Quadro Natural das Relações Existentes Entre Deus, o Homem e o Universo
Louis-Claude
de Saint-Martin
O Filósofo Desconhecido
INTRODUÇÃO
"Não podemos ler-nos a não ser no próprio Deus e compreender-nos
a não ser em seu próprio esplendor." SAINT-MARTIN, Ecce homo,
p 19. Louis-Claude de Saint-Martin, chamado "o Filósofo Desconhecido"
(1743-1803), a quem Joseph de Maistre chamou "o mais instruído,
mais sábio e mais elegante dos teósofos", foi "uma das
almas mais religiosas e mais puras que já passaram pela terra",
como escreveu Henri Martin em sua História da França; "o
representante mais completo; o intérprete mais profundo e mais eloqüente
que o misticismo já teve em nosso país e o que mais influência
exerceu", conforme escreveu Victor Cousin, um homem que recebeu "luzes
sublimes", segundo disse Mme. de Staël, e reabilitou para a época
de Diderot e de Holbach todos os "ídolos metafísicos"
que estes acreditaram ter derrubado. Ele restabeleceu contra a opinião
de Garat "a existência de um sentido inato e a distinção
entre as sensações e o conhecimento"1. Restaurou a idéia
de que o homem pode conhecer intimamente "o princípio de seu ser,
Causa ativa e inteligente"2. Retomou a idéia da queda, decadência
de um estado primitivo, de realeza, no qual o homem, fiel a seu Modelo divino,
conformava-se exatamente à sua tarefa de ser um portador de seu Fogo
(SER É SER)3, no meio de sua criação. Mas Adão desobedeceu
a essa lei de liberdade absoluta, cedeu aos atrativos de sua substância
sensível, e confundiu seu ser a ponto de esquecer o ser de seu ser, cometendo
o ato que Saint-Martin denomina "Adultério primitivo". A Cabala
chama a Terra de "Divina Noiva", destinando ao homem o papel de mediador
entre o Céu e a Terra. Pois esta é, ela própria, "celestial",
conforme dizia a cavalaria, e o homem não tem, pois, o direito de unir-se
a ela em estado de impureza. Se o Valete do Rei se torna o valete de sua própria
sensualidade, macula a Dama. "Visto que atendeste à voz de tua mulher,
maldita é a Terra por tua causa"4, dizem as Sagr adas Escrituras
num resumo admirável. Realmente, se o homem cede à mulher, no
momento em que ela cede a Satã, nesse momento é a ela mesma que
ele traiu. Por causa disso, a Natureza inteira ficará alterada, tornar-se-á
diferente do que é. Mas o homem, diz Saint-Martin, pode restaurar a integridade
de seu ser, desnaturado hoje até o ponto da animalidade. Pode encontrar
a conformidade com a fórmula de identidade absoluta de seu Nome, isto
é, tornar a ser livre. Se ele introduziu sua mácula no Universo,
interrompendo, desse modo, as relações naturais de sua União
com Deus, a Terra amaldiçoada se vinga, voltandose contra o homem para
fazê-lo expiar. Ora, diz Saint-Martin, o sofrimento é o que existe
de mais apropriado para "reativar" as centelhas divinas que ainda
se encontram, imortais, no mais decaído dos seres. Pela graça
do sofrimento, subsiste pois, para cada um de nós, uma oportunidade de
poder operar o que ele denomina "a Grande Obra da mudança da vontade"
ou, segundo uma outra perspectiva, o restabelecimento, na Ordem própria,
das quatro letras do nome de Adão, que correspondiam primitivamente às
quatro letras do Nome divino, os quatro aromas de peso igual dos quais se compõe
o Perfume, sem o qual, diz o livro do Êxodo, o homem nada pode fazer5.
1 Discurso em resposta ao cidadão Garat, professar de entendimento humano
(1795). 2 Des erreurs et de la Vérité [Sobre os erros e a Verdade]
(1775). 3 Eheieh asher aheieh, o que se costuma traduzir como: sum qui sum,
sou aquele que sou. 4 Gênesis 3:17 - Tradução de João
Ferreira de Almeida. Sociedade Bíblica do Brasil. Edição
revista e atualizada no Brasil. (N.T.) 5 Yod, Pai. He, Natureza divina do Filho.
Vav, Espírito, Mãe. He, Natureza humana do Filho. Pela repetição
do segundo termo, o tetragrama simboliza a persistência do ternário
divino no quaternário de sua manifestação cósmica
(descida e subida). O ano com seus dois equinócios, sendo apenas um e,
no entanto, dois, como as duas naturezas do Cristo, a fim de separar para reunir
inverno e verão, Céu e Terra, Rei e Rainha, é uma clara
imagem disso. Claude de Saint-Martin foi, a princípio, discípulo
de um taumaturgo que desempenhou na Franco-Maçonaria da época
um papel de fundador: Martinez de Pasqually, o Grande-Mestre Soberano da Ordem
dos Élus Cohens, cuja história nos foi contada por R. Le Forestier6.
A Ordem propunha-se nada menos do que "suprir as deficiências da
Igreja, que deveriam ser total no fim dos tempos"7. E nossos Iluminados
Martinistas trabalham firme no desenvolvimento de seus Poderes sobre os Espíritos
perversos e os Espíritos divinos - pois, ensina Martinez - ao homem foi
dado o Poder sobre as duas classes de espíritos - a fim de constituir
esse novo poder espiritual, o qual permitiria que se continuasse a "garantir
as comunicações com o mundo sobrenatural". Tal era a tarefa
empreendida
Mas parece que Saint-Martin considerou imediatamente "violentos
demais" os procedimentos teúrgicos empregados por seu mestre e enfadonhos
os ritos da magia cerimonial. Então retirou-se para praticar exclusivamente
o caminho que estava "mais de acordo com seu coração",
ao qual chamou "caminho interior". Parece, até, que mais tarde
ele se reprovou por essa deserção, quando a leitura mais aprofundada
de Jacob Boehme o convenceu de que "M. de Pasqually possuía a chave
ativa de tudo aquilo que nosso caro Boehme expõe em suas teorias, mas
que não nos achava em condições de possuir." 8 A doutrina
de Saint-Martin, hostil a qualquer supranaturalismo, assim como a qualquer materialismo,
é "a doutrina das harmonias da luz da natureza e da graça"9.
Ela nada tem de panteísmo, porém insiste na onipresença
do divino. Saint-Martin havia, a princípio, planejado dar a um de seus
livros, L'Esprit des ChosesI [O Espírito das Coisas], este título
ainda mais significativo: Les Révélations Naturelles [As Revelações
Naturais]. Para ele é um princípio natural que "nenhuma verdade
religiosa deixe de fazer sua revelação própria no coração
do homem", se ele souber manter o pensamento, "espelho divino",
limpo de qualquer mácula. "Mas os sacerdotes", diz ele, "fizeram
da palavra mistério uma muralha para a religião. Bem que podiam
estender véus sobre os pontos mais importantes, pregar-lhes o desenvolvimento
como preço do trabalho e da constância e com isso provar seus prosélitos,
exercendo ao mesmo tempo a inteligência e o zelo; mas não deviam
tornar essas descobertas tão impraticáveis a ponto de o universo
ficar, por esse motivo, desencorajado
em uma palavra, no lugar deles,
eu teria pregado um mistério como uma verdade velada e não como
uma verdade impenetrável." Assim, Saint-Martin apenas fazia com
que se desse novamente à palavra mistério o seu sentido primitivo,
e não vejo o que se poderia responder a ele, senão reconhecer
que o conteúdo substancial da maior parte dos mistérios está
hoje perdido. Por outro lado, será tão difícil discernir
que o argumento costumeiro (a fé não seria mais um mérito
se pudesse ser uma evidência) só é inevitável para
a fé
costumeira, uma fé tão fraca que não
sabe mais criar a própria evidência e manter-se nela através
de uma luta incessante? Albéric Thomas10 declarou ser "pueril sustentar
que Saint-Martin seja o continuador de Martinez de Pasqually", pois, ao
abandonar seu mestre, ele se teria tornado "um místico quem repugna
qualquer gênero ativo". 6 La Franc-Maçonnerie ocultiste e
l'Ordre des Elus Cohens [A Franco-Maçonaria ocultista e a Ordem dos Elus
Cohens]. (Elus Cohens significa "sacerdotes eleitos". 7 Citado por
Auguste VIATTE: Les sources occultes du romantisme [Fontes ocultas do romantismo].
8 Carta a Kirchberger, 11 de julho de 1796. (Tradução direta do
original da carta: "Fico mesmo tentado a crer que M. Pasq., de quem me
falais (e que, já que é preciso dizê-lo, era nosso mestre),
possuía a chave ativa de tudo o que o nosso caro B. expõe em suas
teorias, mas que não nos acreditava em condições de sermos
portadores dessas altas verdades." - N.T.) 9 Segundo testemunho de Franz
von Baader, citado por E. SUSINI: F. von Baader et le romantisme mystique. 10
Nouvelle notice historique sur le martinesisme et le martinisme. Biblioteque
rosicrucienne [Nova notícia histórica sobre o martinesismo e o
martnismo. Biblioteca Rosacruz], no. 5, 1900.
Esse julgamento é por demais severo. E, ao menos, não existe vestígio
algum de quietismo na doutrina do homem que glorificava no Cristo um "herói
da vontade" e cuja obra não passou de uma exortação
ao "exercício de todas as virtudes que deixem a alma pronta para
assenhorear-se de suas luzes e a fazê-las frutificar para a glória
da Fonte"11. Em seu Traité sur l'Influence des Signes [Tratado sobre
a Influência dos Símbolos], ele expôs seu método de
autoconhecimento por meio de provas ativas. E Caro apresenta uma citação
suficiente dessas provas em seu Essai sur la Vie et la Doctrine de Saint-Martin
(1850). Escreve Saint-Martin: "Aqui (no que concerne à Ciência
de si mesmo) somos, ao mesmo tempo, o sujeito anatômico e o doente ferido
em todos os membros, o que acontece depois de uma dissecação Completa,
feita em todos nós, os vivos, e é somente através de atos
perscrutadores que podemos atingir os confins da Ciência." Assim,
Saint-Martin preconiza uma observação ativa, dolorosa, que somente
poderia arrancar gritos da alma que a ela se submete, e que lhes deve arrancá-los,
o que Caro, chocado em seu Cartesianismo comenta assim: "Não se
trata mais, como se vê, do método experimental, calmo, lúcido,
instrumento da verdadeira ciência: é uma ciência mística!
O ato perscrutador, para falarmos essa língua estranha, é quase
um ato cirúrgico. Não se estuda o homem no desenvolvimento de
sua vida regular: ele é colocado num estado violento, numa crise. É
preciso pressionar, esmagar, quebrar-lhe a alma para forçá-la
a responder. É preciso fazer com que ele proclame seu mal em altas vozes.
Eis o que Saint-Martin denomina uma prova ativa." E conclui doutamente:
"Estamos longe do verdadeiro método e do bom senso." Entretanto,
essa é a idéia profunda de Saint-Martin e o centro de sua doutrina,
que não é mais do que a da Cruz, Arma do Conhecimento. É
preciso "dar madeira para ter o pão", segundo a expressão
do Profeta. É preciso passar pelo lagar para se conseguir o licor da
imortalidade. É preciso participar voluntariamente nos sofrimentos do
Cordeiro, pois não temos o direito de "nos eximirmos de contribuir
com ele na obra como se ele tivesse de executá-la sozinho e sem o concurso
de nossa livre vontade", escreveu Saint-Martin. É nessa perspectiva
que ele voltará incansavelmente à idéia de que o destino
do homem, o sentido mesmo da vida, é "anunciar Deus ao mundo manifestando
seus poderes, e não usurpando-os"12. Estamos aqui nos antípodas
da atitude passiva. Foi um primeiro "êxtase" que acarretou a
queda do primeiro homem, dizia Martinez abertamente13. Esse é um ensinamento
que Saint- Martin jamais esqueceu. Mas é também o ensinamento
tradicional que a espiritualidade, na época de Mme. Guyon e de Dutoit,
havia esquecido de maneira perigosa. E por que se pregava o distanciamento do
mundo? É que não se sabia mais que não é "este
mundo" que é mau, mas que é má a nossa escravização
ao mundo, pela qual nós o traímos, privando-o da Única
coisa que Deus espera de nós: o Serviço ativo de manifestar-lhe
seu Nome. A linguagem da religião ativa é a da admiração,
da adoração e da vontade de representar, de encarnar, de santificar
aqui no mundo o Nome admirado e amado. Retomando um pensamento de Saint-Martin,
escreveu Franz von Baader: "As Sagradas Escrituras dizem que o homem foi
criado para ser a imagem de Deus. Em outras palavras, que o homem consegue gerar
ou realizar essa imagem nele e por ele
" Assim dizia Vivekananda:
"Não se trata de nos tornarmos cada vez mais puros, mas de manifestarmos
a pureza que está em nós." 11 Nouvel homme [O Novo Homem].
12 Era a doutrina dos alquimistas, que viam na Cruz o crisol em que o mundo
devia ser refundido. I.N.R.I lia-se: Igne Natura Renovatur Integra. (N.T.: Toda
a Natureza será renovada pelo Fogo.) 13 "L'homme est tombé
dans l'extase" [O homem caiu no êxtase. N.T.] (Traité de la
Réintégration des êtres dans leurs premières propriétés
spirituelles et divines.) Uma pureza, uma liberdade imortal, é o poder
recebido por todo homem juntamente com o dom da vida. Mas "o homem acreditou-se
mortal", escreveu Saint-Martin, "porque encontrou em si qualquer coisa
de mortal." É preciso ensinar-lhe que isso não era Ele. Tudo
se acha, pois, na parábola dos talentos: "Minha palavra, diz o Senhor,
não deve ser por vós a mim devolvida sem conteúdo."
Saint-Martin teve, em grau bem elevado, o sentido do "esforço que
é o homem por inteiro", como disse Blanc de Saint-Bonnet. Mas sua
visão não se limita jamais à perspectiva religiosa de salvação
individual. "O homem verdadeiro", diz a tradição do
Extremo Oriente, "não se detém a completar a si mesmo: ele
completa também as coisas." Tem, assim, um papel intermediário
no Cosmos, sendo o mediador indispensável entre o Céu e a Terra.
Ninguém pode tornar-se verus homo sem tornar-se filho de Deus. Mas, como
disse Mestre Eckart, "houvesse mil filhos, não poderiam ser senão
o Único Filho". Foi isso o que Joseph de Maistre chamou de "cristianismo
exaltado" de Saint-Martin. No princípio, houve um sacrifício
divino, qualquer coisa como uma negação do Princípio até
à fraqueza das coisas e esse ato afirmativo do amor - um Sim tem a natureza
de ser na medida em que tem amor - foi a criação. Mas, como disse,
Tauler, "a saída só existe por causa do regresso, e o rebaixamento
do Criador teve como finalidade realizar uma elevação deste último."
O Criador pôsse à disposição da Criatura; permanece
em sua dependência; espera, com sua Inteligência, que ela reconheça
a dívida e que seja libertada. Todas as criaturas nascem como uma dívida
para com o Senhor. "Se apenas", exclamou Saint-Martin, "pudéssemos
jamais esquecer que Ele não nos deve nada
" O homem cai, segundo
Saint-Martin, todas as vezes que deixa de desejar um ser superior a si mesmo,
pois "a alma só pode viver em admiração." E é
essa necessidade de admiração que é a prova de Deus. "Quando
o homem não mais admira, está vazio e nulo. Está como que
mergulhado num sono espesso e tenebroso." A Cabala denomina esse mundo
como "mundo da Separação
" Mas, se um homem coloca
em si a resolução de uma outra Separação, de um
sacrifício, ele afirma Deus: força-se a ser livre, opera o ato
salvador. E o que Saint-Martin chamava, juntamente com seu Mestre, de Reintegração,
pode agora cumprir-se devagar. É a Páscoa de luz. Ora, todas as
tradições conhecem, ao lado do Ioga individual, esse tipo de Ioga
cósmico em que, por uma Alquimia sacrificial, que está na própria
natureza das coisas, produz-se incessantemente um processo de Redenção
do Divino. Quer queira o homem, quer não, ele colabora nela. Mas se não
participa, ritual ou conscientemente, dessa exaltação, não
terá parte alguma nessa glória. Pois o Universo só tem
realidade porque exerce uma função de espelho do Admirável.
Se este mundo for apenas uma imagem, um Quadro Natural, será uma imagem
viva, e não um quadro morto. Na verdade, o Modelo ainda está vivo
no Quadro. Philippe Lavastine Aviso dos Editores Às margens do Manuscrito
desta Obra, que recebemos de uma pessoa desconhecida, havia um grande número
de Acréscimos numa letra diferente. Havendo observado que esses Acréscimos
não apenas não ligavam o discurso, mas que algumas vezes até
lhe interrompiam o fio; e que, além disso, eram de um gênero particular
que parece diferir do da Obra, acreditamos dever designá-los por aspas
colocadas no começo e no fim dos diversos fragmentos desse tipo; de sorte
que se eles não forem do Autor, e se tiverem sido acrescentados por alguém
a quem ele haja confiado seu manuscrito, qualquer pessoa poderá discerni-los
com facilidade. Nota da edição de Edinburgh, 1782: O presente
volume foi composto de acordo com uma colação do texto da edição
de 1900 com o da edição de 1782.
Quadro Natural das Relações Existentes Entre Deus, o Homem e o
Universo
1 As verdades fecundas e luminosas existiriam menos para a felicidade do homem
do que para seu tormento se a atração sele por elas fosse um inclinação
que jamais pudesse satisfazer. No primeiro Móvel, ao qual as verdades
se atêm radicalmente, seria mesmo uma contradição inexplicável
se, por querer subtraí-las às nossa vista, ele as escrevesse em
tudo o que nos cerca, assim como fez na força viva dos elementos, na
ordem e na harmonia das as ações do universo e, mais claramente
ainda, no caráter distintivo do qual é o homem constituído.
Pensar que esta Causa não multiplicou diante de nossos olhos os raios
de sua própria luz para depois nos interditar seu conhecimento e uso
primitivo está mais de acordo com as suas leis. E, se ela colocou junto
a nós, e em nós mesmos, tantos objetos instrutivos, foi para dar-nos
tais objetos a fim de que meditarmos e compreendermos e a fim de conduzir-nos,
por meio deles, a resultados brilhantes e gerais que possam acalmar nossas inquietações
e desejos. Estas Verdades deixariam de parecer-nos inacessíveis se, por
meio de cuidados atentos e inteligentes, soubéssemos agarrar o fio que
sempre nos é apresentado. Porque esse fio, correspondendo da luz a nós,
preencheria então o principal objeto que ela se propõe: certamente
o de aproximar-nos dela e reunir os dois extremos. Para concorrer a um fim tão
importante, comecemos por dissipar as dúvidas que têm surgido sobre
a verdadeira natureza do homem, porque é daí que deve resultar
o conhecimento das leis e da natureza dos outros Seres. O homem não pode
dar existência a obra material alguma senão procedendo por atos
que sejam Poderes criadores dessa obra, os quais operam interiormente e de maneira
invisível, mas que são tão fáceis de distinguir
pela ordem de sucessão como pelas propriedades diferentes. Por exemplo:
antes de erguer um edifício, concebi o plano ou o pensamento, adotei
esse plano e por fim escolhi os meios adequados para realizá-lo. É
evidente que as faculdades invisíveis, através das quais recebi
o poder de produzir esta obra, são, por sua natureza, muito superiores
ao próprio resultado e completamente independentes dela. O edifício
poderia não ter recebido existência sem que se alterassem as faculdades
que me tornaram capaz de concedê-la. Depois que ele recebeu a existência,
as faculdades conservam a mesma superioridade, pois possuem o poder de destruí-lo.
Não o destruir é, de certo modo, dar-lhe continuidade à
existência. Se ele viesse a desaparecer, depois dele as faculdades que
lhe deram o Ser continuariam o mesmo que eram antes e depois do tempo que ele
durou. Não somente são elas superiores às suas criações,
como também não posso deixar de reconhecer que são superiores
e estranhas ao meu próprio corpo, porque operam quando estão na
calma de meus sentidos. Porque eles bem podem ser delas os órgãos
e ministros, mas não o princípio radical e gerador. Porque meus
sentidos agem por impulso, enquanto meu ser intelectual age por deliberação.
Porque minhas faculdades intelectuais têm um poder real sobre meus sentidos
na medida em lhes estendem as forças e o emprego pelos diferentes exercícios
que minha vontade pode impor-lhes e, ao invés disso, eles só possuem
sobre elas um poder passivo: o de absorvê-las. E, por fim, porque na Geometria
a precisão mais escrupulosa e que mais satisfaz aos sentidos deixa sempre
qualquer coisa a desejar ao pensamento, como na multidão de figuras cujas
relações e ligações corporais conhecemos, mas cujos
números e relações verdadeiros estão completamente
fora do sensível. A marcha das obras do homem deve esclarecer-nos sobre
os objetos de uma ordem superior; pois se os nossos feitos mais materiais e
mais distantes da Vida recebem assim o seu ser de potências estáveis
e permanentes - seus agentes necessários poderíamos recusar-nos
a admitir que os resultados materiais mais perfeitos, tal como a existência
da Natureza física geral e particular, sejam igualmente o produto de
Potências superiores a esses resultados? Quanto mais uma obra contém
perfeições, mais ela o indica em seu Princípio gerador.
Então, por que desafiaríamos essa idéia, ao mesmo tempo
simples e vasta, que nos oferece uma única e mesma lei para a produção
das coisas embora elas se distingam por sua ação e seu caráter
fundamental? A superioridade das criações da Natureza não
as dispensa, pois, de serem o resultado dos Poderes ou faculdades, análogas
em essência e virtude às que necessariamente se manifestam no homem
para ele produzir suas obras. Embora sejam formadas apenas por transposições
ou modificações, não podemos deixar de considerá-las
como espécies de criações: através de diversos arranjos
e combinações de substâncias materiais, imaginamos objetos
que anteriormente só existiam em seus próprios princípios.
Se o edifício universal da Natureza é a obra visível das
faculdades anteriores à sua criação, nós temos,
sobre sua existência, a mesma certeza que temos da realidade daquelas
que em nós se manifestam. E podemos afirmar que, se os fatos da Natureza
são materiais como os nossos - embora de ordem superior - os órgãos
físicos da Natureza universal não devem conhecer as faculdades
que os criaram e os dirigem. E que nem nossas obras nem nosso corpo conhecem
as faculdades que sabemos existir em nós. Do mesmo modo, a obra universal
das faculdades invisíveis, o resultado delas - a Natureza, enfim - poderia
jamais ter existido. Poderia perder a existência que recebeu sem que as
faculdades que a produziram nada perdessem de sua potência nem de sua
indestrutibilidade, pois existem independentemente das obras que produzo. "Detenhamo-nos
por um momento e leiamos, no próprio Universo, a prova evidente da existência
das Poderes Físicos, Superiores à Natureza. Seja qual for o centro
das revoluções dos Astros errantes, sua lei a todos confere uma
tendência para esse centro comum, pelo qual são atraídos
de maneira igual. Entretanto, vemos que eles mantêm uma distância
desse centro, sem se aproximarem ora mais, ora menos, segundo as leis regulares,
e sem jamais o tocarem ou a ele se unirem. Mesmo que oponhamos a atração
mútua dos Astros planetários, que faz com que se equilibrem e
se sustenham mutuamente, resistindo assim à atração central,
sempre restaria uma pergunta: por que é que a atração mútua
e particular dos Astros não os une logo uns aos outros para precipitá-los
depois no centro comum de atração geral? Se o equilíbrio
e a sustentação dependem de diferentes aspectos de uma certa posição
respectiva, é certo que, pelos movimentos diários, tal posição
varia e que assim, desde muito tempo sua lei de atração deveria
ter sido alterada, bem como o fenômeno de permanência que a eles
atribuímos. Apesar da enorme distância em que estão dos
outros Astros, poderíamos recorrer às Estrelas fixas que sobre
eles influem, que os atraem como eles são atraídos por seu centro
comum e assim os sustenta em seus movimentos. É uma idéia com
aparência de grande e sábia, que pareceria entrar naturalmente
nas leis simples da física correta, mas - é bem verdade - apenas
faria a dificuldade recuar. Embora pareça que as Estrelas fixas conservam
a mesma posição, estamos tão distanciados delas que sobre
este ponto só temos uma ciência de conjectura. Em segundo lugar,
mesmo que fosse verdade que elas fossem fixas, como parecem ser, não
se poderia negar que em diferentes lugares do Céu apareceram novas Estrelas,
que depois deixaram de aparecer. E cito apenas a que foi observada por vários
Astrônomos em 1572, na constelação de Cassiopéia.
A princípio, ela igualou em grandeza a luminosidade da Lira14, depois
o de Sírius, ficando quase tão grande quanto Vênus Perigéia,
a ponto de ser vista a olho nu em pleno meio-dia. Mas foi perdendo pouco a pouco
a luz e deixou de ser vista. De acordo com outras observações,
presumiu-se que ela havia feito aparições anteriores, que seu
período poderia ser de trezentos e poucos anos, podendo assim reaparecer
pelo fim do século dezenove. Se observamos tais revoluções
e mudanças entre as Estrelas fixas, não podemos duvidar de que
algumas tenham movimento. É certo também que a variação
de uma só dessas Estrelas deva influir na região à qual
pertence, com preponderância suficiente para perturbar-lhe a harmonia
local. Se a harmonia local é perturbada numa das regiões das Estrelas
fixas, a perturbação pode estender-se a todas as regiões.
Elas deixariam de manter a constância de suas posições respectivas
e cederiam à força da atração geral que, reunindo-as
como aos outros Astros num centro comum, acabaria por aniquilar o sistema do
Universo. Não se vê acontecer nenhum desastre semelhante. Se a
Natureza se altera, é de maneira lenta, deixando-nos ver sempre que reina
uma ordem aparente. Existe, pois, uma força física invisível,
superior às Estrelas fixas - assim como estas são superiores aos
planetas - que as mantém em seu espaço, assim como elas mantêm
os seres sensíveis encerrados em seu recinto. Unindo esta prova às
razões da analogia que já estabelecemos, repetiremos que o universo
existe por causa de faculdades criadoras, invisíveis à Natureza,
assim como os fatos materiais do homem são produzidos por suas faculdades
visíveis. Repetiremos que, ao inverso, as faculdades criadoras do universo
possuem uma existência necessária e independente do universo, assim
como minhas faculdades visíveis existem necessária e independentemente
de minhas obras materiais." Tudo se reúne aqui para demonstrar a
superioridade do homem - que encontra nas próprias faculdades algo com
que pode elevar-se até à demonstração do princípio
ativo e invisível do qual o universo recebe a existência e suas
leis. Até mesmo nas obras materiais que tem o poder de produzir ele encontra
a prova de que seu Ser é de natureza imperecível. Que os atos
sensíveis e materiais comuns ao homem e à besta não se
oponham a essas reflexões. Falando de suas obras, não tivemos
em vista os atos naturais que o tornam semelhante aos animais, mas os atos de
gênio e de inteligência, que o destinguirão sempre, através
de caracteres evidentes e signos exclusivos. A diferença do ser intelectual
do homem para com seu ser sensível foi demonstrada com total evidência
no escrito do qual tirei a epígrafe desta Obra. Por isso limitar-nos-emos
a observar aqui que não podemos executar a menor de nossas vontades sem
nos convencermos de que levamos conosco, por toda parte, o Princípio
do ser e da vida. Ora, como o Princípio do ser e da vida poderia perecer?
Entretanto, apesar desse caráter distintivo, o homem vive numa dependência
absoluta, relativamente às suas idéias física e sensíveis.
Não se pode negar que ele traga em si todas as faculdades análogas
aos objetos que conhece. Que são as nossas descobertas senão a
visão íntima e o sentimento secreto da relação existente
entre a nossa própria luz e as próprias coisas? Contudo, não
podemos ter uma idéia de objeto qualquer sensível se esse objeto
não nos comunicar suas impressões. Disso temos a prova no fato
de que a ausência de nossos sentidos nos priva, por inteiro ou em parte,
de conhecer os objetos que lhe são relativos. Muitas vezes é verdade
que, por comparação, apenas pela analogia, as idéias primárias
nos conduzem a idéias secundárias e que, por uma espécie
de indução, o conhecimento dos objetos presentes nos faz tecer
conjecturas sobre os objetos distantes. Mas então estamos ainda submetidos
à mesma lei, porquanto é sempre o primeiro objeto conhecido que
serve de móvel a esses pensamentos: sem ele, nem a idéia secundária
nem a primária teriam sido produzidas em nós.
Obs.: Lira, cuja estrela principal é Vega, é uma, constelação,
e não estrela. (N.T.) No que concerne aos objetos sensíveis e
às idéias a eles análogas, é certo que o homem vive
em verdadeira servidão princípio do qual a seguir tiraremos novas
luzes sobre sua verdadeira lei. Além das idéias que adquire diariamente
a partir dos objetos sensíveis, o homem possui, pela ação
por eles exercida sobre os sentidos, idéias de uma outra classe, a idéia
de uma lei, de uma Potência que dirige o Universo e os próprios
objetos materiais. Possui a idéia da ordem que nele deve presidir e tende,
como que por um movimento natural, em direção à harmonia
que parece gerá-los e conduzi-los. Ele nem pode criar uma única
idéia, e, no entanto, tem a idéia de uma força e de uma
sabedoria superior, que é, ao mesmo tempo, como que o termo de todas
as leis, o lugar de toda harmonia, o eixo e o centro de onde emanam as Virtudes
dos Seres e ao qual elas chegam. Tal é o verdadeiro resultado de todos
os sistemas, dogmas e opiniões, mesmo as mais absurdas, sobre a natureza
das coisas e a de seu princípio. Doutrina alguma, sem excluir o Ateísmo,
deixa de ter por finalidade esta espantosa Unidade, conforme veremos em seguida.
Se estas últimas idéias formam uma classe absolutamente diferente
da que temos das coisas materiais; se nenhum dos objetos sensíveis as
pode produzir, já que os mais animais perfeitos nada anunciam de semelhante
a elas embora todos vivam, assim como o homem, no meio deles; se, ao mesmo tempo,
qualquer idéia só desperta no homem por meios exteriores a ele,
resulta que o homem vive em dependência, tanto por suas idéias
intelectuais como pelas sensíveis. Também resulta que, em ambas
as ordens, mesmo tendo em si o germe de todas as idéias, ele é
forçado a esperar que reações exteriores venham animá-las
e fazê-las nascer. Não é seu dono nem autor e, apesar de
seus esforços, no intento de ocupar-se de um objeto qualquer, não
pode ter a garantia de atingir o alvo sem ter de desviar-se dele por causa de
milhares de idéias estranhas. Estamos todos expostos a receber involuntariamente
essas idéias irregulares, penosas e importunas que, como que contra a
nossa vontade, perseguem-nos com inquietudes e dúvidas de toda espécie,
vindo misturar-se aos nossos deleites intelectuais que mais nos satisfazem.
De tais fatos resulta o seguinte: se as obras materiais do homem indicam que
há nele faculdades invisíveis e imateriais, anteriores e necessárias
à produção de suas obras; se caso, pela mesma razão,
a obra material universal, ou a Natureza sensível, indica haver em nós
faculdades criadoras, invisíveis e imateriais, exteriores a essa Natureza
e pelas quais ela foi criada, então as faculdades intelectuais do homem
são uma prova incontestável de que existem ainda outras de uma
ordem bem superior às suas e àquelas que criam os fatos materiais
da Natureza. Isto é: que, além das faculdades criadoras universais
da Natureza sensível, fora do homem ainda existem faculdades intelectuais
e pensantes, análogas ao seu ser e que nele produzem os pensamentos.
E como os móveis de seu pensamento não lhe pertencem, ele só
pode encontrá-los numa fonte inteligente relacionada ao seu ser. Sem
isso, como tais móveis não têm sobre ele ação
alguma, o germe do pensamento ficaria sem reação e, por conseqüência,
sem efeito. Entretanto, embora o homem seja passivo tanto nas idéias
intelectuais como nas sensíveis, resta-lhe sempre o privilégio
de examinar os pensamentos que lhe são apresentados, julgá-los,
adotá-los, rejeitá-los, agir em seguida de conformidade com sua
escolha e esperar, mediante uma marcha atenta e ininterrupta, alcançar
um dia a fruição invariável do pensamento puro - todas
as coisas que derivam naturalmente do uso da liberdade. Mas é necessário
que a liberdade assim dirigida se distinga bem da vontade escrava de propensões,
forças ou influências que de ordinário determinam os atos
do homem. A liberdade é um atributo próprio dele e que pertence
ao seu ser, enquanto as causas de suas determinações lhe são
estranhas. Vamos, pois, considerá-la aqui sob duas faces: como princípio
e como efeito. Como princípio, a liberdade é a verdadeira fonte
de nossas determinações, a faculdade que temos de seguir a lei
que nos é imposta ou de agir em oposição a essa lei; e
a faculdade de permanecermos fiéis à luz que não deixa
de ser-nos apresentada. Essa liberdade princípio manifesta-se no homem,
mesmo quando ele se tornou escravo das influências estranhas à
sua lei. Então vemo-lo ainda, antes de decidir-se, comparar entre si
as diversas impulsões que o dominam, opor entre si seus hábitos
e paixões, acabando por escolher o que mais atrativos tiver para ele.
Considerada como efeito, a liberdade dirige-se unicamente segundo a lei dada
à nossa natureza intelectual. Supõe então a independência,
a isenção inteira de qualquer ação, força
ou influência contrária a essa lei, isenção que poucos
homens já conheceram. Sob esse ponto de vista, em que o homem não
admite motivo algum além de sua lei, todas as suas determinações
e atos são o efeito da lei que o guia. E somente então é
ele verdadeiramente livre, não sendo jamais desviado por nenhum impulso
estranho ao que convenha ao seu Ser. Quanto ao Ser princípio, força
pensante universal superior ao homem cuja ação não podemos
sobrepujar nem evitar, e cuja sua existência é demonstrada pelo
estado passivo em que nos achamos diante dela com relação aos
nossos pensamentos, esse último Princípio tem também uma
liberdade que difere essencialmente das liberdades dos outros Seres. Sendo ele
mesmo a sua própria lei, não pode jamais afastar-se dela, não
ficando sua liberdade exposta a qualquer entrave ou impulso estranho. Assim,
não tem a faculdade funesta pela qual o homem pode agir contra o próprio
alvo de sua existência. O que demonstra a superioridade infinita do princípio
universal e Criador de toda lei. O princípio supremo, fonte de todas
as Potências, seja das que vivificam o pensamento no homem, seja das que
geram obras visíveis da natureza material; Ser necessário a todos
os Seres, germe de todas as ações, do qual emanam continuamente
todas as existências; termo final para o qual elas tendem, como que por
um esforço irresistível porque todas buscam a vida; este ser,
afirmo-o, é o que os homem chamam, de maneira geral, DEUS. Sejam quais
forem as idéias estreitas que a grosseira ignorância tenha formado
sobre Deus entre os diferentes povos, os homens que quiserem descer no próprio
íntimo a fim de sondar o sentimento indestrutível que têm
do Princípio reconhecerão que ele é o BEM por essência
e que todo bem provém dele, que o mal não passa daquilo que se
opõe a ele e que, assim, ele não pode querer o mal. Pelo contrário,
pela excelência de sua natureza, jamais deixa de proporcionar às
suas criações a extensão de felicidade da qual são
susceptíveis, quanto a suas diversas classes, embora os meios que emprega
estejam ainda ocultos a nossos olhos. Não tentarei tornar mais perceptível
a natureza desse Ser, nem penetrar no Santuário as Faculdades divinas.
Para alcançá-las, seria necessário conhecer alguns dos
números que as constituem. Ora, como seria possível ao homem submeter
a Divindade aos seus cálculos e fixar seu NÚMERO principal? Para
conhecer um número principal, é necessário ter ao menos
uma de suas alíquotas: e mesmo que enchêssemos um livro, o Universo
todo, com sinais numéricos para representar a imensidade das Potências
divinas, ainda assim não teríamos dele nem a primeira alíquota,
já que poderíamos sempre acrescentar-lhe novos números,
ou seja: encontraríamos sempre novas Virtudes neste Ser. Além
disso, é preciso dizer aqui sobre Deus o que poderíamos ter dito
do Ser invisível do homem. Antes de sonhar em descobrir suas relações
e suas leis, tivemos que convencer-nos de sua existência, porque ser,
ou ter tudo em si, segundo sua classe, é coisa só. Haver reconhecido
a necessidade e a existência do Princípio eterno e infinito é
haver-lhe atribuído, ao mesmo tempo, todas as faculdades, perfeições
e a potência que esse Ser universal deve ter em si, embora não
se possa conceber dele nem o número nem a imensidade. Assegurados esses
primeiros passos, tentemos descobrir novas relações considerando
a Natureza física. Poderíamos contemplar sem admiração
os espetáculos do Universo? O curso regular de tochas errantes que são
como que as almas visíveis da Natureza? A espécie de criação
diária operada por sua presença em todas as Regiões da
Terra e renovada nos mesmos ambientes em épocas constantes? As leis inalteráveis
da gravidade e do movimento, rigorosamente observadas nos choques mais confusos
e nas revoluções mais tempestuosas? Eis, certamente, maravilhas
que parecem dar ao Universo os direitos a receber homenagens do homem. Mas,
ao oferecer-nos esse espetáculo majestoso de ordem e harmonia, o Universo
nos manifesta ainda, de maneira mais evidente, os sinais da confusão,
sendo nós obrigados a lhe darmos em nosso pensamento a posição
mais inferior, pois ele não pode influir nas faculdades ativas e criadoras
às quais deve a existência, nem tem uma relação mais
direta e mais necessária com Deus, a quem pertencem as faculdades, do
mesmo modo as nossas obras materiais o têm conosco. O Universo é,
por assim dizer, um ser à parte. É estranho à Divindade,
embora não lhe seja desconhecido nem mesmo indiferente. E em nada está
ligado à essência divina, embora Deus assuma a função
de o manter e governar. Assim, não participa da perfeição,
que sabemos pertencer à Divindade. Não forma unidade com ela.
Por conseqüência, não está compreendido dentro da simplicidade
das leis essenciais e particulares da Natureza Divina. Também por todo
o Universo se percebem caracteres de desordem e deformidade, um conjunto violento
de simpatias e antipatias, de semelhanças e diferenças, que forçam
os Seres a viver em agitação contínua para se aproximarem
daquilo que lhes convém e fugirem do que lhes é contrário:
eles tendem sempre a um estado mais tranqüilo. Os corpos gerais e particulares
existem para a subdivisão e a mistura de seus princípios constitutivos.
E a morte dos corpos chega quando as emanações dos princípios,
antes mutuamente combinados, se destacam, tornando a entrar em sua unidade particular.
Por que é que tudo se devora na criação, a não ser
pelo fato de que tudo tende à unidade de onde tudo saiu? "Vemos
mesmo um Tipo impressionante da confusão e da violência em que
toda a Natureza se encontra: a lei física que, quatro vezes por dia,
agita a bacia dos mares, não lhe deixou um só instante de calma
desde a origem das coisas - imagem característica pela qual o homem pode,
ao primeiro olhar, explicar o enigma do Universo." Como, pois, poderia
haver homens tão pouco atentos a ponto de assimilarem a Deus o Universo
físico, um ser que não tem nem pensamento nem vontade, a quem
é estranha a própria ação por ele manifestada, um
ser que existe por divisões e desordem? As misturas que formam nossa
Natureza física terão alguma relação com o caráter
constitutivo da Unidade Universal? E a existência desse ser misto e limitado,
sujeito a tantas vicissitudes, poderia algum dia confundir-se com o Princípio
Uno eterno e imutável, fonte da vida, e cuja ação independente
se estende sobre todos os Seres e a todos precedeu? A imperfeição
inerente às coisas temporais prova que elas não são iguais
a Deus nem coeternas dele e ao mesmo tempo demonstram que não podem ser
permanentes como ele: sua natureza imperfeita não se liga de modo algum
à essência de Deus, à qual só pertencem a perfeição
e a Vida, podendo, por isso, perder a vida ou o movimento que recebeu, porque
o verdadeiro direito que Deus tem para não deixar de ser seria o fato
de não haver começado. Se a vida, ou o movimento fosse essencial
à matéria, não seria necessário, como o fizeram
os mais famosos Filósofos, exigir-se matéria e movimento para
formar um Mundo: de acordo com esse princípio, obtendo-se um, ter-se-ia
necessariamente o outro. Se os homens se equivocaram a respeito de tais objetos,
é porque fecharam os olhos às grandes leis dos Seres, ignorando
até os caracteres essenciais que devem, no pensamento do homem, separar
o Universo de Deus. Na ordem intelectual, é o superior que alimenta o
inferior; é o Princípio da existência que mantém
nos seres a vida que lhes deu; é da fonte primeira da verdade que o homem
intelectual recebe diariamente os seus pensamentos e a luz que os ilumina. Ora,
se o princípio superior não espera vida nem sustento de quaisquer
das suas criações, se recebe tudo de si próprio, está
para sempre ao abrigo das privações, da escassez e da morte. Ao
inverso, em todas as classes da ordem física, é o inferior que
nutre e alimenta o superior: o vegetal, o animal e o corpo material do homem
fornecem as provas mais evidentes desse fato. A própria Terra não
mantém a sua existência com a ajuda das próprias criações?
Não é dos sobejos delas que recebe adubos e alimentos? E a chuva,
o orvalho e a neve que a fertilizam nada mais são do que exalações
suas, que tornam a cair na sua superfície depois de terem recebido na
atmosfera as Virtudes necessárias para realizarem sua fecundação.
Essa é, pois, a imagem mais impressionante de sua impotência e
a prova mais certa da necessidade da destruição: como conserva
a virtude geradora e a existência pelo socorro de suas próprias
criações, não poderíamos crê-la imperecível
sem lhe reconhecermos, como em Deus, a faculdade essencial e sem limites de
gerar. Então, nela e em sua superfície, jamais veríamos
esterilidade ou seca. Mas a Terra dá testemunhos diários de que
pode tornar-se estéril, pois há hoje regiões inteiras desnudadas
de plantas e de produções que outrora possuíram em abundância.
Ora, se a terra pode cair na esterilidade, embora seja alimentada por seus próprios
frutos, de que se nutrirá quando deixar de produzi-los? E como irá
então conservar suas virtudes e a existência se a existência
de qualquer ser não pode manter-se sem alimentos? Podemos, pois, conceber
algo mais disforme do que um ser cuja vida esteja fundada sobre as vicissitudes,
a destruição e a morte? Um ser que, como a Matéria, como
o tempo - o Saturno da Fábula - só existe porque se nutre de seus
próprios filhos? Um ser que não pode conservar uma parte deles
sem sacrificar a outra, que, em suma, mantém a existência fazendoos
devorar os próprios irmãos? É aqui que devemos observar
os resultados das as pesquisas já feitas sobre Deus e a matéria.
Em todos os tempos procurou-se saber o que a matéria é e ainda
não foi possível concebê-la. Há mesmo línguas
muito sábias que não possuem uma palavra para exprimi-la. Porém,
entre os que tomaram Deus como objeto de suas reflexões, jamais houve
alguém que pudesse dizer o que ele não era - pois não há
denominações positivas, exprimindo um atributo real ou uma perfeição,
que não convenham a esse Ser universal, primeira base de tudo o que existe.
E se os homens lhe dão às vezes denominações negativas,
tais como Imortal, Infinito, Independente, veremos, ao examinar-lhes os verdadeiro
sentidos, que elas exprimem atributos muito positivos, pois tais denominações
só servem para proclamar que ele é isento das sujeições
e das limitações da matéria. No princípio supremo
que ordenou a produção do Universo e lhe mantém a existência
tudo é essencialmente ordem, paz e harmonia. Assim, não se lhe
deve atribuir a confusão que reina em todas as partes de nossa morada
cheia de trevas. E essa desordem é ser o efeito de uma causa inferior
e corrompida que age em separado e fora do Princípio do bem pois é
mais certo ainda que, relativamente à Causa primeira, ela é nula
e impotente e nada pode sobre a própria essência do Universo material.
