado atual, a forma corporal em que está aprisionado só lhe abrangeria e sustentaria o Ser intelectual na extensão de todas as suas faculdades por ser a mais regular das formas e o resumo mais semelhante do grande Universo. Isso é uma base bem extensa e de apoio sólido, uma união geral e do vasto conjunto dos Agentes puros e intermediários que, planando acima do mundo sensível, tendem a vos secundar, defender e cercar-vos, para que possais elevar-vos como eles com segurança e uma verdadeira luz até à Unidade universal que os domine e a todos vivifica. Por conseguinte, esses mesmos Seres, puros e intermediários, vos ensinarão que o Agente depositário dessa unidade, trazendo em si a vida e a claridade, pode produzir em vós, como neles produz, a força e a paz que lhe são próprias, pois a mais bela de suas virtudes é o desejo de partilhá-las todas convosco. Assim esse Agente, móvel de todos os dons e socorros que alcançam vossa região, tornar-se-á o agente de todos os movimentos de vosso Ser quando todas as vossas faculdades dispostas por vossos desejos, "pela terra, pelo óleo, pelo sal e pelo fogo", houverem recuperado o grau de pureza necessário para que se vos abram as primeiras portas do Templo e nele sejais adotados pelos Guias fiéis que no mundo devem transmitir-vos as virtudes do Santuário, até haverdes adquirido o direito e o poder de irdes vós mesmos hauri-las na mesma fonte que eles. Reconhecei, pois, que, desde o grau mais inferior até o mais superior podeis esperar socorros em todos os passos que tendes a dar para percorrer a carreira e reabilitar-vos nos direitos de vossa origem. Reconhecei também que nenhum desses socorros pode ser estranho ao Agente universal que determinou a época da inteligência e trouxe aos homens o complemento de todas as virtudes e luzes. Como sua essência é inerente ao próprio centro de onde provêm todas as essências, todos os fatos puros e todos os apoios, nada do que é realizado no bem pode ser realizado sem seu consentimento e sem ser dele o princípio mediato ou imediato. Assim, quando vos ocupardes em atrair para vós as virtudes diversas dos Seres imateriais encarregados de pôr novamente em ação o vosso pensamento, serão os socorros do Agente supremo que recebereis, pois os Seres são seus órgãos e administradores. Mesmo quando vos aplicardes apenas a objetos elementares, se sentirdes que vossos conhecimentos e vossas forças se ampliam, tende a certeza de que ainda é Ele que realiza através dos Seres os sucessos que obtendes, assim como é Ele que a todo instante opera a sua existência e todos os seus atos regulares. Portanto, não existe obra pura, de qualquer gênero que seja, em que não possais reconhecerlhe a potência e, por assim dizer, comunicar-vos com Ele. A única diferença que distingue as diversas operações é que, em umas, Ele age através de simples emanações ativas e que, nas outras, por emanações inteligentes; que, para umas, Ele preserva, anima e instrui e que, para outras, renova, eleva e santifica. Mas nessa diversidade de ações, e sob os nomes de Preservador, Instrutor, Renovador e Santificador, não podeis eximir-vos de ver o próprio Ser, o próprio Agente supremo e universal, pelo qual tudo é medido, tudo existe, e que apenas se reveste desses diferentes caracteres para melhor prestar socorro às nossas necessidades e preencher em toda a extensão os vastos desígnios que tem para nós. É preciso não esquecer que, se os homens fossem atentos e procurassem dobrar-se aos ditames da sabedoria, veriam, cada um em particular, realizar-se neles, e com relação a eles, a mesma ordem de fatos, a mesma seqüência de manifestações que reconhecemos anteriormente ter-se operado em geral em toda a nossa espécie para o cumprimento da grande obra. Se, por esses caminhos mediatos e secundários podeis, de algum modo, receber sempre os socorros do supremo agente que em todas as épocas tem sido o artesão e o sustentáculo dessa grande obra, e experimentar continuamente consolações particulares, é fácil para vós julgar o que seriam os vossos deleites e os vossos sucessos se, pela vossa confiança nos socorros e consolações vos elevásseis para serdes amparados imediatamente por sua própria potência. Quando, pois, vossos males se tornarem por demais prementes, quando as águas de vossa obscura morada estiverem prestes a inundar-vos, e mesmo quando as trevas da ignorância vos parecerem penosas e insuportáveis, pedi à SABEDORIA, por intermédio do Agente, alguns raios de seu fogo para os dissipar. Poderia ela, sem se esquecer de si mesma, não se render aos anseios de sua própria substância e às virtudes dAquele sobre quem repousam, ao mesmo tempo, seu NÚMERO e seu NOME? Pedi à Sabedoria, repito, por intermédio dEle, que ela própria supra à vossa impotência, que ponha o seu pensamento no lugar do vosso pensamento, Sua vontade no lugar da vossa vontade, Suas palavras no lugar das vossas palavras e, depois de haver assim renovado todo o vosso Ser, e vos houver tornado invencíveis e incorruptíveis como Ela, não poderá recusar vossas ofertas, já que serão os Seus próprios dons que lhe apresentareis. Com isso, ela não estabelece um termo às vossa esperanças. Com isso, ela assegura força ao vosso ser se ele estiver padecendo, abundância se ele estiver em carência, ciência se for ignorante. Mais ainda: garante-lhe a vida e a luz mesmo quando ele estiver morto e sepultado no mais profundo abismo. Pois, se por suas faculdades ativas o Princípio supremo concebeu a harmonia dos Seres sensíveis e por suas faculdades pensantes produziu vosso Ser inteligente, como poderia ser-lhe mais difícil regenerar vossas virtudes do que terlhes dado existência?