É impossível que essas duas coisas existam juntas fora da classe
das coisas temporais. Assim que a Causa inferior deixou de ser conforme à
lei da Causa superior, perdeu a união e a comunicação com
ela. Então a Causa superior, Princípio eterno da ordem e da harmonia,
deixou a Causa inferior, oposta à sua unidade, cair por si mesma na obscuridade
de sua corrupção, assim como nos deixa, todos os dias, perder
voluntariamente parte da extensão de nossas faculdades e restringi-las,
por nossos próprios atos, dentro dos limites das afeições
mais vis, a ponto de afastar-nos completamente dos objetos que convêm
à nossa natureza. Assim, o nascimento do mal e a criação
do recinto no qual o homem foi encerrado, ao invés de produzirem um conjunto
maior de coisas na ordem verdadeira e de aumentarem a Imensidade, apenas particularizaram
o que por essência deveria ser geral. Separaram ações que
deveriam estar unidas. Encerraram num ponto o que fora separado da universalidade
e que devia circular sem parar na economia dos Seres. Acabaram sensibilizando,
sob formas materiais, o que já existia em princípio imaterial:
se pudéssemos anatomizar o Universo e retirar-lhe os invólucros
grosseiros, encontraríamos seus germes e fibras princípios dispostos
na mesma ordem em que vemos seus frutos e criações. E esse Universo
invisível seria tão distinto para nossa inteligência como
o Universo material o é para os olhos de nosso corpo. É aí
que os Observadores se perderam: confundiram o Universo invisível com
o Universo visível e proclamaram este último como fixo e verdadeiro,
o que pertence ao Universo invisível e princípio. Foi assim que
a causa inferior teve como limites a muralha sensível e intransponível
da ação invisível vivificante e pura do grande Princípio,
diante da qual a corrupção vê os seus esforços ficarem
aniquilados. E se o conhecimento das autênticas leis dos Seres foi algumas
vezes o preço dos estudos daqueles que me lêem neste momento, eles
verão aqui por que é que a revolução solar forma
um período anual de cerca de 365 dias. Teriam o direito de desconfiar
dos princípios que lhes exponho se as provas não estivessem patentes
sob seus olhos. Como a causa inferior exerce ação no espaço
cheio de trevas ao qual está reduzida, tudo o que estiver contido com
ela, sem exceção, deve ficar exposto aos seus ataques; e embora
nada possa contra a causa primeira nem contra a essência do Universo,
pode combater-lhe os Agentes, interpor obstáculos ao resultado de seus
atos e insinuar sua ação desregrada nas menores perturbações
dos seres particulares para aumentar-lhes ainda mais a desordem. Finalmente,
se queremos ter uma idéia das coisas temporais, observemos nossa atmosfera:
ela apresenta fenômenos que podem dar uma idéia de sua origem.
Com freqüência, durante uma manhã inteira, nevoeiros sombrios,
ou uma única massa de vapor, uniformemente estendida nos ares, parece
erguer-se contra a luz do astro do dia e opor-se à sua claridade. Mas
logo o sol, aproveitando-se de sua força, rompe essa barreira, dissipa
a escuridão e divide os vapores em milhares de nuvens, atraindo com o
calor as mais puras e mais leves, enquanto as mais grosseiras e malsãs
precipitam-se na superfície da terra para aí se unirem novamente,
misturando-se às diversas substâncias materiais e confusas. Este
quadro físico é próprio para nos instruir. É essencial
examinar aqui como a Causa inferior pode opor-se à Causa superior e como
é possível existir o mal em presença das coisas divinas
sem que as coisas divinas nele participem. A consideração dos
fenômenos materiais pode ajudar-nos nessa busca. Observemos, a princípio,
a diferença entre os seres materiais e as criações intelectuais
do Infinito. O Ser criador está sempre produzindo seres exteriores a
si, como os princípios dos corpos estão sempre produzindo sua
ação exterior a eles. Não produz conjuntos, pois ele é
Um, simples em sua essência. Por conseqüência, se dentre as
criações desse primeiro Princípio há algumas que
possam corromper-se, pelo menos elas não podem dissolver-se nem aniquilar-se,
como as criações corporais e compostas. Quanto à natureza
desses dois tipos de Seres, já existe nisso uma grande diferença.
Encontramos uma diferença maior ainda no gênero de corrupção
do qual são suscetíveis. A corrupção, o transtorno
e o mal das criações materiais é deixar de ser sob a aparência
da forma que lhes é própria. A corrupção das criações
imateriais é deixar de ser na lei que as constitui. Entretanto, a destruição
das criações materiais não é um mal quando chega
a seu tempo e de maneira natural: só será desordem nos casos em
que for prematura - e então até o mal está menos nos seres
entregues à destruição do que na ação desregrada
que o ocasiona. Pelo contrário, como os Seres imateriais não são
conjuntos, não podem jamais ser penetrados por qualquer ação
estranha; não podem ser por elas decompostos nem aniquilados. Assim,
a corrupção dos Seres somente poderia provir da mesma fonte das
criações materiais, já que a lei contrária que age
sobre elas não age sobre os Seres simples. A que se deve, pois, atribuir
essa corrupção? Como as criações, materiais ou imateriais,
haurem a vida de uma fonte pura, cada uma segundo a própria classe, faríamos
uma injúria ao Princípio se admitíssemos na essência
delas a mínima nódoa. Da diferença extrema existente entre
as criações imateriais e as criações materiais resulta
que, sendo estas passivas, por serem compostas, não são o agente
da própria corrupção: são, pois, o sujeito delas,
uma vez que essa desordem lhes advém, necessariamente, de fora. Pelo
contrário, as criações imateriais, na qualidade de Seres
simples e no seu estado primitivo e puro, não recebem transtorno nem
mutilação por parte de qualquer força estranha, já
que nada delas é exposto e elas encerram sua existência e seu ser
em si mesmas, como que formando, cada uma, a unidade de todas. Daí resulta:
se existem algumas que se corromperam, foram o sujeito da própria corrupção
e devem ter sido o órgão e os agentes dela. É totalmente
impossível que a corrupção lhes tenha vindo de fora, pois
ser algum poderia ter qualquer poder sobre elas ou perturbar-lhes a lei. Há
Observadores que, considerando o homem apenas no estado natural de degradação,
escravo dos preconceitos e dos hábitos, dominado por seus pendores, entregue
às impressões sensíveis, concluíram que ele estava,
ao mesmo tempo, desarmado em todas as ações intelectuais ou animais.
Isso fez com que se julgassem autorizados a dizer que no homem o mal provém
da imperfeição de sua essência, ou de Deus, ou da Natureza,
de sorte que, em si mesmos, seus atos seriam indiferentes. Aplicando em seguida
a todos os Seres à falsa opinião formada acerca da liberdade do
homem, negaram a existência de qualquer Ser livre, e desse sistema resulta
que o mal existe em essência. Sem nos determos no combate a tais erros,
bastarnos-á observar que eles provêm do que foi confundido nos
atos do Ser livre: os motivos, a determinação e o objeto. Ora,
reconhecendo que o princípio do mal não conseguiu empregar sua
liberdade a não ser sobre um objeto qualquer, ele não deixaria
de ser o autor do motivo de sua determinação, pois o objeto ou
o sujeito sobre o qual exercemos nossa determinação pode ser verdadeiro,
e nossos motivos, não. A cada dia, no que diz respeito às melhores
coisas, formamos motivos falsos e corrompidos. Por isso, é necessário
não confundir o objeto com o motivo: um é externo; o outro, nasce
em nós. Estas observações nos levam a descobrir a verdadeira
fonte do mal. Realmente, um Ser que nos aproxima e que goza a visão das
Virtudes do soberano Princípio pode encontrar nisso um motivo preponderante
oposto às delicias desse sublime espetáculo? Se desviar os olhos
desse grande objeto ou se, colocando-os nas criações puras do
Infinito, ele buscar, ao contemplá-los, um motivo falso e contrário
às leis das criações, pode encontrá-lo fora de si
mesmo? Esse motivo é o mal e o mal não existia em parte alguma
para ele antes que esse pensamento criminoso o tivesse feito nascer, assim como
criação alguma existe antes de seu Princípio gerador. Eis
como o estado primitivo, simples e puro de todo Ser intelectual e livre prova
que a corrupção nasce dele sem que ele mesmo lhe produza voluntariamente
o germe e a fonte. Assim, fica claro que o Princípio divino não
contribui no mal e na desordem que surge entre suas criações,
pois ele é a própria pureza. Sendo simples como suas criações,
ele não participa nisso, e mais: como ele mesmo é a lei de sua
própria essência e de suas obras, pela mais forte razão,
é impassível como elas a qualquer ação estranha.
Ah! Por quais meios a desordem e a corrupção chegariam até
ele, já que na própria ordem física os poderes dos Seres
livres e corrompidos, assim como os direitos de sua corrupção,
estendem-se sobre os objetos secundários e não sobre os Princípios
primeiros? As maiores desordens que operam na Natureza física alteram
apenas os seus frutos e criações, não atingindo suas colunas
fundamentais, que jamais são abaladas, exceto pela mão que as
assentou. A vontade do homem dispõe de alguns dos movimentos de seu corpo,
mas ele nada pode sobre as ações primeiras de sua vida animal,
cujas necessidades lhe é impossível sufocar. Se levar mais longe
a ação, atacando a própria base de sua existência
vital, poderá, é verdade, terminarlhe o curso aparente, mas jamais
aniquilar o princípio particular que havia produzido essa existência
nem a lei inata desse princípio, pela qual deveria agir durante algum
tempo fora de sua fonte. Subamos um grau: contemplemos as leis que operam em
grande escala na Natureza universal, onde veremos a mesma marcha. As influências
do sol variam sem cessar em nossa atmosfera. Ora os vapores da região
terrestre o roubam de nós, ora o frescor dos ventos os tempera e detém.
O próprio homem pode aumentar ou diminuir localmente a ação
desse astro, reunindo ou interceptando-lhe os raios. Entretanto, a ação
do sol é sempre a mesma: ele projeta ininterruptamente a mesma luz ao
redor e sua virtude ativa expande-se sempre, com a mesma força e a mesma
abundância, embora em nossa região inferior lhe provemos os efeitos
de modos tão diversos. Tal é o verdadeiro quadro do que se passa
na nossa ordem imaterial. Embora os Seres livres, distintos do grande Princípio,
possam afastar as influências intelectuais que estão sempre descendo
sobre eles; embora tais influências intelectuais talvez recebam em seus
cursos alguma contra-ação que lhe desvie os efeitos, aquele que
lhes envia esses presentes salutares não fecha jamais a mão benfeitora.
Tem sempre a mesma atividade. É sempre tão forte, poderoso, puro
e impassível diante dos desvarios de suas criações livres
que podem mergulhar por si mesmas no pecado, gerando o mal unicamente pelos
direitos da própria vontade. Seria, pois, absurdo admitir qualquer participação
do Ser divino nas desordens dos Seres livres e nas que são o resultado
das desordens no Universo - em suma, Deus e o mal nunca poderão ter a
menor relação. Também teria pouco fundamento atribuir-se
o mal aos seres materiais, que por si mesmos nada podem, provindo suas ações
do princípio individual, sempre dirigido ou posto novamente em ação
por uma força separada dele. Ora, se só existem três classes
de Seres: Deus, os Seres intelectuais e a Natureza física; se a origem
do mal não se encontra na primeira, fonte exclusiva de todo bem, nem
na última, que não é livre nem pensante; e se, apesar disso,
a existência do mal é incontestável, temos necessariamente
de atribuí-lo ao homem, ou a qualquer outro Ser, que tenha como ele uma
posição intermediária. Não se pode negar que a Natureza
física seja cega e ignorante, embora aja regularmente e numa certa ordem:
nova prova de que ela age sob os olhos de uma Inteligência. Se assim não
fosse, teria uma marcha desordenada. Também não se pode negar
que o homem faça ora o bem, ora o mal: isto é, que ora ele siga
as leis fundamentais de seu ser, ora se desvie delas. Quando faz o bem, caminha
na luz e na ajuda de sua Inteligência; e quando faz o mal, só podemos
atribuí-lo a ele mesmo, e não à Inteligência, que
o único caminho, o único guia do bem e o único pelo qual
o homem e os seres podem fazer o bem. Quanto ao mal, tomado em si, em vão
tentaríamos conhecer-lhe a natureza essencial. Para que ele fosse compreendido,
precisaria ser verdadeiro. Mas então deixaria de ser o mal, pois o verdadeiro
e o bem são a mesma coisa. Ora, já o dissemos, compreender é
perceber a relação de um objeto com a ordem e a harmonia cujas
regras temos em nós mesmos. Mas, se o mal não tem relação
alguma com essa ordem, sendo exatamente o oposto dela, como poderíamos
perceber entre eles alguma analogia? Como, por conseqüência, poderíamos
compreendê-lo? Entretanto, assim como o bem, o mal tem seu peso, seu número
e sua medida. E podemos mesmo saber relação que há no mundo
entre o peso, o número e a medida do bem, e o peso, o número e
a medida do mal, e isso em quantidade, intensidade e duração.
Pois a relação entre o mal e o bem é de nove para um em
quantidade, de zero para um em intensidade e de sete para um em duração.
Se essas expressões parecerem embaraçosas ao leitor e ele desejar
conhecer-lhes a explicação, eu lhe rogaria que não pedisse
isso aos calculadores da matéria, os quais não conhecem as relações
positivas das coisas. Também indicamos suficientemente como o homem poderia
convencer-se da existência imaterial de seu Ser e da existência
imaterial do Princípio supremo; e o que ele deveria observar para não
confundir esse Princípio com a matéria e a corrupção
nem atribuir às coisas visíveis esta Vida imperecível,
o mais belo privilégio do Ser que jamais teve começo e do qual
somente as criações imediatas participam por seu direito de origem.
Pela simples marcha dessas observações, desenvolveremos logo idéias
satisfatórias sobre o destino do homem e o dos outros Seres. Quando o
homem produz uma obra qualquer, representa e torna visível o plano, o
pensamento ou o desígnio que formou. Para que seu pensamento seja mais
bem entendido, dedica-se a conformar a cópia tanto quanto possível
ao original. Se os homens pelos quais o homem quer ser ouvido pudessem ler-lhe
o pensamento, ele não teria necessidade alguma de sinais sensíveis
para ser por eles compreendido: tudo o que concebesse seria tão pronta
e extensamente captado como por ele mesmo. Mas, estando eles, como ele mesmo,
presos por amarras físicas, que limitam os olhos da inteligência,
ele é forçado a transmitir-lhes fisicamente seu pensamento que,
sem isso, seria para ele nulo, no sentido de não poder atingi-los. Portanto,
ele emprega meios físicos e produz as obras materiais para manifestar
seu pensamento aos semelhantes, ao Seres distintos dele, separados dele; para
tentar aproximálos, assimilá-los a uma imagem de si mesmo, esforçando-se
com isso em envolvê-los em sua unidade, da qual estão separados.
É assim que um Escritor, ou um Orador, manifesta seu pensamento de maneira
sensível para convencer os que o lêem ou o escutam a formarem um
só com ele, rendendo-se à sua opinião. É assim que
um Soberano reúne exércitos, ergue muralhas e fortalezas para
a persuadir solidamente os povos de seu poder e ao mesmo tempo inspirar-lhes
terror. Convencidos como ele desse poder, terão dele exatamente a mesma
idéia; permanecendo ligados ao seu partido, seja por admiração
ou por temor, formarão com ele um todo. À falta desses sinais
visíveis, a opinião do Orador e o poder do Soberano permaneceriam
concentrados neles mesmos, sem que ninguém disso tomasse conhecimento.
Assim acontece com os feitos dos outros homens, que sempre têm e sempre
terão a finalidade de fazer seu pensamento conquistar o privilégio
de dominação, universalidade e unidade. É essa mesma lei
universal de reunião que produz a atividade geral e a voracidade que
observamos anteriormente na Natureza física: vê-se que há
entre todos os corpos uma atração recíproca pela qual,
aproximando-se, eles se substanciam e se nutrem mutuamente. É pela necessidade
dessa comunicação que todos os indivíduos se esforçam
para ligarem a si os Seres que os rodeiam, para os confundirem consigo e absorvê-los
em sua própria unidade. Vindo a desaparecer as subdivisões, aquilo
que estiver separado será reunido, o que estiver na periferia virá
para a luz e com isso, a harmonia e a ordem superarão a confusão
que mantém todos os seres penando. Já que as Leis são uniformes,
por que não aplicaríamos à criação do Universo
o mesmo julgamento que temos aplicado às nossas obras? Se o pensamento
do homem se exprime em obras materiais e grosseiras, por que não as olharíamos
como expressão do pensamento de Deus? Por que não creríamos
que a obra universal de Deus tenha por objeto a extensão e o domínio
dessa unidade, que nós mesmos nos propomos em nossas ações?
Nada se opõe a que nos dediquemos a essa analogia entre Deus e o homem,
uma vez que a temos reconhecido nas obras de ambos. Se todas as obras, sejam
de Deus ou do homem, são necessariamente precedidas de atos interiores
e faculdades invisíveis cuja existência não podemos contestar,
temos fundamento para crer, segundo a mesma lei em suas criações,
que elas buscam também o mesmo alvo e o mesmo objetivo. Sem nos determos
em novas buscas, admitiremos que os Seres visíveis do Universo são
a expressão e o sinal das faculdades e dos desígnios de Deus,
da mesma forma que temos considerado nossas criações como a expressão
sensível de nosso pensamento e faculdades interiores. Quando Deus recorreu
a sinais visíveis, como o Universo, para comunicar seu pensamento, empregou-os
em favor dos Seres separados dele. Se os Seres houvessem permanecido na unidade,
não teriam tido necessidade desses meios para ler nessa unidade. A partir
daí, reconheceremos que os Seres corrompidos, separados voluntariamente
da causa primeira e submetidos às leis de sua justiça no recinto
visível do Universo, são sempre objeto de seu amor, pois ele está
sempre agindo para que desapareça essa separação tão
contrária à felicidade deles. Foi, pois, por amor aos Seres separados
que Deus manifestara as suas faculdades e Virtudes em suas obras visíveis
a fim de restabelecer entre eles e si mesmo uma correspondência salutar
que os ajudasse, curasse e regenerasse através de uma nova criação.
Foi para derramar sobre eles essa efusão de vida, a única que
podia retirá-los do estado de morte em que enlanguesciam desde que se
tinham isolado dele. Foi para estabelecer sua reunião à fonte
divina e para imprimir-lhes o caráter de unidade, ao qual nos apegamos
com tanta atividade em nossas obras. Se o Universo demonstra a existência
da corrupção, que encerra e envolve, devemos compreender qual
seria o destino da Natureza física, com relação aos Seres
separados da unidade: "e não é sem finalidade e sem motivo
que a massa terrestre e todos os corpos sejam como esponjas embebidas de água,
que a devolvem com violência pela pressão dos Agentes superiores".
Aplicando-se a todas as classes e Seres a lei da tendência à unidade,
resulta que o menor dos indivíduos tem o mesmo alvo em sua espécie,
ou seja: que os princípios universais, gerais e particulares se manifestam
cada um nas criações que lhes são próprias, para
com isso tornarem suas virtudes visíveis aos Seres distintos deles. Estando
esse Seres destinados a receber a comunicação e os socorros dessas
virtudes, não poderiam fazê-lo sem esse meio. Assim, todas as criações
e indivíduos da Criação geral e particular, são,
cada um em sua espécie, a expressão visível e o quadro
representativo das propriedades do princípio, geral ou particular, que
neles age. Todos devem trazer em si as marcas evidentes do princípio
que os constitui. Através das ações e dos fatos que operam,
devem manifestar claramente o gênero e as virtudes desse Princípio.
Em suma: devem ser seu sinal característico e sua imagem sensível
e viva. Todos os Agentes e fatos da Natureza trazem em si a demonstração
dessa verdade. O sol é o caráter construtor do princípio
fogo; a lua, do princípio água; e nosso planeta, o do princípio
terra: tudo o que a terra produz e encerra em seu seio manifesta igualmente
essa Lei geral. A uva indica a vinha; a tâmara, uma palmeira; a seda,
um verme; o mel, uma abelha. Cada mineral mostra a espécie de terra e
de sal que lhe serve de base e elo; cada vegetal, o germe que o gerou, sem falarmos
aqui de uma multidão de outros sinais e caracteres naturais, fundamentais,
relativos, fixos, progressivos, simples, mistos, ativos e passivos que compõem
o conjunto do Universo, oferecendo assim o meio para que suas partes se expliquem
umas pelas outras. O mesmo podemos dizer das criações das Artes
e invenções do homem. Suas obras revelam as idéias, o gosto,
a inteligência e a profissão particular de seu agente ou produtor.
Uma estátua fornece a idéia de um Escultor; um quadro, a de um
Pintor; um palácio, a de um Arquiteto, porque todas as criações
são a execução sensível das faculdades próprias
do gênio ou do Artista que as executou, assim como as criações
da Natureza são a expressão do princípio delas e existem
para serem o seu verdadeiro caráter. Devemos combater aqui um sistema
falso, retomado nestes últimos tempos, sobre a natureza das coisas, no
qual se supõe para elas uma perfectibilidade progressiva que pode ir
levando as classes e as espécies mais inferiores aos primeiros lugares
de elevação na cadeia dos Seres. Segundo essa doutrina, não
sabemos mais se uma pedra poderia tornar-se uma árvore; se a árvore
poderia tornar-se um cavalo; o cavalo, homem e, pouco a pouco, um Ser de natureza
ainda mais perfeita. Desde que a consideremos com atenção, não
subsiste essa conjuntura ditada pelo erro e pela ignorância dos verdadeiros
princípios. Tudo é regulado, tudo está determinado nas
espécies, e até mesmo nos indivíduos. Para tudo o que existe
há uma lei fixa, um número imutável, um caráter,
indelével como o do Ser princípio, no qual residem todas as leis,
números e caracteres. Cada classe e cada família tem sua barreira,
que força alguma jamais transporá. As várias mutações
sofridas pelos insetos em suas formas não destroem esta verdade. Observase,
aliás, nas diversas espécies de animais perfeitos, uma lei constante:
cada um em sua classe, eles nascem, vivem e perecem sob a mesma forma. Os próprios
insetos, apesar das mutações, jamais mudam de reino: na verdade,
mesmo no grau mais ínfimo, estão sempre acima das plantas e dos
minerais e, na sua mais individualizada maneira de ser, jamais revelam o caráter
ou as leis que regem os animais mais perfeitos. A seu respeito, tudo o que podemos
permitir-nos é formar com eles um tipo, um reino, um círculo à
parte e mais significativo, mas do qual jamais sairão, e cujas leis necessariamente
eles seguirão, como todos os outros Seres, cada um em sua classe. Se
a existência das criações da Natureza não tivesse
um caráter fixo, como poderíamos reconhecer-lhes o objeto e as
propriedades? Como se cumpririam os desígnios do grande Princípio
que, ao desdobrar essa Natureza aos olhos dos seres dele separados, quis apresentarlhes
indícios estáveis e regulares, através dos quais pudesse
restabelecer com ele a correspondência e as relações? Se
esses indícios materiais fossem variáveis e se sua lei, marcha
e forma não fossem determinadas, a obra desse Pintor seria apenas um
quadro sucessivo de objetos confusos, nos quais a inteligência não
encontraria lugar de repouso, jamais podendo mostrar o alvo do grande Ser. Por
fim, esse mesmo grande Ser apenas anunciaria impotência e fraqueza na
medida em se tivesse proposto um plano que não pudesse cumprir. Se é
verdade que cada criação da Natureza e da Arte tem seu caráter
determinado; se é somente por isso que ela pode ser a expressão
evidente de seu princípio e que logo à primeira vista um olhar
experimentado deve ser capaz de discernir qual é o agente cujas faculdades
são manifestadas por tal produção, o homem só pode,
pois, existir por essa lei geral. Provindo o homem, como todos os Seres, de
um princípio que lhe é próprio, ele deve ser, tal como
eles, a representação visível desse princípio. Deve,
como eles, manifestá-la de maneira visível, de modo a não
nos enganarmos quanto a ela e, em presença da imagem, reconhecermos qual
é o modelo. Busquemos, pois, observando sua natureza, saber de qual princípio
deve ele ser o sinal e a expressão visível. Entretanto, falo aqui
apenas de seu Ser intelectual, visto que o Ser corporal, como todos os outros
corpos, é a expressão de um princípio imaterial não
pensante, compondo-se das mesmas essências desses corpos e sujeito à
fragilidade dos agrupamentos. Para conhecer o homem, é necessário,
pois, buscar nele os sinais de um Princípio de uma outra ordem. Além
do pensamento e das outras faculdades intelectuais que lhe temos reconhecido,
ele oferece fatos tão estranhos à matéria que nos sentimos
forçados a atribuí-los a um princípio diferente do princípio
da matéria. Previsões, combinações de todo tipo,
Ciências ousadas, pelas quais de algum modo ele nomeia, mede e pesa o
Universo; sublimes observações astronômicas pelas quais,
situado entre os tempos que ainda não existem, ele pode aproximar de
si os limites mais distantes desses tempos, verificar os fenômenos das
primeiras idades vindouras; privilégio que só ele tem na Natureza
de domesticar e subjugar os animais, semear e colher, extrair o fogo dos corpos,
submeter as substâncias elementares às suas manipulações
e uso - a atividade com que procura sempre inventar e produzir novos Seres,
sendo sua ação por isso uma espécie de criação
contínua - eis os fatos que nele anunciam um Princípio ativo bem
diferente do princípio passivo da matéria. Se examinarmos com
atenção as obras do homem, perceberemos que não somente
elas são a expressão de seus pensamentos, mas ainda que, tanto
quanto pode ele busca, retratar-se nelas. Está sempre multiplicando a
própria imagem através da Pintura e da Escultura e em mil outras
criações das Artes mais frívolas. Aos edifícios
que ergue, dá proporções relativas às de seu corpo.
Verdade profunda, que poderá descobrir um espaço imenso aos olhares
inteligentes, pois esse pendor tão ativo em multiplicar assim a própria
imagem, e encontrar o belo somente naquilo que com ele se relaciona, deve distinguir
o homem para sempre dos Seres particulares do Universo. Quando nos iludimos
a ponto de atribuirmos esses feitos à ação conjunta de
nossos órgãos materiais, não prestamos atenção
ao fato de que seria necessário supormos que a espécie humana
é invariável em suas leis e ações como os animais,
cada um segundo a sua classe. As diferenças individuais encontradas entre
os animais da mesma espécie não impedem que haja para cada uma
delas um caráter próprio e uma maneira de viver e de agir uniforme
e comum a todos os indivíduos que a compõem, em que pese a distância
dos lugares e as variedades causadas pela diferença de clima em todos
os Seres sensíveis e materiais. Em vez de uniformidade, o homem apresenta
quase que só diferenças e oposições. Não
tem relações com quaisquer dos seus semelhantes. Difere deles
pelos conhecimentos. Abandonado a si mesmo, combate a todos com ambição,
cupidez, posses, talentos e dogmas. Cada homem é semelhante a um Soberano
em seu Império. Cada homem tende até a uma dominação
universal. Mas, que estou dizendo? Não apenas o homem difere de seus
semelhantes, mas a todo instante ainda difere de si mesmo. Ele quer e não
quer; odeia e ama; toma e rejeita simultaneamente o mesmo objeto; simultaneamente
é por ele seduzido e dele se enfada. Ainda mais: às vezes foge
daquilo que lhe agrada, aproxima-se daquilo que lhe repugna, adianta-se aos
males, às dores, e até mesmo à morte. Se isso fosse a ação
conjunta de seus órgãos, se fosse sempre o mesmo móvel
que dirigisse seus atos, o homem mostraria mais uniformidade em si próprio
e para com os outros; caminharia de acordo com uma lei constante e pacífica
e, ainda que não fizesse coisas iguais, faria ao menos coisas semelhantes,
nas quais reencontraria sempre um princípio único. Então,
como foi que ele veio a ensinar que os sentidos tudo regem e tudo ensinam, se
entre as próprias coisas corporais é evidente que os sentidos
nada podem medir com exatidão? Assim, podemos dizer que, tanto em suas
trevas como em sua luz, o homem manifesta um princípio inteiramente diferente
daquele que opera e mantém a ação conjunta de seus órgãos,
pois, conforme vimos, um pode agir com deliberação e o outro,
somente pelo impulso. As proporções do corpo do homem demonstram
a relação do Ser intelectual com um Princípio superior
à natureza corporal. Se traçarmos um círculo com o diâmetro
igual à altura do homem, sendo a linha dos braços estendidos igual
à sua altura, ela também pode ser considerada como um diâmetro
do mesmo círculo. Ora, perguntemos: é possível traçar
dois diâmetros num mesmo círculo sem fazê-los passar pelo
centro? É verdade que nosso corpo não oferece esses dois diâmetros
passando pelo centro de um mesmo círculo, pois o diâmetro horizontal
formado pelos braços estendidos não corta o diâmetro da
altura do corpo em partes iguais. Com isso, o homem está ligado a dois
centros, mas essa verdade prova apenas uma transposição nas virtudes
constitutivas do homem, e não uma alteração na essência
mesma de tais virtudes. Assim, não destrói a relação
que estabelecemos. E embora as dimensões fundamentais não mais
estejam em seu lugar natural, o homem pode sempre encontrar nas proporções
da própria forma corporal os traços de sua grandeza e de sua nobreza.
Os animais que mais se assemelham ao homem pela conformação diferem
dele completamente neste ponto, pois seus braços estendidos formam uma
linha bem maior do que a da altura do corpo. Tais proporções,
atribuídas exclusivamente ao corpo do homem, fazem dele como que a base
comum e fundamental das proporções e virtudes dos outros Seres
corporais, que deveriam ser julgados sempre com relação à
forma humana. Mas as maravilhas da inteligência e as relações
corporais, cujo quadro acabamos de apresentar, não são as mais
essenciais dentre as que podemos perceber no homem. Existem ainda outras faculdades
e direitos para serem colocados acima dos Seres da Natureza. Assim como não
há substância elementar que não encerre em si propriedades
úteis segundo a sua espécie, também não há
homem algum em quem não se possam desenvolver os germes da justiça
e até da benignidade que constitui o caráter primitivo do Ser
necessário, soberano Pai e Conservador de toda legítima existência.
Nulas e enganosas são as conseqüências contrárias que
quiseram tirar das educações infrutíferas. Para que tivessem
qualquer valor, necessário seria que quem as professou fosse perfeito,
ou pelo menos tivesse as qualidades análogas às necessidades de
seus Alunos. Necessário seria que fosse exercitado na arte de captar-lhes
os caracteres e necessidades para apresentar-lhes de maneira atraente o tipo
de apoio ou de virtude que lhes falta, sem o quê sua insensibilidade moral
apenas aumentaria: eles se afundariam cada vez mais nos vícios e na corrupção,
e aquilo que não passa de uma conseqüência da inabilidade
e da insuficiência do Mestre seria lançado novamente sobre a imperfeição
de sua natureza. Se excetuarmos alguns monstros, que chegaram a tornar-se inexplicáveis
porque no princípio procuramos mal o núcleo de seus corações,
não existirá um Povo ou um homem em quem não se possam
encontrar alguns vestígios de virtude. As associações mais
corrompidas têm por base a justiça, cobrindo-se pelo menos com
suas aparências. Para obterem o sucesso de seus projetos desordenados,
os homens mais severos tomam emprestado o nome e as exterioridades da sabedoria.
A benignidade natural ao homem manifestar-seia também de maneira universal
se lhe buscassem os signos fora das necessidades que nos são estranhas,
porque é necessário que ela seja exercida sobre objetos reais
para determinar e desenvolver as verdadeiras virtudes que pertencem à
nossa essência. Mas, além do fato de que os Observadores sempre
deixaram de estabelecer suas experiências sobre necessidades falsas e
benefícios igualmente imaginários, eles esquecem que o homem,
entregue a si próprio, limita-se ordinariamente a alguma virtude, pela
qual negligencia e perde de vista as outras. É apreciado então
por causa daquela que adotou. Assim, não encontrando as mesmas virtudes
em todos os indivíduos e Povos, apressamo-nos a afirmar que elas não
podem ser a essência do homem por não serem gerais. É um
engano imperdoável concluir uma lei geral para a espécie humana
a partir de diferentes exemplos particulares. Repetimos: o homem traz em si
os germes de todas as virtudes. Elas estão todas em sua natureza. Embora
as manifeste de maneira parcial, daí decorre que, muitas vezes, quando
parece não reconhecer as virtudes naturais, ele apenas substitui umas
pelas outras. O selvagem que viola a fidelidade do casamento cedendo sua mulher
aos hóspedes vê o benefício e o prazer de exercer a hospitalidade.
As viúvas indianas que se atiram na fogueira sacrificam a voz da Natureza
ao desejo de parecerem ternas e sensíveis, ou ao desejo de entrar na
posse de bens que seus dogmas religiosos as fazem esperar no outro mundo. Os
próprios sacerdotes que profanaram suas religiões com sacrifícios
humanos entregaram-se a esses crimes absurdos para tornar manifesta a sua piedade
pela nobreza da vítima, persuadindo-se de que, com esse culto terrível,
ampliavam a idéia da grandeza e do poder do Agente supremo, ou que o
tornavam propício à Terra quando o criam irritado contra ela.
É bem certo, pois, apesar dos erros dos homens, que todas as suas seitas,
instituições e usos se apóiam numa verdade e numa virtude.
Tomemos, por exemplo, as convenções sociais do homem e seus estabelecimentos
políticos. Todos tendem a reparar alguma desordem moral ou física,
real ou convencional. O homem tem - ou pelo menos finge ter - como objeto em
todas as leis, remediar alguns abusos, evitá-los, conseguir para seus
concidadãos e para si mesmo alguma vantagem que possa contribuir para
torná-los felizes. Não seria isso uma confissão de que,
superior aos seres físicos concentrados em si mesmos, ele tem de cumprir
no mundo funções diferentes das deles? Não seria conhecer,
pelas próprias ações que está encarregado de uma
função divina, pois sendo Deus o Bem por essência, a reparação
contínua da desordem e a conservação de suas obras devem
ser realmente obra da Divindade? Por fim, estabelecidas de um modo geral pela
Terra, vemos instituições sagradas, das quais, dentre todos os
Seres sensíveis, somente o homem participa. Em todos os tempos e regiões
do Universo encontramos dogmas religiosos que ensinam ao homem que ele pode
dirigir suas preces e suas homenagens ao Santuário de uma Divindade que
não conhece, mas que o conhece perfeitamente, e da qual pode esperar
fazer-se ouvido. Por toda parte ensinam os dogmas que os decretos divinos nem
sempre são impenetráveis ao homem; que ele pode, no que lhe concerne,
participar de algum modo na força e nas virtudes supremas; e por toda
parte já vimos homens verídicos, ou impostores, anunciando-se
como Ministros e órgãos delas. Os próprios traços
desses direitos sublimes são percebidos não apenas nos cultos
públicos das diversas Nações; não apenas no que
elas chamaram de Ciências ocultas - nas quais se encontram cerimônias
misteriosas, certas fórmulas com supostos poderes secretos sobre a natureza,
as enfermidades, os gênios bons e os maus e o pensamento dos homens -
mas também nos simples atos civis e jurídicos das potências
humanas que, tomando como árbitros as leis convencionais, consideram-nas
e consultam-nas como decretos da própria verdade. E não temem,
agindo segundo essas leis, dizer-se de posse de uma ciência certa e ao
abrigo de qualquer erro. Se é verdade que o homem não tem uma
única idéia própria, mas que a idéia de um tal poder
e de uma tal luz seja universal, tudo pode ser degradado pela ciência
e pela marcha tenebrosa dos homens, mas nem tudo é falso. Tal idéia
demonstra que há neles alguma analogia, algumas relações
com a ação suprema e alguns vestígios de seus próprios
direitos, assim como na inteligência humana já encontramos relações
evidentes com a Inteligência infinita e suas virtudes. Com todos esses
indícios, seria ainda possível ignorar o Princípio do homem?
Se os Seres que receberam a vida existem para manifestar as propriedades do
agente que a doou, podemos duvidar de que o Agente de quem o homem recebeu a
sua seja a própria Divindade, já que descobrimos nele tantas marcas
de origem bem superior de uma Ação divina? Reunamos, pois, aqui,
as conseqüências das provas que acabamos de estabelecer e reconheçamos
no Ser que produziu o homem uma fonte inesgotável de pensamentos, ciência,
virtudes, luz, força e poderes; um número infinito de faculdades,
cuja imagem não pode ser oferecida por qualquer Princípio da natureza,
faculdades que faremos entrar na essência do Ser necessário quando
lhe quisermos contemplar a idéia. Já que nenhum desses direitos
nos pareceria estranho, já que, ao contrário, encontramos traços
dele multiplicados nas faculdades do homem, é evidente que estamos destinados
a possuir a todos e a manifestá-los aos olhos daqueles que os desconhecem
ou que deles não querem tomar conhecimento. Confessemo-lo abertamente:
se cada um dos Seres da Natureza é a expressão de uma das virtudes
temporais da sabedoria, o homem é o signo ou a expressão visível
da própria Divindade. É por isso que ele deve ter em si todos
os traços que a caracterizam. E se não fosse perfeita a semelhança,
o modelo poderia ser ignorado. E aqui podemos já formar uma idéia
das relações naturais existentes entre Deus, o homem e o Universo.
Os princípios que expus sobre o destino sublime do homem devem merecer
ainda mais a nossa confiança, cuja verdade ele mesmo manifesta em quase
todos os atos. Levado por um instinto secreto a dominar, pela força ou
pela exatidão aparente de sua doutrina, parece ocupado apenas em provar
a existência de um Deus e mostrá-la aos seus semelhantes. Os mesmos
que se declaram contra um Ser eterno, infinitamente justo, fonte de toda felicidade
e de todas as luzes, nada mais fazem do que mudar o nome desse Ser e colocar
outro em seu lugar. Ao invés de destruir sua indestrutível existência,
demonstram-lhe a realidade e as faculdades que lhe pertencem. Ao Ateu e ao Materialista
desagrada crer no Deus impresso em suas almas. Ao substituí-lo pela matéria,
não estarão apenas transportando para ela os atributos do Princípio
verdadeiro, cuja essência os torna para sempre inseparáveis? Assim
esse ídolo é sempre um Deus, pregado por eles. Além disso,
ao elevar desse modo a matéria, na verdade o reino que eles pretendem
estabelecer é menos o dela do que o próprio. Os raciocínios
em que tentam apoiar seus sistemas, o entusiasmo que os anima e seus discursos
inflamados não têm por alvo persuadirnos de que são os donos
da verdade? Ora, segundo as relações íntimas que sentimos
existir entre Deus e a verdade, isso não seria ser Deus? Desse modo,
embora contra a vontade, o Ateu confessa a existência do Ser supremo,
pois empenha-se em provar que não há Deus algum apresentando-se
ele próprio como um Deus. E como poderia não revelar a existência
do Princípio supremo? Assim como os Seres da Natureza são a expressão
visível das faculdades criadoras desse Princípio, o homem deve,
ao mesmo tempo, ser a expressão das suas faculdades criadoras e das pensantes.
Assim, o Ímpio não pode subtrairse a uma lei que tem em comum
com tudo o que está contido na região temporal. Entraremos em
alguns detalhes sobre esse assunto. Que sua profundidade não assuste:
é importante penetrar nela e a saída será venturosa. Antes
que as coisas temporais possam ter tido a existência pelas quais se tornam
sensíveis a nós, foi necessário haver elementos primitivos
e intermediários entre elas e as faculdades criadoras das quais descendem,
porque as coisas temporais e essas faculdades são de natureza por demais
diferente para poderem existir juntas sem intermediários. Isso nos é
demonstrado fisicamente pelo enxofre e pelo ouro, pelo mercúrio e pela
terra, que se unem pela mesma lei de uma substância intermediária.
Tais elementos desconhecidos dos sentidos, mas cuja necessidade e existência
são atestadas pela inteligência, estão determinados e fixados
em essência e em número, assim como as leis e meios que a sabedoria
coloca em uso para cumprir seus desígnios. Podem ser considerados como
os primeiro sinais das faculdades superiores às quais estão imediatamente
ligados. A partir daí, tudo o que existe na natureza corporal, todas
as formas, os mínimos traços, são e só podem ser
reuniões, combinações ou divisões de sinais primitivos.
E entre as coisas sensíveis nada pode aparecer sem estar escrita neles,
sem deles descender, assim como todas as figuras possíveis da Geometria
hão de ser sempre compostas de pontos, linhas, círculos ou triângulos.
Em suas obras materiais - secundárias em relação às
da Natureza - o próprio homem, está ligado, como todos os Seres,
a esses sinais primitivos. Nada pode criar, nada traçar, nada construir;
não pode, afirmo, imaginar forma alguma, até mesmo executar um
só movimento, voluntário ou involuntário, que não
esteja preso a esses modelos exclusivos, dos quais tudo o que se move e vive
na Natureza é o fruto e a representação. Se pudesse ser
de outra maneira, o homem seria criador de outra Natureza e de outra ordem de
coisas que não pertenceriam ao Princípio produtor e modelo de
tudo o que existe para nós de maneira sensível. Assim, as criações
admiráveis das Artes, monumentos maravilhosos da indústria humana,
revelam a cada passo a dependência do homem e o seu destino. Não
oferecem compilações, ou partes reunidas de outros monumentos,
que não sejam combinações variadas dos elementos fundamentais,
os quais dissemos serem os indícios primitivos das faculdades criadoras
da Divindade. Nada há no homem corporal, nem nas suas criações,
que não seja, embora de maneira muito secundária, a expressão
da ação criadora universal, representada por todo ser corporal
desde que ele existe e age. Elevemo-nos acima das forma materiais e apliquemos
esses princípios à palavra e à escrita. Ambas revelam faculdades
pensantes, já que são para nós sua primeira expressão
sensível. "É certo que os sons e os caracteres alfabéticos
que servem de instrumentos fundamentais a todas as palavras que empregamos para
manifestar nossas idéias devem ligar-se a símbolos e sons primitivos
que lhes sirvam de base. Esta verdade profunda nos é traçada desde
a mais remota antigüidade no fragmento de Sanchoniathon, em que ele representa
Thot fazendo o retrato dos Deuses para com ele compor os caracteres sagrados
das letras - emblema sublime e de imensa fecundidade, porque tirado da própria
fonte na qual o homem deveria sempre beber." Ao admitir os símbolos
primitivos para expressar de nossas idéias modo sensível, não
devemos ser detidos pela variedade infinita usada nas diversas Nações
da Terra: tal variedade apenas prova a nossa ignorância. Se a lei que
serve de órgão à suprema Sabedoria em tudo estabeleceu
uma ordem e uma regularidade, deve ter determinado símbolos invariáveis
para exprimirmos os pensamentos que nos envia, assim como estabeleceu símbolos
para a produção de seus feitos materiais. Se não estivéssemos
mergulhados em trevas profundas, ou se nos empenhássemos mais em seguir
a estrada instrutiva e luminosa da simplicidade dos Seres, quem sabe chegaríamos
a conhecer tanto a forma quanto o número dos símbolos primitivos,
ou seja, a fixar o nosso alfabeto? Mas, seja qual for a nossa privação
quanto a esse assunto, como os símbolos primitivos existem, todos aqueles
que empregamos, embora de maneira convencional, derivam necessariamente deles.
Assim, as palavras que quisermos compor, imaginar e fabricar serão sempre
composições tiradas dos caracteres primitivos, pois eles não
podem sair da lei que os produziu e jamais encontraríamos fora deles
alguma coisa além deles mesmos. Tais sons e caracteres primitivos são
os verdadeiros símbolos sensíveis da unidade pensante: existe
uma só idéia, como um só princípio de todas as coisas.
Assim como as criações mais desfiguradas que possamos manifestar
pela palavra e a escrita trazem sempre, de maneira secundária, a marca
dos símbolos primitivos - e, por conseqüência, a da idéia
única ou da unidade pensante - assim também o homem não
pode proferir uma só palavra ou traçar um só caráter
sem manifestar a faculdade pensante do Agente supremo, como também não
pode produzir um só ato corporal ou um só movimento sem manifestar-lhe
as faculdades criadoras. O uso, mesmo o mais insensato, orgulhoso e corrompido
que em sua linguagem ou escritos ele fizer dos instrumentos primitivos do pensamento,
não destrói aquilo que enunciamos. Como não existem outros
materiais além dos caracteres primitivos, o homem vê-se forçado
a servir-se deles, ainda que não queira erguer muralhas contra a unidade
por eles representada e declarar-se inimigo dela. É com as armas dessa
unidade que ele a quer combater; é com as forças dessa unidade
que ele quer provar-lhe a fraqueza; é com os próprios sinais de
sua existência que ele quer determinar que ela não passa de um
nada e de um fantasma. Se o Ateu quiser atacar, da maneira que for, o primeiro
Princípio de tudo o que existe, que ele então interdite a si mesmo
todo ato, toda palavra, e que até mesmo todo seu Ser desça para
o nada, pois escrevendo, mostrando-se, falando e se movimentando, ele mesmo
prova aquilo que quisera aniquilar. Podemos, pois, dizer que o homem está
destinado a ser o símbolo e a expressão falante das faculdades
universais do Princípio supremo, do qual emanou, assim como os Seres
particulares são, cada um em sua classe, o símbolo visível
do princípio particular que lhes transmitiu a vida. O vocábulo
emanou pode contribuir para lançar nova luz sobre nossa natureza e nossa
origem, pois, se a idéia de emanação tem tanta dificuldade
em penetrar na inteligência dos homens, é somente porque deixaram
que todo o seu Ser se materializasse. Vêm na emanação uma
separação de substância, tal como nas evaporações
dos corpos odoríferos e na fonte que se divide em diversos riachos: exemplos
tomados à matéria nos quais a massa total fica realmente diminuída
quando algumas partes que a constituem lhe são suprimidas. Ao quererem
fazer uma idéia da emanação nos objetos mais vivos e mais
ativos, como o fogo - que parece produzir uma multidão de fogos semelhantes
a si mesmo, sem deixar de ser igual a si - acreditaram ter atingido o alvo.
Mas este exemplo não deixa de ser estranho às verdadeiras idéias
que devemos formar da emanação material: serve apenas para induzir
em erro aqueles que descuram de aprofundá-lo. O fogo material só
nos é visível na consumação dos corpos, só
é conhecido à medida que repousa numa base que ele mesmo devora,
ao passo que o fogo divino tudo vivifica. Em segundo lugar, quando o fogo material
produz, aparentemente, outros fogos, não é de si que os tira,
como o fogo divino: apenas causa uma reação sobre os germes do
fogo, inatos nos corpos de que se aproxima, favorecendo-lhes a explosão.
Temos a prova disso no fato de que lhe é impossível inflamar as
cinzas, porque nelas o fogo princípio já desapareceu. Essas diferenças
são por demais evidentes para que o homem sábio se detenha em
comparações tão ilusórias. Mostrando fatos físicos
e agindo pelas leis corporais, os Seres da Natureza material anunciam o princípio
físico que neles vive e os faz mover. Não indicam com clareza
suficiente um princípio santo e divino para provar-lhe imediatamente
a existência. E também, as provas tomadas à matéria
são muito insuficientes para demonstrar Deus e, como conseqüência,
demonstrar-nos a emanação do homem exteriormente ao seio da Divindade.
Mas, como já descobrimos no homem as provas do Princípio que o
constituiu tal como ele é, será no próprio homem, no espírito
do homem, que devemos encontrar as leis que orientaram sua origem. E, sendo
ele um Ser real, não deveria jamais ser julgado por comparação,
como podemos fazer com os Seres corporais cujas qualidades são relativas.
Que nos declarará ele, se o considerarmos sob esse ponto de vista? Declarará,
por seus próprios feitos, que pode emanar das faculdades divinas sem
que elas hajam sofrido separação, nem divisão, nem qualquer
alteração em sua essência. Quando produzo exteriormente
alguma ação intelectual, quando transmito a um de meus semelhantes
o mais profundo de meus pensamentos, esse móvel que trago em meu Ser,
e que vai fazê-lo agir, talvez lhe dê uma virtude. Esse móvel,
embora saído de mim, embora sendo um extrato de mim mesmo e minha própria
imagem, não me priva da faculdade de produzir outros semelhantes a ele.
Tenho sempre em mim o mesmo germe de pensamentos, a mesma vontade, a mesma ação.
No entanto, de certo modo dei uma nova vida a esse homem ao transmitirlhe uma
idéia e um poder que nada eram para ele antes que eu fizesse em seu favor
a espécie de emanação à qual sou susceptível.
Lembrando-nos, no entanto, de que existe um Autor e Criador de todas as coisas,
veremos por que é que só transmito luzes passageiras, enquanto
o Autor universal transmite a própria existência e a vida imperecível.
Mas, se na operação que tenho em comum com todos os homens, é
sabido, evidentemente, que as emanações de meus pensamentos, vontades
e ações em nada alteram minha essência, com mais razão
ainda pode a vida divina transmitir-se por emanações: pode produzir
sinais e expressões sem fim de si mesma, sem jamais deixar de ser o núcleo
de sua vida. Se o homem emanou da Divindade, é uma doutrina absurda e
ímpia dizer que ele foi tirado do nada e criado como a matéria.
Ou então seria necessário considerar-se como um nada a própria
Divindade, fonte viva e incriada de todas as realidades e existências.
Como conseqüência também natura l, se o homem foi tirado do
nada, deveria necessariamente tornar a entrar no nada. Mas o nada é uma
palavra vazia e nula, da qual ninguém tem idéia. E não
há quem possa aplicar-se a concebê-la sem experimentar aversão.
Afastemos, pois, de nós as idéias criminosas e insensatas desse
nada, por que homens cegos ensinaram ser a nossa origem. Não aviltemos
nosso Ser: ele foi feito para um destino sublime, mas não pode ser mais
sublime que o seu Princípio, pois segundo as leis físicas simples,
os Seres só podem elevar-se até o grau do qual desceram. E, no
entanto, tais leis deixariam de ser verdadeiras e universais se o Princípio
do homem fosse o nada. Mas tudo nos demonstra suficientemente as nossas relações
com o próprio centro, produtor da universalidade imaterial e da universalidade
corporal, uma vez que os nossos esforços sempre tendem apoderar-se de
ambas, reunindo todas as virtudes ao nosso redor. Observemos ainda que essa
doutrina sobre a emanação do Ser intelectual do homem se harmoniza
com a outra que nos ensina que todas as nossas descobertas são, de certo
modo, reminiscências. Pode-se mesmo dizer que ambas se apóiam mutuamente:
se somos emanados de uma fonte universal de verdade, verdade alguma deveria
parecer-nos nova; e, reciprocamente, se nenhuma verdade nos parece nova, mas
nela percebemos a lembrança ou a representação do que estava
escondida em nós, então devemos ter tido nascimento na fonte universal
da verdade. Nas leis simples e físicas dos corpos vemos uma imagem sensível
do princípio de que o homem é um Ser de reminiscências.
Quando os germes materiais produzem fruto, não fazem mais do que manifestar
de maneira visível as faculdades ou propriedades recebidas pelas leis
constitutivas de sua essência. Quando esses germes uma bolota, por exemplo,
já havendo atingido a existência individual, pende do ramo do carvalho
que a produziu, está participando de tudo o que se opera na atmosfera:
recebe as influências do ar, existe no meio dos Seres que têm vida
corporal e está em presença do sol, dos astros, dos animais, das
plantas e dos homens, e de tudo o que age em sua esfera temporal. É verdade
que em todas essas coisas ela está presente de maneira passiva porque
tem uma existência inativa, unida à do carvalho. Não tendo
ainda uma vida distinta da vida de seu princípio, vive da vida desse
princípio, mas sem nada poder realizar. Quando essa bolota atinge a maturidade,
cai na terra ou é colocada no seio dela pela mão do homem e, havendo
produzido uma árvore, vem a manifestar seus próprios frutos, repete
o que já fora realizado pela própria árvore da qual proviera;
retorna, por suas próprias faculdades, ao ponto de onde havia descido;
renasce na região que havia anteriormente ocupado, em suma: reproduz-se
entre as mesmas coisas, Seres e fenômenos pelos quais já fora rodeada.
Mas agora há uma diferença impressionante: é que, sendo
ela própria um agente, existe nesse segundo estado de maneira ativa,
enquanto que no primeiro era passiva, sem ter uma ação distinta
da ação de seu princípio. Podemos pensar a mesma coisa
do homem intelectual. Segundo a lei universal, por sua primitiva existência
ele teve de permanecer unido à sua árvore geratriz. Era testemunha
de tudo o que existia em seu ambiente. E como esse ambiente está tão
acima daquele que habitamos - da mesma maneira que o Intelectual está
acima do material -, os fatos dos quais o homem participava eram incomparavelmente
superiores aos fatos da ordem elementar. A diferença entre uns e outros
é a mesma que há entre a realidade dos Seres com uma existência
verdadeira e indelével e a aparência dos que têm uma vida
independente e secundária. Assim, o homem, ligado a essa verdade, participava,
embora de maneira passiva, em todos os fatos da verdade. Desligado da árvore
universal, sua árvore geratriz, e vendo-se precipitado numa região
inferior para aí experimentar uma vida intelectual vegetativa, o homem,
se chega a conquistar luzes e a manifestar as virtudes e as faculdades análogas
à sua verdadeira natureza, realiza e representa por si mesmo aquilo que
o seu Princípio já lhe colocara diante dos olhos: recuperar a
visão de uma parte dos objetos que haviam estado em sua presença,
reunir-se aos Seres com os quais havia habitado; e descobrir novamente, de maneira
mais intuitiva e mais ativa, coisas que haviam existido para ele, nele e ao
redor dele. Eis por que não se pode dizer antecipadamente que os Seres
criados e emanados na região temporal - e, conseqüentemente, o homem
- trabalhem na mesma obra, que é recuperar a semelhança com seu
Princípio, ou seja: crescer sem parar até chegarem ao ponto de
produzir frutos, assim como o Princípio produziu os seus nos homens.
Eis também o motivo pelo qual, tendo o homem a reminiscência da
luz e da verdade, se prova que ele descende da morada da luz e da verdade. Vamos
agora retornar ao nosso assunto, declarando novamente que o homem nasceu para
ser a chave de código universal, o símbolo vivo e o quadro real
de um Ser infinito. Ele nasceu para provar a todos os Seres que existe um Deus
necessário, luminoso, bom, justo, santo, poderoso, eterno, forte, sempre
pronto a revivificar aqueles que o amam e sempre terrível para com os
que querem combatê-lo e ignorá-lo. Feliz seria o homem, se apenas
houvesse anunciado Deus manifestando-lhe os poderes, e não os usurpando!
E não fiquemos nem um pouco espantados ao vermos o homem trazer uma marca
como essa. As faculdades do Ser necessário são infinitas como
ele e, visto que ele colocou sobre nós a expressão do número
delas, é necessário termos em nós os traços de sua
universalidade. Quanto ao temor de depreciar esse Princípio supremo fazendo
remontar até ele a nossa origem, temos, em nossa própria emanação,
com que nos preservar, já que todas as criações são
inferiores ao seu Princípio gerador, já que somos apenas a expressão
das Faculdades divinas e do Número divino, e de modo algum a própria
natureza das faculdades e do Número que é o caráter próprio
e distintivo da Divindade. Isso deve tranqüilizar-nos sobre a grandeza
exclusiva do Princípio supremo e de sua glória. A qualquer ponto
que subamos, ele estará eterna e infinitamente acima de nós, como
acima de todos os Seres. "Enobrecer assim a nossa própria essência
é honrá-la, porque não podemos elevar-nos um grau sem nos
elevarmos, ao mesmo tempo, a uma relação quádrupla. Toda
ação, assim como todo movimento e progressão, é
quaternária e só podemos mover-nos segundo a imutabilidade de
suas leis. E se descendemos da Divindade, se ela é o princípio
imediato de nossa existência, quanto mais dela nos aproximar-mos, mais
a ampliaremos aos olhos de todos os Seres, visto que então fazemos ressaltar
ainda mais o brilho de suas Potências e de sua superioridade." Creríamos
mesmo ter prestado um serviço essencial aos homens se pudéssemos
fazer com que eles dirigissem o olhar para verdades tão sublimes. Contemplar
tais objetos é o verdadeiro meio de nos humilharmos aos nossos próprios
olhos, porque, que comparamos sua força e sua grandeza, a nós
mesmos somos obrigados a permanecer em profundo estado de inferioridade. É
por isso que é bom lançar sempre os olhos sobre a ciência
para não nos persuadirmos de que sabemos alguma coisa; sobre a justiça,
para não crermos que somos irrepreensíveis; sobre as virtudes,
para não pensarmos que as possuímos. Pois, em geral, o homem só
vive na quietude e só se contenta consigo mesmo quando não encara
os objetos acima de si. E se quisermos preservar-nos de todas as ilusões,
sobretudo das seduções do orgulho, pelas quais o homem é
tantas vezes reduzido, não tomemos jamais os homens, mas sempre Deus
como nosso termo de comparação. Quando nos elevarmos a esse Princípio
supremo, sem o qual a própria Verdade não existiria, veremos que
as Faculdades devem ser reais, fixas, positivas, isto é: constituídas
por sua própria essência. Isso as subtrairia para sempre a qualquer
destruição, pois é nelas somente que reside sua lei, assim
como o caminho que leva ao santuário de sua existência. De fato,
como o Ser é a fonte primeira de todos os poderes, como se conceberia
um poder que não fosse ele? Por onde, por quem, como poderia ele ser
vencido ou alterado se todos os Seres saíram de seu seio mediata ou imediatamente
e se possuem somente as faculdades ou poderes reais dados por ele? Seria então
preciso supor que ele poderia atacar a si mesmo. Outras provas nos demonstram
que nenhum Ser pode, e jamais poderá, intentar coisa alguma contra Deus.
Se alguém declarar-se seu inimigo, para vencê-lo basta que ele
o deixe em suas próprias trevas. Aqueles que o querem atacar tornam-se
cegos apenas pelo fato de o quererem atacar. Assim, por esse próprio
fato, todos os seus esforços tornam-se sem êxito e as suas forças
ficam anuladas ou impotentes, já que eles não vêm por onde
devem dirigi-las. Mas, para que o primeiro homem pudesse manifestar esse Ser
majestoso e invencível, para que pudesse servir de símbolo da
Divindade suprema, ele precisaria da liberdade de ver e contemplar os direitos
reais, fixos e positivos que nela existem. Precisaria de um título que
lhe desse entrada em seu Templo para gozar do espetáculo de sua grandeza.
Sem isso, como teria podido representar com exatidão o menor traço
de tal grandeza? E, se o houvesse representado de maneira imperfeita, como é
que aqueles que tinham perdido de vista o Ser supremo teriam sido culpados por
continuarem a ignorá-lo? Mas se na qualidade de Ser livre o homem pôde
deixar de apresentar-se no Templo com a humildade do Levita, querer colocar
a Vítima no lugar do Sacrificador e o Sacerdote no lugar do Deus a quem
ele servia, então a entrada do Templo teve de ser-lhe fechada, já
que ele para ela trazia e nela vinha buscar outra luz além daquela que,
sozinha, preenchia-lhe toda a imensidade. Nada mais foi preciso para fazê-lo
perder, ao mesmo tempo, o conhecimento e a visão das belezas do Templo,
já que só podia vê-las na própria morada delas, na
qual ele mesmo se proibira entrar. Ele se gabou de encontrar a luz em outro
lugar diferente do Ser, que era seu santuário e lar, e a única
que podia fazê-lo nesse santuário. Acreditou que poderia consegui-la
por uma outra via que não fosse ela própria. Em suma, acreditou
que em dois Seres se poderiam encontrar, ao mesmo tempo, faculdades fixas e
positivas. Deixou de fixar a visão naquele em que elas viviam com toda
força e brilho para dirigi-la a um outro Ser, do qual ousou pensar que
receberia os mesmos socorros. Esse erro, ou antes, esse crime insensato, em
vez de assegurar ao homem a morada da paz e da luz, precipitou-o no abismo da
confusão e das trevas - e isso sem que o Princípio eterno da vida
precisasse fazer o menor uso de suas Potências para aumentar o desastre.
Sendo ele a ventura por essência e a única fonte da felicidade
de todos os Seres, agiria contra sua própria lei se os afastasse de um
brilho adequado a torná-los felizes. Como, por sua natureza, ele só
pode ser bem, paz e deleite, produziria coisas que o Ser perfeito não
deve conhecer - o que demonstra que ele não é, nem pode ser, o
autor de nossos sofrimentos. se enviasse males, desordens e privações
Pelo contrário, veremos, na seqüência desta obra, que não
há nenhum dos Poderes dessa mão benigna que ela não tenha
empregado e que não empregue para nos consolar. Aprenderemos a conhecer
que, se as virtudes desse Agente supremo vêm combatendo sem tréguas
desde a origem das coisas, é a nosso favor, e não contra nós.
Veremos a diferença entre esse Ser e nós: quando fazemos o mal,
somos nós os seus autores e algumas vezes cometemos a injustiça
de imputá-lo a esse Ser. Entretanto, ao fazermos o bem, é ele
quem faz o bem em nós, e para nós. E depois de tê-lo feito
em nós e para nós, ainda nos recompensa por isso, como se nós
mesmos o houvéssemos praticado. Por fim veremos que se, para satisfazer
às suas verdadeiras necessidades, o homem desse a atenção
que dá às necessidades imaginárias, obteria bem mais cedo
o objeto de seus desejos; "e se me for permitido dizer a razão disso,
verdade é que o Bem e o Mal nos perseguem, mas o primeiro nos persegue
com quatro forças, enquanto o segundo só nos persegue com duas.
Ora, como o homem deve ter também quatro forças, vê-se quão
celeremente se daria a união se ele caminhasse sem se deter na direção
daquele que tem o mesmo número". O Ser divino o único Princípio
da luz e da verdade; somente ele possui as faculdades fixas e positivas, nas
quais reside exclusivamente a vida real e essencial. Logo que o homem buscou
essas faculdades em outro Ser, acabou, necessariamente, por perdê-las
de vista, encontrando apenas o simulacro de todas as virtudes. Assim, quando
o homem deixou de ler na verdade, só encontrou em torno de si a incerteza
e o erro. Quando abandonou a única morada do que é fixo e real,
teve de entrar numa região nova que, por suas ilusões e seu nada,
era em tudo oposta àquela que acabara de deixar. Foi preciso que essa
região nova lhe mostrasse em aparência, pela multiplicidade de
suas leis e ações, uma outra unidade além da unidade do
Ser simples e outras verdades além da sua. Foi preciso que o novo apoio
sobre o qual ele repousou lhe apresentasse um quadro fictício das faculdades
e propriedades desse Ser simples sem que, no entanto, ele tivesse alguma delas.
"E aqui já temos uma explicação dos números
quatro e nove, que teriam podido estorvar a Obra já citada. Ao passar
de quatro para nove, o homem extraviou-se. Isso quer dizer que ele deixou o
centro das verdades fixas e positivas encontradas no número quatro, na
qualidade de fonte e correspondência de tudo o que existe; na qualidade
ainda, mesmo em nossa degradação, do número universal de
nossas medidas e da marcha dos Astros. Verdade divina, da qual os homens dos
últimos séculos fizeram a mais feliz aplicação para
determinar as leis dos movimentos celestes, embora fossem conduzidos a essa
imortal descoberta unicamente pela força de suas observações
e pela chama das ciências naturais. Ou seja: o homem uniu-se ao número
nove das coisas passageiras e sensíveis, cujo nada e vazio estão
escritos na mesma forma circular ou nonária, a eles designada, e que
mantém o homem como que iludido pelas aparências." São
esses os direitos que as coisas da região temporal têm hoje sobre
o homem. Como cada um dos Seres que a compõem é completo e inteiro
na sua espécie, os olhos desse homem infeliz permanecem fixos nos objetos
que realmente representam a unidade, porém somente por imagens bem falsas
e defeituosas. Como são formadas por agrupamentos, podem ser vistas pelos
nossos olhos de matéria e são necessariamente compostas, visto
que nossos olhos materiais também são compostos e que só
existe relação entre os Seres da mesma natureza. Enquanto permanece
na região temporal, o homem fica assim reduzido a perceber apenas unidades
aparentes. Isso quer dizer que ele hoje só conhece pesos, medidas e números
relativos em vez dos pesos, medidas e números fixos que empregava em
seu lugar de origem. Disso ele tem prova nas experiências mais comuns:
ser-lhe-ia totalmente impossível fixar uma porção de matéria
igual em peso, número e medida a uma outra porção, visto
que precisaria conhecer o peso, o número e a medida fixa da primeira,
mas que ele deixou a morada de tudo o que é fixo. Todavia, essas coisas
sensíveis, aparentes e nulas para o espírito do homem têm
uma realidade análoga ao seu Ser sensível e material. A Sabedoria
é tão fecunda que estabeleceu proporções tanto nas
virtudes quanto nas realidades, com relação a cada classe de suas
criações. Eis por que existe uma conveniência, e até
mesmo uma lei insuperável, vinculada ao curso das coisas sensíveis,
sem a qual sua ação, embora passageira e temporal, jamais teria
o menor efeito. Assim, para os corpos é verdade que os corpos existem,
nutrem-se, chocam-se, tocamse, comunicam-se e que há uma permuta indispensável
entre todas as substâncias da Natureza material. Mas também isso
só é verdadeiro para o corpo, pois se as ações materiais
nada operam de análogo à verdadeira natureza do homem, elas, de
certo modo, são ou poderiam ser-lhe, estranhas quando ele quiser usar
essas forças e aproximar-se de seu elemento natural. A matéria
é verdadeira para a matéria e jamais o será para o espírito.
Distinção importante com a qual há muito tempo já
teriam cessado as disputas entre aqueles que pretenderam ser a matéria
apenas aparente e os que pretenderam ser ela real. "Se as coisas corporais
e sensíveis nada são para o Ser intelectual do homem, vemos como
se deve apreciar aquilo a que chamamos morte e a impressão que ela pode
produzir no homem judicioso, em nada identificado com as ilusões das
substâncias corruptíveis. Embora verdadeiro para os outros corpos,
o corpo do homem não tem, como eles, realidade alguma para a inteligência
que, quando muito, deve perceber que está dele separada. E de fato, quando
ela o deixa, deixa apenas uma aparência ou, melhor dizendo, nada deixa."
Pelo contrário, tudo nos declara que ela deve ganhar em lugar de perder.
Prestando um pouco de atenção, só podemos sentir respeito
por aqueles que a lei liberta das amarras corporais, porquanto então
há uma ilusão a menos entre eles e o verdadeiro. À falta
dessa útil reflexão, os homens crêem que é a morte
que os aterroriza, ao passo que não é dela, mas da vida que eles
sentem medo. Se a ilusão das coisas temporais não bastasse para
nos demonstrar a diferença entre o estado atual do homem e seu estado
primitivo, seria preciso lançarmos os olhos sobre o próprio homem,
pois tanto é verdade que o estudo do homem nos fez descobrir em nós
relações com o Primeiro de todos os Princípios e vestígios
de uma origem gloriosa, quanto deixa perceber no homem uma horrível degradação.
Para nos convencermos disso, basta apenas nos confrontarmos com o Princípio
cujas Faculdades e virtudes deveríamos, por nossa natureza, representar.
É necessário ver quem dentre nós poderá justificar
esses TÍTULOS; é preciso ver se somos conformes ao Ser do qual
descendemos e que exprimiu em nós a imagem de sua sabedoria e de sua
ciência a fim de que o honrássemos. Nós buscamos, ele possui;
nós estudamos, ele conhece; nós esperamos, ele desfruta; nós
duvidamos, ele é a própria evidência; nós trememos
de medo, ele só tem a preocupação do amor, do qual se acha
ainda mais abrasado pelo homem do que o homem por seus próprios pensamentos
e emanações. Um é grande, multiplicando suas imagens em
todos os Seres e no homem; o outro costuma empregar sua glória para exterminá-las
e destruí-las. Não somente o Autor das coisas fez os elementos
e agentes da natureza existirem para nós e nossas necessidades, cujo
uso costumamos perverter: também produziu em nós as faculdades
que deveriam ser o signo de sua grandeza mas que empregamos para atacá-lo
e combatê-lo. Desse modo os homens, que deveriam ser os Satélites
da verdade, são antes os seus perseguidores. Considerando-se que o homem
rasteja hoje na reprovação, no crime e no erro, aquele que havia
emanado para mostrar que existe um Deus pareceria mais apropriado para mostrar
que não há nenhum. Pois, quando reincidindo no primeiro crime,
o homem usurpa com tanta freqüência os direitos da Divindade na Terra,
é para profanar-lhe o Nome e aviltá-lo através de uma nova
prostituição. Sob esse Nome sagrado ele decide, induz ao erro,
engana, tiraniza, degola, massacra. Ah! Contra o quê esse Deus tão
estranho exerce direitos mais estranhos ainda? Contra o homem, contra seu semelhante,
contra um Ser de sua espécie e que, por conseqüência, tem
o mesmo direito que ele ao título de Deus. Assim, ao contrapor suas ações
ao orgulho, o homem apaga em si esse título glorioso, ao mesmo tempo
que dele quer revestir-se. Assim, toma o caminho mais seguro para destruir em
torno de si toda idéia do verdadeiro Deus, apresentando a si próprio
como um Ser de mentira, furor e devastação, um Ser que só
age para tudo desnaturar e tudo corromper, que só demonstra a superioridade
de seu poder pela superioridade de suas loucas injustiças, crimes e atrocidades.
Poderíamos, pois, exclamar com razão: Homens, era por vosso intermédio
que os Ímpios deveriam conhecer a justiça, porém mal podeis
responder quando vos perguntam o que é a justiça. Era por vós
que eles deveriam ser conduzidos aos caminhos da luz, porém empregais
vossos esforços para obscurecer essa luz e corromper os caminhos. Era
por vós que a verdade devia aparecer, porém somente ofereceis
a mentira. Como hão de ser conhecidas a justiça, a luz e a verdade
se o Ser proposto para exprimi-las, além de não lhes conservar
a idéia, tenta até mesmo destruir os seus traços que estavam
escritos nele e em toda a Natureza? Como saberíamos que o princípio
necessário é Santo e Eterno se professais o culto e a doutrina
da matéria? Como saberíamos que Ele se ocupa em perdoar e que
arde de amor pelos homens se apenas respirais o ódio e só pagais
suas benignidades com blasfêmias? E como creríamos na ordem e na
vida se nada mostrais em vós, a não ser a confusão e a
morte? Embora não pudéssemos comparar nossos títulos à
ignomínia que nos cobre sem nos inclinarmos para a terra e sem buscar
enterrarnos em seus abismos, quiseram, entretanto, persuadir-nos de que éramos
felizes, como se pudéssemos anular a verdade universal de que só
existe felicidade para um Ser dentro de sua lei. Homens levianos, depois de
terem cegado a si mesmos, tentaram transmitir-nos seus extravios. Começaram
fechando os olhos às próprias enfermidades, e depois, induzindo-nos
a fechar os nossos também às nossas, quiseram persuadir-nos de
que elas não existiam e que nossa situação era apropriada
à nossa verdadeira natureza. Que produzem semelhantes doutrinas? Encantam
nossos males e não os curam. Fazem nascer em nós uma calma enganadora,
graças à qual a corrupção faz progressos tanto mais
rápidos quando não se aplica um bálsamo à chaga
para curar-lhe a malignidade. Elas enfraquecem no homem o princípio da
vida; corrompem-no até o germe; fazem com que aquele que deveria dizer
a verdade - e a quem bastaria dar um passo para consegui-la - veja extinguir-se
esse impulso precioso, o instinto virgem e sagrado, que o fazia buscá-la
naturalmente como seu único apoio. Se o próprio Sábio estiver
abalado, o Universo corre o risco de não conter homem virtuoso algum
em seu seio - eis os males deploráveis produzidos pelas falsas doutrinas
que endurecem o homem a respeito da lei de seu Ser e da privação
que ele sofre de sua verdadeira morada. Deixemos que esses mestres perigosos
se nutram de ilusões e mentiras. Um olhar rápido sobre a nossa
situação bastará para convencer-nos de suas imposturas.
A dor, a ignorância, o temor - eis o que encontramos em todos os passos
em nosso recinto cheio de trevas, os pontos do círculo estreito, no qual
uma força que não podemos vencer nos mantém encerrados.
Todos os elementos desencadearam-se contra nós: mal produziram nossa
forma corporal e já trabalham para dissolvê-la, lembrando-lhe continuamente
os princípios de vida que nos deram. Existimos para nos defendermos contra
seus assaltos e somos como enfermos abandonados e reduzidos a viver pensando
nossas feridas. Que são os nossos edifícios, vestes, servidores
e alimentos senão outros tantos indícios de nossa fraqueza e impotência?
Para os nossos corpos só existem dois estados: definhar ou morrer. Se
não se alteram, permanecem no nada. Dos homens chamados à vida
corporal, uns vagueiam como espectros na superfície, entregues continuamente
às necessidades e enfermidades. Os outros já partiram. Foram,
como hão de ser os seus descendentes, arrastados na torrente dos séculos:
seus sedimentos se acumularam, formando hoje o solo de quase toda a Terra. Não
podemos dar um só passo sem calcar aos pés os humilhantes vestígios
de sua destruição. Aqui na terra, o homem é semelhante
aos criminosos que em algumas Nações a Lei manda que sejam amarrados
vivos a cadáveres. Dirigimos os olhos ao homem invisível? Incertos
quanto aos tempos que precederam nosso Ser, quanto aos que deverão seguir-se
a ele e quanto ao nosso próprio Ser, enquanto não sentirmos as
suas relações vagueamos no meio de um sombrio deserto, cuja entrada
e saída parecem fugir nós. Se algumas vezes clarões brilhantes
e passageiros rasgam sulcos em nossas trevas, tornam-nas mais atrozes ou nos
aviltam ainda mais ao nos deixarem perceber o que perdemos. E ainda, se penetram
nas trevas, fazem-no cercadas de vapores nebulosos e incertos, porque, se se
apresentassem sem disfarce, nossos sentidos não conseguiriam suportar-lhes
o brilho. Com relação às impressões da vida superior,
o homem acaba sendo como o verme que não pode suportar o ar de nossa
atmosfera. Mas, que estou dizendo? No meio das trevas estamos cercados de animais
ferozes que nos cansam com seus gritos irregulares e lúgubres, lançam-se
sobre nós de maneira súbita e nos devoram antes de os termos percebido.
Enxofres incendiados trovejam sobre nossas cabeças e com seus fulgores
imponentes parecem pronunciar mil vezes sobre nós a sentença de
morte. A própria Terra está sempre pronta a fremir sob nossos
pés e jamais sabemos se no instante seguinte ela não irá
entreabrir-se para nos engolir em seus abismos. Seria, realmente esse lugar
a verdadeira morada do homem, desse Ser que corresponde ao centro de todas as
ciências e de felicidades? Aquele que, por seus pensamentos, pelos atos
sublimes que dele emanam e pelas proporções de sua forma corporal
se proclama o representante do Deus vivo, estaria em seu lugar certo num local
coberto de leprosos e de cadáveres? Num local que somente a ignorância
e a noite poderiam habitar, local em que esse desditoso homem não encontra
nem mesmo onde repousar a cabeça? Não, no estado atual do homem,
até os mais vis insetos estão acima dele. Eles têm pelo
menos a sua posição na harmonia da Natureza. Nela eles se encontram
em seu lugar e o homem não se encontra no seu. Todos os Seres do Universo
vivem em ação contínua. Gozam ininterruptamente da porção
de direito atribuída a cada um, de acordo com o curso e as leis de sua
existência: como só subsistirão - enquanto existirem - pelo
movimento, para eles o movimento jamais se interrompe. Também as plantas,
os animais e todas as virtudes da Natureza vivem numa atividade que não
cessa, pois, se cessasse um só instante, toda a Natureza seria destruída.
Pois bem, entre os Seres que estão mergulhados no gozo e na vida, um
Ser incomparavelmente mais nobre, o homem, o pensamento do homem e sua inteligência,
estão sujeitos a intervalos, a períodos de repouso, a interrupções,
ou seja: à inação e ao nada. Deixemos, pois, de crer que
aqui no mundo o homem esteja em seu lugar. "Como Prometeu, ele está
preso à terra para ser dilacerado pelo Abutre." E nem mesmo sua
paz é gozo, não passando de um intervalo entre as torturas. Seria
aqui o lugar propício para lançarmos alguma luz sobre o primeiro
crime do homem. A esse respeito poderíamos mesmo observar que ao mundo
o homem só traz lamentos, e não remorsos, embora esses lamentos
sejam ignorados pela maioria, porque só podemos sentir dor pelos males
que conhecemos, porque só conseguimos conhecer e sentir os males primeiros
com bastante trabalho e porque a maior parte dos homens não faz trabalho
algum. Eis o que torna a verdade desse crime tão incerta aos olhos deles,
ao passo que seus efeitos são tão manifestos. Eu poderia acrescentar
que na ordem social, quando um homem falta à honra, é enviado
à classe dos que não têm honra alguma; que assim, observando
aqui o principal atributo que falta aos Seres com os quais somos confundidos,
deve ser fácil perceber a natureza do primeiro crime. Mas, sem discutirmos
as diferentes opiniões que já reinaram sobre esse assunto, podemos
crer que o crime do homem foi o de ter abusado do conhecimento que tinha da
união do princípio do Universo com o próprio Universo.
Nem mesmo podemos mesmo duvidar de que a privação desse conhecimento
seja a verdadeira pena de seu crime, uma vez que sofremos todos essa irrevogável
punição por ignorarmos os laços que unem nosso Ser intelectual
à matéria. A prova manifesta de que tal conhecimento não
pode ser-nos totalmente dado durante a nossa permanência na Terra é
que, estando nesta Terra apenas para sofrermos a privação da luz
que tínhamos deixado escapar, se aqui pudéssemos recuperar plenamente
a luz, não mais ficaríamos privados dela e, conseqüentemente,
não ficaríamos mais nessa Terra. De fato, as observações
mais simples sobre a luz elementar nos mostram a que grau seria necessário
nos elevarmos para atingirmos a luz intelectual. As leis desses dois tipos de
luz são semelhantes. Além da necessidade de um Princípio
primordial e gerador, é necessário haver para ambas uma base,
uma reação e uma classe de Seres susceptíveis de serem
as suas testemunhas e participarem nos seus efeitos. Isso demonstra que a luz
sensível e a luz intelectual agem, procedem e se manifestam por um quaterno.
E não é sem razão que a luz elementar esteja no nível
dos mais admiráveis fenômenos da natureza material, já que
não pode ser completa na ação e nos efeitos sem exercer
e colocar em jogo os quatro pontos cardeais da criação universal.
Ao considerá-la somente quanto aos efeitos relativos aos três reinos
terrestres, observaremos que os minerais, por estarem escondidos na terra, vêem-se
totalmente privados dessa luz; que os vegetais não estão privados
dela, mas que a recebem sem vê-la nem desfrutá-la; que os animais
a vêem e a desfrutam, mas não podem contemplá-la nem penetrar
no conhecimento de suas leis; e este último privilégio está
reservado somente ao homem e a todo Ser dotado como ele das faculdades da inteligência.
É aí que aprenderemos a reconhecer tudo o que nos falta para possuirmos
a luz intelectual. Há Seres inteligentes que se acham completamente separados
dessa luz. Há os que não estão separados, mas que só
participam de seus efeitos de forma exterior. Há os que recebem seus
raios interiormente, mas vivem na ignorância absoluta dos caminhos pelos
quais ela se propaga. Somente, pois, aqueles que são admitidos ao seu
conselho, ou à própria ciência daquele do qual tudo descende,
podem recuperar esse conhecimento primitivo, porque é aí onde
eles podem, ao mesmo tempo, receber a luz, vê-la, usufruí-la e
compreendê-la. É aí que se desenvolvem com eficácia
superior os poderes do grande quaterno, porque nesta classe suprema residem
os tipos dos quatro pontos cardeais do mundo elementar. O homem não soube
conservar esse gozo sublime seu apanágio de outrora: quis transpor a
ordem dos quatro pontos fundamentais de toda luz e de toda verdade. Ora, transpô-los
é confundi-los, e confundi-los é perdê-los e privar-se deles.
É por isso que o homem se vê hoje rebaixado às classes inferiores,
onde não apenas não mais conhece essa luz intelectual - que apesar
de nossos crimes conserva eternamente seu esplendor - mas onde ainda tem dificuldade
em percebê-la às vezes, e onde costuma ser para ela o mesmo que
os minerais com relação à luz elementar. Entretanto, é
no meio dessa privação que os homens imprudentes se deixam levar
a conceber idéias tão arriscadas sobre sua natureza, a construir
sistemas cegos sobre os laços que nos mantêm escravos e a persuadir-nos
mesmo de que podemos chegar a rompê-los pelo suicídio. Se somente
Deus conhece as correntes que ligam nosso Ser intelectual à região
temporal, certamente só ele tem o poder de efetuar sua ruptura. Mas não
tenhamos receio de dizer que ele não tem vontade de fazer isso, pois
assim agiria contra sua justiça. O homem, pelo contrário, pode
até ter vontade de desembaraçar-se das amarras estranhas à
sua própria natureza, mas não tem poder para isso. Os desditosos
que se matam crêem em vão escapar aos males e aos padecimentos:
não podem destruir nem evitar uma lei que condena o homem injusto a sofrer.
E realmente, os homens impuros podem estar separados de seus corpos sem por
isso estarem separados de sua alma sensível. Vejamos os princípios
anteriores: embora real para os outros corpos, o corpo é apenas aparente
para seu Ser intelectual - assim, depois de se terem libertado desse corpo,
os homens impuros devem ser aquilo que eram enquanto nele encerrados. Se era,
então, a fraqueza em suportar as dores; se era a peçonha dos vícios
e os vapores do crime que lhes tornavam insuportável a vida corpórea,
então a morte do corpo nada lhes mudou na situação intelectual.
Ainda são corroídos pelos mesmos venenos; têm ainda os mesmos
vapores a respirar, as mesmas fadigas a suportar; "em suma: são
como frutos pouco maduros e já podres, cuja qualidade malsã não
muda nem mesmo que lhes tirem a casca; e que, recebendo assim a ação
do ar de maneira mais imediata, apenas se corrompem ainda mais." Além
disso, como o homem pode contaminar-se com muitos crimes na vida e identificar-se
com uma multidão de objetos contrários ao seu ser, após
a morte ele deve provar, uma após outra, todas as impressões relativas
a eles. Deve nutrir-se ainda das afeições e dos gostos que lhe
pareceram os mais inocentes durante a vida, mas que, como não tiveram
um alvo sólido e verdadeiro para lhe oferecer, deixam seu Ser na inação
e no nada. São essas substâncias estranhas que fazem então
o tormento do Suicida, assim como de qualquer outro culpado privado da vida:
"e talvez pudéssemos encontrar aqui alguma explicação
do sistema da Metempsicose, segundo o qual, depois da morte, os homens permanecem
ainda ligados a diversos objetos elementares, sendo mesmo transformados em plantas
e em vis aimais - expressões que são apenas a pintura dos gostos,
vícios e objetos que o homem transformou em ídolos na Terra":
Pois quem serão esses cujo Ser, após a morte, será assaltado
pelos tormentos e ilusões de sua alma sensível? Serão aqueles
cujo Ser viverá sensivelmente, embora separado do corpo? Serão
aqueles que aqui tiverem vivido separados de seu Ser. De acordo com o que acabamos
de ver, o imprudente que pelo suicídio se precipita numa nova região
antes do tempo determinado, ainda que tenha cometido apenas esse crime, expõese,
talvez, aos padecimentos mais aterrorizantes do que se tivesse ali chegado com
as forças conquistadas na região visível através
da constância aplicada em cultivar as faculdades com as quais devia combater.
É semelhante a um prisioneiro que, para ficar novamente em liberdade,
demolisse a prisão pelos alicerces, fazendo-a desabar sobre si. Assim,
todo ato nosso que não tiver a aprovação da natureza e
da ordem aumenta ainda mais os males e os sofrimentos ligados à condição
de nossa infeliz posteridade. De acordo com esses Princípios, podemos
já reconhecer a sabedoria e a bondade do Ser divino, cujos decretos trazem
todos o caráter do amor. Ele ordena aos homens apenas aquilo que pode
aproximá-los dele, só lhes proíbe o que dele os afasta.
E se as leis da Natureza e da razão condenam o suicídio, é
que ele engana o homem em vez de torná-lo mais feliz. Eu poderia demonstrar
que essa sabedoria e essa bondade se manifestam também pelo nascimento
do homem para a vida terrestre, já que torná-lo capaz de aliviar,
por meio de seus combates e esforços, uma parte dos males causados na
terra pelo primeiro crime e confiar-lhe o segredo e a obra da própria
Divindade é admiti-lo, em sua esfera particular, à tarefa da reparação
das desordens da espécie humana. E, por mais rigorosos que sejam os males
que nos esperam no mundo, bastaria pensar que o homem pode não deixar-se
abater por eles e que a maior parte deles deve ser atribuída aos seus
erros e fraquezas. Assim sendo, poderia dar-se que estes fossem nulos e apenas
aparentes para ele e que assim, talvez, seja o homem que lhes atribua todo valor.
Mas para conceber semelhantes verdades, seria necessário que ele se elevasse
a uma sublimidade muito estranha à maior parte dos homens para quem é
difícil formar idéias verdadeiras e constantes sobre os resultados,
mesmo os mais simples, de uma justiça material. Assim, não me
estenderei sobre esse assunto. Por se haver unido, em conseqüência
da corrupção de sua vontade, às coisas mistas da região
aparente e relativa, o homem ficou sujeito à ação dos diversos
princípios que a constituem e à dos diversos agentes designados
para mantê-los e presidir à defesa de sua lei. E como o conjunto
das coisas mistas produz fenômenos temporais, lentos e sucessivos, resulta
ser o tempo o principal instrumento dos sofrimentos do homem e o poderoso obstáculo
que o mantém afastado do Princípio. "O tempo é a peçonha
que o corrói, ao passo que ele, o homem, é quem deveria purificar
e dissolver o tempo; o tempo, ou a região que serve de prisão
ao homem, assemelha-se à água, que tem o poder de tudo dissolver,
de alterar de modo mais rápido ou menos rápido, a forma de todos
os corpos, e na qual o ouro não pode ser mergulhado sem com isso ficar
privado da décima-nona parte de seu peso; fenômeno que, segundo
cálculos integrais, representa ao natural a nossa verdadeira degradação."
Realmente, o tempo é apenas o intervalo entre duas ações:
não passa de um contração e de uma interrupção
na ação das faculdades de um Ser. Assim, a cada ano, mês,
semana, dia, hora e momento o princípio superior tira os poderes dos
Seres e os devolve, sendo essa alternativa o que forma o tempo. Posso acrescentar,
de passagem, que a extensão sofre igualmente essa alternativa e que está
submetida às mesmas progressões que o tempo, o que faz com tempo
e espaço sejam proporcionais. Por fim, consideremos o tempo como o espaço
contido num ângulo formado por duas linhas. Quanto mais os Seres se afastarem
do vértice do ângulo, mais serão obrigados a subdividir
sua ação para completá-la ou para percorrer o espaço
de uma linha a outra. Ao contrário, quanto mais se aproximarem do vértice,
mais sua ação se simplificará. Julguemos, a partir daí,
qual deve ser a simplicidade de ação no Ser Princípio que
é, ele próprio, o vértice do ângulo. Tendo de percorrer
somente a unidade de sua própria essência para atingir a plenitude
de seus atos e poderes, o tempo é para ele completamente nulo. Ao contrário,
todo o peso do tempo se faz sentir naquele que, havendo nascido para a unidade
da ação, está colocado na extremidade das duas linhas.
Eis por que, de todos os Seres sensíveis, o homem é o que mais
se aborrece: sendo aquele cuja ação natural é hoje a mais
afastada da ação de seu Princípio, sendo o único
Ser cuja ação é estranha à região terrestre,
essa ação fica nele perpetuamente suspensa e dividida. Não
se pode duvidar de que a verdadeira ação do homem não tenha
sido feita para sujeitar-se à região sensível: a luz caminha
para comunicar-se com ele à medida que a ação sensível
o abandona e ele dela se despoja e, ao invés de ter que esperar tudo
de seus sentidos, ele só não tem nada quando eles se encontram
calmos e numa espécie de nada para sua inteligência. Seria um erro
julgá-lo subordinado ao sensível, porque seu espírito geralmente
segue o crescimento e a degradação do corpo. Isso pode ser verdade
na infância, quando, devendo cada homem sofrer os primeiros efeitos de
sua degradação, apresenta o exemplo de uma servidão total
à ação dos Seres temporais. Isso também pode ser
verdade numa idade mais avançada se o homem não empregou a vontade
e o julgamento para avaliar os efeitos das ações sensíveis.
Mas, pelo fato de que o sensível pode colocar obstáculos ao intelectual
e suspender-lhe a atividade, não seria necessário concluir que
as faculdades intelectuais do homem sejam fruto de seus sentidos e produção
dos princípios materiais que nele agem, pois não matar ou dar
a vida são duas coisas bem diferentes. E jamais se dirá que um
véu espesso seja o princípio de minha visão só porque
nada posso distinguir quando ele me cobre os olhos. Não já reconhecemos
que, em vez de aprender, nada mais fazemos do que lembrar o que já sabíamos
e perceber o que jamais havia deixado de existir diante de nós? Que também,
como os objetos sensíveis nada nos dão - mas, pelo contrário,
podem tudo nos tirar - a nossa tarefa entre eles é bem menos a de adquirir
do que nada perder? Sim, se é lei dos seres manifestar suas faculdades
sem se confundirem com qualquer substância heterogênea; se os Seres
físicos seguem exatamente essas leis, cada um segundo sua classe, quando
não são impedidos em seus atos, por que seria o homem o único
privado desse poder? Ao perceber tantas belezas nas criações dos
Seres físicos, cuja lei não é perturbada, podemos formar
uma idéia das maravilhas que o homem faria desabrochar em si se seguisse
a lei de sua verdadeira natureza, e se, à imagem da mão que o
formou, ele se esforçasse, em todas as circunstâncias de sua vida,
para ser maior do que aquilo que faz. Seu ser intelectual chegaria ao último
termo da carreira temporal com a mesma pureza que tinha ao iniciar-lhe o percurso.
Vê-lo-íamos na velhice unir os frutos da experiência à
inocência de sua primeira idade. Todos os passos de sua vida teriam feito
descobrir nele a luz, a ciência, a simplicidade e a candidez, porque essas
coisas pertencem à sua essência. O germe que o anima ter-se-ia
ampliado sem se alterar e ele regressaria, com a calma da virtude, à
mão que o formou, porque, ao apresentar-lhe novamente, sem alteração
alguma, o mesmo caráter e o mesmo selo que dela recebera, ela reconheceria
ainda nele a sua marca, continuando a ver nele a sua imagem. Podemos dizer que,
se a maior parte dos homem está tão distanciada de semelhante
calma no momento dessa importante separação, é que durante
a vida eles não foram engenhosos nem orgulhosos o suficiente para lhe
perceber a grandeza e conservá-la, de sorte que, confundidos com as coisas
mistas temporais, crêem que vão deixar de existir quando elas os
abandonarem. O número dos períodos a que o homem deve submeter-se
para cumprir sua obra é proporcional ao número de graus abaixo
dos quais desceu: quanto mais elevado o ponto do qual uma força cai,
mais tempo e esforços são necessários para tornar a atingi-lo.
Mas, para que o homem pudesse adquirir luzes a respeito desse objeto, ser-lhe-ia
necessário enumerar as forças, as faculdades e os direitos que
lhe faltam. É sobre esse número que repousa a medida de sua escala
de regeneração, assim como o peso ou o resultado que daí
deve derivar. Ora, o homem pode abranger com um golpe de vista o abismo aonde
desceu, pois lhe faltam tantas virtudes quanto há de astros acima de
sua cabeça. Além disso, a ação do tempo sobre o
homem é proporcional à grandeza das virtudes inerentes aos graus
que ele deve percorrer, porque, quanto mais elas forem poderosas e necessárias
ao homem, mais longa, penosa e dolorosa deve ser a privação para
ele. Eis o que torna seu estado tão cruel e aflitivo. Se esses graus
são a expressão e a força das virtudes divinas, se são
animados pelos raios da própria vida, se trazem em si um fogo primitivo
e tão necessário à existência de todos os Seres,
segue-se que, se o homem ficar separado deles, sua privação é
inteira e absoluta. Mesmo que o homem seja feliz o suficiente para, durante
sua permanência na terra, formar um conjunto de luzes e conhecimentos
que abarcasse uma espécie de unidade, não poderia ainda gabar-se
de ter o complemento dos verdadeiros deleites, por serem eles superiores à
ordem terrestre: só teria o esboço e a representação
das luzes verdadeiras, pois, sendo tudo aqui relativo, ele nada pode possuir
de real e de verdadeiramente fixo. "Que o homem inteligente medite aqui
sobre as leis do Astro lunar que nos exibe, sob mil faces, a nossa privação;
que examine por que é que esse Astro só nos é visível
durante seus dias de matéria; e por que é que o perdemos de vista
no vigésimo-oitavo dia de seu curso, embora se erga da mesma forma no
horizonte." Tudo concorre para provar ao homem que, depois de haver percorrido
laboriosamente esta superfície, é necessário que ele atinja
graus mais fixos e mais positivos que tenham mais analogia com as verdades simples
e fundamentais, cujo germe está em sua natureza. E, na hora da morte,
é necessário que ele trave conhecimento com os objetos que aqui
só conseguiu perceber na aparência. "Posso admitir que esses
conhecimentos superiores consistam na inteligência e no uso de duas línguas
acima das línguas comuns e vulgares, pois elas se ligam aos deleites
primitivos do homem. A primeira tem como objeto as coisas Divinas e possui um
alfabeto de apenas quatro Letras; a segunda tem vinte e duas e se aplica às
criações, sejam intelectuais ou temporais do grande Princípio:
um mesmo crime privou o homem dessas duas línguas. Se ele cometesse nova
prevaricação, formar-se-ia para ele uma terceira língua
com oitenta e oito Letras, que o faria ficar ainda mais longe de seu termo.
Acrescentarei que há línguas falsas e opostas às três
das quais acabo de falar. A que corresponde à língua Divina tem
um alfabeto de duas letras; a que corresponde à segunda tem cinco; e
se houvesse nova prevaricação, a língua falsa que a acompanharia
teria cento e dez letras em seu alfabeto. O conhecimento das duas línguas
puras que o homem adquiriu ao se separar dos objetos terrestres deve produzir
nele efeitos mais satisfatórios do que tudo o que podemos experimentar
aqui: elas devem estender seus deleites por terem uma ação mais
viva que os objetos da Natureza visível. Mas também, se ele deve
ainda experimentar interrupções em sua marcha, os obstáculos
tornam-se mais dolorosos para ele porque, à medida que uma força
se aproxima de seu centro, aumenta sua tendência15 e o choque das resistências
to rna-se mais violento." Entretanto, é inevitável que o
homem suporte interrupções ao percorrer os novos graus de sua
reabilitação, pois eles são apenas a continuação
dessa barreira terrível que o separa da grande luz, sendo a terra o primeiro
dos graus. Ora, se existe um espaço entre a prisão do homem e
seu lugar de origem, é indispensável que ele o percorra, sofrendo
todas as suas ações, uma após outra. Se um viajante ágil
e curioso chegasse ao pé de um grupo de montanhas amontoadas umas sobre
as outras e quisesse caminhar até o cume da última, escondida
entre as nuvens, após ter transposto a primeira delas seria necessário
que parasse de subir e fosse caminhando horizontalmente até ganhar o
pé da segunda - para por sua vez atravessá-la - e assim por diante,
até conseguir chegar ao termo de seus desejos. Imagem sensível
da regeneração do homem na qual, além disso, vê-se
a Sabedoria benigna acompanhar-lhe os passos enquanto ele está sujeito
às leis da justiça, pois, mesmo quando, por várias interrupções,
ela parece adiar nossos deleites, dedica-se apenas a orientar nossas forças
e a dar-nos tempo de renoválas e aumentá-las. 15 V. Glossário
O homem não pode percorrer as regiões fixas e reais de purificação
sem adquirir uma existência mais ativa, mais extensa, mais livre, isto
é: sem respirar um ar mais puro e descobrir um horizonte mais vasto à
medida que se aproxima do cume desejado. Assim vemos que, quanto mais se simplificam
os princípios dos corpos, mais virtudes adquirem eles; como acontece
com o ar grosseiro que, liberto das substâncias materiais, preenche um
espaço tão prodigioso em relação ao que ocupava
nos corpos que por pouco não causa medo à imaginação.
Além do mais, como as verdades fixas e reais que o homem pode atingir
na morte se ligam à ordem intelectual, a única verdadeira, não
é de surpreender que, enquanto estamos mergulhados na matéria,
relativa e aparente, nem sempre percebemos os trabalhos dos homens já
separados de seus corpos, embora a única luz da inteligência demonstre
evidentemente essa necessidade. E o mesmo exemplo do viajante pode ainda servir-nos
de indício sobre esse objeto: aqueles que permanecem ao pé da
montanha perdem-no de vista quando ele chega a certa altura, mas mesmo assim
não podem ter qualquer dúvida de que ele subiu e de que existe,
embora os olhos corporais não possam mais acompanhá-lo na marcha.
Eis o que torna tão incertos os nossos julgamentos sobre o destino dos
homens depois que o Ser intelectual se separa do corpo, já que só
poderíamos justificar tais julgamentos apoiandoos numa base fixa e determinada,
e da qual só possuímos bases aparentes e relativas: "pois
tanto existem julgamentos dessa classe intelectual e invisível como do
simples físico elementar; toda a Natureza é volátil, tendendo
a evaporar-se; ela até o faria num instante se o fixo que a contém
lhe pertencesse; mas esse fixo não é dela, está fora dela,
embora agindo violentamente sobre ela; ela jamais faz aliança com ele
sem começar por uma dissolução; ora, como nas duas classes,
física e intelectual, há vários graus de dissolução,
há também vários graus de alianças e de amálgamas."
Tudo o que podemos permitir-nos, pois, quanto aos objetos de tal importância,
é tirar algumas induções de acordo com as fiéis
observações sobre a lei dos corpos. Assim, semelhantes aos glóbulos
de ar e de fogo que escapam das substâncias corpóreas em dissolução
e que se elevam com maior ou menor rapidez de acordo com seu grau de pureza
e a extensão de sua ação, não podemos duvidar de
que, por ocasião da morte, os homens que não tiverem deixado sua
própria essência amalgamar-se com sua habitação terrestre,
se aproximem com rapidez de sua região de origem para aí brilharem,
como os Astros, com esplendor resplandecente. Também não podemos
duvidar de que aqueles que tiverem misturado um pouco de si mesmos com as ilusões
dessa morada cheia de trevas atravessem com maior lentidão o espaço
que os separa da região da vida. E de que aqueles que se houverem identificado
com a sordidez que nos cerca permaneçam mergulhados nas trevas e na escuridão,
até que se dissolvam as mínimas substâncias corrompidas,
fazendo desaparecer com elas uma corrupção que não pode
terminar enquanto elas mesmas não acabarem. E para dar mais peso a essas
verdades, direi que na morte os Criminosos permanecem sob sua própria
justiça, os Sábios ficam sob a justiça de Deus e os Reconciliados
sob a sua misericórdia. Mas o que não nos permite pronunciar-nos
sobre a medida segundo a qual se operam os diversos atos ou diversos números
de tempo é o fato de que a justiça não age sozinha, havendo
outras virtudes que, combinando-se a ela, não deixam de dirigir-lhe a
ação em direção ao maior bem dos Seres, que é
o retorno à luz. Sem nos ocuparmos por mais tempo com os trabalhos futuros,
aos quais o homem entregou sua posteridade, consideremos aqueles aos quais ele
está condenado na terra por conseqüência de sua incorporação
material. Havendo o homem recebido o ser para exercer ação sobre
a universalidade das coisas temporais, só quis exercê-la sobre
uma parte. Devendo agir pelo intelectual contra o sensível, quis agir
pelo sensível contra o intelectual. Devendo reinar no Universo, mas,
em vez de velar pela conservação de seu império, ele próprio
o degradou e o Universo desmoronou sobre o Ser poderoso que deveria administrá-lo
e sustentá-lo. Como conseqüência dessa queda, as virtudes
sensíveis do Universo, que deviam agir de maneira subordinada ao homem
no círculo temporal, agiram sobre ele em confusão, comprimindo-o
com toda força e poder. Pelo contrário, as virtudes intelectuais,
com as quais deveria agir de comum acordo e que deveriam apresentar-lhe uma
unidade de ação, viram-se por ele divididas, dele separadas, fechando-se
cada uma em sua esfera e região. De modo que aquilo que para ele era
simples e uno, tornou-se múltiplo e subdividido; o que era subdividido
e múltiplo conglomerou-se, esmagando-o com seu peso. Isso quer dizer
que, para ele, o sensível tomou o lugar do intelectual e o intelectual
tomou o lugar do sensível. Relações não equívocas
mostram-nos que todas as forças físicas da Natureza serviram de
entraves a esse homem infeliz no momento de sua queda. E da mesma forma que
o corpo que trazemos e nos escraviza é um extrato de todos os fluidos,
fogos, humores e outras substâncias do indivíduo corporal que o
gerou, assim também as cadeias do primeiro homem culpado foram formadas
com o extrato de todas as partes do grande Mundo: o que faz com que, depois
deste, possamos ver nosso corpo como sendo também uma imagem do Universo
material. Ao se escravizar ao sensível, não somente o homem ficou
separado das virtudes intelectuais e superiores, com as quais cooperava pelo
poder que tinha, mas também deixou as próprias virtudes se misturarem
e se amalgamarem a todas as partes de sua prisão. E temos indícios
dessa mistura e da origem material do primeiro homem na lei de geração
particular pelo qual o homem atual chega à vida. Antes de sua formação
individual, o corpo do homem está espalhado por toda a forma do pai,
unido a todas as potências que existem em seu princípio gerador.
Quando chega o momento do nascimento, o germe corporal espalhado na forma universal
do pai concentra-se, reunindose num ponto. Então ele se exila, sepultando-se
no seio trevoso da mulher onde, misturado a fluidos impuros e rodeado por milhares
de barreiras, não pode nem mesmo fruir do ar, onde seus órgãos
mais perfeitos ficam sem função e só recebe a vida e os
socorros dos elementos através de um ponto passivo, enquanto que o destino
do homem seria o de corresponderse ativamente com toda a Natureza. Tal é
a imagem do primeiro estado corpóreo do homem culpado: banido de sua
esfera universal, foi ignominiosamente atirado na forma - ou prisão -
material dos homens e, experimentando nela uma oposição universal
à sua verdadeira ação, ficou reduzido à privação
mais completa, não oferecendo mais do que uma mistura vergonhosa das
próprias virtudes com as substâncias heterogêneas que formavam
sua obscura morada. Nesse estado, quais devem ter sido os primeiros movimentos
do homem? Foram os de desvencilhar-se das massas estranhas que o acabrunhavam.
De separar penosamente as próprias virtudes de todas as matérias
impuras com as quais elas se tinham confundido. De reunir todas as forças
para sair de baixo dos escombros do Universo. Mas, como as leis positivas se
opõem a que um Ser possa aliar-se ao que lhe é contrário
sem levar a marca e os traços do amálgama, foi impossível
ao primeiro homem sair de sua cloaca com a mesma pureza e a mesma agilidade
que tinha antes de nela se precipitar. Eis por que o homem particular, depois
de ter estado no seio da mulher, depois de ter nele exercido a ação
que o deixa em condições de desembaraçar seu germe sensível
dos laços e amarras que o restringem, vem à luz encerrado numa
forma mais opaca do que o fluido sutil que lhe envolvia o próprio germe.
Depois de superado esse obstáculo, restou ao homem primitivo um passo
bem considerável: unir-se gradativamente às forças dos
diversos elementos que agiam em sua atmosfera. Também é esta a
tarefa do homem particular, que, depois de admitido à luz elementar,
padece ainda por longo tempo antes de os olhos se acostumarem ao brilho, o corpo
às impressões do ar e os órgãos às diversas
leis estabelecidas para as formas corpóreas. Até aqui, só
vemos para o homem um trabalho corporal e físico. Todas as coisas acontecem
na ordem elementar e, por causas não livres, nelas não se distinguem
os sinais verdadeiros dos trabalhos do homem intelectual, mas descobrimos pelo
menos a sua lei e a sua necessidade. E do mesmo modo que, ao receber o nascimento,
o homem supostamente reúne em si suas virtudes físicas e particulares,
com as quais pode chegar a participar nas forças universais da atmosfera
que deixara e que lhe são exteriores, assim o homem intelectual, libertado
da primeira prisão e admitido na terra com a forma material, deve trabalhar
para recuperar gradativamente as próprias forças e virtudes intelectuais,
com as quais pode tender a recuperar aquelas das quais ficou separado pelo crime.
Mas aquilo que o homem físico faz de maneira passiva e cega no corporal,
o homem intelectual deve fazê-lo por esforços constantes e livres
de sua vontade. É com isso que pode livrar-se da morte à qual
se dedicara ao concentrar-se numa ação particular. Pois os corpos
destroem a si mesmos quando sua ação se dirige para um único
ponto, abandonando as outras partes da forma. Ora, assim como os corpos atingidos
pela enfermidade escapam da morte quando a ação neles isolada
se torna geral, assim também o homem intelectual, reduzido voluntariamente
a uma classe inferior e limitada, deve generalizar todo o seu Ser, estendendolhe
as virtudes até os extremos de seu recinto particular, se quiser atingir
o recinto universal e sagrado do qual se baniu. E como, de certo modo, a vontade
é o sangue do homem intelectual e de todos os Seres livres, o único
agente pelo qual eles podem apagar em si e em torno de si os vestígios
do erro e do crime, a revivificação da vontade é a principal
tarefa dos Seres criminosos. Verdadeiramente, é uma obra tão grande
que todas as potências nela têm trabalhado desde a origem das coisas
sem ainda terem podido realizá-la de modo geral. Seria preciso apresentar
aqui novas relações mais exatas entre a incorporação
material do homem particular e a do homem geral. E poderíamos, seguindo
as leis da geração em todo o seu curso, instruirmo-nos de maneira
positiva sobre a punição do primeiro culpado, sobre o tempo que
ele permaneceu na primeira prisão, sobre o momento exato em que dela
saiu. "Poderíamos descobrir a origem do próprio Universo
e a ação dos agentes de todas as classes ao vermos que nisso operam
todos os números. Aprenderíamos a diferença entre a divisão
regular do círculo e sua divisão irregular; por que é que
a espessura do planeta está em razão inversa à do crescimento
do feto; por que é que os movimentos do feto jamais são percebidos
antes do fim do terceiro mês e no máximo até o fim do sexto;
por que é que ele toma a princípio uma forma esférica no
seio da mãe; por que é que num prazo mais avançado ele
se encontra de cabeça para cima e com o rosto para a frente; por que
é que pelo fim do oitavo mês se prosterna, dispondo-se a rastejar
pela terra. E por fim, por que é que tem tanta propensão ao sono
depois do nascimento." Mas, para fazer uma comparação desses
fatos com seus tipos, é preciso que estejamos habituados a um gênero
de observações pouco conhecido pela maior parte do Leitores, que
não lhe sentiriam os resultados, visto que para isso não possuem
as bases. Limitemo-nos, pois, a observar que o primeiro trabalho que o homem
intelectual teve de fazer, depois de haver penosamente separado e desembaraçado
as próprias virtudes sepultadas sob as ruínas de seu trono, foi
unir-se às do Ser mais próximo de si ou às da Terra. E
assim como o homem corporal criança é obrigado, durante certo
tempo, a tirar sua subsistência do leite da mulher, assim o homem intelectual
é obrigado a começar pela Terra, a recuperar as luzes que perdera
e que hoje estão subdivididas para ele em todas as regiões, pois
a Terra é a mãe e a raiz do Universo. Todas as leis físicas
e intelectuais que acabamos de apresentar sobre a caminhada necessária
do homem degradado são tão naturais a ele que na própria
ordem humana o homem temporal as põe todos os dias em ação,
não deixando de demonstrar a atividade essencial ao nosso Ser, embora
se engane tantas vezes sobre o quê deveria ser o objeto dessa atividade.
Quando o homem ambicioso e ávido procura com tanto ardor distinguir-se
de seus semelhantes, quando os homens comuns e os Soberanos empurram os limites
de seu Domínios e de Seu Império querendo levá-los até
os confins do Mundo, apenas estão seguindo, de maneira falsa, a lei de
sua natureza, que tem aversão por limites e entraves. Isso significa
que eles representam o que o homem verdadeiro deveria fazer, levando até
os confins de seu domínio os limites físicos e materiais que deveriam
ter sempre conservado sua distância natural com relação
a ele. É mesmo essa lei indelével que, operando com integridade
sobre os filhos, dá-lhes a atividade tumultuada, o impulso destrutivo,
qualificado como vício e maldade pelos homens que procedem com menos
reflexão, enquanto ela não passa do efeito de oposição
necessária que um Ser verdadeiro e universal deve experimentar por parte
dos objetos falsos e mesquinhos com os quais está aprisionado. Quando,
por outro lado, o homem curioso e industrioso busca reunir em torno de si as
criações preciosas da Natureza, não temendo transportar-se
até os lugares mais distantes para daí trazer raridades de todo
tipo e reuni-las diante dos olhos; quando o sábio naturalista deixa seu
pensamento viajar por todos os climas, perseguindo todas as descobertas e impondo
com isso uma espécie de tributo universal à Natureza terrestre;
e quando o Químico busca, destruindo os envoltórios dos corpos,
penetrar até os Princípios aos quais deve a existência,
todos esses trabalhos são apenas a imagem do que o homem deve fazer aqui;
e ensinam-lhe que ele está destinado a aproximar de si todas as partes
de seu império. É, pois, verdade que, depois de ter recebido num
lugar trevoso um envoltório grosseiro, depois de ter disposto em si as
forças intelectuais que lhe são próprias, o homem tem ainda
de multiplicar essas mesmas forças. Reunindo-as às que lhe são
exteriores, ele tem de recolher as virtudes de todos os reinos terrestres, de
distinguir todas as espécies de cada reino e mesmo os caracteres particulares
de cada indivíduo. Tem de esquadrinhar até as entranhas da Terra
para aí aprender a conhecer as desordens que fazem o horror e a vergonha
de nossa triste morada e que nos são apontadas ora pelos metais que não
têm óleo algum, ora pelo furor dos vulcões, ora pelo grande
número de insetos e de animais daninhos e peçonhentos banidos
da terra, que se escondem em seus abismos, como se a luz do dia lhes fosse proibida.
E é aqui onde os trabalhos do homem, em sua morada terrestre, são
pintados em toda a sua aspereza, pois, recordando o exemplo temporal do homem
ávido, ambicioso, curioso, industrioso e aplicado às ciências
vulgares, vêm-se os enormes obstáculos que ele deve encontrar todos
os dias antes de poder satisfazer a seus desejos. Mares a atravessar, precipícios
a transpor, Nações inteiras a reduzir, intempéries de todos
os gêneros a experimentar, regiões impuras a percorrer, privações
e demoras a suportar pelos atrasos e variedades das estações.
Eis o estado diário do homem intelectual do qual o homem temporal é
a imagem. O que torna tais trabalhos tão imponentes é que o homem
deixa escoar-se em vão o tempo concedido para cumpri-los. É-lhe
necessário um segundo número de tempo mais considerável
e mais penoso que o primeiro, visto que agora ele tem de conseguir tanto a primeira
quanto a segunda força. Se durante esse segundo número de tempo
o homem infeliz não cumprir melhor a tarefa que não fez no primeiro,
vai precisar, necessariamente, de um terceiro ainda mais rigoroso que os outros
dois- e assim por diante, sem que se possa determinar outros termos aos seus
males, exceto o que ele mesmo há de determinar sacrificando todas as
virtudes que nele existem. Se ele defraudar uma parte do holocausto, aquele
que as receber também lhes reterá uma parte da recompensa, até
que ele se submeta a pagar sem reserva um tributo que só pode tornar
eficaz e completo se fizer com que seu Ser nisso contribua. Entretanto, o homem
só tem o momento de sua vida corporal para determinar esse tributo, esse
sacrifício e essa obra, pois a vida terrestre é a matriz do homem
futuro. E assim como os Seres corpóreos trazem para a terra, conservando-os,
a forma, o sexo e os outros sinais que hauriram no seio materno, assim também
o homem levará para outra terra o plano, a estrutura e a maneira de ser
que ele mesmo determinar para si durante a estada aqui. Se ele percorrer inutilmente
esse intervalo, ao invés de se revivificar, tornar-se-á incapaz
a conhecer a vida, como as plantas secas e doentias que não apenas vêem
passar em vão sobre elas os raios do sol, mas também ressecam
ainda mais com seu calor e perdem o pouco de sumo que lhes restava para melhorarem
e tornarem-se férteis. São esses os perigos que nos ameaçam
desde a corrupção e a queda do Primeiro culpado. Este é
o estado do homem em sua morada tenebrosa, onde não apenas desconhece
o próprio nome, mas ainda onde, comprimido pelo peso das esferas e as
ações às quais se sujeitou, pode ser por elas oprimido
se não empregar de maneira útil os esforços da vontade
e o socorro favorável que ainda lhe é oferecido para sustentar-lhes
a violência e dirigir-lhes os efeitos em seu benefício. Pois enquanto
ele estiver reduzido a si mesmo, a atividade das Potências formidáveis
lhe é ainda mais dolorosa: não gozando mais da luz dessas Potências,
não sabe para onde fugir a fim de evitar o choque com elas e ser por
elas perseguido. Colocado entre abismos e forças imponentes que o comprimem,
a todo instante ele fica exposto a ser machucado, dilacerado, ou a tombar nos
precipícios que se abrem sempre debaixo de seus pés. Nessa degradação
aflitiva, não percebendo mais as propriedades fixas e simples da unidade,
ele fica reduzido a errar em torno do templo que as encerra e cujo acesso ele
mesmo se proibiu. Se, pela perseverança, puder chegar sozinho alguma
vez junto ao pé desse augusto recinto e ouvir de longe o som dos cânticos
- aí pronunciados por vozes puras com palavras de fogo - essas vozes,
não encontrando a mesma pureza na voz dele, não podem permitir
que ele se una a elas nem que se misture aos seus concertos. Eis, pois, as conseqüências
do primeiro crime do homem com relação a toda a sua posteridade.
Tais conseqüências funestas não se limitam ao homem: estendem-se
a todos os Seres sensíveis e a todas as partes do Universo, uma vez que
nada daquilo que compõe o tempo pode subtrair-se aos sofrimentos, em
conformidade com a definição que demos ao tempo. O homem, escolhido
pela Sabedoria suprema para ser seu o sinal de justiça e poder, devia
restringir o mal aos seus limites e trabalhar sem descanso para trazer a paz
ao Universo. E seu destino sublime declara suficientemente quais devem ser as
suas virtudes, uma vez que somente ele devia possuir todas as forças
repartidas entre os Seres rebeldes. Mas, se deixou corromper sua atividade virtual;
se, em lugar de subjugar a desordem, ele fez aliança com ela, então
a desordem teve de aumentar e fortificar-se em vez de se aniquilar, e o recinto
universal, que servia de limite ao Mal, teve de ficar ainda mais exposto aos
seus ataques e à sua ação. Isso deve dar uma idéia
de como os Seres da região sensível podem achar-se hoje num padecimento
ou num trabalho maiores do que aqueles em que se achavam antes do crime do homem.
Não obstante, é necessário convir que os padecimentos naturais
dos Seres sensíveis não podem comparar-se aos do homem, porque
o homem, tendo um princípio a mais que eles, é susceptível
de dores e prazeres que lhes são inteiramente desconhecidos. Seria de
presumir-se também que há diferenças entre os padecimentos
dos Seres que compõem a classe material. Se a planta sofresse, sofreria
menos que o animal; se o mineral sofresse, sofreria menos do que a planta e
o animal, tendo em vista a diferença dos princípios que constituem
os três reinos. Mas, para não diminuirmos nossa marcha, abrangeremos,
sob a denominação de Seres sensíveis e corpóreos,
tudo o que está em ação na Natureza e tudo o que é
corpo de matéria, deixando à inteligência do Leitor fazer
as distinções particulares que a imensidade dos detalhes possa
exigir. Perguntar-se-á: como é possível que os Seres sensíveis
e corpóreos da Natureza, que não são livres, sejam submetidos
sem injustiça às conseqüências da desordem? Os Seres
sensíveis e corpóreos da Natureza são seres de ação.
Como tais, não são, por si mesmos, susceptíveis de bem
nem de mal, não podendo ser-lhes aplicadas quaisquer das leis da moralidade.
Tudo o que as noções naturais nos fazem compreender é que
o Princípio supremo não os obriga a ações mais fortes
do que as que lhes foram concedidas. Assim, em qualquer grau a que essa ação
seja levada, como ela não pode exceder os poderes deles, a Sabedoria
fica ao abrigo da injustiça. Pois todas as Potências existentes
que dela provêm estarão submetidas aos seus direitos e usos, quando
a lei de seu conselho lhe exigir que os empregue. Além disso, a Sabedoria
mede e dispõe as forças e potências segundo a regra de sua
própria glória. Assim, ela iria diretamente contra os seus interesses
se permitisse que as potências se estendessem além dos próprios
limites, pois isso seria dissolvê-las e destruí-las. O padecimento
dos Seres sensíveis não mais pareceria chocar nossa justiça,
uma vez que tais Seres nada mais são do que os instrumentos da Sabedoria
e os meios temporais por ela empregados para deter o avanço do mal. Sua
lei particular e essencial, fundada na base inabalável de todas as leis,
é totalmente avessa à ação rebelde e desordenada
que nelas não cessa de perturbar a ordem. Também eles jamais são
alterados em seu princípio, embora geralmente o sejam nos resultados
e nos efeitos desse princípio. Nesse sentido, quando os Seres sensíveis
estão em padecimento, o decreto temporal da justiça está
na força de seu cumprimento, porque a lei deles combate com mais vigor
a força contrária, que busca destruí-la e fazer a desordem
chegar até o princípio da ação deles. Vê-se,
com isso, como os padecimentos dos Seres materiais se transformam em vantagem
e manutenção da lei que os constitui e como cumprem os Decretos
da Justiça divina sobre as potências inimigas, que nos combates
e suas conseqüências só experimentam contrariedades e tormentos
inexprimíveis. Pois, que suplício pior poderíamos conceber
do que perseverar em esforços obstinados, porém impotentes, que,
quanto mais são sustentados, mais se transformam em vergonha e raiva
para aqueles que a eles se entregam? Se homens imprudentes, ao observar os padecimentos
dos Seres sensíveis, ousaram condenar os caminhos de Deus e chamar a
isso injustiça, é que jamais prestaram atenção ao
fato de que se o homem estava destinado a representar a Divindade em suas ações,
também a representava nos meios pelos quais essas ações
se manifestam. Muito embora todas as classes tivessem descido, essas relações
se descobrem hoje quase que de maneira material. Isso, não obstante,
basta para fazer cessar a dificuldade. De fato, se um pai vir o filho ser atacado
por malfeitores ou ameaçado por algum perigo considerável, esse
pai afetuoso correrá, sem dúvida alguma, em seu socorro, sem temer
pôr em uso, para salvá-lo, todas as forças e órgãos
da própria forma corpórea e sensível. Entretanto, os membros
desse afetuoso pai em nada contribuem nas desordens contra as quais ele as emprega.
E embora possam ser maltratados, feridos, não achamos que sofrem com
isso qualquer injustiça, porque são seres subordinados e o amor
paterno que os comanda justifica as ações que deles exige. Suponhamos,
por um momento, que os Seres sensíveis universais sejam, com relação
à Divindade, os que os órgãos materiais são no exemplo
citado. Não mais nos espantaremos se ela os empregar para vir em socorro
do homem, embora os seres ou órgãos sensíveis em nada tenham
cooperado nos crimes que expuseram o homem à morte. Mas como na grande
obra da sabedoria Divina o emprego dos Seres sensíveis está ligado
a leis e a conhecimentos superiores, esse assunto fica muito acima do alcance
da maioria para esperarmos que, ao levarmos mais longe as nossas reflexões,
elas sejam entendidas por todos. Além do mais, independentemente dos
sofrimentos que as leis da Natureza ligaram a todos os seres sensíveis,
eles ainda experimentam alguns bem consideráveis, que parecem nascer
de uma causa estranha a essas leis. Tais são os sofrimentos que resultam
do império do homem sobre os animais e do modo como emprega esse império,
seja nos sacrifícios religiosos, seja para as necessidades alimentares,
seja para diversos serviços e usos, seja para seu divertimento. Se para
justificar esse novo gênero de padecimentos - que as religiões,
as necessidades, a crueldade e a depravação das sociedades acrescentam
aos sofrimentos naturais dos animais - eu ainda recordasse os direitos do homem
e lembrasse a extensão de sua autoridade, o abuso que ele faz dessa autoridade
com relação aos Seres sensíveis não pareceria certamente
mais desculpável, nem aos animais menos inocentes. Tal é, não
obstante, a imensidão dos seus poderes, que ele sujeita à sua
ação tudo o que está destinado a ser objeto dela. E assim
como só dependeria dele legitimar até os mínimos atos de
seu poder, também assim ele pode torná-los nulos, criminosos e
perniciosos. Mas, para acalmar todas as dificuldades sobre essa verdade profunda,
acrescentaremos aqui que as virtudes superiores, que não participaram
no crime do homem, participam nas conseqüência trabalhosas que esse
crime arrasta consigo. E se o homem conseguiu levar as influências penosas
de suas desordens até os Anjos livres, Ministros da sabedoria Divina,
não é de se espantar que possa estendê-las também
a simples objetos passivos, a objetos de dependência e de servidão.
Ora, tudo o que temos dito sobre os diversos padecimentos dos seres corpóreos,
em razão dos diversos princípios que os constituem, também
poderia ser dito sobre os seres acima da ordem elementar e acima do homem. Poderíamos
mostrar qual é o sofrimento deles, ou, melhor dizendo, a vivacidade de
seu zelo e de seu ardor pelo restabelecimento da ordem, já que eles são
comuns a todos os Princípios e Potências. Diríamos que quanto
mais um Ser está próximo da Verdade, mais sofre por aqueles que
a negam e a combatem. E, realmente, ele a vê: primeira causa de padecimentos
e de aflição, quando percebe que os seres que dela recebem toda
a força, e até mesmo o menor movimento, são insensatos
até o ponto de pretender destruir-lhe os poderes e a existência.
Em segundo lugar, ele a sente. Conhece-lhe, por um deleite contínuo,
toda a doçura: nova causa de padecimento e aflição, que
vê Seres divinos por sua origem afastarem-se da fonte da vida e quererem
forçá-lo a separar-se dela e dela desarraigar-se juntamente com
eles. A partir disso, poderíamos julgar quais devem ser as dores produzidas
pelo interesse e pelo amor nos Seres que tocam a própria Verdade; que
estão como que unidos e confundidos com ela e que, destinados a contemplar-lhe
em paz a ordem e a harmonia, são forçados a desviar os olhos desse
espetáculo deslumbrante para dirigi-los à desordem e à
confusão. Que crime pode, pois, igualar o do homem, se nada há
na Natureza material e imaterial que dele não se ressinta e se toda a
cadeia dos seres foi, por causa dele, abalada? Deixemos cair o véu sobre
esse abismo de desordens e de dores e pousemos o olhar nos socorros que nos
cercam para neles descobrirmos o quanto nos resta ainda de esperanças.
Servindonos de guia nessa sublime carreira, a lei universal de reação,
nos convencerá da extensão dos deleites daquele de quem recebemos
a origem e de seu amor extremo por suas criações. Na ordem das
gerações, os Agentes de ação e reação
precisam ser distintos por suas virtudes, mas devem ser da mesma essência
e da mesma natureza para que sua obra lhes seja sensível. É por
isso que a geração das plantas não é sensível
para elas, porque opera pela reação da água ou pela de
outras seivas terrestres muito inferiores e muito diferentes delas. É
por isso que a reprodução da maior parte dos animais é
feita por eles com grande sensibilidade, porque eles têm Seres de sua
espécie como agentes de reação. É por isso que os
frutos do pensamento e os atos da inteligência são tão sedutores
para o homem, porque as coisas nele operam através de Agentes de sua
própria natureza e análogos a ele, embora ele atualmente esteja
separado dos Agentes. Concebamos, pois, quais sejam a atividade e as delícias
da existência de Deus, que não deixa de produzir, exteriormente
a si, a imensidade dos seres e que, para produzi-los, emprega apenas suas próprias
faculdades e sua própria essência, isto é: os agentes de
reação não apenas relativos, mas que ainda lhe são
iguais, confundidos com ele, que são ele mesmo. Produzindo obras acima
de tudo o que nos pode ser oferecido pelos sentidos e pelo pensamento, e reunindo
somente nele os agentes e seus deleites, ele se torna, aos nossos olhos, o foco
supremo de todas as venturas e o centro universal aonde vem refletir-se o ardor
de todas as afeições da vida. Essa relação incessante
influi necessariamente nos laços que unem as criações temporais
ao seu Princípio gerador, laços que são mais sensíveis
à medida que a própria obra se torna mais considerável.
tais laços são nulos entre a árvore e o fruto, se considerarmos
os que são encontrados entre os animais e seus filhotes. E parecem bem
menores ainda quando os comparamos aos que ocorrem entre nosso Ser intelectual
e as criações que lhe são próprias. O que devem
então ser aqueles que correspondem de Deus ao homem? Qual deve ser o
ardor de seu amor por nós? - pois, sendo o homem a mais sublime das criações
e Deus o mais sublime de todos os Princípios criadores, existem entre
esses dois seres todos os laços de amor e de união que nossos
mais elevados pensamentos nos permitam conceber. Haveria aqui uma infinidade
de outras relações a expor sobre as leis da concepção
dos Seres, sua simplicidade - à medida que eles se elevam e se aproximam
da primeira fonte - e sobre a subdivisão à qual estão submetidos,
- à proporção que dela se distanciam e vão descendo.
Veríamos a razão pela qual, fora do tempo, todas as faculdades
são o mesmo Ser, ao passo que, para os Seres no tempo, essas faculdades
exigem outros agentes distintos. Poderíamos dar a conhecer a causa final
dessa grande e magnífica lei pela qual os animais perfeitos nascem à
semelhança do seu princípio gerador, ao passo que os animais imperfeitos,
assim como os insetos, passam por diversas mutações sensíveis
de forma antes de atingirem essa semelhança. Observaríamos que,
passando por todas as revoluções da matéria, nosso corpo
é, com relação ao nosso Ser intelectual, apenas um inseto
que recebeu o complemento da existência desde o instante de sua emanação.
Poder-se-ia, finalmente, observar que no estado presente o nosso próprio
Ser intelectual é uma espécie de inseto, em comparação
aos Seres que desconhecem a corrupção e o tempo. Embora haja recebido
o complemento de sua existência juntamente com a emanação,
após a queda ele ficou sujeito a uma transmutação contínua
de diferentes estados sucessivos antes de chegar ao final, enquanto o primeiro
Autor de tudo o que existe foi, e sempre será, o que é e o que
devia ser. Mas tais detalhes nos arrastariam a caminhos sem número e
sem limites. Basta-nos lembrar aqui que o homem traz em si um germe invisível,
incorruptível, do qual tem o direito de esperar frutos análogos
à sua própria essência, assim como, quando semeamos germes
de vegetação, obtemos frutos análogos aos princípios
do qual saíram. Basta observar que, se quisermos ver nossos trabalhos
coroados de sucesso, é preciso - por exemplo - que cultivemos as flores
com a mais assídua atenção depois de haver semeado. E só
quando seu crescimento houver chegado ao termo é, compensando os nossos
cuidados, elas nos oferecerão como tributo as doçuras das propriedades
que nelas existem. Agradam a nossos olhos com suas cores e a nosso olfato com
seus perfumes. Podem até levar alegria e bem-estar a todo o nosso ser
com as seivas e os bálsamos salutares que nele vertem. Essas imagens
devem fazer-nos compreender que, como o bom ou o mau estado dos Seres depende
quase sempre da espécie de reação que recebem, fomos colocados
no mundo para nos defendermos das reações más e procurarmos
as proveitosas: não fosse a mão da sabedoria que cultiva a própria
semeadura e faz reagir o germe sagrado que colocou em nós, em vão
pretenderíamos produzir frutos análogos aos da árvore que
nos gerou, em vão esperaríamos ver exalar-se de nós as
virtudes ativas da qual os Seres são depositários, cada um segundo
sua classe - as virtudes que, circulando continuamente do Princípio supremo
às criações e das criações ao Princípio,
formam a cadeia viva e ininterrupta, onde tudo é ação,
tudo é força, tudo é deleite. Mas, independentemente da
necessidade que temos da reação superior, vemos a impossibilidade
de que ela ocorra para nós, embora quase sempre nos descuidemos de seus
efeitos. E na verdade, mesmo que a natureza essencial e primitiva do homem o
houvesse chamado para ser a imagem e a expressão das virtudes do grande
Princípio e se a natureza dos Seres é indestrutível - embora
seus feitos e propriedades se alterem ou se destruam - o homem não apagou
a lei e a convenção que o constituem. Devem restar-lhe sempre
os meios para realizarlhes o cumprimento. E qualquer que seja o tenebroso abismo
no qual o homem haja caído, a essência divina não deixa
de verter nele as correntes de sua glória. Como existe um Ser verdadeiro,
ele é, forçosamente, a imagem da Sabedoria suprema, pois ela é
a única fonte de tudo o que existe de verdadeiro e nada existe sem dela
provir e sem a ela se prender. Ora, como essa fonte universal não suspende
jamais a ação pela qual se reproduz, por conseqüência
ela mesma jamais deixa de reproduzir universalmente as próprias imagens.
Aonde, pois, poderia ir o homem sem deixar de encontrá-las e sem se ver
cercado por elas? Para qual exílio poderia ele ser banido sem levar delas
qualquer marca? O mesmo devemos dizer do Princípio do mal, cuja existência
é atestada pela contra-ação penosa que opera em nosso pensamento.
Certamente os raios ativos da luz penetram até ele. Vemos que as águas
doces não se limitam a fecundar a terra, subdividindo-se em milhares
de regatos em sua superfície, mas dirigem-se para o mar a fim de colaborar
com as outras causas naturais para amenizar-lhe o amargor e impedi-lo de transformar-se
numa massa inútil de sal. Não seria isso uma indicação
de que, assim como depois de haverem vivificado e enchido o coração
do homem - seu reservatório natural - as virtudes superiores transbordam
e descem até o foco da corrupção para adoçar-lhe
o amargor e impedir que o ardor desse fogo impuro seque de tal modo o germe
do crime que ele não mais pode dissolver-se nem decompor-se? Entretanto,
por serem criminosos, os Seres estão realmente separados do Chefe divino
pela privação do exercício de suas faculdades. Embora a
virtude do Criador se transmita até eles, eles permanecem nas trevas
e na morte, destinadas aos Seres de mentira e de erro se, por causa da corrupção
de sua vontade, nada retornar para ele. É uma grande verdade que as relações
dos Seres devem ser apreciadas subindo-se delas para o Princípio, e não
descendo-se do Princípio até elas, porque é nele que elas
têm sua fonte e todo seu valor, ao passo que o Princípio, tendo
possuindo essas coisas em si, não necessita buscálas em qualquer
outro Ser. Por fim, podemos dizer que, se Deus conserva ainda vida e virtudes
nos Seres culpados, é do mesmo modo como conserva a palavra nos homens
ociosos e que assim, em ambos os exemplos, são evidentes os traços
da degradação. Embora haja uma distância incomensurável
entre os homem degradados e o Criador, devemos reconhecer que essa distância
só é relativa a eles, em nada agredindo a indivisível universalidade
do Eterno. Ele está ligado sempre a esses homens pelos direitos da lei
natural e intelectual e jamais o Pai comum dos Seres perderá de vista
a menor de suas criações. Caso contrário, seria preciso
que seu amor se extinguisse e, extinguindo-se o amor, não haveria mais
Deus. Permitamo-nos uma comparação tomada à ordem física.
Quando um homem está fisicamente desperto, frui a luz elementar, sabe
sensivelmente que ela existe e que está junto dele. Se adormece, não
a percebe. Mas os que velam junto dele vêm-na não podendo negar
que ela se reflete no corpo adormecido. Assim acontece com a luz intelectual:
quando nos aproximamos, ela nos aquece e ficamos conhecendo com clareza a sua
existência. Mas, se fecharmos os olhos à sua claridade, não
percebemos mais a luz. Ficamos nas trevas e, no entanto, para os que estão
despertos, é certo que ela está sempre sobre nós e que,
na qualidade de Seres livres e indestrutíveis, conservamos o poder de
abrir os olhos aos seus raios. Assim, intelectualmente mortos ou vivos, estamos
ininterruptamente sob o olhar da grande luz, jamais podendo ser inacessíveis
ao olhar do Ser universal. Coloquemos aqui a principal coluna de nosso edifício
e examinemos os caminhos que a Sabedoria não cessa de empregar para proporcionar
ao homem essa reação superior, sem a qual todos os frutos de sua
natureza seriam reprimidos no germe. Se o homem, excluído da morada onde
reside a luz não pode hoje contemplar o pensamento, a vontade e a ação
supremas, no conjunto ou em separado, ele as pode reconhecer ainda numa subdivisão
relativa a ele somente, ou seja: numa multidão de imagens de todos os
gêneros que o cercam e estão destinadas a fazê-lo reagir
e abrir os olhos à verdade. Sem essa reação, o homem não
seria culpado de permanecer nas trevas sem recobrar a idéia das faculdades
de seu modelo. Se entre os Seres materiais não houver nenhum que possa
manifestar sem reação o que nele existe, há, do mesmo modo,
uma reação para o espírito do homem, que tem como eles
um princípio gerador. Também o homem não pode olhar em
torno de si sem perceber as imagens mais expressivas das verdades que lhe são
necessárias. O princípio supremo manifesta de início a
existência de suas faculdades criadoras pela existência da matéria,
pois todo indivíduo material é e só pode ser uma criação.
Manifesta, além disso, a lei progressiva da ação dessas
faculdades pelas ações sucessivas e geradoras dos elementos. Eis
a ordem dessas últimas. Há um fogo princípio invisível,
incoercível, do qual procedem todas as substâncias particulares
que constituem os corpos. O fogo princípio é indicado pelo Flogístico
que exala das matérias em dissolução. Produz três
atos sensíveis. Pelo primeiro, gera o fogo material e visível,
representado nos animais pelo sangue. Esse fogo grosseiro é tríplice
pelo que contém em si de água e de terra, mas essa triplicidade
é simples, porque ainda não há separação.
A segunda operação separa do fogo visível e material um
fluido aquoso muito mais grosseiro, representado pelo germe animal extraído
de seu sangue ou do princípio universal difundido na forma. Esse fluido
aquoso, germe, água, é dupla, pois está unida com à
terra, sendo produzida pela segunda ação. A terceira ação
separa da água a terra, o sólido ou a forma. Aos nossos olhos,
a forma parece simples ou una, mas essa simplicidade é tripla por suas
dimensões e por seu nível de emanação. E é
nisso que se opõe ao fogo, cuja triplicidade é simples. Eis a
lei progressiva e numérica dos atos sensíveis, gerais e particulares
das faculdades criadoras e universais. Vê-se aqui como as coisas se tornam
físicas e grosseiras. À medida que descem, vemos de onde vêm
as disputas dos Filósofos que pretenderam - uns, que tudo vinha da água;
outros, do fogo; e outros do mercúrio ou da terra. Todos tiveram razão
e tudo depende do grau de progresso em que se detiveram. Há também
uma lei ascendente pela qual as emanações das faculdades elevam-se
ao seu Princípio gerador, sendo o inverso da primeira - mas, agindo ambas
circularmente, elas se sucedem sem se prejudicarem, operando de comum acordo,
segundo a razão dupla que constitui o tempo. Por essa lei ascendente,
a forma sólida e terrestre desaparece, liqüefazendo-se ou tornando-se
água. A água se volatiliza e desaparece, sendo devorada pelo fogo
elementar. O fogo elementar desaparece, entrando novamente em seu fogo princípio,
cuja ação voraz, mas invisível, será demonstrada
pela ação do próprio fogo elementar, que consome sob nossos
olhos os objetos que produziu. Como as forças descendentes e ascendentes
das faculdades criadoras universais estão perpetuamente em ação
diante de nós, podemos sempre descobrir a fonte de onde provêem
todas coisas e onde elas devem entrar novamente. Cada um dos graus que acabamos
de observar é como um farol que ilumina os pontos superiores e inferiores,
no meio dos quais está colocado na progressão circular. Mas ponderemos
sobre os objetos elementares na classe terrestre: embora não possamos
atingir nela o seu Princípio gerador, podemos pelo menos perceber-lhe
e admirarlhes as leis. Se contemplarmos os corpos e os elementos em seus feitos
e atos temporais e terrestres, poderemos reconhecer uma imagem da atividade
contínua das faculdades criadoras universais pelo estado perpétuo
de eflúvios e transpirações onde estão, simultaneamente,
os Seres de todas as classes de nossa região. Veremos que, entre os três
elementos, o fogo sobe, a terra desce e a água percorre uma linha horizontal,
para ensinar-nos que a ação das faculdades superiores, da qual
os elementos são os órgãos, preenche e mede toda a extensão
da circunferência universal. Se considerarmos as propriedades dos três
reinos, encontraremos neles o índice dos poderes ocultos, dos quais são
o emblema e a expressão. O ouro, por sua surpreendente ductilidade, mostra-nos
a prodigiosa extensão das forças da Natureza, que por esforços
infinitos transmite suas virtudes até aos seres mais distanciados, estabelecendo
com isso uma correspondência universal. As plantas absorvem os vapores
impuros da atmosfera. Ao combiná-los às suas emanações,
dissolvem-nos, devolvendo-os com qualidades menos maléficas, para ensinar-nos
novamente, e fisicamente, que a existência dos seres da Natureza só
tem como fim atenuar os males e as desordens. Se as plantas produzem efeitos
indiferentes durante a noite, ou mesmo durante o dia quando não estão
expostas aos raios do sol, é que, ocupando entre os três reinos
a mesma posição da água entre os três elementos,
elas são particularmente, como a água, um tipo duplo: podem mostrar
alternativamente os efeitos vantajosos realizados por um Agente à vista
de seu princípio de reação e os efeitos funestos aos quais
fica reduzido aquele que deles se separa. Quanto ao reino animal, vemos uma
representação ativa da celeridade com a qual a vida do grande
Ser se comunica com toda a cadeia de suas criações por esse movimento
rápido e uno, que transmite, ao mesmo tempo, a ação do
sangue em todas as artérias, não tendo necessidade alguma de progressão
nem de qualquer intervalo para passar do centro aos extremos mais afastados.
Por fim temos o ar, ser à parte dos elementos, símbolo sensível
da vida invisível, cujo destino é purificar a terra, já
que sua ação é mais regulada e mais constante, conforme
os climas em que ele age estejam, em grau maior ou menor, expostos às
exalações corrompidas. À imagem da ação superior,
o ar opera a reação geral dos corpos penetrando até o seio
de todos os germes. Torna-se assim um móvel universal, onde os Seres
encontram o que deve contribuir, seja para sua existência, seja para sua
salubridade. Pois há um ar para a terra, um ar para a água e um
ar para o fogo. É verdade, pois, por obscura que seja nossa morada atual,
que não podemos dar um passo sem termos à nossa volta os signos
visíveis dos móveis criadores vivos que ainda nos são desconhecidos.
A Natureza celeste nos apresentará a mesma verdade. Embora estejamos
privados da visão do Princípio que move os astros, embora estejamos
mesmo prodigiosamente afastados deles, usufruímos sua luz, recebemos
a emanação de seu fogo. Podemos até formar conjecturas
ousadas e brilhantes sobre a ordem que receberam quando de sua origem e sobre
o verdadeiro objeto de sua existência. A tal ponto, os Sábios pensam
que todas as leis dos seres sensíveis estejam escritas neste vasto e
magnífico Quadro e que a mão divina envolveu a terra para que
aqueles que nela habitam possam ler nela, a todo instante, os sinais e os caracteres
da verdade. Assim, o conjunto do Universo material nos descreve, num brilho
pomposo, a majestade das Potências supremas. Nele vemos astros brilhantes
distribuindo sua luz pelo Mundo, os Céus corporais imprimindo as leis
e os modelos dos seres no ar da atmosfera, estes trazendo os planos à
terra e a terra executando-os com um ardor e uma atividade que jamais têm
descanso. É, pois, verdade que a Natureza universal é para o homem
como que uma grande árvore cujos frutos ele pode contemplar e saborear
o bastante para consolar-se do fato de não poder ainda descobrir-lhe
os germes e as raízes. Através desses quadros, a Natureza não
somente apresenta ao homem, as marcas daquilo que ele pôde contemplar
em sua origem, mas ainda lhe ensina a fixar a vista no quadro primitivo e nos
meios que deve empregar para readquirir seu deleite. As leis dos seres da região
sensível fornecem ao homem muitas instruções claras do
que tem a fazer todos os dias para recuperar o esplendor e a glória.
Todos os corpos da Natureza tendem a despojar-se de suas cascas grosseiras para
devolver ao Princípio que os anima o brilho que ele traz em si mesmo.
O fogo, próprio a cada um deles, coopera sem cessar nessa grande obra
purificando continuamente as substâncias de que eles se nutrem. Nosso
sangue mesmo está destinado a preencher sem descanso essa importante
função: deve preparar nossas bebidas, nossos alimentos, separar
o puro do impuro e empregar sua ação para afastar tudo o que eles
contêm de maléfico e por demais material. Isso certamente equivale
a ensinar ao homem o emprego dos dois principais agentes que nele há:
a inteligência e a vontade. Ele dever aplicar o fogo delas sobre as substâncias
intelectuais que lhe são oferecidas, separar delas tudo o que não
seja análogo ao seu ser pensante a fim de deixar entrar apenas as seivas
vivificantes e puras como ele e com as quais possa formar a união, a
harmonia e a unidade que é, ao mesmo tempo, o objeto e o termo de todas
as ações e de todos os seres da Natureza. Quanto ao fogo em geral,
ele ensina aos homens o que seriam os seus deleites e luzes se exercessem com
perseverança as faculdades que neles existem, levando-lhes a ação
até o ponto que sua essência lhes permitisse atingir. O fogo tem
o poder de vitrificar os corpos, isto é, de purgá-los de tal maneira
de suas escórias e cascas que seu princípio radical chega, de
algum modo, à pureza e simplicidade naturais. Com isso, tais corpos,
cuja opacidade os tornava impenetráveis à nossa vista e nos interceptavam
os outros objetos, adquirem uma claridade visível e uma transparência
cujos efeitos não impõem mais limites a nossos desejos e conhecimentos.
Eles dão aos homens o meio de usufruírem a luz dos astros sem
se ressentirem dos rigores da atmosfera e de existirem no meio das intempéries
da região terrestre não lhes recebendo os ataques, como se eles
realmente não ocorressem. Imagem grosseira, mas instrutiva, duma outra
espécie de segurança que o homem pode igualmente alcançar
no meio das tormentas que resmungam nessa tempestuosa morada. Dão-lhe
esses corpos o meio de penetrar nos mistérios da natureza; de perceber,
por um lado, maravilhas que a pequenez dos objetos parecia haver para sempre
excluído de seus conhecimentos; por outro, de dirigir os olhos à
região mais elevada dos astros. Eles colocam o homem em condição
de medir-lhe as dimensões, calcular-lhe os movimentos e ler, como que
sem disfarce, as leis dos grandes móveis do qual ele se acha separado
por uma distância tão prodigiosa que nem poderia supor a existência
de muitos que escapam à visão simples. Todos esses fatos são
para o homem outros sinais a demonstrar que, tivesse ele coragem de conduzir
a própria vontade ao seu verdadeiro ponto de depuração,
concederia ao seu Ser intelectual uma careza e uma transparência análogas
à sua classe, conseguiria um grau de purificação que o
faria não apenas descobrir a marcha dos Seres materiais que o rodeiam,
mas também o ajudaria a elevar-se até à ordem intelectual
mais acima dele, até à ordem viva da qual hauriu a origem, mas
da qual está hoje tão afastado que a julga inacessível
à visão. No sensível e no intelectual ele está certo
de que só existe esse grosseiro, a mácula formada para o homem
pelas trevas, os afastamentos e as distâncias, e de que tudo está
claro para ele, tudo está junto dele quando nele tudo é puro.
Apesar de todas as belezas gravadas na criação temporal, admitamos
que nelas só vemos leis de rigor e violência, fatos não
livres e que nem mesmo demostram uma inteligência nos agentes que os operam,
embora fora deles haja necessariamente uma inteligência para comandá-los
em todos os seus atos, executados com ordem e regularidade. Seria, pois, em
vão que na matéria buscaríamos imagens reais e permanentes
do Princípio da vida, do qual infelizmente estamos separados. E se o
homem não tivesse tido outros sinais além dos objetos materiais
para recuperar o conhecimento desse Princípio, a Justiça divina
teria pouco a lhe pedir. Já observamos que no homem, por mais corrompido
que seja, sempre se encontram vestígios de virtudes e faculdades estranhas
a qualquer Natureza material. Vimos que as idéias da justiça e
da benignidade eram conhecidas em todos os séculos e Povos, embora as
tenham tantas vezes desfigurado, havendo mesmo aplicado seus nomes respeitáveis
a objetos criminosos. E além do mais, levando em conta a forma corporal,
o homem poderá provar a si mesmo que possui virtudes mais ativas ainda
do que essas de que acabamos de falar. Podemos dizer que ele traz em si os sinais
vivos de todos os mundos e Universos. E se considerarmos intelectualmente três
dos principais órgãos que lhe ornam a cabeça, veremos por
que o órgão da audição é completamente passivo,
recebendo impressões e nada retornando; por que os olhos são ativos
e passivos, exprimindo exteriormente as afeições internas e transmitindo
ao interior as impressões dos objetos exteriores; e por que a língua
é um órgão totalmente ativo, com o dobro do poder de traduzir
com a mesma faculdade as operações do pensamento ou do raciocínio
e os movimentos ou paixões da alma. Podemos mesmo levar nossas observações
intelectuais até o centro invisível que anima os três órgãos,
até a morada oculta do pensamento, cuja sede está no interior
da cabeça, assim como a Divindade suprema estabeleceu o seu centro num
santuário impenetrável, embora seus atributos lhe manifestem a
existência e a ação a todos os Seres. No homem invisível
encontraremos o número das faculdades do Princípio divino que
formam o tipo de todos os Seres. Embora não mais atuem em nós
senão por uma sucessão lenta e penosa, em nós elas são
absolutamente indivisíveis como o são na Divindade. Deveriam ter
exatamente o mesmo objeto. E se o homem não tivesse o direito funesto
de extraviar-se apenas pelo poder da vontade, existem aqueles que não
se reconheceriam diferentes de seu modelo. Independentemente dos objetos da
Natureza que cercam o homem e lhe exprimem o princípio, ele possui o
meio mais vantajoso e mais verdadeiro de reconhecê-lo em si mesmo e nos
semelhantes. É certo que, como Deus retratou a si mesmo em todas as obras
da Natureza, e mais particularmente no homem, nada existe nas nossas trevas
que não leve seu sinal e a imensidade das imagens de Deus. Verdade luminosa
que deve servir de guia garantido para descobrir as imagens que possam preencher
os desejos do homem. Na união do homem com o Universo, podemos eximir-nos
de perceber um esboço ativo da harmonia divina em que o primeiro Ser
nos é representado como dominando todas as inteligências e delas
recebendo o tributo e a homenagem que devem à sua grandeza? E realmente,
que posição ocupa o homem na terra? Todos os seres da natureza
agem em torno dele, todos trabalham para ele: o ar, o tempo, os astros, os ventos,
os mares, os elementos, tudo age, tudo contribui para seu bem-estar, tudo concorre
para sustentar-lhe a existência. Só ele, no meio desse vasto império,
tem o privilégio de poder ser superior à ação temporal.
Pode, se quiser e para isso tiver coragem, apropriar-se de todos os dons e Virtudes
do Universo. O único tributo que a Sabedoria exige do homem ao deixá-lo
empregar tais benefícios é que ele lhe renda glória e a
reconheça como soberano árbitro de tudo o que existe; que restabeleça
em suas faculdades a mesma lei, ordem e regularidade que ele vê dirigir
os Seres da Natureza. Em suma, que em lugar de agir em seu próprio nome,
como sempre faz, ele aja sempre, como os Seres, apenas em nome do Deus vivo
que o criou. Eis a grande obra, ou a mudança da vontade a respeito da
qual dissemos que as Potências da Natureza vêm sendo empregadas
desde a origem das coisas, sem ainda terem podido operar. "Mas a superioridade
do homem sobre a Natureza é demonstrada de maneira mais ativa pelas simples
manipulações que ele pode executar na matéria, as quais
nos devem dar uma idéia maior da extensão de seus direitos. Não
há corpo material algum, por mais duro e cristalizado que seja, do qual
não se possam extrair os princípios que servem para gerar todos
os corpos dos três reinos. Para isso, basta empreender uma marcha oposta
à seguida pelo corpo duro para chegar a esse estado de solidez. É
preciso, pois, começar trabalhando em sua dissolução. Embora
o homem saiba operar bem poucos tipos de dissolução, não
deixa de ser verdadeiro que eles são possíveis, visto que a Natureza,
por suas operações segundas, disso nos fornece todos os dias a
prova e os meios. Pois, na ausência de ciência, podemos ao menos
aproveitar exemplos da Natureza, sempre pronta a suprir nossa fraqueza e ignorância.
Mas é preciso nos lembrarmos de que as criações resultantes
de nossos procedimentos serão sempre inferiores às realizadas
imediatamente pela Natureza, as únicas que merecem ser ligadas ao seu
reino, como trazendo sobre si grandes caracteres. "Sem perdermos de vista
essa prudente observação, pulverizemos o sal mais compacto, o
mármore e o granito mais duros. Exponhamos esse pó, que não
podemos tornar fino demais se quisermos ter êxito, deixemo-lo exposto
ao ar livre da atmosfera, sem água, protegido o mais possível
da chuva, da poeira e dos corpos estranhos já determinados. Pouco a pouco
o ácido do ar agirá sobre o sal pulverizado, extraindo-lhe as
substâncias análogas a si e deixando de lado as outras que, com
o correr do tempo, converter-se-ão inteiramente em terra vegetal. Desde
que se tenha a posse dessa terra vegetal, estão feitas todas as descobertas.
A umidade do ar une-se a ela, fazendo nascer pequenas plantas. Atingindo o ponto
de maturidade, as plantas sofrerão uma nova operação, ou
dissolução mais natural que a da infusão grosseira, e delas
veremos nascer insetos e até algumas espécies de metais, se soubermos
proceder. Isso será uma demonstração completa de que o
princípio universal está distribuído em todos os corpos.
Que não se creia que aqui eu esteja contradizendo o que foi anteriormente
adiantado sobre a fixidez dos caracteres dos Seres, que jamais podem elevarse
a outra posição além da que lhe foi dada pela Natureza.
Nos procedimentos de que falamos, as transmutações só acontecem
porque os diferentes germes inatos em cada corpo separam-se uns dos outros para
agirem livremente segundo sua lei, mas nenhum deles deixa seu reino. É
preciso observar ainda que os resultados das transmutações caminham
sempre para a degeneração e que, quanto mais se repete o procedimento
com as mesmas substâncias, tanto mais fracas são as reproduções
delas procedentes, o que as torna cada vez mais inferiores às produções
primeiras da Natureza. Podemos, contudo, admirar os direitos do homem, já
que, por sua liberdade de uso para fazer diversas substâncias materiais
ele tem o poder de transmutar tudo o que se encontra em seu recinto, converter
terras em materiais, plantas em insetos e estes numa nova terra, da qual resultarão
novas combinações; com um só procedimento, pode transformar
animais e plantas em minerais e sais, os rochedos mais duros em corpos organizados
e vivos e, de alguma forma, mudar o aspecto de tudo o que dele se aproxima.
Não hesitemos em aplicar essas observações aos objetos
imateriais. Para o homem, ou eles estão todos separados, ou como que
introduzidos nas substâncias e envoltórios que parecem gerar-lhes
a ação. Mas como ele próprio é um dissolvente universal,
de alguma forma poderia, se gozasse dos direitos de sua inteligência,
realizar na classe dos objetos intelectuais o mesmo que faz nos corpos por meios
dos agentes sensíveis e corporais. "Tudo nos incita, pois, a crer
que o homem, restabelecido em seus direitos, poderia agir tanto nos Seres imateriais
corrompidos quanto nos Seres puros dos quais atualmente está separado
por fortes barreiras. À imagem do Agente supremo, teria o poder de dissolver
e decompor os envoltórios, pôr a descoberto os princípios
aí contidos e concentrados, (fornecendo-lhes com isso os meios de produzir
frutos de todos os reinos que lhe são próprios), recompor os simples,
manter na inação os insalubres, isto é, fazer com que por
toda parte a abundância suceda à esterilidade, a luz às
trevas, a vida à morte, e transfigurar de tal maneira tudo o que o rodeia
que sua morada venha a ser semelhante à da própria Verdade."
Não nos iludamos: o espetáculo maravilhoso da ação
interrupta dos Seres corporais, "o próprio espetáculo da
superioridade que o homem deveria ter sobre eles pelo uso e a aplicação
que pode fazer de sua lei" não passa certamente de uma representação
muito frágil e inferior da harmonia divina que liga as três faculdades
primeiras aos Seres inteligentes. Nessa classe divina tudo é santo, tudo
é verdadeiro, tudo age de comum acordo e tende a um mesmo alvo. O Chefe
divino, no centro de suas puras emanações, une-as a si pelos direitos
do amor e da ventura ao derramar-lhe no seio as doçuras de sua existência
e de suas Virtudes. Neste ponto, os Súditos não podem jamais elevar-se
acima do Soberano e se dentre eles alguns tiveram a infelicidade de se revoltar
contra suas leis, jamais puderam atacá-lo diretamente, pois perderam-no
de vista no próprio instante em que conceberam esse horrível pensamento.
Além disso, quaisquer que sejam os crimes, a clemência do Mestre
não abandona os culpados: mais do que estimular sua justiça, ele
a modera; mais do que subjugar os criminosos, procura ganhá-los. Envolve,
por assim dizer, a sua potência com o seu amor para que não se
aterrorizem com o seu nome e para mostrar-lhes que é mais cioso de reinar
sobre eles pelo amor do que pelo poder. Não acontece assim na classe
temporal, em que o Súdito e o Mestre são quase sempre confundidos.
Todos os Seres corporais - todos os agentes da Natureza destinados ao serviço
do homem fazem-lhe guerra contínua. E ao ficar ele entregue a si mesmo,
longe de vê-lo como Rei do Universo, nós o tomaríamos mais
por um proscrito ou por um vil escravo daqueles de quem deveria ser o comandante.
E mesmo quando usa seus direitos e o império lhe parece em ordem melhor,
só nos oferece figuras desse verdadeiro império do qual acabamos
de traçar um débil quadro: não são constantes nem
inalteráveis o poder e a extensão de suas faculdades. E se ele
revelar realmente uma representação das três faculdades
divinas, só podemos dizer que ela não passa de um esboço
quase irreconhecível. Não somente seu pensamento não lhe
pertence, não somente sua vontade não é constantemente
pura, mas sua ação mesma é incerta, sem possuir a segurança
nem a autoridade do Mestre e do Soberano, de modo que quase não podemos
reconhecerlhe quaisquer dos traços vivos da terceira Virtude divina que
essa ação deveria representar. Entretanto, é por causa
da nossa semelhança com essa terceira faculdade que devemos começar
a corrigir as deformidades que nos desfiguram. Se a lei pela qual o primeiro
Princípio nos deixa perceber a sua imagem no mundo - está ligada
a uma ordem temporal e sucessiva, devemos trabalhar para manifestar os direitos
e a vida da ação divina antes de pretendermos manifestar as duas
faculdades que a precedem: em toda progressão ascendente é necessário
passar pelo inferior antes de seguir para o superior. Todavia, os termos superior
e inferior16 só devem ser empregados para indicar os limites em que nossa
inteligência está hoje encerrada. Em Deus, nada é superior,
nada é inferior: tudo é um no indivisível, tudo é
semelhante, tudo é igual na unidade. Mas as conseqüências
dos desvios do homem não apenas fizeram com que as Virtudes temporais
dos Seres da criação fossem subdivididas: elas até obrigaram
a Divindade a só mostrar de maneira progressiva as Virtudes de sua própria
essência ao Ser culpado. Há nisso uma prova do amor que ela sente
por ele: como o homem não tem mais a força necessária para
contemplar sem perigo a unidade divina, ela se reparte em seu favor a fim de
que ele encontre sempre os meios de reconhecê-la sem que ela o ofusque,
como aconteceria se surgisse diante dele em todo o esplendor. Ora, nessa espécie
de subdivisão, relativa apenas ao homem, é da terceira faculdade
divina, ou ação, que devemos aproximar-nos de início, já
que seu número a coloca depois das duas outras e, como conseqüência,
muito perto de nós. 16 Negritos da tradutora. Se nos for demasiadamente
difícil conceber as palavras ação, vontade e pensamento
(que apresento como distintas umas das outras, embora essas três faculdades
sejam uma em sua essência), bastará que nos limitemos a essa idéia
geral para termos a compreensão perfeita desse escrito: como o homem
perdeu de vista a unidade das potências divinas por causa do crime, contempla-os
separadamente, e as potências, transmitindo-se a ele, só se mostram
sob uma multidão inumerável de fatos, signos, emblemas, sob uma
multiplicidade de Agentes e de meios que o faça sentir quão privado
está da unidade e das delícias da qual é ela a fonte e
o foco. Se na espécie humana, considerada com relação à
ordem física, vemos homens notáveis pela beleza e proporção
de seus corpos, sua força, agilidade e as diversas vantagens da forma
e dos órgãos, devemos pensar que o mesmo acontece na ordem das
faculdades intelectuais. E que, se o número maior está reduzido
às noções mais comuns e menos elevadas, em todos os tempos
deve ter existido homens que se distinguiram dentre seus semelhantes e que estão
mais próximos que eles da luz - diferenças observadas ainda todos
os dias com relação ao que vulgarmente chamamos de Ciências.
Embora todos os homens da terra estejam destinados a manifestar, no mundo mesmo,
alguns raios das faculdades divinas, podemos crer que alguns dentre eles são
convocados a essa obra por uma determinação mais positiva do que
os outros homens, possuindo feitos mais vastos e mais consideráveis a
realizar. Uns, encarregados somente da própria regeneração,
só terão de contemplar o quadro dos socorros que a Sabedoria suprema
lhes apresenta e se esforçar para aplicar os frutos a si mesmos. Outros,
destinados a difundir esses socorros, deverão ter forças maiores
e dons mais extensos. Para fixarmos nosso pensamento nesse objeto, consideraremos
todos os homens da terra como Eleitos, mas divididos em duas classes: a dos
Eleitos particulares e a dos Eleitos gerais. Acrescentaremos que dificilmente
os Eleitos gerais poderão descer até a posição dos
Eleitos em particular, mas que a todos é dado, pela coragem e pelos esforços
contínuos da vontade, elevar-se à posição dos primeiros.
Porque é mais difícil a um homem consumado na Ciência esquecer
o que sabe do que um homem ignorante adquirir conhecimentos. Isso nos força
a examinar por um instante o sistema da pretendida facilidade vinculada ao destino
do homem. As dificuldades suscitadas na matéria vêm do fato de
que atribuímos aos Eleitos particulares aquilo que foi dito apenas sobre
os Eleitos gerais. Já que está claro que a maior parte dos homens,
ao permanecer como depositária de seu livre arbítrio permanece
também depositária de suas ações - e, como conseqüência,
do resultado que as acompanha -,a partir do fato de que haveria na espécie
humana alguns seres privilegiados e destinadas a obras maiores, deveríamos
concluir que todos os homens devem ser predestinados? Não teríamos
razão, em suma, em assimilar todos os eleitos e concluir, a partir da
minoria, pela universalidade dos homens. Certamente não nos limitaremos
a isso e perguntaremos por que tal homem foi escolhido de preferência
dentre todos os outros e colocado na posição dos Eleitos privilegiados,
ou gerais. Para atingir o núcleo dessa dificuldade, seria preciso que
nos elevássemos até às leis simples, mas universais, da
Sabedoria divina que, tendo deixado marca em todas as suas obras, gravoua na
espécie humana, bem como nas outras criações. Acrescentemos
que, como a Natureza humana é o quadro figurativo universal da Divindade,
assim como de suas Virtudes e Potências, deve ver que todos os tipos se
repetem nos diferentes indivíduos de sua própria espécie.
Eis por que deve haver alguns homens encarregados de manifestar as coisas divinas;
outros, as coisas intelectuais; outros, as físicas e naturais, sem falar
de outro tipo de manifestação cuja necessidade é igualmente
absoluta entre os homens, mas que não seria prudente revelar à
multidão. A lei que dirige os tipos de eleição é
semelhante à lei que constitui a própria Divindade: tem como base
a propriedade sagrada das faculdades do primeiro princípio e a ordem
numérica agindo sobre os Seres que devem representá-los. Propriedade
co-eterna da essência suprema, e para a qual não pode haver outra
razão senão a de sua existência, já que esta razão
e sua existência são a mesma coisa. E é somente através
desse conhecimento que compreenderíamos aquilo a que demos o nome de
liberdade nesse grande Ser. Assim, não jamais saberíamos por que
motivo certos homens têm tais ou quais tipos a manifestar de preferência
a outros homens sem conhecerem antecipadamente a lei numérica à
qual a Sabedoria suprema sujeitou-lhes a origem. Ou antes, seria preciso saber
por que é que as faculdades divinas são tão diversas, embora
intimamente unidas e para sempre inseparáveis. Por que o pensamento não
é a vontade, a vontade não é a ação e a ação
não é nem o pensamento nem a vontade. Mas, se em rigor essas questões
não estão acima da inteligência do homem, são quando
nada inúteis e com freqüência muito perigosas para ele, sobretudo
quando ele não as persegue no verdadeiro caminho, que é a ação.
Se a ação é o germe essencial de nossa reabilitação,
é necessário, a princípio, que o germe opere para em seguida
nos fornecer os conhecimentos e as luzes, seus frutos verdadeiros. Permanecendo,
pois, fiéis a esta ação, reconheceremos que compete somente
a ela confirmar as verdades até aqui expostas e dissipar-nos todas as
obscuridades. Entremos novamente no nosso assunto para descobrirmos os caminhos
físicos e intelectuais pelos quais os Eleitos gerais, ou os privilegiados,
foram admitidos a esse título sublime. Se eles houvessem tido apenas
os recursos naturais e humanos cujo quadro percorremos anteriormente, se jamais
houvessem tido nem mesmo o socorro dos outros homens privilegiados como ele,
só teriam visto nisso tipos secundários e inferiores, através
dos quais não teriam descoberto por que razão o homem existe.
E sem conhecerem ainda as Virtudes eficazes do grande Princípio, teria
sido impossível elevarem-se à posição sublime da
qual haviam descido, e Deus teria pronunciado ao homem um decreto que jamais
poderia ser cumprido. É preciso, pois, segundo a ordem da imutabilidade
divina, que a Sabedoria superior haja apresentado aos Eleitos privilegiados
sinais ativos, evidentes e diretos das virtudes e faculdades com os quais o
homem deve encetar o curso de sua regeneração. Por fim, é
indispensável que as próprias Virtudes da Sabedoria divina se
hajam aproximado dos homens privilegiados, fazendo-os tocar sua própria
substância a fim de lhes fornecerem os meios para que eles manifestassem
sua ação e começassem a cumprir a tarefa para a qual haviam
recebido a existência temporal. Não teremos dúvida alguma
sobre essas verdades quando refletirmos que as virtudes divinas, irradiando-se
em todos os sentidos como o fogo solar, vivem numa atividade contínua
que as faz proceder ao mesmo tempo em todas as progressões do infinito:
dúvida de que assim, no seu percurso, é-lhes obrigatório
encontrar o homem e que, quanto mais o homem for análogo a elas, tanto
mais elas tendem a unir-se a ele pelas relações essenciais de
sua natureza. E é essa a reação que, independentemente
da universalidade da ação divina, é demonstrada em particular
em cada um de nós: por não ter o homem o pensamento por si próprio,
todos os dias ele recebe pensamentos vivos e luminosos. Se algum homem se queixar
de que nada recebe de semelhante, essa falta não é um vício
de sua natureza, mas conseqüência da negligência por não
se haver apoderado dos raios oferecidos na primeira idade e apresentados como
guias para conduzi-lo ao gozo permanente de uma luz maior. Quando dizemos que
as Potências de Deus se transmitem aos homens de maneira indispensável,
falamos de uma necessidade apoiada em leis fundamentais que Deus imprime nos
Seres e sobre a imutabilidade de seus decretos. Assim, ela não deve diminuir
perante os nossos olhos a grandeza de seu amor e menos ainda fazer-nos acreditar
que estamos dispensados de contribuir com ele na obra, como se ele devesse operar
sozinho e sem o concurso de nossa livre vontade. Formando uma classe à
parte dos Eleitos gerais, que, por estarem sempre unidos ao próprio grande
Princípio não nos permitem fazer distinção alguma
entre a Ação divina desse Princípio e o próprio
livre Arbítrio, diremos o mesmo que ocorre tanto com o amor quanto com
a justiça. Ambos não passam de apoios apresentados para nos ajudar
a sair do abismo, mas nos deixam, de ordinário, a mais inteira liberdade
para apropriarmo-nos deles, assim como para deles fugir e abandoná-los.
Embora os socorros que a Sabedoria suprema concede ao homem sejam uma conseqüência
do amor que a constitui, ele ainda deve pedir-lhe até a força
para deles fazer uso e empregar todas as Potências de seu Ser para que
os socorros não lhe sejam dados em vão. Como a Sabedoria impõe
sempre uma condição às suas graças exigindo sempre
um trabalho do homem, cabe à vontade do homem, posteriormente, determinar-lhe
a eficácia. Semelhantes aos traços da luz colorida, que se prolongam
quando encontram meios por demais divididos e débeis para neles se apoiarem
e refletirem, os raios supremos atingem inutilmente o homem, deixando-o para
trás quando não há nele base alguma para fixá-los.
Se os homens pudessem agir segundo sua lei verdadeira, sem o socorro de Deus,
ou se Deus devesse agir nos homens sem o concurso deles, os Teólogos
e Filósofos teriam fundamento para fazer tantas perguntas sobre o livre
arbítrio e os efeitos da graça divina, a qual nada mais é
que o amor. Mas como o bom uso do livre arbítrio atrai a graça,
ou o amor e, de modo recíproco, esse amor dirige o livre arbítrio
e o purifica, é evidente que não devemos jamais separá-los.
Está claro que o amor e a liberdade auxiliam-se continuamente e que essas
duas ações, embora distintas, estão sempre unidas por relações
íntimas e recíprocas. Entretanto, não é preciso
crer que a vontade humana possa tornar nulos os decretos das manifestações
do Poder supremo que deveriam ser feitas através do órgão
do homem; porque, se o homem não cumprir o alvo de sua emanação,
é esse poder mesmo que se mostra. Assim, aqueles que devem ser seu objeto
jamais podem deixar de tê-lo presente diante de si, seja para seu proveito
ou molestamento. Prossigamos com o nosso assunto. Não bastaria que as
Potências divinas, subdividindo-se, trouxessem até o homem as virtudes
que as constituem. Seria necessário ainda que cada uma delas o fizesse
de maneira proporcional à região tenebrosa habitada pelo homem.
Seria necessário que empregassem os próprios meios por ele empregados
para até aí descer; que passassem pelos mesmo caminhos; que se
cobrissem com as mesmas cores e seguissem as leis com a mesma aparência
que o cerca, e isso pelas relações, que em seguida darei a conhecer,
existentes entre o corpo do homem, a origem das línguas e os caracteres
da escrita. Sem isso, a vista enfraquecida do homem não teria podido
suportar o brilho das Potências. Ou, não lhes percebendo analogia
alguma consigo mesmo, elas lhe teriam parecido estranhas ou demasiado acima
dele, o homem teria desconfiado delas e, desviando os olhos, teria perdido os
únicos meios que conseguiu atingir para se lembrar de seu primeiro brilho.
É assim que o fogo dos astros nos ofuscaria ou consumiria se pudesse
percorrer o espaço que os separa de nós sem atravessar os fluidos
da atmosfera que, por sua natureza úmida e densa, moderam ao mesmo tempo
sua atividade e seu esplendor. É assim que esses próprios fluidos,
por demais sutis e rarefeitos para nossa região, seriam inúteis
e mesmo nocivos à terra se pudessem descer à sua superfície
sem se condensarem mais uma vez em orvalho, chuva, neve, e sem se ajuntarem
em glóbulos sensíveis e análogos às substâncias
que acabam de fertilizar. E por fim, o pensamento do homem seria assim nulo
para os semelhantes se ele não empregasse de início formas e caracteres
sensíveis para transmiti-lo. Ora, esses meios, necessários ao
homem em seu estado atual, não passam de uma imagem do que lhe acontece
na realidade numa ordem mais vasta e mais elevada, já que tudo deve ser
sensível aqui. Verdade que será mais desenvolvida a seguir. Em
suma, por uma lei constante e invariável, de conformidade com as classes
em que penetram, todas as virtudes, ações e faculdades se colocam
em proporção exata, modificandose de acordo com os canais pelos
quais passam e com os objetos que têm como alvo identificar consigo mesmas.
E é tão violento o estado das coisas temporais que os Princípios
que aí descem não podem fazê-lo sem canais sensíveis
que os preservem, ao passo que deveriam, por sua natureza, comunicar-se entre
si sem intermediários. Sendo obrigados a produzir tais envoltórios
preservativos para si próprios, a ação que empregam nessa
obra depende sempre de sua verdadeira ação. Percebemos já,
então, a necessidade de haverem aparecido, entre os homens, sinais visíveis,
Agentes substanciais e Seres reais, revestidos como nós de formas sensíveis.
Mas, ao mesmo tempo, Seres que fossem depositários das Virtudes primeiras
perdidas pelo homem e por ele buscadas sem cessar em torno de si, das quais
só conseguia ver indícios fracos e impotentes em tudo o que o
cercava e que, embora subdivididas, deviam ser apresentadas novamente ao homem
com seu caráter primitivo. Seria até possível que entre
os sinais e agentes houvesse aqueles que tivessem existido e os que ainda existissem
no meio dos homens sem que os ignorantes ou corrompidos deles se apercebessem.
Como sua ação e marcha só devem ser desveladas aos que
têm pureza bastante para as captar, são quase nulas para os outros,
assim como todos os meus atos intelectuais são desconhecidos da matéria
da qual meu corpo é formado, porque nada há neles que não
lhe seja estranho. E é aí que lanço tanta obscuridade,
tantas dúvidas e incertezas sobre a existência desses sinais e
Agentes. Vamos expor uma terceira lei, igualmente indispensável: é
que, se pelo destino sublime pelo qual está fundada a origem do homem,
não bastasse que as virtudes da Sabedoria o alcançassem de maneira
visível mesmo depois de seu crime, tomando o cuidado de traçar-lhe
novamente o modelo, ainda assim seria necessário que os depositários
desses dons o instruíssem sobre os caminhos pelos quais ele poderia regenerar-se
voltando ao seu primeiro estado. Seria necessário que os Agentes cumprissem
seu destino através de atos sensíveis, já que habitavam
junto de um Ser sensível e obscurecido por sua matéria. Seria
necessário, enfim, que deixassem o homem em condições de
exercer e transmitir ao semelhante os dons e os conhecimentos deles recebidos,
tanto para a instrução e o proveito dos outros homens quanto para
os próprios - o que nos leva a reconhecer a necessidade de um culto sensível
e físico na Terra, ao mesmo tempo que nos descobre o objeto para o qual
há Eleitos que foram privilegiados. Em sua verdadeira definição,
um culto é apenas a lei pela qual um Ser, buscando apropriar-se das coisas
de que precisa, aproxima-se dos seres para os quais sua analogia o está
sempre chamando novamente momento e foge daqueles que lhe são contrários.
Assim, a lei de um culto funda-se sobre uma verdade primeira e evidente, isto
é, sobre a lei que resulta essencialmente do Estado dos Seres e de suas
relações respectivas. No estado de coisas do mundo, não
há ser algum que não apresente necessidades. Já que tudo
é separado e dividido, estão todos obrigados a procurar reunir-se
e organizar sua ação dispersada; são todos movidos pelo
impulso de sua analogia natural, que os força a tender incessantemente
uns para os outros, segundo as leis e o anseio de sua natureza. Daí,
se não pudermos atribuir exatamente o nome de culto às leis dos
Seres materiais e não livres, pelo menos devemos reconhecer que todos
os Seres - da classe que forem - o nosso sangue e os nossos corpos, colocados
entre as criações do Universo, têm atos a realizar e uma
ordem a seguir para cumprirem o alvo de sua existência, seja para se curarem
ou se preservarem das diversas enfermidades às quais estão continuamente
expostos pelas influências elementares. Entretanto, em que se fundamenta
essa lei, a não ser na analogia encontrada, por exemplo, entre nossos
corpos e os alimentos ou os remédios cuja ação e Virtudes
vêm reanimar e renovar nossas forças, devolvendo-nos a saúde?
Ora, reconhecida a analogia entre o nosso Ser intelectual e as outras Virtudes da Divindade; provando, além disso, que existe fora de nós uma fonte de pensamentos falsos e desordenados que nos obsidiam, deixando o espírito do homem exposto a tantas enfermidades quanto o próprio corpo - segue-se que as nossas relações naturais com as Virtudes divinas nos colocam, com relação a elas, na mesma dependência e necessidade em que os nossos corpos se situam com relação às substâncias elementares. Segue-se que, para essas Virtudes divinas estamos igualmente sujeitos a um culto ou a uma lei que, de sua parte, nos fornece os socorros que dela aguardamos. Segue-se que, tendo que curar ou preservar nossos Seres das influências intelectuais nocivas e os corpos das influências corporais maléficas, devemos, por uma necessidade evidente, buscar os socorros análogos a essa necessidade intelectual e empregá-los ativamente quando os encontrarmos. Deve ter sido a falta de tais reflexões o que conduziu, em todos os tempos, os homens das diversas Religiões à indiferença quanto a esses objetos, fazendo com que não apenas negligenciassem as substâncias, tempos e formas que devem entrar no culto, mas a própria prece, sob o pretexto de que o primeiro Ser não tinha necessidade dela e que bastava aos homens não fazer o que chamam de mal - ao passo que a prece é para o Ser intelectual o que a respiração é para o corpo. Talvez tivessem razão se seu pensamento pudesse ler no pensamento supremo, como ele lê no nosso, porque então, completos e garantidos os seus deleites, não teriam outra ocupação que a de saboreá-los e celebrar-lhes a doçura em algum combate empreendido para obtê-los. Mas, no estado atual do homem, há, entre o pensamento supremo e o seu, uma ação que os impede de se reunirem e ele só pode demolir e destruir essa Barreira através de um meio análogo a ela, ou seja: através de uma ação. Por fim, percebemos na própria Natureza física as provas de que os Seres devem render homenagem ao princípio da vida se quiserem receber socorros e benefícios. Para que a terra produza, é preciso que se ergam vapores de seu seio e que eles se unam às Virtudes celestes, descendo em seguida sobre a superfície para umedecê-la com o orvalho fecundo, sem o qual ela nada pode gerar. Lição viva, que ensina ao homem que há uma lei a seguir se ele quiser conhecer os direitos e as doçuras de sua existência. Ele só poderá alcançar isso quando seu ardor pelo verdadeiro fizer sair dele violentos desejos; quando desejos e movimentos criadores se elevarem das faculdades de seu Ser subindo até a fonte da luz e, depois de haverem dela recebido a unção salutar e sagrada, lhe trouxerem de volta as influências vivificantes que devem fazer germinar os tesouros da Sabedoria e da Verdade. Mas ao fazer o culto derivar do homem, de suas carências e da necessidade de combater o obstáculo que lhe serve de barreira, pareceria que estou admitindo uma multiplicidade inumerável de diversos cultos. Já que em geral o homem está exposto a carências tão diversas e variadas no Ser intelectual quanto no corporal, caminharíamos contra a ordem e a razão se quiséssemos determinar uma lei uniforme para as diferentes espécies de carências. Algumas palavras bastarão para fazer com que essa dificuldade desapareça. Se a unidade de um culto é uma verdade incontestável e fundada na própria unidade daquele de quem deve ser o objeto, tal unidade não exclui a multiplicidade dos meios aos quais a variedade infinita de nossas necessidades nos obriga a recorrer. Então o culto poderia receber extensões inumeráveis nos detalhes, sem deixar por isso de ser perfeitamente simples e sempre um em seu objeto: aproximar de nós aquilo que falta ao nosso Ser e é necessário à sua existência. Assim, quais são os Deuses do homem em sua infância e sua juventude? - são os objetos naturais e físicos; são os que lhe revelam a beleza; são seu pai e sua mãe; são aqueles que, guiando-o e sustentando-o em todos os passos, tornam-se para ele agentes visíveis da Divindade, porque, como sua inteligência ainda não está aberta às grandes verdades, ele só recebe suas noções através de sinais e agentes corporais, sensíveis como ele. Na idade madura, o homem sábio, admitindo idéias mais justas sobre a Divindade, não tarda a reconhecer que aqueles que foram os Deuses de sua juventude são, assim como ele, enfermos e impuros, que dependem também de um ser inteligente e invisível que a ele se demonstra pelo pensamento, fazendo-o compreender que recebeu a vida e a inteligência para, por sua vez, manifestar os títulos de seu verdadeiro Autor. Então concebe que, como ele próprio está encarregado de sua obra, produzi-la depende de seus próprios esforços, o produzi-la depende de sua própria inteligência. Concebe que o Ser supremo, por ser puro e sem mácula, deve ter Ministros puros e incorruptíveis nos quais a confiança do homem possa repousar sem risco nem inquietação. Mas embora vejamos que o culto do homem se diversifica nos diferentes estados, ou antes, que ele se estende e se eleva à proporção que vai descobrindo melhor a extensão e a natureza de suas verdadeiras necessidades, esse culto, enquanto conforme à ordem natural, é sempre um, já que tende sempre ao mesmo alvo: o de prover às necessidades do homem segundo os diversos estados pelos quais passa, fazendo isso segundo os meios mais verdadeiros e mais naturais dos quais seja suscetível. Pois os caminhos da Sabedoria são tão fecundos que ela se transforma a cada instante para estar na proporção exata em todas as nossas situações. E se pela plenitude de suas faculdades abraça todos os Seres, tempos e espaços, em qualquer posição em que nos encontremos, jamais deixar esgota-se a fonte de seus dons. E por mais multiplicados que eles sejam, têm todos a mesma unidade por princípio e por fim. De acordo com isso, seja qual for a superioridade apresentada por um culto, seria imprudente proibi-lo àqueles que, não tendo ainda atingido essa superioridade, exercessem os cultos menos perfeitos. Porque não apenas as leis da reabilitação dos homens estão sujeitas aos tempos e a uma ordem sucessiva quando se combinam com as leis das coisas sensíveis, mas ainda porque ignoramos se, sob aparências pouco imponentes, ele encontra luzes ocultas e secretas virtudes. Por fim, o homem não é o juiz da prece: é apenas seu gerador e órgão. Assim como as emanações dos corpos terrestres desaparecem para os nossos olhos materiais ao se elevarem nos ares - deixando-nos na incerteza tanto sobre seu curso quanto sobre o lugar que as espera na imensidão dos reservatórios da natureza - assim também as preces dos homens, não permanecendo na terra, tornam-se inacessíveis à nossa visão e aos nossos julgamentos. Não podemos pronunciar-nos sobre seu valor nem sobre o curso que seguem para se aproximarem da luz, nem sobre a posição que o primeiro dos Princípios lhes destina ao redor de seu Trono. Apesar da superioridade de um culto sobre os outros, talvez a Terra inteira participe nos direitos que distinguem o culto perfeito; talvez haja, em todos os Povos e instituições religiosas, homens que encontrem acesso junto à Sabedoria. E, longe de querer diminuir o número dos verdadeiros Templos do Eterno, devemos crer que depois dos dons universais por ele distribuídos em nossa morada, não há homem algum na terra que não possa, se o quiser, servir de Templo a esse grande Ser. Em qualquer lugar a que o homem vá, por mais isolado que esteja, há sempre três juntos, e esse número é suficiente para constituir um Templo. Deixemos, pois, de julgar os caminhos da Sabedoria e de traçar limites às sua Virtudes. Creiamos que os homens lhes são igualmente caros e que, se ela cumulou a alguns com seus favores mais preciosos e gratuitos, isso é uma razão a mais para eles lhe imitarem o exemplo, empregando para com os semelhantes a mesma indulgência. E essa indulgência, que nada mais é que o amor divino, é doce, benigna e nada proíbe, mesmo quando deixa os Seres em privação. Ah! Como poderia essa Virtude proibir? Ela é viva por si mesma e tende somente a multiplicar ao infinito a ordem e a vida que nela existem. É a única pela qual o homem pode adquirir uma idéia verdadeira e íntima de seu Ser, tanto no estado atual como no vindouro. É a única que desenvolve, ao mesmo tempo, todas as faculdades do homem. E é a única, talvez, pela qual o primeiro de todos os Princípios pode ser compreendido e afirmar-se em toda a sua grandeza. Do ponto ao qual chegamos, o Leitor pode ver estender-se o quadro das relações existentes entre Deus, o homem e o universo. O culto verdadeiro e os Agentes encarregados de o difundirem tiveram como alvo restabelecer a harmonia entre esses três Seres, mostrar ao homem o emprego das substâncias da Natureza e suas propriedades e retratar-lhe de maneira visível aquelas que existem nele mesmo e que, combinadas às outras virtudes naturais, devem ser a imagem e a expressão completa do grande Ser do qual tudo provém. Realmente, não podemos deixar de reconhecer essa cadeia imensa que liga os seres de todas as classes e que distribui a cada um deles as Virtudes necessárias. Na ordem física, vemos que as faculdades criadoras do grande Princípio produzem e vivificam os móveis da Natureza e estes espelham a atividade de seus modelos até às últimas subdivisões do Universo sensível, celeste e terrestre. Na ordem superior ou física, vemos que as virtudes pensantes desse mesmo Princípio universal repousam em Agentes intelectuais, de onde se transmitem aos homens privilegiados e a todos os ramos da posteridade do homem. Por fim, o próprio homem representa sem artifícios essa dupla atividade: ele é um quadro vivo das duas leis fecundas que servem para expor em substância todos os seres. Do interior de sua cabeça emana sem cessar um fluido poderoso e sensitivo que, descendo progressivamente nas diversas regiões de seu funcionamento animal, transmite força e ação até às fibras mais tênues e distanciadas de sua fonte radical. Do interior desse mesmo órgão, o homem sábio e puro sente nascer pensamentos luminosos e profundos. E exprimindo-os exteriormente em seus discursos, pode por meio deles vivificar os homens que o cercam e fazer com que as suas próprias luzes cheguem gradativamente a todos os pontos do círculo que habita. É claro, pois, que o homem apresenta em tudo a marca de seu Princípio, do qual é a expressão no Universo físico e no Universo intelectual. Percebemos também o alvo da Sabedoria na distribuição de seus dons benignos e o objeto de sua ação constante e contínua. Assim como as exalações insalubres da terra são perpetuamente corrigidas pelas influências físicas superiores, assim também os pensamentos falsos e pecaminosos dos homens e os dos seres corrompidos que com ele residem são contidos e purificados pelas impressões ativas da vida ou pelos Agentes virtuais, que devemos considerar como órgãos primeiros e necessários do culto e dos meios sensíveis concedidos ao homem para ajudá-lo a continuar cumprindo os Decretos supremos. Não é preciso deixar de revelar aqui que o culto e os meios sensíveis transmitidos ao homem pelos Agentes puros requerem, de sua parte, atenção muito vigilante, firmeza invencível e discernimento muito hábil para não confundir as ações verdadeiras, que devem animar o culto, com as ações falsas, que sempre tendem a desfigurá-lo, sempre prontas a extraviar o homem, de maneira visível ou não. Pois tanto no intelectual quanto no físico, diversas exalações insalubres, furtando-se à ação pura que as combate, costumam elevar-se acima da região onde deveriam permanecer sepultadas e é isso o que, em ambas as classes, gera as tormentas e as tempestades. Se fosse perguntado por quais indícios deveríamos reconhecer a qualidade boa ou má das ações intelectuais, eu aconselharia um estudo particular dessas diversas impressões, seja de pensamento, seja de sentimentos, à quais estamos diariamente expostos e que por sua variedade nos ocasionam tantas incertezas. Com isso, descobriríamos que quando o homem está limitado pelas impressões sensíveis materiais ou pela impressão intelectual falsa, de nada pode ter certeza. Essas duas classes estão submissas a várias ações todas relativas, sem que nenhuma delas seja fixa, e assim expõem os seres que recebem seus ataques a nada distinguirem de positivo, a somente emitirem julgamentos confusos ou a permanecerem na mais tenebrosa dúvida. Mas quando o homem recebe a impressão intelectual boa, não pode cair nos mesmos erros porque a ação do Ser intelectual puro, sendo sensível, leva consigo a prova de sua simplicidade e de sua unidade e, como conseqüência, de sua realidade. Veríamos então que, como essa realidade se encontra apenas no Ser puro e verdadeiro que é seu depositário, é somente nele e somente por ele que podemos aprender a conhecê-la. Veríamos também que, quando se operam semelhantes impressões, o homem fica protegido de qualquer incerteza e de qualquer equívoco: os olhos impuros estão sujeitos a enganos, visto que só vêem os resultados mistos e compostos. Mas os olhos puros da inteligência não se enganam jamais, porque vêm os princípios, que são simples. Finalmente, saberíamos que, por um desses favores concedidos ao homem em sua penosa carreira para lhe servirem de guia, as impressões intelectuais falsas estão submetidas a leis semelhantes às da ordem física e material e que, assim como os corpos - que depois de terem exibido uma aparência graciosa e leve acabam por tornar-se feios e disformes - também na classe intelectual os Quadros impuros mais sedutores não tardam a decompor-se e a manifestar sua ilegitimidade. É tudo o que posso dizer sobre esse ponto. Resumamos em poucas palavras as verdades que acabam de ser expostas. Elas nos ensinam que, por causa de seu amor pelo homem, a Sabedoria teve de conservar-lhe raios proporcionais à debilidade de sua visão - mesmo quando pela primeira vez ele desviou os olhos de sua luz - e que, a qualquer grau que o crime o tivesse feito descer, ele só poderia cair nas mãos de Deus. E mesmo não sendo importunado, como nós, pelas idéias falsas e pelos véus de trevas que sua infeliz posteridade não pára de acrescentar à degradação original, por mais criminoso que isso seja, ele estava ainda bem mais próximo que nós desse Deus que o formara. Podia perceber melhor a fonte pura da qual acabara de separar-se. Não padecia, como nós, no nada e na insensibilidade dos males que nos devoram. E tanto isso é verdade que só sentimos pesares pelo estado de nossa primeira existência na mesma medida em que o primeiro homem sentiu, ao mesmo tempo, pesares e remorsos. À medida que se multiplicava a posteridade do homem e o tempo se escoava, a grandeza e a bondade da Sabedoria suprema tiveram de manifestar-se cada vez mais, colocando junto dele Imagens vivas de si mesma ou Agentes suficientemente virtuais para levá-lo a recuperar a semelhança. Os Agentes tiveram de iniciá-lo nos atos que eles mesmos exerciam, pois os atos eram instituídos para ele, para ajudá-lo a separar de si o que contraria a sua verdadeira natureza e aproximar-se do que falta para atingir a perfeição e a vida de seu Ser; para apresentar-lhe a visão das Virtudes a serem contempladas em sua unidade quando do estado glorioso do homem, tornando-o capaz de exprimi-las na sua pureza e com isso cumprir seu destino e o Decreto que o primeiro dos Princípios pronunciara sobre ele ao dar-lhe existência. É aí que reconheceremos as bases e os caminhos apresentados à vontade do homem para levar a cabo sua obra. Pois, assim como essas bases seriam inúteis se a vontade do homem não tirasse proveito delas, também a vontade do homem, sendo embora o princípio móvel de sua obra, permaneceria sem eficácia se não tivesse bases em que exercesse sua ação. Foi isso o que fez com que alguns Anciãos dissessem que as Preces sagradas nos tinham sido dadas pelos Deuses. Mas há um gênero de preces destinadas a nos fazer conseguir esses dons preciosos: as preces da dor, que não podem vir-nos do centro superior e supremo, visto que ele não sofre. "A Sabedoria infinita tomou, entretanto, o cuidado de antecipar-se à nossa fraqueza e à nossa negligência para satisfazer à necessidade que temos da prece, mas alguns pensam que ela colocou na terra um animal que só canta a horas marcadas e freqüentes a fim de avisar os homens para que se apliquem a essa salutar ocupação." Tal é o quadro das leis e das verdades por nós estabelecidas com solidez, com apoio nas relações e na natureza do seres. Procuremos confirmar-lhe a evidência pela universalidade dos signos e dos indícios visíveis por elas oferecidos entre todos os Povos da Terra. 0 A sublime origem do homem, sua queda, o horror da privação atual, a necessidade indispensável de que Agentes invisíveis trouxessem socorros superiores à Terra e empregassem meios sensíveis para tornar eficazes as virtudes, eis tantas outras verdade gravadas de tal forma no homem que todos os povos do Universo as celebraram, deixandonos tradições que as confirmam. Todas as narrativas históricas, alegóricas e fabulosas encerradas nessas tradições falam do primeiro estado do homem na sua pureza, dos crimes e da punição do homem culpado e degradado. Expõem com igual evidência os favores das Divindades para com ele a fim de minorar-lhe os males e libertá-lo das trevas. Não bastou a deificação dos homens virtuosos que deram aos semelhantes os exemplos de justiça e benignidade e que com suas ações reproduziram alguns vestígios de nossa primeira lei. Não se receou fazer as próprias Divindades descer à Terra para levarem ao homem os socorros superiores que não podiam ser dados a conhecer pelos Heróis mortais e para exortálo a tornar-se semelhante a elas, como o único meio de ser feliz. Ao mesmo tempo, aqueles que tiveram o cuidado de nos transmitir tais narrativas são acordes em representar as Divindades benignas sob formas sensíveis e análogas à região em que habitamos, porque sem isso seus socorros teriam ficado, de algum modo, perdidos para os seres corporificados da forma tão grosseira como nós. E em todas as Nações os socorros das Divindades benignas foram celebrados através de cultos. Quem ousaria mesmo garantir que todas as leis, usos, convenções sociais, civis, políticas, militares e religiosas que vemos estabelecidas na Terra não sejam vestígios claros das instituições primitivas? Que não sejam emanações, alterações ou degradações das primeiras dádivas feitas ao homem após a queda para trazê-lo de volta ao Princípio? É preciso não esquecer que os homens tudo podem alterar e tudo corromper, mas que nada podem inventar. Teríamos, pois, diante dos olhos, um meio a mais para ler e reconhecer em todas as obras do homem a lei que lhe diz respeito e à qual ele devia ligar-se, visto que, apesar das diferenças infinitas na forma das instituições humanas em todos os lugares da Terra, todas têm o mesmo alvo, o mesmo objetivo, sendo esse alvo manifesto em tudo o que o envolve. Entretanto, é preciso admitir que as tradições alegóricas e fabulosas, à força de quererem tornar os Deuses semelhantes ao homem, com freqüência conferiram-lhes suas paixões e vícios; fizeram-nos agir como os seres mais corrompidos e, aviltando-os assim aos nossos olhos, acabaram perdendo todos os direitos à nossa crença. Mas não devemos sentir que, se a Mitologia se manifesta sob aparências ridículas, tais como os furores, o ciúme e o ardor dos sentidos - que parece ser quase o único móvel dos Deuses e Heróis - é que, por ser um quadro universal, ela dever expor os males e os bens, a ordem e a desordem, os vícios e as virtudes que circulam na esfera do homem. Além disso, as interpretações errôneas das palavras e a ignorância de seu verdadeiro significado conferiram às narrativas simbólicas uma multidão de sentidos ambíguos e forçados que não possuíam na origem, quando representavam objetos tão regulares, elevados e respeitáveis quanto hoje esses símbolos nos parecem imperfeitos, ridículos e merecedores de desprezo. É dessa maneira que podemos explicar em parte as contradições apresentadas pela Mitologia. A ignorância do verdadeiro sentido dos nomes levou a atribuir ao mesmo Ser, a um Herói, a uma Divindade, feitos e ações que pertenciam a seres diferentes. Não devemos, pois, ficar surpresos se virmos o mesmo personagem mostrar em suas ações ora o orgulho e a ambição dos seres mais culpados, ora o mais vergonhoso excesso de libertinagem, ora as virtudes dos Heróis e dos Deuses. Não devemos espantar-nos se virmos o Júpiter mestre do Céu, Chefe dos Deuses terrestres, seus irmãos, e o Júpiter entregue às paixões mais viciosas; se virmos Saturno ao mesmo tempo como Pai dos Deuses e devorando seus filhos; e se virmos a Vênus Urânia e a Vênus Deusa da prostituição. Assim, embora encontremos todos os feitos e tipos reunidos na Mitologia, embora ela apresente, sob o mesmo nome, vários quadros opostos, a inteligência deve discernir-lhes as cores e os verdadeiros objetos. Ainda assim, eu mostraria agora mesmo um ponto de vista claro sobre esse objeto importante, com o qual descobriríamos soluções satisfatórias, porque nele veríamos que é do próprio homem que sai a verdadeira fonte de todas as Mitologias. Não é preciso procurar fora dele a origem natural dos fatos submetidos às suas especulações. Se refletíssemos sobre a universalidade das opiniões dos Povos com relação às manifestações visíveis das Potências divinas, sobre as provas apresentadas de que elas são necessárias ao cumprimento dos Decretos supremos e sobre os vestígios que nos restam de quaisquer instituições estabelecidas na Terra, ficaríamos bem dispostos a crer que tais manifestações realmente ocorreram entre os homens. Confirmaremos essa idéia se considerarmos que se encontram tradições parecidas entre os Povos separados de nosso continente por distâncias consideráveis e mares imensos, entre as Nações que respiraram o mesmo ar que nós e que usufruíram do mesmo sol durante muitos séculos, sem nos conhecerem e sem serem por nós conhecidas. Os diversos Povos da América tinham idéias uniformes sobre a criação do Universo e sobre o número que lhe dirigiu a origem. Admitiam, como os povos Antigos, uma multidão de Deuses benignos e malignos a preenchê-lo e aos quais ofereciam numerosas vítimas em sacrifício. Concordavam com todos os Povos sobre a perfeição de um estado anterior do homem, sua degradação e o destino futuro dos bons e dos maus. Tinham Templos, Sacerdotes, Altares e um fogo sagrado mantido por Vestais submetidas a leis severas, como entre os Romanos. Os peruanos tiveram chefes visíveis, que, como Orfeu, diziam-se filhos do Sol, ganhando as homenagens de suas regiões. Tinham um ídolo cujo nome, segundo os Intérpretes, significa três em um. Os mexicanos tinham um ídolo que consideravam como um Deus que tomara um corpo em favor da Nação. Talvez bastasse mudar os nomes para encontrarmos nesses povos a mesma teogonia e tradições que existem desde a mais remota antigüidade no Velho Mundo. Se a persuasão das manifestações visíveis das potências divinas e de suas necessidades não fosse no homem um sentimento essencial e análogo à sua própria natureza, essas opiniões seriam transmitidas apenas pela tradição, progressivamente. Não teriam existido entre esses Povos se eles jamais se houvessem ligado a nós por algum elo, ou teriam sido apagadas da lembrança deles com o correr do tempo, já que as tínhamos compartilhado com eles em tempos tão primitivos, depois de nossa separação. Com essa alternativa não pretendemos fortalecer as incertezas e desconfianças que posam ter reinado sobre a diversidade de origem de todos esses Povos. Hoje17 não há mais dúvida de que o norte da Ásia se comunica estreitamente com o norte da América, de que o estreito que separa esses continentes não esteja repleto de Ilhas que lhes tornam mais fácil a comunicação, enfim - de que seus habitantes não comerciem juntos e até mesmo de que no norte da Ásia não haja Povoamentos americanos. Independentemente dessa via de comunicação entre os dois continentes, é preciso crer que, no intervalo transcorrido desde os primeiros séculos, vários Navegadores, do Oriente ou do Ocidente, foram lançados a essas praias desconhecidas, onde, criando povoamentos diferentes em diversos lugares, lhes terão transmitido os vícios e as virtudes, a ignorância e as luzes que traziam. 17 1782. (N.T.) Se considerarmos a diversidade das Nações que habitavam a América, a variedade extrema de seus costumes, usos, línguas e mesmo de suas faculdades físicas; se considerarmos que a maior parte dessas Nações ou famílias eram desconhecidas umas das outras, sem mostrarem indício algum de um dia ter havido relações entre elas, demonstraremos sem dificuldade que devem a existência a vários náufragos ou a emigrações do antigo continente, tendo seus antepassados sido atirados a essas costas em épocas diversas e em séculos distantes. Sem nos determos por mais tempo nessa questão, e seja qual for a maneira pela qual esse povoamento aconteceu, não podemos deixar de reconhecer uma unidade de origem primitiva nos Povos cujas distintas espécies podem procriar conosco e cujos frutos, provenientes dessas alianças, procriam por sua vez; nos Povos onde descobrimos os vestígios das verdades que já afirmamos sobre a necessidade da manifestação das faculdades e potências do Ser divino no Universo e perante os homens, e nos Povos totalmente semelhantes a nós por sua natureza, suas idéias fundamentais e tradições. Digamos mais: mesmo que sua origem primitiva não fosse comum à nossa, assemelhando-se eles a nós, devem participar nas mesmas vantagens. Se são homens, se como nós estão privados e necessitados do Ser superior e universal que os formou, esse Ser une-se a eles como a todas as suas outras criações. Assim, mesmo que jamais tivessem tido comunicação alguma com nosso continente, o Ser sempre poderia ter feito chegar a eles as provas e manifestações de seu amor e de sua sabedoria. Quanto à antigüidade dos tempos em que as manifestações das Virtudes superiores começaram a operar entre os homens, as tradições da maior parte dos Povos antigos nos oferecem ainda índices mais seguros. A origem dos Povos está quase sempre envolvida num véu maravilhoso e sagrado. Quase todos se dizem protegidos por alguma Divindade que lhes presidiu ao nascimento, e até mesmo descendentes dela, que os estabeleceu e os sustém por um poder invisível. Isso não nos mostra que há muito tempo o olho da Sabedoria vela sobre o homem apesar de seu crime? Não nos diz que, desde o instante em que o homem se tornou culpado e infeliz, a luz apressou-se a vir-lhe ao encontro repartindo-se, por assim dizer, a fim de ficar ao seu alcance e não deixando, desde então, de espalhar os mesmos benefícios em toda a sua posteridade? A partir das tradições, não seria tão fácil determinar o número de atos solenes de manifestação feitas pelas Potências divinas entre os homens desde essa primeira época. Não estando de acordo neste ponto, as doutrinas antigas, fazem surgir dúvidas sobre a maior parte dos Agentes que nos apresentam, de modo que ficamos reduzidos a pensar que possa haver algumas doutrinas cuja memória a tradição não nos tenha transmitido e que vários daqueles que elas declaram como verdadeiros Agentes da faculdades supremas jamais existiram, ou não passaram, talvez, de impostores. Certamente as observações bem atentas e fundadas sobre o conhecimento das verdadeiras leis dos Seres poderiam servir-nos de guia para numerar essas manifestações e calcular-lhes as épocas. Segundo as noções mais naturais, devem ser iguais e relativas ao número das faculdades e virtudes abandonadas pelo homem, ou seja: análogas à verdadeira natureza do homem, cujos complemento e exatidão devem operar por seu número. Mas a geração presente ainda não chegou a esse ponto. As falsas idéias que concebeu sobre o homem e seu destino fecham-lhe mais uma vez as rotas que conduzem ao Santuário da Verdade. Pelas mesmas razões não devemos ficar surpresos se o sentido sublime que deixamos entrever nas tradições mitológicas dos Povos antigos parecesse imaginário à maior parte das pessoas. De tal forma elas perderam de vista a ciência de seu Ser e a de seu Princípio que não mais conhecem quaisquer das relações que os ligarão eternamente um ao outro. De fato, nas narrativas mitológicas o vulgo só vê um jogo de imaginação dos Escritores ou a corrupção de tradições históricas, ou talvez os efeitos da idolatria, do temor ou da tendência que dos Povos para com os feitos maravilhosos. Assim, excetuando-se algumas alegorias engenhosas, tudo na fábula lhe parece bizarro, ridículo ou extravagante. Homens estimáveis, colocados na classe dos Sábios, empregaram a mais vasta erudição para a esse respeito estabelecer sistemas mais sensatos do que a opinião comum. Mas, como não se aprofundaram bastante na natureza das coisas, sua doutrina permanece, por mais imponente que possa ser, abaixo das tradições que tentaram interpretar. Não podemos emitir outro julgamento sobre os que limitaram o sentido das tradições mitológicas exclusivamente a um objeto inferior e isolado e que se esforçaram por fazer ver nele, em todas as situações, o sistema particular que haviam abraçado, sem percebermos que as tradições, por não possuírem todas o mesmo caráter, não podiam tolerar a mesma explicação;. sem percebermos que umas, ligadas à alta antigüidade, encerravam os emblemas das verdades mais profundas; que outras, muito mais modernas, só deviam a existência à superstição e à ignorância dos Povos que, não tendo compreendido as tradições primitivas, alteraram-nas, confundindo-as com as tradições posteriores e particulares de cada Nação; que a mistura dessas tradições, os preconceitos dos Historiadores e os frutos da imaginação dos Poetas lhes haviam aumentado a obscuridade. De modo que, longe de querer concentrar a Mitologia num objeto particular, deveríamos antes admitir que ela apresenta fatos que não têm analogia alguma. E se se permite que os Observadores nela busquem relações com a classe das coisas que lhes são conhecidas, a razão nos proíbe que sejamos cegos para não vermos nada além e reduzirmos emblemas que podem ter um alvo mais vasto e mais elevado a um objeto inferior e com limitações. Ela se opõe, bem mais ainda, a que se dêem a essas tradições e emblemas um sentido e alusões que jamais poderia convir-lhes. São essas aplicações falsas e estreitas que tenho o propósito de destruir a fim de elevar o pensamento do homem a interpretações mais justas, mais reais e mais fecundas. Entretanto, para não mais nos desviarmos de nossa marcha, da qual essas observações são meros acessórios, limitar-nos-emos a examinar os dois principais sistemas mitológicos, o que bastará para fixar nossa opinião sobre todos os outros. O primeiro desses sistemas apresenta, em todas as Fábulas da Antigüidade, símbolos dos trabalhos campestres, indícios do tempo e das estações próprias à Agricultura e todas as leis que a Natureza terrestre e celeste é forçada a seguir para o crescimento, a manutenção e a vida das produções da vegetação. Tendo concebido esse sistema, os Observadores fizeram esforços admiráveis para justificá-lo, nele encontrando relações com todos os detalhes da Mitologia. Mas, para perceber-lhe a imperfeição, um pouco de atenção será o suficiente. Em tempo algum e em Povo algum se viu fazerem figuras que fossem mais belas e mais nobres do que as coisas figuradas. Se pretendêssemos que o homem empregou o superior como emblema do inferior ao imaginar símbolos e hieróglifos mais elevados e mais espirituais do que o objeto que queria designar, não estaríamos lançando por terra todas as noções que temos da marcha do espírito do homem? Pelo contrário, não é certo que o verdadeiro alvo do símbolo seja o de velar ao olhos do vulgo alguma verdade, cujo emprego errôneo ou profanação deveríamos temer se ela fosse revelada? De fazer com que aquele que não é digno dessa verdade tenha dificuldade em descobri-la ou em subir até ela através do símbolo, enquanto os ditosamente preparados perceberão com um relancear de olhos todas as relações que ele encerra? Não é certo que os símbolos e os hieróglifos são quadros ou signos destinados a fazer com que as verdades e as Ciências úteis se tornem sensíveis à maioria das pessoas, tornando-se compreendidas por aqueles cujo espírito limitado não poderia percebê-las nem conservar-lhes a lembrança sem o socorro dos signos grosseiros? Essas definições simples demonstram de modo satisfatório que os emblemas, as figuras e os símbolos não podem ser superiores e nem mesmo iguais a seus tipos, porque então a cópia se elevaria acima do modelo, ou poderia confundir-se com ele - o que a tornaria inútil. Basta, pois, comparar a maior parte dos emblemas mitológicos aos tipos que os Intérpretes quiseram dar-lhes para decidirmos, de acordo com a inferioridade dos tipos, se sua aplicação pode apresentar alguma exatidão. Examinemos o que parecer mais nobre e mais engenhoso, ou os detalhes grosseiros e mecânicos da Lavoura ou das Pinturas vivas nas quais se representam todas as paixões e onde são personificados todos os vícios e virtudes. Examinemos, além disso, se podemos considerar as constelações celestes e suas influências sobre os corpos terrestres, com referência à vegetação, como o tipo da Mitologia. Como essa opinião apresenta a mesma inferioridade do tipo quanto à figura, os mesmo motivos a tornam inadmissível. Quanto aos signos astronômicos vulgares, sobre os quais gostaríamos de fixar exclusivamente o nosso pensamento, digamos que, por ignorância, o homem estabeleceu quase todos eles em divisões ideais, com nomes arbitrários de animais, personagens e outros objetos sensíveis. Imaginárias e convencionais, as relações que deles nos são apresentadas não oferecem a idéia de um verdadeiro tipo, não passando de figuras vagas, estranhas aos Verdadeiros signos astronômicos e às Virtudes que lhes servem de móveis. Isso deve bastar para abrir os olhos àqueles que, por perceberem apenas um objeto isolado nas tradições das fábulas, crêem que a Mitologia dos antigos deve a origem somente à Agricultura e à Astronomia. O erro provém de que, posteriormente, alguns símbolos dessas duas Ciências foram confundidos com as tradições simbólicas primitivas. Com isso, os homens se viram ainda mais afastados das verdades simples e importantes que formavam o objeto dessa tradições. Assim, sem pretender negar os poucos símbolos fornecidos à Mitologia pela Agricultura e pela Astronomia, podemos prestar um serviço aos nossos semelhantes advertindo-os de que essas tradições, tais como as recebemos dos Antigos, encerram um infinidade de outros símbolos para os quais é totalmente impossível admitir o mesmo sentido e as mesmas relações, porque seu tipo não se encontra na terra, nem nos astros, ou em qualquer Ser corpóreo. Aqueles que propuseram essas interpretações da Mitologia também fizeram originar dela a Arte da Escrita e da Pintura como transmissoras dos signos visíveis das leis e dos fatos cuja memória e inteligência as Nações queriam perpetuar. Explicaram por esse mesmo princípio todos os símbolos da idolatria, pretendendo que as figuras hieroglíficas por ela empregadas não passavam da repetição simbólica de seu culto. Acreditaram encontrar provas disso nas tradições dos hebreus, nas quais um Profeta fala das Pinturas sacrílegas que vira nos muros do Templo de Jerusalém, diante das quais os Anciãos de Israel, e o próprio Sumo Sacerdote com o incensório nas mãos, pareciam oferecer sacrifícios pecaminosos. Tudo o que poderemos dizer sobre essa interpretação é que seria de se desejar que ela fosse tão verdadeira quanto é engenhosa. Antes de mim, outros observadores refutaram o sistema que acabo de combater com referência à agricultura, mas, depois de o terem destruído, não lhe colocaram outro no lugar. Dizer aos homens que a Mitologia só quis retratar o fogo vivo da Natureza com o único objetivo de dele disporem para reparar as próprias forças e conservar a forma corporal dálhes, na verdade, uma grande idéia, mas não lhes dá o complemento da verdade: os homens têm ainda um destino mais elevado. Assim, caímos no caso dos Filósofos herméticos, cujos dogmas e doutrinas vamos observar. A regra que exige serem os tipos superiores às figuras, símbolos e hieróglifos aplica-se igualmente à opinião daqueles que nas tradições antigas só vêem procedimentos da Arte hermética e que nas Divindades da Mitologia só percebem os emblemas das matérias ou das substâncias primeiras, sobre as quais pretendem operar. O alvo mais geralmente conhecido da Arte hermética jamais se eleva acima da matéria. De ordinário, limita-se a dois objetos: aquisição de riquezas e prevenção e cura das enfermidades, o que, segundo a vontade de seus Sectários, não impõe mais limites aos desejos e ao poder do homem, permitindo-lhe esperar dias felizes e de duração infinita. Alguns partidários dessa sedutora Ciência em vão pretendem conseguir através dela uma Ciência ainda mais nobre, que os elevaria acima dos adeptos, assim como estes estariam acima do vulgo. Tais homens, mui louváveis em seus desejos, deixam de sê-lo quando levamos em conta o caminho pelo qual procuram cumpri-los. Qualquer substância só pode produzir frutos de sua natureza, e mui certamente os frutos pelos quais esses homens parecem suspirar são de natureza bem diferente das substâncias que submetem às suas manipulações. Se a Arte hermética não vai além dos objetos materiais, tal arte não está situada numa classe mais elevada do que a agricultura. Os signos e símbolos da Mitologia lhe são igualmente estranhos, já que apresentam a linguagem da inteligência e dão vida e ação a faculdades desconhecidas da matéria. Aqueles que acreditaram ver tantas relações entre coisas tão diferentes apenas as confundiram ao se deixarem seduzir pela uniformidade das leis que lhes são comuns. É preciso observar tempos, graus, medidas, pesos e quantidades para a direção dos procedimentos herméticos. É preciso igualmente um peso, um número e uma medida para nos dirigir de conformidade com as leis da nossa Natureza inteligente. É preciso correção e exatidão extremas em todas as operações herméticas. É preciso, muito mais ainda, seguir uma ordem fixa e regular na caminhada intelectual. Foram essas semelhanças que iludiram os Observadores. Atribuíram a operações absolutamente materiais uma multidão de princípios que só podiam convir a objetos superiores por sua ação e por todas as propriedades que lhes são inerentes. Com isso, não há dúvida de que eles aviltaram os antigos símbolos, em vez de no-los explicarem. O desprezo dos Sectários da Ciência hermética vem do fato de que, tanto na doutrina quanto na obra, eles sempre confundiram duas Ciências perfeitamente distintas. O amor do princípio supremo apresentara aos homens as leis na Natureza material apenas para ajudá-los a reconhecer os vestígios do modelo que haviam perdido de vista. Pelo contrário, os Filósofos herméticos serviram-se dessa semelhança entre o modelo e a imagem para confundi-los e formar com eles um único Ser. Enganados por essa idéia precipitada, os Filósofos herméticos não viram que a simples Física material, à qual aplicaram todos os seus esforços, não merecia esses mistérios nem a linguagem enigmática e velada apresentada pelos antigos símbolos. Não viram que, se existia uma Ciência digna do estudo e das homenagens do homem, era aquela que colocava em evidência a sua grandeza, esclarecendo-lhe a origem e a extensão de suas faculdades naturais e intelectuais. Podemos dizer, pois, que se o objeto deles não é quimérico em todos os sentidos possíveis, o caminho que seguem é pelo menos muito estranho ao verdadeiro emprego a ser feito pelo homem e completamente oposto ao da verdade que todos parecem honrar. Em primeiro lugar, atacam essa verdade pretendendo igualá-la em sua obra e procurando fazer as mesmas coisas que ela, mas sem seguir sua ordem, embora se defendam dessa incriminação dizendo, com razão, que não crêem em nada. Em segundo lugar, atacamna da maneira mais insensata, procurando realizar sua obra por um caminho oposto ao por ela seguido em todas as criações. Assim, não agindo por um caminho virtual, tentam em vão obter o esboço de todas as Naturezas, retirando somente frutos mudos, silenciosos, sem vida e sem inteligência, diante dos quais se prosternam, é certo, como se os tivessem recebido da própria Verdade. Mas deixariam de exaltá-los se lhes conhecessem a fonte e a origem e, mesmo gozando desses frutos, lamentariam os procedimentos obtê-los e a mediocridade das vantagens que deles podem esperar. De fato, os procedimentos da Arte hermética não podem abalar a sede do Princípio sem abalar o próprio Princípio, uma vez que é nele que ele reina e age. Ora, querer governar o Princípio dos Seres materiais por uma outra ação além da que é análoga à sua própria essência não implicaria em manter uma marcha absolutamente contrária à natureza dos Seres? Não se viola com isso a ordem estabelecida, tanto pela Natureza temporal material quanto pela Natureza temporal imaterial? Além disso, como esse Princípio é acionado por uma outra lei além da que lhe é própria, recebendo assim um abalo fraco e passageiro, da mesma forma não apresenta senão uma ação fraca e passageira. Eis por que os resultados só falam à visão, por que motivo só podemos percebê-los a favor da luz elementar natural ou artificial, por que é que eles só têm um tempo e por que motivo, passado esse tempo, não se manifestam mais. E também por que motivo eles não têm nenhuma das condições indispensáveis para serem verdadeiros, para fornecerem provas de que foram trazidos à luz através do bom caminho e para mostrarem que têm em si, efetivamente, o germe de seu fogo e sua vida. Isso, eu sei, só será compreendido pelo Filósofos herméticos e por homens instruídos nas Ciências mais profundas e essenciais que a deles. Entretanto, os que ignoram os procedimentos da Arte hermética e nem conhecem quaisquer dos frutos que dela podem provir, esses irão entender-me o suficiente para aprenderem a discernir tais frutos, se um dia tiverem ocasião de percebê-los, e para se manterem em guarda contra o uso incorreto das expressões empregadas pelos Partidários dessa Ciência. Pois, dentre eles, alguns pareceriam hábeis e persuadidos para serem perigosos. Mas seria possível que fossem de boa fé ao renderem culto às substâncias corruptíveis e ao dissimularem que buscam com tanto ardor um espírito que seja matéria senão para poderem dispensar aquele espírito que não o é? O uso incorreto de expressões, a confiança, ou antes, as ilusões, mostram-se claramente nas pretensões da maior parte do Filósofos herméticos que se gabam de serem capazes de operar sobre a matéria prima. Todos os procedimentos sensíveis e materiais, longe de cair na matéria prima, só poderão acontecer na matéria segunda e mista, visto que a matéria prima não é sensível às nossas mãos, nem aos nossos olhos, nem a quaisquer de nossos órgãos, que não passam de matéria segunda e composta. Além do mais, que desproporção haveria entre o fogo grosseiro e já determinado por eles empregado e o fogo fecundo e livre que serve de agente da Natureza? E que podem eles esperar de seus vãos esforços se comparam o objeto de seus desejos com o que receberiam pela fruição e pelo emprego de um fogo mais puro e menos destruidor? Não repetiremos o que foi dito na Obra já citada sobre a diferença entre a matéria prima e a matéria segunda, ou, se quisermos, sobre a diferença entre os corpos e o seu Princípio. Basta dizer que a matéria prima, ou Princípio dos corpos, é constituída por uma lei simples e participa da unidade - o que a torna indestrutívelenquanto a matéria segunda, os corpos, são constituídos por um lei composta, que jamais se mostra nas mesmas proporções e que, por isso, torna incertos e variáveis todos os procedimentos materiais do homem. Por não terem feito essas distinções importantes, os Filósofos herméticos a todo instante são vítimas de seu primeiro engano. E assim como seu progresso, sua doutrina induz em erro todos aqueles que se deixam seduzir pelo maravilhoso dos fatos apresentados. Seu costume de usar a prece para o sucesso da obra e a persuasão de jamais poder consegui-la sem esse caminho, não deve impressionar-nos. É aqui onde seu erro se manifesta com mais evidência, já que o trabalho, limitando-se a substâncias materiais, não se eleva acima das causas segundas. Ora, como as causas segundas estão, por sua natureza, abaixo do homem, não o enganaremos se lhe dissermos que ele é feito para dispor delas. Se os Filósofos herméticos têm experiência e conhecimentos suficientes para prepararem de maneira conveniente as substâncias fundamentais de sua obra, e se essa obra for possível, devem então chegar a ela com segurança, sem que para isso seja preciso interpor outra Potência, a não ser a já inerente a toda matéria e que constitui sua maneira de Ser. Aliás, isso é um perigo quase inevitável, ao qual o Filósofo hermético está exposto: ao fazer preces por sua obra, muitas vezes acontece que ele faz preces à própria matéria. Quanto mais perfeitos e libertos de substâncias grosseiras parecerem os frutos obtidos, tanto mais ficará tentado a crer que eles se aproximam da Natureza divina: como os seus sentidos vêem algo de superior ao que ele ordinariamente percebe, fica seduzido pelas aparências e crê ter motivos bem legítimos para justificar o erro. Por esse caminho, os Filósofos herméticos, mergulhando em novas trevas, perpetuam as tristes conseqüências de seu entusiasmo e suas prevenções. Detenho-me pouco no motivo que os impede de revelarem seus pretendidos segredos, pelo temor que fingem ter de que, se sua ciência se tornasse universal, aniquilaria as Sociedades civis e os Impérios, destruindo a harmonia que parece haver na Terra. Como poderia a ciência deles tornar-se universal se, conforme ensinam, ela é o quinhão do pequeno número de Eleitos de Deus? E além do mais, que teriam a lamentar as Sociedades civis e os Impérios se, mudando de forma, encerrassem em seu seio apenas homens virtuosos e bastante instruídos para saberem afastar de seus corpos as enfermidades, do coração os vícios e do espírito a ignorância? Reunindo a todas essas observações a grande lei da inferioridade que os símbolos devem ter para com o próprio tipo, reconheceremos que a filosofia hermética não foi o primeiro alvo nem o tipo real das alegorias da Fábula. Seria totalmente inverossímil que a natureza do homem esclarecido o tivesse levado a imaginar que as Divindades interviessem para encobrir uma Ciência que se contradiz e as injuria; uma Ciência que nutre o homem com a esperança da imortalidade e que o isenta de recebê-las das mãos das Divindades; que lhe promete, sem o socorro delas, os direitos mais eficazes sobre a natureza; que, tanto quanto lhe seja possível, deve ser encontrada nas simples leis das substâncias elementares e, por isso, inferiores à ciência verdadeiramente própria ao homem; que, se tiver uma fonte mais elevada, não estará mais à nossa disposição. Finalmente, uma Ciência que encerra, somente em si, mais ilusões e perigos do que todas as outras Ciências materiais em conjunto, porque, mesmo sendo falsa como elas na base e no objeto, no entanto tem mais semelhança com a verdade por seus procedimentos, doutrina e resultados. Se nas diversas classes de filósofos herméticos houver quem pareça empreender um vôo mais elevado, pretendendo atingir a obra sem empregar qualquer substância material, não poderemos negar que sua marcha seja muito distinta. Mas não acharemos o objeto mais digno deles, nem o alvo mais legítimo. 1 Quanto mais demonstrei com evidência que a Agricultura e a Ciência hermética não foram o objeto dos emblemas e alegorias, mais me empenhei em mostrar claramente qual pode ser seu verdadeiro alvo. Vários Observadores já deram às tradições uma interpretação mais viva, mais nobre e mais análoga a nós mesmos do que as que acabamos de percorrer. Não temo enganar-me ao adotar abertamente a doutrina desses judiciosos Intérpretes. Quanto mais sublime for ela, menos erro haverá em nos aproximarmos deles. O homem, sua origem, seu fim, a lei que deve conduzi-lo a seu termo, as causas que dele o mantêm afastado e a Ciência do homem, indissoluvelmente ligada à do Primeiro dos Princípios - eis os objetos que os Autores das Tradições primitivas quiseram retratar, a única coisa que pode enobrecer e justificar seus símbolos, o único tipo digno dos mesmos, porque aqui o tipo é superior à alegoria, embora a alegoria convenha perfeitamente ao tipo. Nenhum homem instruído sobre sua verdadeira natureza e que busque penetrar o sentido das Tradições mitológicas deixará de perceber nelas, com uma espécie de admiração, os símbolos dos fatos mais importantes para a espécie humana e mais análogas a si mesmo. Alcioneu, Pandora, Deucalião, Sísifo, as Danaides, Hércules, a Túnica de Nesso, o Caduceu, Argos, as Parcas, os Campos Elíseos, o rio Letes, o número dos circuitos do Estige, Sêmele consumida pela presença de Júpiter em sua glória, Pigmalião, Circe, os Companheiros de Ulisses, Tirésias cegado instantaneamente por haver visto Palas vestindo-se, os Centauros - em suma, quase todos os detalhes da Mitologia oferecem ao homem instruções profundas que o confirmam na Ciência por ele obtida com seus esforços. Mas não terão esses símbolos outro fundamento além da imaginação ou do gênio dos que nolos transmitiram? Os Mitólogos propuseram-se voluntariamente semelhantes quadros ou receberam os planos todos traçados? É uma questão que importa resolver. Simples relações entre os diferentes episódios da Mitologia e a história do homem não irão mostrar-nos uma ciência suficientemente ampla nem suficientemente certa se não alçarmos o pensamento até sua origem. Para fazer isso com sucesso, lembremonos de que a epígrafe deste escrito nos impõe a lei de explicar as coisas pelo homem, e não o homem pelas coisas. Ao considerarmos aqui o homem em sua natureza inteligente, repetiremos que hoje ele está sujeito a receber uma grande quantidade de pensamentos diversos: luminosos e obscuros, vastos e limitados, justos e falsos, vantajosos e maléficos. Além disso, pela lei dos Decretos supremos, há homens escolhidos que, vivendo os seus dias nas delícias da verdade, devem ser considerados como verdadeiros tipos das virtudes, ao passo que outros, por negligência ou pusilanimidade, tornam-se tipos completos dos vícios. Exporemos novamente agora a necessidade da manifestação dos sinais visíveis das virtudes superiores na Terra, a lei invariável pela qual os Seres ligados ao tempo, sejam eles bons ou maus, nada podem conhecer a não ser pelo sensível: veremos se não é natural admitirmos que deve haver uma analogia e uma proporção entre os signos visíveis de todos os gêneros e os diferentes pensamentos do homem e se devem todos eles seguir a mesma marcha e o mesmo curso. O reflexo dos raios solares não é proporcional e análogo à natureza das substâncias que os recebem - nulo nas superfícies negras, fraco nos fluidos sem cor, mais forte nos fluidos coloridos, vivo nos sólidos coloridos e compactos, imenso nos sólidos puros e coesos como o vidro e o diamante? Não há nisso uma prova clara de que os resultados intelectuais estão ligados à nossa maneira de ser, refletindo-lhe necessariamente o brilho ou a obscuridade, a força ou a fraqueza, os vícios e as virtudes? Em nós mesmos se encontra um novo índice da existência dos sinais sensíveis. Não podemos transmitir qualquer pensamento nosso que não seja precedido por um quadro gerado por nossa inteligência. Quando nossos pensamentos são ativos, o quadro que os representa costuma ser bastante sensível para oferecer-nos uma espécie de realidade. E em todas as nossas artes de expressão estamos ora mais ora menos satisfeitos, conforme os traços sensíveis, sob os quais nos são apresentados os pensamentos, delas se aproximam, marcando-lhe o caráter. Se quisermos uma prova mais completa ainda da relação dos signos visíveis com os nossos pensamentos, podemos tirá-la do estado atual de nosso Ser e da lei violenta que o subjuga. É evidente que a parte intelectual só é alcançada através da parte sensível. Entretanto, como não duvidamos de que o intelectual do homem haja recebido pensamentos, como recebe todos os dias, resulta o seguinte: que esses pensamentos sofreram uma modificação sensível antes de chegar até ele; que essa modificação, ou signo sensível, existe de maneira invisível ao redor de nós, assim como a fonte dos pensamentos; que, se em vez dos pensamentos secundários recebidos dos homens nós nos elevássemos até os pensamentos vivos e primitivos, hauridos na fonte mesma, eles seriam necessariamente precedidos por signos análogos e vivos a eles pertencentes, da mesma maneira que os signos grosseiros e convencionais (como a escrita e a palavra) antecedem os pensamentos comunicados pelos homens. Por fim, se a educação do homem não fosse tão falsa e abusiva, os sinais primitivos e naturais seriam os elementos de sua instrução e ele começaria o desenvolvimento da existência intelectual pela percepção e pelo conhecimento físico desses sinais, cujo sentido só lhe seria comunicado numa idade mais avançada. Embora não se possa apoiar esse princípio em um número bem pequeno de exemplos, erraríamos em negar-lhes a certeza. Consideremos a criança débil e concentrada em seus órgãos: a ternura vigilante daqueles a quem a Natureza a confiou emprega todos os meios sensíveis próprios para confortá-la. Ela recebe seus efeitos e, mesmo que desconheça as pessoas que os transmitem e o motivo benéfico que as faz agir, isso não lhe destruirá a existência. Nem é menos certo que, sem elas, jamais a criança receberia algum socorro ou alguma sensação favorável. Tal é a imagem do que se passa na ordem dos pensamentos com relação aos órgãos e aos signos que lhes são necessários para chegarem até nós provindos de sua fonte. Não me estenderei mais sobre a natureza dos sinais, que devem ser bem semelhantes aos que empregamos para comunicar os pensamentos, já que nada podemos inventar. Digamos que, se há uma variedade extrema entre os pensamentos do homem, também pode haver diferenças consideráveis entre os sinais visíveis que lhe pertencem, já que eles são os órgãos e as modificações dos pensamentos. Então a proporção que estabelecemos entre os pensamentos e seus signos análogos tornase ainda mais indispensável para evitar a confusão. Segundo esses princípios, a criança que cresce também vai percebendo, embora de maneira obscura, os objetos que a cercam. Assim acontece com aquele que pelos primeiros progressos de suas faculdades intelectuais estivesse em condições de começar a receber pensamentos: poderia perceber de maneira incerta os símbolos que as representam. Mas, à medida que esses pensamentos e símbolos se fossem aperfeiçoando com a idade assim como as faculdades físicas do homem - o crescimento natural do Ser intelectual levá-lo-ia a ser favorecido por pensamentos vivos, justos, extensos, e a receber deles o signo análogo. Ou seja: um sinal completo de regularidade, com traços tão perfeitos e completos que ele seria tomado por um homem realizado, um Agente superior, um Ministro da Divindade, do mesmo modo que o homem, ao sair da infância, reconhece claramente como pessoas humanas os agentes sensíveis que atenderam às suas primeiras necessidades e aquelas das quais recebe a existência e a vida. Pelo contrário, aquele que tivesse pensamentos falsos, depravados e malignos, poderia distingui-los por sinais disformes e bastante irregulares para que lhe parecessem provir dos próprios Agentes do erro. Como o homem é o mais nobre pensamento de Deus, não deveria surpreender que os pensamentos divinos que lhe chegam tenham analogias com a mais bela das formas: a do homem. E é aqui que se aplica com justeza a passagem de Sanchoniathon, citada anteriormente, em que ele apresenta o Deus Thot fazendo o retrato dos Deuses para com ele formar os caracteres sagrados das letras: pois o corpo do homem é a mais bela letra de todos os alfabetos que existem na Terra e, conseqüentemente, a cópia mais correta do retrato invisível da Divindade. Poderíamos mesmo estender essa indução até à forma dos astros que, como o homem, são letras vivas do grande alfabeto. E se eles nos parecem esféricos, é que tal é a forma que os objetos têm para o homem na infância, quando tudo lhe parece igual e uniforme, pois não podemos negar que, com relação ao verdadeiro conhecimento dos astros, no mundo ainda estamos na infância. Finalmente, é preciso aplicar ao desenvolvimento de nossas faculdades intelectuais, e a todas as maravilhas que lhes pertencem, a mesma progressão observada no desenvolvimento das faculdades físicas da criança. Há uma seqüência igual de graus, das trevas à luz, a mesma mistura de impressões suaves e de impressões desagradáveis, a mesma percepção de objetos graciosos e de objetos contrários ou prejudiciais. Se a isso ajuntarmos as misturas em nosso ser, onde os vícios se aliam às virtudes, a luz à escuridão, encontraremos como análogos seus uma nova espécie de signos, isto é, signos mistos contendo verdades e falsidades, com variedades infinitas relativas às diferentes medidas de pensamento justo ou falso das quais são formadas as medidas. Mas, uma verdade mais vasta e convincente é que, de acordo com os princípios expostos sobre a degradação do homem e os meios pelos quais ele permanece ligado ao Princípio do qual descende, é preciso que esse Princípio haja comunicado, aos homens encarregados especialmente de concorrer na grande obra, todos os pensamentos relativos ao estado antigo, atual e mesmo futuro, a fim de mostrar-lhes o que tinham perdido, o que sofriam e o que deveriam esperar. É preciso, pois, que os homens escolhidos tenham visto de maneira sensível o quadro universal da história do homem, no qual devem ser compreendidos: seus deleites primitivos, todos os combates que tinha de sustentar, renovados e multiplicados ao infinito desde a demolição de seu primeiro templo; os socorros perpétuos e poderosos que a mão suprema sempre coloca junto de nós; a harmonia e o progresso de todos os princípios da natureza; a forma e a estrutura do Universo; as leis da Terra, as virtudes dos astros brilhantes que nos iluminam; e os Astros, mais vivos ainda, que são da mesma natureza do homem e que, razão pela qual ele terá permissão de um dia contemplá-los. Em suma, era preciso que cada um desses pensamentos, ou conhecimentos, fosse acompanhado do sinal sensível análogo para que os homens escolhidos, a quem a Sabedoria quisesse transmitir suas luzes, recebessem o complemento das instruções que lhes eram necessárias. Mas se todos os dias o homem traça a mesma verdade sob imagens e quadros variados, não nos surpreenderíamos de que os diversos homens escolhidos para servir de Colunas do Edifício hajam recebido o conhecimento dos grandes feitos e das grandes verdades por sinais diferentes e sob relações das quais nem todas oferecem os mesmos caracteres, assim como vemos que as Línguas só se multiplicaram e diversificaram porque cada Povo considerou o mesmo Ser sob uma face e uma aceitação particular. Nem deveríamos espantar-nos com fato de que a sucessão dos séculos haja multiplicado para o homem os quadros da verdade e os signos a eles relativos, de modo que os homens estivessem hoje em condições de abeberar-se nos reservatórios mais abundantes do que teriam podido nos primeiros tempos - porque as fontes que se abriram desde o instante da queda do homem não deixaram e não deixam de fluir sobre sua infeliz posteridade. Podemos ver facilmente que, do que acaba de ser exposto, descendem todas as tradições da Terra e as diferentes Mitologias dos Povos. Os homens favorecidos por grandes luzes haviam-nas recebidos para a utilização e a instrução de seus semelhantes: a fim de cumprir esse objetivo, não teriam podido eximir-se de transmitilas ao pequeno número daqueles que julgavam preparados de maneira conveniente, e a comunicação teve de ser feita de duas maneiras: uma, por discurso e instruções; a outra, pelo exercício e emprego dos atos ensinados aos Sábios pelas virtudes superiores, cujas existência e relações conosco foram suficientemente demonstradas. Os Sábios, exercendo os atos em presença daqueles em quem haviam depositado a confiança, deles faziam testemunhas de todos os resultados sensíveis que daí provinham. Como os conhecimentos e signos recebidos das virtudes superiores continham a História completa do homem, em sua glória ou em estado de aviltamento e sofrimentos, os resultados recebidos pelos discípulos continham a mesma mistura de luz e escuridão, de mal e bem, de perfeição e desordem, de padecimentos e remédios, de perigos e meios de libertação. Esses mesmo Discípulos, por ordem de seus Mestres ou por zelo, terão comunicado, cada um deles, às Nações entre as quais habitavam, quando não os fatos, pelo menos as narrativas deles e os discursos instrutivos aos quais haviam assistido. Eis por que, nos Povos antigos, as tradições falam de uma idade de ouro, de Gigantes, de Titãs, da usurpação do fogo celeste e do trono da Divindade, da cólera do pai dos Deuses contra os prevaricadores, dos diversos padecimentos por eles experimentados na Terra e nas diferentes Regiões no Universo; das virtudes derramadas sobre os mortais piedosos e fiéis, a quem as próprias Divindades concedem seus favores e da esperança de que elas o admitirão a venturas ainda maiores se observarem a lei do Princípio e souberem respeitar-lhe o Ser. Não devemos admirar-nos de que essas tradições e doutrinas sejam universais porque na origem elas formaram o fundo dos depósitos históricos de todos os Povos. Foi somente com o decorrer dos tempos e dos acontecimentos políticos que a História civil tomou-lhe o lugar. Isso faz com que tenhamos tão poucos documentos da História política das Nações na antigüidade e muitas das Tradições Teogônicas, ao passo que nos tempos modernos vemos poucas tradições e fatos relativos à História natural e religiosa, embora tenhamos muita coisa das Histórias civis. Raramente essas duas classes tiveram entre si uma perfeita afinidade. Embora os Sábios instruídos pelas virtudes superiores e os Discípulos instruídos pelos Sábios tenham conseguido essencialmente os mesmos conhecimentos e os mesmos resultados, cada um deles só recebeu as grandes luzes e os grandes traços da História universal do homem através dos símbolos e dos quadros que lhes eram particularmente análogos. Porque, se é verdade que todos os homens têm o mesmo Ser quanto à essência, também é certo que há entre eles uma variedade universal de dons, faculdades, e modos de apreender os objetos. E a Sabedoria, enviando fisicamente seus presentes aos homens, presta-se sempre a essas diferenças. Comunicando as mesmas coisas, os Sábios e os Discípulos apenas agiram, cada um, de conformidade com a idéia que seus dons particulares lhes permitiam apreender. Disso resulta a variedade infinita que percebemos em todas as narrativas dos diferentes Povos da Terra, embora neles o fundo das verdades seja geralmente uniforme. Os Discípulos admitidos a esses conhecimentos e manifestações não apenas não conseguiram apreendê-los todos com a mesma inteligência, mas alguns acrescentaram-lhes interpretações particulares e arriscadas. Outros confundiram as coisas simbólicas com os tipos que deviam exprimir e em seguida tomaram a alegoria pelo próprio fato, esquecendo que a semelhança dos símbolos naturais e superiores com os objetos sensíveis só acontecia com referência à sua forma e à razão da nossa sujeição às leis inferiores e materiais, mas que essa similitude jamais pode acontecer quanto à sua essência. Outros, abandonando-se à depravação, alteraram de propósito os tipos e símbolos, ou não se ligaram a todas as maravilhas das quais participavam, exceto aos objetos irregulares desordenados. E em seguida, professando cada um deles as ciências assim amesquinhadas ou corrompidas, deram lugar às tradições absurdas, à multidão infinita de narrativas ridículas, ímpias e insensatas de que as diversas Mitologias estão repletas e que em nada se conciliam com as verdades fundamentais e primitivas, porque muitas delas atêm-se tão pouco à verdadeira fonte que não podem ter relação alguma conosco. Daí derivam principalmente as diversas Seitas das Religiões dos homens e todos os ramos da idolatria. Se é habitual haver uma idolatria onde só se percebe a ignorância e o nada, há uma que se prende, evidentemente, à depravação, conduzindo a crimes ainda maiores do que os gerados na terra pelo fanatismo e a superstição. São ambas uma alteração do culto verdadeiro; colocam igualmente um Deus falso no lugar do Deus real. A diferença de origem dessas duas espécies de idolatria está no fato de que numa, o homem abusou de seus conhecimentos para com eles formar uma ciência culpada e na outra, recebeu uma instrução grosseira. Mas tais erros proclamam de maneira igual a idéia e o conhecimento de um Ser soberano. Se a idéia de um Deus não fosse análoga à nossa Natureza, jamais os objetos de nossas afeições sensíveis ou a própria instrução dos Agentes superiores a teriam feito nascer, fosse no espírito dos instituidores, fosse no dos outros homens. Da mesma maneira, se um homem jamais houvesse conhecido sensivelmente objeto algum que fosse superior e digno de suas homenagens, não teria concebido a Idolatria soberanamente criminosa: para ser verdadeiramente Idólatra, é preciso não somente começar conhecendo-se um Princípio divino, mas ainda tê-lo conhecido de maneira a não se poder ignorar que lhe é devido um culto puro e legítimo. Assim, quando nos enchemos de admiração pelas belezas naturais, de veneração pelos heróis, de ternura por um amigo, ainda estamos longe da Idolatria. Jamais atribuiríamos a qualquer Ser inferior os nomes ou os títulos que pertencem à Divindade se a idéia da perfeição suprema não houvesse sido anteriormente desenvolvida em nós, seja em natureza, seja pelo exemplo e pela própria instrução alterada de nossos educadores e daqueles que nos cercam. E mesmo, quando nos esquecemos ao ponto de divinizarmos homens ou objetos puramente terrestres, não é a eles que elevamos realmente à qualidade de Deus - eles são por demais fracos para nos induzirem à uma verdadeira idolatria - mas é a majestade de nosso Ser que rebaixamos do ponto de elevação onde o exemplo e a instrução a haviam levado, deixando-a repousar em objetos inferiores. É esse Ser que, sabendo-se destinado a prestar homenagem e a contemplar a Divindade suprema, desce até aqueles que estão abaixo dela, tomando-os como objeto de sua adoração. Foi, pois, menos por divinizar os objetos sensíveis do que por materializar a si mesmo que o homem se tornou idólatra. Não foi por afeições sensíveis que o homem se elevou à idéia da Divindade e à de seus Agentes: foi, ao contrário, aviltando essa idéia sublime e natural que ele perdeu de vista os objetos superiores, de quem sua essência o aproximava, para ligar-se a Seres grosseiros e perecíveis que desses objetos não tinham a realidade nem as virtudes. Pois, repito-o, se o homem não houvesse tido primitivamente a prova da existência dos Seres superiores, se não a houvesse transmitido a seus descendentes através de feitos ou tradições, nenhum deles jamais teria hesitado sobre um princípio do qual não tinham conhecimento algum. E podemos considerar como uma verdade indubitável que, se um homem ficasse separado inteiramente dos outros desde a infância, teria mais possibilidade de receber e praticar o culto supremo do que de começar por criar um ídolo para si. Os mesmos que adoram o Sol e os que queriam proclamar-lhe o culto como o mais natural, por estar esse objeto mais próximo de nós, não destroem o princípio que exponho. Os Povos que exerceram o culto do Sol só chegaram a essa Idolatria pela alteração de um culto mais sublime. Para nos convencermos disso, basta confrontarmos sua antigüidade com a dos Povos que adoraram o Ser invisível. As tradições chinesas relatam um culto puro e esclarecido nessa Nação, longo tempo antes que o culto do Sol se estabelecesse em qualquer outra Nação da Terra. Os que pretendem justificar a idolatria material fecham os olhos à natureza do homem, nem mesmo vêem que semelhante culto não pode satisfazê-los por muito tempo. Porque o homem é um Ser ativo, sente necessidade de fazer preces, de colaborar na obra que deseja realizar e o Sol exerce regularmente suas funções para conosco sem que precisemos agir e dirigir-lhe preces. Porque o homem está destinado, por sua origem, a exercer uma função sagrada que o põe em correspondência com seu Princípio. E porque o homem, assim como todos os Seres, só pode ficar satisfeito com os Seres nos quais reconhece sua semelhança e o Sol, por majestoso que seja, não tem qualquer semelhança verdadeira com o homem. Vimos anteriormente a necessidade de que as virtudes superiores, ao serem transmitidas ao homem, lhe fossem apresentadas numa forma análoga à dele, como sendo a mais expressiva das formas e a fim de que os socorros dessas virtudes não fossem inúteis para ele. É, pois, sob formas semelhantes que os Sábios e seus Discípulos devem ter recebido os principais sinais e os resultados mais essenciais dos atos puros e regulares que empregavam para sua própria instrução e a propagação da verdade. Os Êmulos, ao transmitirem às diferentes Nações as narrativas e feitos cujo conhecimento queriam comunicar, tê-los-iam representado em seu discurso através de expressões e quadros análogos ao que lhes fora transmitido. Querendo conservar a memória de tudo o que ouviam, os Povos por eles instruídos traçaram, pintaram e entalharam monumentos materiais que seus descendentes acabaram por ver como a realidade da própria coisa que eles se destinavam a representar, mas da qual tais monumentos não passavam de cópias e símbolos. Eis por que, entre as antigas Divindades dos Idólatras materiais e ignorantes, várias foram honradas sob a forma de figuras corporais humanas e representadas por estátuas. Mas é igualmente verdade que, juntamente com os signos regulares e semelhantes à forma humana, os Sábios e seus Discípulos devem ter recebido símbolos e formas relativos e similares a todos os objetos da Natureza, porque os socorros superiores, tendo por alvo pintar aos olhos do homem sua antiga grandeza, representavam-lhe, uma após a outra, todas as partes de seu domínio. Os Discípulos dos Sábios transmitiram às suas Nações essa nova classe de conhecimentos, assim como haviam feito com as que se atinham essencialmente à Natureza superior do homem. E havendo os Povos igualmente confundido os símbolos com os objetos terrestres, não é de se admirar que os diversos povos da terra tenham tido tantos ídolos informes e monstruosos, tomando como objeto de culto os Astros, os Animais, as Plantas, os Répteis e outras substâncias da Natureza. E na verdade, se refletirmos sobre o ponto de degradação ao qual o espírito do homem foi capaz de descer por causa da ignorância e do pouco cuidado em cultivar a inteligência, se considerarmos os graus tão numerosos e variados nos quais se deteve na desordem de suas idéias, acharemos a origem evidente da multidão de Ídolos reconhecidos entre elas sob formas e poderes tão diferentes. Em toda a extensão do círculo dos Seres, nenhum há, verdadeiro ou falso, no qual o homem não possa deixar de confiar e ao qual não possa dirigir seu culto. Assim, não nos surpreendemos ao ver que na Terra se honram, materialmente, Deuses do Empíreo, Deuses celestes, Deuses terrestres, Deuses aquáticos, ígneos, vegetais, minerais, e até Deuses infernais mesmo e Deuses do crime e da abominação. Porque o homem tem o direito de se dirigir-se ao objeto que quiser escolher e conferir-lhe a honra e o respeito que somente deve à Divindade suprema. Mas se é verdade que a forma do homem é a mais expressiva de todas, - pois nela se baseiam todas as relações e correspondências - quanto mais afastados delas estiverem os signos e monumentos da idolatria, tanto mais eles serão inferiores e alterados. É, pois, comparando com a regularidade de nossa forma todo o sensível que nos é representado que poderemos julgar, não apenas os diferentes graus da Idolatria material dos Povos, mas também aquilo que se apega ou a uma idolatria mais criminosa ou a um culto puro, ativo e legítimo, porque as correspondências dessa forma são universais. Admitamos por ora que nas narrativas aparentemente mais sensatas e regulares a Mitologia deve ser como que inexplicável para os que não penetraram na ciência do homem e da Natureza. Até aqueles que tenham penetrado devem ainda encontrar grandes dificuldades nesse tipo de estudo porque, para termos certeza da exatidão das relações, seria preciso passar em revista os próprios símbolos originais sobre os quais elas repousam. Ora, as cópias apenas de tais símbolos não bastam para tais verificações, sendo preciso buscar os originais nos próprios depósitos de onde foram tiradas pelos Escritores, isto é: em seus reservatórios naturais. Não nos admiremos de que um grande número de Observadores, utilizando seus trabalhos para explicar a origem e o alvo das tradições mitológicas para nos persuadirem da verdade de seus diferentes sistemas, consumisse em vão o tempo, uma vez que não tiveram por base nem um Princípio geral nem verdadeiras luzes. Como teriam podido esclarecer a obscuridade da origem das Fábulas e das Alegorias sem uma idéia justa do homem e sem conhecer suas relações primitivas fundamentais? Mas, perguntaríamos, se as mesmas luzes, signos e fatos permanecem sempre ao alcance dos homens, por que a linguagem alegórica e os símbolos estão hoje quase desaparecidos da face da Terra? Já respondi em parte a essa pergunta ao expor o quanto as tradições religiosas são mais antigas do que a história civil dos Povos e ao mostrar por que é que esses dois tipos de tradição seguiram uma ordem inversa. Bastará, pois, dizer que os homens atuais gozam menos, em geral, dos grandes socorros do que na origem - e talvez sejam culpados disso, uma vez que os sinais e os símbolos continuam ao seu alcance e disposição. Além do mais, mesmo dispondo deles hoje, estão de tal forma próximos das realidades que nem mesmo pensam nas figuras. Embora a origem e o alvo das narrativas mitológicas sejam quase universalmente conhecidos, embora sejam alterados com tanta freqüência - ou pela ignorância dos Traidores e dos Êmulos, ou pela dos Escritores e dos Poetas - indicamos várias que mostram relações evidentes com as verdades expostas nesta Obra. Vamos apresentar alguns exemplos tomados das Fábulas egípcias e gregas. Quem não reconheceria em Alcioneu - o Gigante famoso que socorreu os Deuses contra Júpiter, atirado por Minerva do Globo da Lua, onde se postara, e que tinha a virtude de ressuscitar - o antigo Prevaricador, excluído da presença do Princípio supremo, reduzido ao horror da desordem e acorrentado num recinto tenebroso, onde as forças superiores não deixam de coagi-lo e de molestar-lhe a vontade que sempre renasce? Seria vista com a mesma clareza a história do homem criminoso em Prometeu, e a dos diversos crimes de sua posteridade, em todos os infelizes cujos nomes e suplícios que nos são apresentados pela Mitologia? É o caso de Epimeteu abrindo a caixa de Pandora. Observaremos aqui que Prometeu significa o que vê antes, ou primeiro vidente, e que Epimeteu significa o que vê depois, ou segundo vidente, expressão da qual tiraremos em seguida outras relações. É o caso de Íxion, que projeta uma relação incestuosa com a mulher de Júpiter, seu pai, mas que, abraçando nada mais que uma nuvem, produziu os Centauros, monstros metade homens, metade cavalos, nos quais, evidentemente, se representa a nossa natureza mista. Seu suplício é uma imagem fiel do homem lançado nas extremidades da roda em torno da qual circula e onde apenas encontra inimigos furiosos e implacáveis. É o caso de Sísifo, revelando os segredos do Rei, seu senhor, condenado a viver empurrando um Rochedo enorme montanha acima, o qual o sempre torna a descer - isto é, perseverar em empreendimentos audaciosos para ser continuamente molestado ao vê-los continuamente lançados por terra. É o caso, por fim, das Danaides, que matam os maridos e que, sem a virtuosa conduta de Hipermnestra, teriam para sempre degradado o número centenário perfeito do qual a família é formada. Ficando também reduzidas a tirar água sem descanso em vasos sem fundo18, fazemnos compreender o que podem os seres que afastaram de si seus Guias e seu sustentáculo, figurado pelo chefe ou o marido dessas jovens criminosas. Em todos os símbolos os olhos adestrados talvez entrevejam relações mais diretas e mais sensíveis, tais como o quadro da marcha dos seres culpados que, condenados a um só ato, realizam-nos sempre da mesma maneira e que, por causa dessa monótona uniformidade, traem a si mesmos, pondo o homem bem intencionado ao abrigo de seus ataques: conforme experimentamos pelas diversas paixões que nos obsedam, apresentando-se sempre com a mesma cor que cada uma tinha ao começar a nos perseguir. Mas, como essas noções não estão ao alcance do vulgo, contentemo-nos com observar, no quadro de Tântalo, as penas às quais estamos sujeitos: ver no Cão de três cabeças19, nos três rios dos Infernos, nas três Parcas e nos três Juízes os três gêneros diferentes de combates, padecimentos e suspensões que temos de sofrer em razão das três Ações superiores das quais estamos separados e os três graus de expiação que todo homem deve escalar antes de chegar ao termo de sua reabilitação. As Tradições mitológicas gregas e egípcias não se limitam a nos apresentar os efeitos da Justiça dos Céus sobre o Homem. Pintam-nos, igualmente, os traços de seu amor oferecendonos, embora debaixo de véus, os raios de sua própria luz. 18 Na verdade, as Danaides despejam água num tonel sem fundo. Veja-se o Glossário. (N.T.) 19 Cérbero. (N.T.) É verdade que, como conseqüência de nossa infeliz situação, essa luz não pode exibir todo o seu esplendor porque, como também espalha claridade sobre os perigos e os males que cercam o homem, este só experimentaria horror e pavor se percebesse de uma vez todos os inimigos que o rodeiam e os obstáculos que deve combater e superar. Também faz parte da ordem da Sabedoria que ele seja exposto aos poucos aos Adversários tremendos, só lhe permitindo abrir os olhos com precaução e gradativamente, velando por ele como por uma criança que fremisse de medo e terror se, em sua fraqueza, pudesse conhecer o rigor e a violência dos elementos ou dos agentes ativos que lhe disputam o insignificante envoltório. E se vemos que tantos homem ainda são como crianças a respeito desses grandes objetos, é que há fatos como os da classe elementar, onde milhares de homens, recebendo as ações e contra-ações dos agentes da Natureza durante toda a vida material, estão, mesmo assim, dispostos a não lhe reconhecerem leis nem causas regulares, por não terem observado sua marcha. É que, pela fraqueza de sua inteligência, eles deixam passar diante de si esses fenômenos sem deles retirarem qualquer instrução. Mas se é incontestável a doutrina acima estabelecida sobre nossas relações com o nosso Princípio, não podemos mais desconhecer os signos do amor vigilante da Sabedoria pelo homem no símbolo de Minerva, filha de Júpiter, cobrindo seus favoritos com uma Égide impenetrável; na esperança deixada a Epimeteu depois que ele abriu a caixa fatal; nos conselhos dados pelos Deuses20 à sua filha Pirra e a Deucalião, seu esposo, para repovoarem a Terra depois que a raça humana fora destruída. Foi por uma conseqüência desse mesmo amor que a piedade do rei Átamas fê-lo obter dos Deuses o tosão de ouro, que a coragem e a virtude de Teseu fizeram-no merecer o fio de Ariadne, que Orfeu imobilizou a roda de Íxion, que Júpiter fez presente às Náiades da cornucópia em troca da que lhe fora arrancada ao pai e que os Deuses colocaram na Terra um caduceu para que nela reinasse a ordem e a paz, um tripé para sobre ele emitirem seus oráculos e homens escolhidos para os pronunciar. Todos esses símbolos demonstram claramente o interesse da Divindade pelo homem e a idéia indestrutível que dela tiveram aqueles que os traçaram. Sabemos de antemão o que devemos pensar do famoso Hércules, eleito pelos Intérpretes de todos os gêneros como um modelo de seus sistemas. Seus numerosos trabalhos, realizados em benefício da espécie humana, declaram bem de que modelo é ele a figura simbólica. E, mesmo sem contar todos os trabalhos em detalhe, devemos sentir o que ele nos ensina ao matar o abutre pelo qual o infeliz Prometeu acreditava que deveria ser eternamente devorado; ao sufocar o gigante Anteu, que fizera voto de erguer a Netuno um templo de crânios humanos; ao encarregar-se do peso da terra para aliviar Atlas que, no sentido etimológico, significa um Ser que carrega, um Ser sobrecarregado. Ora, a quem convém melhor esse sentido senão ao homem oprimido pelo peso de sua região terrestre e cheia de trevas? Por fim, é preciso lembrar que, para recompensar Hércules por seus inúmeros trabalhos, depois de sua morte corporal os Deuses fizeram-no desposar Hebe, ou a Juventude Eterna. As verdades físicas abrem passagem igualmente através dos símbolos mitológicos. Argos é um tipo do Princípio vivo da Natureza, que jamais afrouxa sua ação sobre ela, que a penetra e anima em todos os pontos, que lhe entretém a harmonia e vela em toda parte para impedir que a desordem dela se aproxime. A Divindade, que presidia ao mesmo tempo aos Céus, à Terra e aos Infernos, anunciava o triplo e quádruplo elo que une todas as partes do Universo, laço do qual a Lua é para nós o signo real: recebe a ação quaternária do sol, reúne em si não apenas as virtudes de todos os outros astros, mas, habitando o céu como eles, exerce, ademais, ação direta sobre a terra e as águas, emblema sensível dos abismos. 20 V. Têmis, no Glossário. É certamente em razão dessa grande virtude que os Neomênios, ou Luas Novas, foram tão celebrados pelos Antigos. Como a Lua era o carro e o órgão das ações superiores a ela, não era de se admirar que seu retorno fosse honrado com regozijo. E se os Antigos houvessem considerado esse retorno apenas com relação à luz elementar, não teriam instituído Festas para celebrá-lo. Não obstante, esse uso era tão natural que, numa Língua primitiva, da qual não tardaremos a nos ocupar, os termos planeta e influência são sinônimos. Por fim, o famoso Caduceu, que separa duas serpentes em luta, é uma imagem expressiva e natural do objeto da existência do Universo, o que se repete nas mínimas criações da Natureza, em que Mercúrio mantém o equilíbrio entre a água e o fogo para sustentar os corpos e para que as leis dos Seres, sem disfarce diante dos olhos dos homens, possam por eles ser lidas em todos os objetos que os rodeiam. O emblema do Caduceu, transmitido pela Mitologia, é, pois, um campo inesgotável de conhecimentos e instrução, porque as verdades mais físicas figuram ao homem as leis do Ser intelectual e o termo para o qual ele deve inclinar-se a fim de recuperar o equilíbrio. Isso nos leva aos símbolos e hieróglifos que por suas relações pertencem, como os outros emblemas, aos signos de pensamentos diversos dos quais, como reconhecemos, o homem é susceptível, e que, nos fatos sensíveis, devem mostrarlhe o verdadeiro quadro do estado do Ser intelectual. Se no mundo o homem conseguiu provas sensíveis da existência das Potências supremas e se, com mais razão ainda, conseguiu provas sensíveis da existência das Potências inferiores que compõem toda a Natureza e estão compreendidas em seu Domínio, há sinais análogos e fixos que dirigem o homem na carreira de sua instrução, não apenas para todas as classes intelectuais, mas também para todos os Seres físicos da Natureza geral e particular. De outro modo, sua ciência ficaria despojada de base e de apoio. Como conseqüência, os signos e hieróglifos relativos à Natureza física não puderam depender da convenção arbitrária do homem, conforme querem as pessoas que não caminham em sendas sólidas e que se rendem cegamente às primeiras opiniões que lhes são apresentadas. E a prova de que tais sinais são independentes de nossas convenções é que com signos arbitrários o homem só formaria hieróglifos mortos e sem virtude; portanto, eles seriam nulos e impotentes para representar a Natureza, onde tudo é vivo. É preciso, pois, que os próprios objetos naturais sejam acompanhados de sinais análogos para servirem de índice tanto à sua essência como às suas propriedades. E não duvidemos de que os Sábios não tivessem sido guiados por esse princípio ao aplicarem caracteres distintivos a todas as substâncias, aos planetas, ao metais, ao fogo, à água e a todos os elementos. Os homens que os sucederam quiseram talvez imitar-lhes o exemplo ao trazerem de volta sinais diversos e caracteres diversos a várias criações naturais, tais como as que são tidas pela Química como objeto de conhecimento e estudo. Mas é indubitável que, supondo serem verdadeiros os caracteres empregados pelos imitadores, os homens caminharam como cegos na aplicação que fizeram deles, como fica evidente quando deram aos metais os nomes vulgares e os signos compósitos dos Planetas. De acordo com isso, não podemos deixar de crer que tudo o que nesse gênero nos foi transmitido nas Ciências, nas Artes e nos alfabetos das Línguas peca não somente na aplicação, mas está até mesmo alterado na figura e na forma dos caracteres. Ora, de sinais e caracteres assim desfigurados devem resultar, nas ciências materiais, os mesmos erros feitos nos símbolos das Potências supremas, cujo mau uso, gerado pela ignorância, deu nascimento à Idolatria sobrematerial. Essa verdade por um momento nos servira de facho para que conheçamos a desconfiança com que se deve caminhar nas ciências e nos sistemas dos homens. Mas é preciso esclarecer aqui uma questão sobre os hieróglifos e a escrita; saber se os sinais hieroglíficos são anteriores aos sinais da palavra e da linguagem. Homens célebres chegaram perto do alvo ao dizerem que toda escritura e sinal era hieroglífico, isto é: que devia trazer em si os indícios do objeto que se propunha apresentar à inteligência. E realmente a própria palavra só se torna inteligível ao homem tornando-se hieroglífica para ele, que só compreende as palavras das Línguas depois que seu sentido se lhe torna familiar com o auxílio das coisas sensíveis às quais as palavras correspondem. Entretanto essa decisão, adotada de maneira por demais irrefletida, arrastaria consigo a necessidade de considerar como uma coisa única os sinais hieroglíficos e as Línguas. Ora, não podemos duvidar de que essas duas coisas sejam muito diferentes, apesar de intimamente ligadas, e se for permitido empregar uma comparação, elas formam juntas um fruto do qual uma é o sumo e a outra, a casca. Finalmente, não podemos duvidar de que, se todos os sinais das línguas são hieroglíficos, como dependentes das propriedades essenciais do princípio que exprimem, também todos os demais objetos, independentemente de serem hieroglíficos em si, devem ainda ser depositários de um nome que possa passar na linguagem do homem e servir de tema e guia para sua inteligência quando o objeto não estiver mais sob seu olhos. Essa verdade é confirmada pela experiência geral dos povos que têm duas maneiras de comunicar os pensamentos: a saber, os próprios objetos e mais as palavras que a eles correspondem em suas Línguas. E se foi dito que, quando os objetos intelectuais não estivessem presentes os homens não deveriam ter palavras para exprimi-los, eu voltaria ao que disse acima sobre a necessidade da presença sensível das Virtudes supremas entre os homens. E mesmo que a objeção se transformasse em vantagem para o Princípio que defendo uma vez que no estado atual do homem as palavras estão como que envolvidas nos objetos sensíveis - se em suas Línguas os homens tiverem palavras para exprimir os objetos intelectuais, isso é uma prova evidente de que os objetos intelectuais foram sensíveis para eles ou para aqueles que lhes transmitiram as idéias sobre eles. Podemos, pois, decidir aqui a questão proposta dizendo que, na ordem natural e perfeita, os sinais hieroglíficos precedem universalmente as línguas; que, se reconhecemos com razão que os homens, no estado de degradação, tiveram Línguas antes de terem escrita, nosso princípio é igualmente confirmado. Não é preciso considerar os caracteres da escrita atual e popular como os hieróglifos primitivos nem como a fonte da palavra do homem, mas como sinais hieroglíficos secundários destinados a fazer a inteligência e a palavra reagirem naqueles a quem os próprios hieróglifos seriam transmitidos. E não poderemos duvidar de que os sinais hieroglíficos inferiores não tenham esse emprego se observarmos que os mudos se fazem entender por sinais e que vários homens escrevem Línguas que não sabem falar nem entender. Se quisermos convencer-nos de que os sinais e hieróglifos primitivos são anteriores às línguas, basta ver que todas as nossas palavras são precedidas intelectualmente em nós pelo quadro sensível daquilo que queremos exprimir. Basta, por uma razão bem mais forte, observar que o homem passa a primeira parte da vida corporal nos entraves da infância e nos laços dos órgãos materiais antes de estar de posse da palavra. Mas voltemos aos signos naturais das Potências inferiores que agem no Universo e reconheçamos novamente a existência necessária de símbolos para todas as classes de seres, todos os Reinos e regiões, porque tudo é governado por essa lei irrevogável. Como cada Povo e cada homem é livre para aplicar-se a tal ou qual objeto, cada um deve também ser dotado de uma abundância maior de sinais relativos ao objeto do qual se ocupa. É até um índice garantido para reconhecermos as Ciências cultivadas por um Povo: não é preciso considerar por muito tempo os hieróglifos dos egípcios para vermos que eles se aplicavam menos às verdadeiras Ciências do que vulgarmente se crê. A multidão de répteis, pássaros, animais aquáticos que aí dominam demonstram que eles agiam particularmente sobre os objetos elementares e mesmo sobre objetos ainda mais inferiores, porque a água de onde todos os animais saíram é, pelo seu número, o verdadeiro tipo de uma origem confusa e desordenada. Se pretendêssemos que eles houvessem tirado os hieróglifos apenas dos objetos mais comuns em seu país aquático, bastaria lembrar o que já dissemos sobre a origem da Idolatria: apenas uma alteração do culto verdadeiro, necessariamente precedida pelos sinais primitivos e hieroglíficos. Da mesma forma, há testemunhos seguros para termos certeza da ignorância de uma Nação: é quando ela não tem escrita natural hieroglífica e os monumentos são ornados de figuras arbitrárias, nulas, e às quais não se presta senão um sentido convencional e ideal. Então podemos ter certeza de que os Sábios mais célebres dessa Nação não têm nem mesmo a primeira idéia do título com que são honrados e que, se possuem uma posição de destaque na opinião vulgar, ocupam uma outra muito inferior na ordem verdadeira dos conhecimentos. Vem a propósito apresentar aqui alguns exemplos dos sinais naturais que devem ter relações com os objetos temporais e indicar as propriedades dos Seres. Se todas as Nações da Terra empregaram o triângulo em seus monumentos hieroglíficos, poucas lhe conheceram ou desvendaram as verdadeiras relações e o verdadeiro sentido. Aquelas que o tiveram como símbolo do Ternário sagrado devem ter mostrado um símbolo intermediário entre esse Tipo supremo e o ternário corruptível, porque, sem isso, do Ser invisível e invariável à figura morta, como um triângulo, há uma distância grande demais para que possamos elevar-nos de uma a outra. Ora, o símbolo intermediário é o homem, como veremos em seguida. É preciso, pois, considerar simplesmente o triângulo corruptível em suas relações temporais. Assim, ele se torna o símbolo perfeito dos Princípios da Natureza elementar, em número de três. Torna-se, portanto, o símbolo de todos os corpos individuais, constituídos pelo mesmo número e leis da Natureza universal. Ele é a expressão sensível da base fundamental das coisas e, como a primeira figura e a mais simples que o homem pode produzir ou conceber - pois a circunferência é menos uma figura do que o conjunto e o quadro geral de todas as ações e figuras - é talvez a imagem clara da lei particular seguida pela Sabedoria na produção de suas obras materiais. Com relações tão vastas, não admira que essa figura ocupe uma posição tão distinta entre os hieróglifos das Nações. Os Químicos que em suas pesquisas se interessavam mais nas partes separadas do que no conjunto, empregaram esse símbolo em sua ciência, mas, em vez de considerá-lo na verdadeira relação, estabeleceram-no como símbolo do fogo ou do flogístico. E muito embora sob esse ponto de vista isolado houvesse ainda uma certa exatidão da aplicação, se os Químicos tivessem sabido desvendar-nos o que está contido no fogo, claro está que, não o sabendo, o símbolo fica como que morto em suas mãos e seu significado torna-se arbitrário. Alguns Químicos, acreditaram ver o fogo expresso nas faces triangulares da pirâmide, e fundavam-se nisso pelo fato de que a primeira sílaba, pyr, em grego significa fogo e de que havia um grande número de pirâmides entre os egípcios, que celebravam o culto do Sol, ou do fogo, e de quem os gregos colhiam a maior parte de seus conhecimentos. Mas se a pirâmide tinha relações com o fogo, não seria precisamente por causa de suas faces triangulares, mas pela direção vertical e pela forma, que vai diminuindo até atingir um ponto insensível. Aí é que se encontrariam as leis do fogo, porque ele sobe sempre verticalmente, desde que grandes causas estranhas não lhe bloqueiem a ação natural; porque diminui, para nós, à medida que se eleva e porque termina, como a pirâmide, tornando-se imperceptível a nossos sentidos. Os Alquimistas cometeram os mesmos erros sobre a figura cruciforme que adotaram para representar o ácido universal. Esse símbolo, correspondendo ao próprio círculo da circunferência e formado por dois diâmetros, é o indício visível da unidade. Sabe-se que o fogo é um em todo lugar, que ocupa o centro de todos os corpos e que sua tendência incessante é separar-se das substâncias grosseiras com as quais está combinado. Então a figura cruciforme seria, com razão, o verdadeiro símbolo do fogo, e não do ácido. Embora o ácido seja um fogo, como jamais deixa de ter água, não é um fogo puro. Assim o símbolo da simplicidade e da pureza não lhe pode convir. Também os Antigos estavam tão persuadidos de que essa figura cruciforme era o símbolo do fogo que os Sacerdotes do Sol entre os egípcios o traziam nas vestes. Por fim os Químicos, unindo o triângulo e o sinal cruciforme, tomaram essa reunião como símbolo do enxofre: sendo o enxofre composto de ácido vitriólico e de flogístico, símbolos admitidos para representar separadamente o ácido e o fogo, podem ser escolhidos para representar seu conjunto. Mas sem nada mais dizermos sobre essas convenções, senão que elas pouco nos instruem, cremos que nesses dois sinais podemos descobrir relações mais elevadas e mais interessantes, e o tipo delas será sempre o homem. Como símbolo universal das leis particulares que produziram os corpos, o triângulo deve aplicar-se ao corpo do homem, tanto aos seus princípios constitutivos, quanto a todos os outros corpos. Como é o símbolo do fogo do centro, do Princípio, a figura cruciforme convém ao Ser universal do homem, ligado diretamente ao centro do Princípio superior e universal de todas as Potências. Reunindo os dois sinais na mesma ordem em que são empregados pelo Químicos, ou seja: colocando-se o triângulo acima da figura cruciforme[ ], temos, de maneira evidente e sensível, o quadro das duas substâncias opostas que nos formam e, ao mesmo tempo, o da imperfeição de nosso estado atual, em que o Ser pensante se encontra subjugado e como que sepultado sob o peso da forma corporal. Ao passo que, por sua natureza, estava destinado a reinar sobre ela e dominá-la, essa forma deveria ser-lhe absolutamente subordinada - e eis como todas as leis dos Seres poderiam ser úteis à nossa instrução. Podemos mesmo encontrar nisso uma nova prova da necessidade das manifestações superiores para ajudar o homem a se restabelecer em sua ordem natural a fim de que, reconduzida nossa essência intelectual à posição primitiva e superior à matéria, o edifício que fora derrubado segundo essa figura [ ] se encontrasse erguido assim [ ]: Por fim, podemos observar que na decomposição dos corpos o fogo princípio, seu flogístico, escapa a todos os meios corporais empregados para contê-lo. Isso equivale a uma idéia visível da distância que há entre a matéria e seu Princípio e, por analogia, de como o Princípio intelectual do homem é estranho ao seu envoltório. Se passarmos dos sinais naturais ao simbólicos, descobriremos neles as mesmas luzes. Os Mitólogos pintam-nos o Amor armado de flechas e Minerva saindo do cérebro de Júpiter. Por um lado, isso nos lembra que todas as afeições sensíveis que provêm dos objetos exteriores são destrutivas; e, por outro, que a sabedoria, a prudência e todas as virtudes que tenham sua sede no germe interior do homem podem nascer dele, à imitação do Ser do qual é a imagem e que tudo produz. Ou seja: que, se o homem intelectual cumprisse seu destino primitivo, não deixando alterar-se porção alguma de sua substância material, viveria menos daquilo que faria entrar em si mesmo do que daquilo que deixasse emanar pelos esforços de seu desejo e de sua vontade. Princípio justo, verdadeiro, fecundo e instrutivo, no qual se encerram todos os segredos da ciência e da felicidade. Mas o que hoje dificulta tanto ao homem usar esse princípio é que a aplicação a ser feita tornou-se dupla e dividida, porque deve referir-se não somente aos objetos de inteligência e raciocínio, cujas operações se passam na cabeça, mas ainda a todas as afeições virtuosas do desejo e do amor pela verdade sediadas no coração do homem. Assim, estando ligado a dois centros afastados um do outro, sua ação é infinitamente mais penosa e mais incerta do que quando esses centros estavam reunidos, ainda mais que, dada a distância imensa que os separa, sua comunicação pode ser interceptada com freqüência. E no entanto, se não agirem de acordo, só produzem obras imperfeitas. Os Mitólogos nos mostram uma Esfinge à porta dos Templos egípcios para lembrarem como a luz está hoje por nós envolvida de enigmas e obscuridades. Mas, ao nos transmitirem o emblema que a Esfinge representou quando foi enviada a Tebas21 pelo ciúme de Juno, eles nos ensinam que ela não é inacessível. Sabemos que Édipo, ao explicar o enigma que a Deusa mandava propor através de sua Enviada, não lhe deixava outra opção senão matar-se. Convenhamos, no entanto, ser bem fora de propósito que no símbolo a Esfinge acabe chegando a esse extremo, uma vez que Édipo apenas dava a explicação do homem animal e sensível e que há em nós um Ser infinitamente superior, única resposta pela qual todos os enigmas podem ser verdadeiramente explicados. Quando nos falam da moeda de ouro que as Sombras davam a Caronte para atravessar o rio, os mesmos Mitólogos nos mostram a que preço podemos ter esperança de alcançar essa luz. O homem jamais encontrará acesso às moradas de paz sem ter conquistado, durante sua permanência no mundo, riquezas intelectuais suficientes para ganhar e submeter aqueles que defendem os recintos da luz. E também não pode, durante a existência sensível e material, dar um só passo na direção da verdade sem pagar adiantado, por seus desejos e seu devotamento, ao Guia fiel que deve dirigi-lo na carreira. Enfim, os Mitólogos nos lembram, de maneira evidente e sem artifícios, a presença desse Guia junto do homem, ao nos pintarem o Paládio, ou a estátua de Minerva que desceu do Céu com o auxílio de Abaris, quando era erguido em Tróia o Templo dessa Deusa. Mostram-nos, ao mesmo tempo, a confiança que devemos ter nesse dom supremo, pois, a exemplo de Tróia e segundo o Oráculo que anunciara de que é que dependia a conservação da Cidade, estaremos para sempre em segurança, enquanto não deixarmos os Inimigos penetrarem pelos subterrâneos no Templo, chegarem até o Altar e roubarem nosso Paládio. Todas as alegorias que acabamos de ver bastam para convencer-nos de que, a começar pela primeira origem das coisas temporais, as Tradições mitológicas apresentam ao homem uma multidão de imagens fiéis de todos os fatos passados, presentes e futuros que lhe devem interessar; que ele pode ver neles a história do Universo material e imaterial, a sua própria, isto é, o quadro de seu esplendor original, o de sua degradação e o dos meios empregados para reabilitá-los em seus direitos. Quanto aos que querem limitar as Tradições mitológicas aos fatos históricos, nada vendo nas antigas Divindades além de Heróis ou personagens célebres, cremos que podem ter razão em alguns pontos, mas é preciso que confessem também que a maior parte dessas interpretações particulares só foram feitas posteriormente e segundo tradições mitológicas já existentes. De sorte que não deixamos de reconhecer que a Mitologia primitiva foi hieroglífica e simbólica, ou seja: que encerrou as verdades mais importantes para o homem, e de tal modo necessárias que elas não deixariam de existir mesmo que as Fábulas, outra espécie qualquer de Tradição, não nos tivessem dado uma idéia delas. Terminaremos aqui com as Tradições para não atrasarmos nossa marcha e não arriscarmos interpretações que, por demais profundas para serem entendidas de maneira geral, não pareceriam ter todas a mesma evidência, podendo com isso espalhar dúvidas e desconfiança sobre as que fossem mais claras. Mas as observações que acabamos de ver não se limitam apenas às Tradições mitológicas gregas e egípcias: a Teogonia, a cosmogonia e as Doutrinas religiosas dos Povos antigos, tendo tido um Princípio e um alvo comuns a toda a espécie humana, devem apresentar-nos os mesmos quadros e as mesmas verdades. 21 Tebas grega. (N.T.) De fato, abramos o Shastah dos gentus, o Zendavesta dos parses, o Edda dos islandeses, o Chon-King e o Y-Ching dos chineses; em suma, consultemos as Tradições sagradas de todos os Povos da Terra, sem receio de afirmar que neles reconheceremos com facilidade o homem antigo, presente e futuro, assim como a expressão natural de suas necessidades e idéias porque, sendo o homem um Ser de todos os tempos e lugares, em toda parte só terá as mesmas necessidades e as mesmas idéias Entre as Tradições, tomemos a dos chineses como exemplo, pois, independentemente de serem favorecidas pela antigüidade, elas apresentam as relações mais notáveis com as verdades fundamentais concernentes à ordem das coisas visíveis e invisíveis. Falam da queda dos primeiros pecadores, da formação do Universo pelas Virtudes do grande Princípio, por uma Vida que não recebeu vida. Vemos nelas a origem do gênero humano, o estado do homem na inocência, gozando das doçuras de uma habitação deliciosa, que era regada por uma fonte de imortalidade, dividida em quatro mananciais maravilhosos chamados caminho do Céu, de onde saíra a vida. Tudo era para ele uma perfeita harmonia. Todas as estações eram reguladas. Nada podia ser funesto nem causar a morte - isso chamava-se: a grande unidade. Ensinam que o desejo imoderado da ciência perdeu o gênero humano; que, depois da degradação do homem, os animais, pássaros, insetos e serpentes começaram a fazer-lhe guerra à porfia e que todas as criaturas se tornaram suas inimigas. Aí encontramos que, tendo-se perdido a inocência, surgiu a misericórdia. Reconhecemos mesmo imagens sensíveis dos caminhos da Sabedoria no famoso Fu-hi, ou Fo-hi, cujo fabuloso nascimento é figurado de maneira extraordinária, e que passa por ter instituído o Culto do qual ainda restam traços na China22. Passa também por ter inventado os Kua, sinais hieroglíficos e caracteres da primeira escrita dos chineses, que por seu sentido representam relações com a Língua dos hebreus, em que o termo Kua significa igualmente ele anunciou, ele indicou, sendo essas relações tanto mais fundadas por poder a língua hebraica, por mais de uma razão, passar por ser o tipo das outras Línguas. Observemos que os Kua chineses eram estabelecidos sobre os arranjos e as divisões de três linhas fundamentais, cujas diferentes disposições indicavam tudo que o Mestre queria ensinar a seus Discípulos, isto é, sem exceção, tudo o que é permitido ao homem conhecer, como os três elementos constitutivos do Universo bastaram ao Criador para multiplicar ao infinito as imagens de seus pensamentos aos olhos dos que os sabem ler. Fo-hi fez também o povo conhecer o ki, palavra que se traduz de modo sensível como o sopro do Todo-Poderoso, mas da qual se encontram ainda traços mais expressivos no hebraico, porque ki, ou kai, que dizer Vivo, ou a força da ação virtual do Princípio universal que dá existência a todos os Seres. Segundo os conhecimentos que admitimos ter Fo-hi transmitido aos chineses, não devemos surpreender-nos de que ele ocupe em suas Tradições um lugar tão elevado a ponto de elas não temerem atribuir-lhe a criação do Céu e da Terra. Se perguntassem por que razão aponto a língua hebraica como tipo das outras línguas, responderia que é porque a língua primitiva, da qual deriva, não é mais falada de maneira geral no Mundo; que não podemos ver como primitiva uma Língua sensível, fundada na forma, nas leis, sons e ações de todos os objetos naturais, visto que a língua do pensamento lhe é estranha. Responderia que é por que, em qualquer dialeto que se considere a língua hebraica, seja o siríaco, o árabe, o samaritano, ou o caldaico,23 ela oferece traços de todos os princípios que expusemos; porque suas raízes são quase geralmente compostas de três letras para nos lembrar as raízes universais de todas as coisas; porque essas raízes são verbos e só parecem ser substantivos aos que não observaram a ordem e a progressão da linguagem em sua fase mais brilhante; porque ela exprime essas raízes na terceira pessoa para que, dentre as três faculdades supremas, conheçamos em primeiro lugar a que está mais próxima de nós; porque só emprega os tempos passados e futuros, como se estivesse destinada somente às coisas temporais e aparentes ou nulas, e não às presentes e reais. 22 Observação para o leitor: este livro foi escrito há cerca de duzentos anos. V. nota 29. (N.T.) 23 Escrito antes de surgirem os grandes estudo lingüísticos. (N.T) E porque a linguagem só começou a ser convencional e a corromper-se quando passou a empregar o tempo presente, que não pode convir às coisas incertas e passageiras e pertence apenas ao Ser verdadeiro e fixo, cuja ação está sempre presente, como sempre foi e sempre será. Aproximando-se o nome de Fo-hi da Língua hebraica, com a qual todas as Línguas da Terra têm relações primitivas, poderíamos estender nossas idéias com referência ao célebre Legislador, sobre o qual os próprios sábios chineses são tão divididos que ainda não decidiram se sua existência é real ou se não passa de alegórica. O termo Fo-hi não está distante do termo hebraico Phé, que quer dizer boca; o termo hi está ainda mais próximo do afixo hebraico i, que ligado ao seu nominativo, quer dizer de mim. Estando próximo do hebraico, o termo Fo-hi poderia, pois, ter algumas relações com a expressão a boca de mim, ou minha boca. Digo simplesmente algumas relações porque aquelas que fazemos entrever não são diretas e inteiras e porque o próprio hebraico não traduz os termos minha boca por Phéi, que, parece, deveria ser a expressão natural, mas pela abreviação Phi. Que Fo-hi tenha sido, pois, um dos Agentes, ou uma das Virtudes subdivididas que tiveram necessariamente de mostrar-se no local habitado pelo homem, que não tenha passado de um homem comum, é certo, segundo as Tradições que lhe atribuem a criação do Céu e da Terra, segundo os sublimes conhecimentos dos quais sua Nação o reconheceu depositário, segundo o sentido mesmo que uma etimologia aproximada nos faz descobrir em seu nome, é certo, afirmo-o, que a China recebeu os mais resplandecentes traços de luz. Quanto às ciências naturais, não se pode duvidar de que os chineses se tenham aprofundado nelas quando se vêem traços seus que restaram, seja em monumentos astronômicos, seja em seu sistema musical - essa ciência, a mais simples e mais poderosa das ciências temporais, a única que abraça de maneira ativa e sensível todos as leis dos Seres, a única entre as coisas compostas que está sujeita a uma medida igual e constante, já que os próprios Astros, embora com períodos regulares, têm todos, no entanto, uma marcha cujas progressões não deixam de variar pela lei comum que os faz depender uns dos outros. Não somente os chineses foram profundos na ciência da música, mas também renderam homenagens à sua sublimidade aplicando-a especialmente aos cultos religiosos e às cerimônias com as quais honram os manes de seus antepassados. Pretendem mesmo que ser necessário que seus Músicos tenham costume puros e sejam penetrados pelo amor à sabedoria para tirarem sons regulares de seus instrumentos. De seus antigos e sublimes conhecimentos os chineses possuem apenas os monumentos que lhes transmitiram tais conhecimentos: também aconteceu entre eles o que pudemos ver em todas as Nações - que uns se prosternaram diante deles sem os compreender e que os outros os desprezaram. Ou, melhor dizendo, a Nação chinesa dirigiu seus olhares à moral e talvez a uma sábia administração, mas cujos frutos não se elevam acima da felicidade política. Mesmo seus Letrados, que nela parece exercerem a função de Deuses tutelares, esqueceram a instituição primitiva e como que se enterraram em pesquisas laboriosas sobre a veracidade de sua história comum, as leis civis, o Governo e, principalmente, sobre o conhecimento literal e tipográfico de seus Livros. Os famosos Kua, apresentados como contendo todas as Ciências, não obtêm deles mais do que um respeito estéril. Não lhes conhecendo o uso, eles os substituíram por essa multidão assustadora de caracteres - que se talvez se atenham à expressão sensível dos símbolos e fatos intelectuais realizados na terra, mas que hoje estão limitados a representar coisas aparentes - não sabendo mais aplicá-los à Natureza e às leis dos Seres. E, nessa visão, são outras tantas prisões que erguem para seu espírito. É assim que o homem que por um momento desvia os olhos do Princípio acaba por corromper tudo, vindo a considerar como fabuloso aquilo cuja realidade ele não tem mais inteligência e força para perceber. É por esta razão que não podemos considerar com excesso de prudência e de discernimento as Tradições alegóricas, mitológicas ou teogônicas, tanto dos chineses como dos outros Povos da Terra. Por ignorância e precipitação, todos confundiram e misturaram a maior parte de suas Tradições originais, seja com sua história civil e política, seja com suas leis e costumes convencionais, seja mesmo com as idéias monstruosas de uma imaginação grosseira e desregrada, o que desfigurou totalmente várias dessas Tradições. É, pois, através de uma profunda observação de si mesmo e de todas as leis dos Seres que se poderá encontrar no maior número de narrativas uma confirmação evidente do que dissemos antes: era necessário que as Virtudes divinas se manifestassem para que o homem degradado pudesse regenerar-se diante delas manifestando, por sua vez, a grandeza do modelo que o encarregou de ser seu símbolo e de levar seu caráter no Universo. Com essa precaução ativa e vigilante, reconheceremos facilmente que a Potência suprema só pôde mostrar-se de início aos homens sob uma espécie de subdivisão; como tinham sido feitos pela Unidade, essa subdivisão deve mantê-los num padecimento inevitável e fazê-los sentir o rigor dos Decretos divinos pela severidade da lei que a acompanha, designada nas tradições e alegorias de todos os Povos por traços de violência, de furor e da justiça mais rigorosa. Mas posso apresentar ao Leitor um fio a mais para conduzilo nesse labirinto: preveni-lo de que, como a mesma alegoria encerra verdades de várias ordens, é preciso seguir essas verdades segundo sua expressão natural; é preciso, de início, procurar na alegoria o sentido mais próximo ao da letra como sendo o mais inteligível e mais ao nosso alcance, e em seguida elevar-se ao sentido que o sucede de imediato. Por meio dessa marcha atenta e prudente, chegar-se-á ao conhecimento do sentido mais sublime que uma Tradição possa encerrar. Se essa ordem não for observada, se for omitido qualquer termo da progressão e se quisermos explicar-lhe demais os extremos, só encontraremos confusão, obscuridade, contradições, porque, ao negligenciarmos um sentido intermediário, ficaremos privados do único meio que podia tornar os objetos inteligíveis. Passemos às Tradições dos hebreus. Por mais vantajosas que sejam as descobertas que possamos fazer nos Livros hebraicos, eles não devem ser empregados como provas demonstrativas das verdades que se referem à natureza do homem e à sua correspondência com o Princípio: já que as verdades subsistem por si mesmas, o testemunho dos Livros só lhes deve servir de confirmação. Além do mais, os Livros dos hebreus, tendo em vista sua profundidade e a fecundidade da Língua em que foram escritos, prestam-se a um número tão grande de sentidos que são como que um campo de batalha em que cada Partido e cada Seita encontra algo com que ser atacado e algo de que se defender. É esse o motivo pelo qual nenhum daqueles que advogam a favor da santidade de tais livros, ou contra ela, sem outro recurso além das luzes vulgares, podem convencer-se, porque não dão às suas opiniões uma base natural comum, de modo que todas as suas objeções são reciprocamente insolúveis. Se os princípios até aqui expostos não se baseassem num apoio sólido, estaríamos fazendo pouco para o avanço da ciência ao lhes darmos como base Livros cuja aceitação, não sendo geral, sempre deixariam dúvidas sobre a autenticidade necessária para serem os fiadores da verdade. Mas, havendo estabelecido esses princípios sobre fundamentos inabaláveis, creio que posso pôr em uso tudo o aquilo que pode ampliar ou confirmar-lhes a certeza. E os Livros hebraicos parecem convir a esse fim. Tanto as tradições históricas quanto as alegóricas dos hebreus oferecem-nos as mesmas verdades oferecidas pelos outros povos. Demonstram de modo igual a degradação do homem, os esforços que ele deve fazer para apagar sua ignorância e os socorros que a ordem suprema está sempre a lhe conferir, a fim de apressar seu retorno à luz. Encontram-se nelas os mesmos signos das relações do homem com a Divindade, e da Terra com todas a Potências superiores. Encontra-se a mesma subdivisão das Potências com relação ao homem. Nelas tudo é, de modo igual, vingança e rigor, apresentando apenas a severidade de uma Justiça que não abre mão de quaisquer dos seus direitos. Assim, embora as Tradições somente ofereçam objetos sensíveis e corporais e de algum modo somente mostrem virtudes terrestres e pareçam prometer à espécie bens passageiros e recompensas temporais, devemos crer que tenham o mesmo alvo e que contenham a mesma doutrina das Tradições mitológicas. Com muito mais fundamento, pensaremos que em nossa época foram descobertas relações impressionantes entre vários personagens da mitologia egípcia e os das Tradições hebraicas, dos quais a egípcia, naturalmente, pareceria ser a primeira fonte. E se já percebemos a história do homem nas principais Tradições mitológicas, com muito mais razão devemos reconhecê-la em fatos que parecem ter sido o tipo e o germe das mais célebres da Tradições. Além do mais, vemos nelas os fatos reunidos ao dogmas e a ação à doutrina, ao passo que em todas as outras Tradições essas duas coisas estão quase sempre separadas. As Tradições Mitológicas egípcias e gregas contêm apenas fatos e muito poucas doutrinas. Os livros teogônicos dos parses, do chineses e de todos os Povos que, em sentido oposto, afastaram-se igualmente do tronco primitivo, encerram mais doutrina do que fatos, porque esses Povos negligenciaram a verdadeira ciência do homem, que deve desorientar-se com relação a seus fatos quando não os pauta pela moral, limitandose a moralizar quando não sabe agir. Maomé, que viveu entre os descendentes dos hebreus e entre eles nasceu, imita-lhes os Livros nesta parte. No Corão, alternam-se a doutrina e os fatos históricos. E embora esse Livro, salvo alguns traços de luz, não passe de uma coletânea confusa, repleta de preceitos imponentes; embora não conduza os homens à sua verdadeira natureza e avilte os meios pelos quais a Sabedoria suprema lhes prepara a regeneração, deixa-nos conhecer bem que é filho natural do judaísmo. E é por haver emanado do judaísmo que nos mostra com mais clareza a própria ilegitimidade: as coisas reais, e que tendem a um alvo verdadeiro, com o tempo se aperfeiçoam em vez de se deteriorarem e, quanto mais avançam no tempo, mais devem fazer brilhar sua beleza, grandeza e simplicidade ou, melhor dizendo: sua relação com as leis puras e vivas do tipo primeiro, que todos os Seres estão encarregados de manifestar, cada um em sua classe. Ao invés de o maometismo apresentar-se nesse aspecto e de ser mais perfeito do que o ismaelismo e o judaísmo, está infinitamente abaixo de ambos. Não tem as ciências divinas dos hebreus nem as ciências naturais de Ismael e, separado da força e da inteligência, colocou no lugar delas os direitos do gládio e o reino dos sentidos. Se os Livros dos hebreus, apesar de suas expressões obscuras e de sua singularidade, ou mesmo da atrocidade da maior parte de suas narrativas, nos exprimem outros direitos e poderes; se reúnem os fatos aos dogmas mais relativos ao nosso Ser e mais próprios a nos lembrarem as Virtudes de nosso princípio; se nos apresentam quadros mais expressivos do que as coisas que o homem procura e das que pode conseguir; e se esses Livros não oferecem um único Ídolo material que fale, só colocando em ação animais vivos, homens ou Seres superiores, devemos dar-lhes uma posição distinta entre todos os Livros tradicionais que nos são conhecidos. E até mesmo o nome hebreu (ghibri) não deixa de significar o verdadeiro tipo do homem atual: significa passante ou passageiro, para mostrar ao homem o que é a sua permanência na Terra. Nesses Livros realmente encontramos relações evidentes com as verdades mais profundas, sejam intelectuais ou sensíveis. As criações universais estão neles representadas como o fruto das faculdades invisíveis que precedem qualquer ato. O termo Rosh, que significa Princípio, cabeça, ou a sede do pensamento, pode significar o próprio pensamento. Bereshit, o primeiro termo do texto hebraico, pode ser igualmente traduzido tanto por No pensamento como por No princípio, que só se referem ao tempo. Assim, sem rejeitarmos a tradução No princípio, Deus criou, etc., poderíamos ler intelectualmente: No pensamento Deus criou, etc.", encontrando aí uma verdade a mais. Neles, as criações universais estão representadas como sendo o fruto de diversos agentes através das expressões singulares Bara Elohim (os Deuses criou24): imagem clara da verdade das coisas primeiras, na qual vemos, ao mesmo tempo, um fato e seis agentes colaborando para produzi-lo, visto que o termo Elohim apresenta seis letras distintas na sua pronúncia e as transforma em caracteres na versão grega de Sanchoniathon, embora tenha somente cinco em hebraico. É, pois, uma idéia fraca e falsa o temor que temos de impor limites à onipotência do princípio universal da vida ao admitirmos agentes secundários que realizam para ele as coisas perecíveis, mantendo-as em ação durante o tempo que lhes é prescrito. Essa potência resplandece ainda mais, pondo ordem nos resultados que são executados pontualmente e há obras que a sua grandeza e sublime simplicidade não lhe permitem executar. Os que quiseram lançar no ridículo a extraordinária expressão os Deuses criou apenas demonstraram seu pouco conhecimento das verdades naturais. Fingiram traduzir por ele fez o termo Bara, que também significa ele produziu, ele criou. Não nos deixemos enganar: a expressão ele fez anunciaria uma co-eternidade da matéria com Deus, cuja obra teria sido apenas modificá-la, ao passo que a co-eternidade só pertence ao Princípio imaterial da matéria. Nos Livros hebraicos, as criações universais são representadas como servindo de base e de sede ao espírito de Deus, o qual, segundo as Tradições vulgares, era levado25 sobre as águas, isto é: sobre os germes primitivos e invisíveis do Universo corporificado, a água é o germe primitivo das formas materiais. Em vez de Espírito de Deus, as traduções deveriam ter dito a ação fecundante dos Agentes, Elohim, colocados à frente da produção dessa grande obra, pois no hebraico os nomes próprios são reais e essencialmente constitutivos. Ora, o termo Ruach, traduzido como Espírito, não é dessa classe. Significa apenas sopro, expiração. Então, quando aplicado às emanações e ações superiores, só pode sê-lo por analogia com o sopro dos ventos, a expiração dos animais, a qual, em sua classe, é um tipo de emanação. Mas em nenhum desses exemplos tal tipo de emanação deve trazer o nome do próprio Ser, que é o seu Princípio nem deve confundir a ação com o agente, se quisermos caminhar com retidão. Reunamos agora os três quadros contidos nos termos Bereshit, Elohim e Ruach. Um deles apresenta o pensamento supremo concebendo a produção do Universo; o segundo, o número de agentes, ou o plano ativo de sua execução; o terceiro, o meio pelo qual essa execução é realizada. Reconheceremos nesses três agentes uma relação natural com as três faculdades intelectuais cuja existência no homem já demonstrei antes. Quanto ao desenvolvimento sensível das criações universais, vemos nos Livros que ele foi realizado por um meio semelhante ao empregado pelo homem para a execução de sua vontade, já que, se ele só fala, de qualquer maneira que seja, àquelas que quer fazer agir, essa vontade permanecerá nula e sem efeito. As criações universais são representadas separando as águas inferiores das águas superiores, as trevas da luz. Por conseqüência, é esse o fim de sua existência, já que é esta a lei delas, já que até hoje as menores vegetações corporais só adquirem a vida e a conservam se ocuparem um lugar intermediário entre a trevosa morada de sua formação e a região de onde desce a luz elementar. Quadro sensível de uma separação mais importante que operou pela origem do Universo, que se repetiu no homem prevaricador e em toda a sua posteridade e que, para desaparecer, nada mais espera do que o concurso e o complemento da ação de tudo o que recebeu existência. Este grande fato é indicado mesmo pela palavra Aretz (Terra), que significa igualmente Região, Universo, pois deriva do verbo Ratzats (ele quebrou, estreitou, comprimiu). E devemos desconfiar ainda menos da idéia de que a palavra Aretz conservou, na maior parte das Línguas modernas, uma similitude evidente com sua raiz, tanto pela forma quanto pelo sentido. O alemão chama a terra de erd26; o inglês, de heartz27; o latim, por inversão, terra, donde o francês terre28, arrêter29, hart30. Todas são expressões em que a forma e o sentido primitivo são fáceis de reconhecer - e eis o motivo pelo qual a terra é chamada de teatro de expiação. Nestes livros, as leis da Física estão expostas com inteira justiça; a divisão senária, através da qual o Escriba apresenta simbolicamente por Dias a obra da formação das coisas temporais, está de acordo com a Natureza. 24 Sic! - "les Dieux créa", e não "les Dieux créèrent". (N.T.) 25 Em português, pairava; em espanhol, movíase. (N.T.) 26 Assim está no original. Deveria iniciar com maiúscula, segundo o costume alemão de usar esse tamanho de letra em todos os substantivos. (N.T.) 27 Atualmente, earth. (N.T.) 28 E o português terra. Como o original deste livro é francês, o autor empregou "d'où le français terre", que preferimos manter. (N.T.) 29 Prender ou deter alguém, deter-se. Mas os estudos lingüísticos posteriores não confirmarão tal origem. O acento indica a queda de um s. veja-se o inglês arrest, de origem francesa. (N.T.) 30 Vime verde com que se atam os feixes ou molhos de lenha.. É a lei manifestada na relação do raio com a circunferência, através da qual o Escriba quis ensinar-nos que foi um número de seis ações reunidas que concorreu na corporificação material do Universo; ensinar-nos que, conseqüentemente, este número de seis ações deve dirigir todas as coisas sensíveis, assim como dirigiu lhes a origem; que deve dar-se a conhecer não somente na direção dos corpos universais e particulares, mas também nos períodos de existência que lhes são concedidos. Independentemente da relação metafísica senária do raio com a circunferência, estas verdades são representadas na parte celeste, onde seis astros planetários agem e se movimentam sob o olhar de um sétimo astro que é seu chefe e dominador. São representadas materialmente nas seis potências simples da mecânica que servem de móveis fundamentais a todos os movimentos dos corpos. São representadas temporal e intelectualmente na música, que só tem movimento regular quando sua marcha é senária porque, embora só percebamos claramente uma quinta entre a dominante e a tônica, não deixa de ser verdade que essa quinta encerra duas terças bem distintas. Enfim, são representadas corporalmente nos seis glóbulos linfáticos e brancos que, segundo os Fisiologistas, constituem cada glóbulo vermelho de nosso sangue. Os Povos do Oriente, pelos quais as Ciências foram transmitidas no Universo, oferecem-nos fatos que apóiam o princípio por nós exposto: em todas as suas medidas de tempo e em seus períodos eles procedem pelo número seis ou pelos seus múltiplos e o famoso período de seiscentos anos, conhecido desde a mais remota antigüidade pelas Nações primitivas, está acima de todos os períodos cuja descoberta e emprego foram feitos em seguida pelos Astrônomos em vários lugares da Terra. Por fim, os Povos da América tinham como certo que o Universo fora formado por seis homens que, antes de haver uma terra, eram levados no ar ao sabor dos ventos. Daí podemos inferir que relações tão exatas, conhecidas por essas Nações tão distantes e estranhas umas às outras, não teriam acontecido se, ao seguir a divisão senária da circunferência pelo raio, não houvessem também seguido a verdadeira medida natural das coisas criadas. Daí se pode igualmente concluir que o Escriba hebreu nada nos transmitiu de imaginário ao nos apresentar a formação do Universo pelas leis desse mesmo número. O número de seis dias, deve ser simbólico: Deus, agindo no vértice do ângulo, não conhece tempo algum; nossos dias temporais formam-se apenas pelas revoluções do sol e, segundo o próprio Historiador, o sol foi formado somente no quarto dia. Este número, repito, anuncia, pela sua divisão em dois ternários, a lei de ação e reação necessária à existência e à criação das coisas temporais, sendo o número observado pelo Escriba Hebreu. Ele representa a terra e tudo o que ela contém, como o primeiro ternário, pois foi no terceiro dia que todas as coisas acabaram de ser formadas; representa os astros e tudo o que não está necessariamente contido na terra, como o segundo ternário que domina o primeiro e o faz entrar em ação. É apenas no segundo ternário que nascem os Seres viventes, não sendo indiferente observar que o Sol e a Terra desempenham então funções semelhantes às que os vemos executar hoje em dia. Foi pelo calor do Sol agindo no quarto dia sobre a Terra - formada no terceiro - que os animais ganharam existência: lei que se repete na reprodução de todas as espécies pela união do macho com a fêmea. Aqui a Física nos detém. Apresentamos a criação do Universo como sendo feita sem contagem de tempo, mas o globo terrestre oferece vestígios aparentes de uma formação lenta e contínua. Apresentamos o nascimento do Universo como um fato único, e a superfície da terra está coberta de substâncias que parecem haver nascido e se consolidado somente depois de muitos séculos. E a cronologia dos Livros hebraicos dá ao mundo uma antigüidade medíocre, comparada à que as observações feitas na Natureza parecem atribuir-lhe. É preciso examinar tais dificuldades. Os Observadores da Natureza ensinam que a origem das coisas foi acompanhada de um calor tão grande que o Universo permaneceu por longo tempo inabitável depois do instante de seu nascimento. De início, nós lhes perguntaríamos se seu pensamento não tem aversão a essa progressão tardia, a essa interrupção na execução das obras de uma mão poderosa que, por sua própria natureza, não deixa de agir um só instante. Ao mesmo tempo, perguntar-lhes-íamos que alvo, que objeto irá preencher o intervalo que eles querem admitir entre a origem das coisas e sua formação e que destino imaginariam para um mundo sem Habitantes, pois, mostrar-nos obras sem um alvo, sem um objeto, é retratar-nos, no Autor delas, um Ser desprovido de sabedoria; e, empregar a razão para anunciar um Ser assim, seria fazer uso errado dela. Eles engendraram tais sistemas apoiando-se em fatos secundários que têm diante dos olhos, tais como a reprodução dos Seres particulares, realizada somente em espaços de tempo proporcionais à própria classe, e como os sedimentos e as diversas camadas de substâncias minerais, acumuladas com o decorrer dos séculos. Foram enganados por essas comparações. Não distinguiram os fatos segundos dos fatos primeiros, as criações inferiores e passivas das criações primordiais movidas por uma vigorosa atividade. É uma lei constante que, quanto mais próximos os Seres estão do princípio primitivo, mais poderosa é a sua força geratriz, força que não se mostra somente nas qualidades da criação, mas também na celeridade com a qual é gerada porque, sendo o Princípio primitivo independente do tempo, os Seres não podem elevar-se até ele sem gozar, segundo sua medida e seu número, dos direitos e das virtudes dele. E se quisermos ver a prova disso no próprio homem, basta-nos comparar a lentidão de seus movimentos sensíveis e corporais com a prontidão de seu Ser intelectual, que não conhece nem tempo nem espaço, e que em pensamento transporta-se instantaneamente aos lugares mais afastados. Mas, sem deixarmos a classe física, observemos que, quanto mais lento for o crescimento dos Seres, tanto mais grosseiro é o germe que os produz. É por isso que os germes de os Seres particulares na Natureza são corpóreos e visíveis, visto que suas criações só se formam por uma seqüência de tempo. Porém, sendo a criação geral fruto de um Princípio e de um germe que não são corpóreos, mas invisíveis, como os móveis interiores que nos dirigem em todos os atos, essa criação geral deve ter nascido sem contagem de tempo. Não negaremos, pois, que os princípios que produziram a Terra e o Universo material sejam superiores ao princípios terrestres geradores os animais e as plantas. Além disso, os animais e os vegetais devem ter tido, na origem, uma força e uma vida superiores àquelas das quais desfrutam hoje, já que a Natureza se altera, como todas as coisas corruptíveis. Como conseqüência, os animais, e vegetais atuais poderiam ser considerados como frutos secundários relativamente aos antigos e aos que a terra princípio gerou pelo calor imenso de seu fogo central, da mesma forma que estes últimos são secundários com relação às fontes invisíveis e superiores que constituíram a Natureza universal. Na ordem física atual, dificilmente podemos encontrar provas dessa verdade. Sendo tudo secundário, as diferenças entre as reproduções e seu Princípio, embora bem certas, são por demais sensíveis para encontrarem lugar nas demonstrações rigorosas e, além disso, quando essas reproduções chegam ao termo final, retomam o sentido inverso das produções primitivas, porque o círculo tem de fechar-se. É por isso que ,depois que o verme entra no estado de crisálida, sai dele com o brilho da borboleta, de onde devem sair novos vermes, e é por isso que todos os mortais, ao serem engolidos nos sombrios horrores da terra, tocam mais de perto os raios puros da luz do que quando vagueavam pela superfície. Mas, se não temos provas atuais e ativas da diferença dos Princípios primeiro e segundo, temos pelos menos a sua analogia. Em primeiro lugar, nas várias experiências à disposição daqueles que, sabendo chegar, de certo modo, à idéia do fogo princípio, realizam vegetações materiais em um tempo mais curto do que aquele que é empregado pela Natureza para a reprodução das suas. Em segundo, na nubilidade precoce dos animais que habitam as regiões vizinhas do Equador. Por último, na alteração sofrida pela Natureza à medida que se distancia da época de sua formação, já que, pelos ossos enormes e pelos vegetais petrificados que nos restam dos tempo antigos, é indubitável que as primeiras criações devem ter sido bem mais fortes e mais vigorosas do que as de nossos dias e que, até mesmo pelo esgotamento da Natureza, várias espécies, aquáticas ou terrestre, se perderam. Se é evidente que em todos os gêneros os Princípios secundários são inferiores aos Princípios primitivos, por que, pois, assimilá-los? Por que querer igualar Agentes tão desproporcionados: os que se pronunciam a partir de semelhantes cálculos não estarão expostos a emitir falsos resultados? A lentidão das reproduções diárias da Natureza nada devem fazer, pois, contra a atividade dos Agentes que dirigiram a origem das coisas e todas as criações primordiais. Quando os Observadores querem considerar a origem das substâncias calcárias que percebem em toda a superfície terrestre, elas apresentam duas dificuldades: uma relativa à sua enorme quantidade e a outra relativa às eras necessárias para consolidá-las e convertê-las em pedra. Mas não bastaria a própria doutrina do grande calor central para resolver essas questões sem recorrer a explicações que contrariam a idéia natural que temos da atividade do grande Ser, e que não podem ser confessadas pela razão porque só lhe apresentarem obras sem finalidade nem objeto? Certamente o calor central foi maior do que é hoje, mas não é preciso crer que tenha sido tão grande a ponto de tornar a terra inabitável, o que iria contra a sabedoria da Natureza e o objeto de sua existência. Basta que tenha sido o suficiente para dar nascimento súbito às criações primitivas que, por sua vez, terão dado nascimento a numerosas criações secundárias num tempo mais curto do que o necessário hoje para os mesmo fatos. Foi esse calor que conseguiu consolidar prontamente os minerais, vitrificar o granito, a argila, os jaspe, o pórfiro, a rocha viva e o quartzo, em suma: operar as vitrificações que compõem o cimo das montanhas e a maior parte dos rochedos. Foi esse calor que conseguiu calcinar tão rapidamente a enorme quantidade de conchas das quais resultaram o mármore, o espato, a greda, as estalactites e todas as criações que podem converter-se em cal. Esse mesmo calor teria ligado às substâncias argilosas e às terras calcárias os enormes bancos de conchas inteiras e perfeitamente conservadas, que se encontram em vários lugares da Terra. Além do mais, da mesma forma não poderíamos deixar de reconhecer a ação da água nesses grandes acontecimentos: tudo nos diz que ela agiu com tanto poder quanto o fogo, pois ela ainda hoje tanto consolida quanto dissolve o basalto, as lavas e outras tantas substâncias vitrificáveis metálicas e calcárias, assim como o fogo tanto divide quanto consolida e vitrifica. E se a ação o fogo é ainda demonstrada sob nossos olhos oferecendo-nos vulcões até no meio do mar, a da água não é menos sensível, no sentido de que diariamente realiza decomposições e recomposições terrestres. Acreditar que o fogo possa agir sem a água e a água sem o fogo equivaleria a não se ter a menor idéia sobre o que a Natureza é, já que ambos estão sempre contidos um no outro e porque, sem a sua combinação, combinação esta que é desconhecida dos homens, a própria Natureza não existiria e nada nela teria forma. Se estamos convencidos de que o fogo agiu nos primeiros tempos da explosão das coisas com muitíssimo mais atividade do que age hoje e que a diminuição do calor é a causa da esterilidade atual dos Pólos e da perda de várias espécies de animais terrestres, devemos aplicar à água o mesmo julgamento, visto que a vemos diminuir sensivelmente na terra e que temos também provas de que algumas espécies de animais aquáticos foram destruídas. A própria terra teve sua ação a cumprir nos primeiros tempos, e essa ação teve também mais intensidade do que tem hoje. Se o fogo é o começo e o fim do elemento, se a água é o começo e o fim da corporificação, a terra é o começo e o fim da forma. As forças desses elementos se equilibram, pois, mutuamente. E, só quando deixarem de estar em equilíbrio, deixará o Universo de existir. Digamos de passagem que, sendo o fogo o começo e o fim do elemento, tudo indica que o fogo encerrará a existência do Universo, assim como foi ele que o começou: é esta a marcha desse agente, ao mesmo tempo criador e destruidor. A terra inclina-se desde a origem em direção ao fogo central para com ele se reunir. O céu dos Planetas a acompanha para se reunir a ela. Isso é pouco percebido de maneira corporal porque a atmosfera é levada juntamente com toda a máquina, mas, quanto mais as massas se aproximarem do fogo central, mais a água se dissipará. No fim, nada mais restará do que a massa de sal. Então os Princípios ígneos nela contidos, fermentando sobre si mesmos, irão abrasá-la e atravessá-la para se unirem novamente ao seu fogo princípio. Se a potência da água e a da terra foram outrora maiores do que hoje, temos nelas um meio a mais para explicar os antigos e prodigiosos fenômenos terrestres, bem como as célebres catástrofes da Natureza. sem contar um quarto agente ainda mais ativo do que o fogo, a água e a terra, e do qual teremos ocasião de falar daqui a pouco, quando examinarmos a principal dessas catástrofes. Se quisermos refletir na consolidação súbita que as substâncias terrestres recebem todos os dias pela propriedade das águas de algumas fontes, ou mesmo pelas manipulações dos Artistas que sabem dirigir as forças da Natureza, não mais nos admiraremos de que os elementos primitivos tenham operado os mesmos resultados, sendo inútil recuar, tanto quanto já se fez, a época e a origem do mundo para esclarecer as dificuldades que ele nos apresenta. Os Livros hebraicos nos falam de um sétimo dia, ou do Sábado, que encerrou a Obra da criação. A palavra Sábado, traduzida como Repouso, declara apenas que o número do Universo estava completo. E indica tão pouco uma cessação, um nada na ação da Divindade, que está escrito que ela santificou esse dia, o que significa que ela acrescentou à existência do Universo virtudes superiores às que o haviam formado, uma vez que estas não eram santas. Se não fosse abusar dos privilégios da ciência etimológica, poderíamos encontrar no termo hebraico Shebet, ou Sabath, um sentido de grande sublimidade, pois na raiz esse termo significa ele se assentou, ele se postou. Seria então dizer que Deus, ao sétimo dia, postou-se, veio habitar, veio estabelecer sua sede em todas as suas obras. Relações sagradas e dignas da atividade universal do grande Ser, mas que não podem ser apresentadas de maneira positiva, visto que sofreriam algumas contestações ao pé da letra do texto, embora sejam justificadas pelas mais puras luzes da inteligência. Não é menos verdade que no sétimo dia a Sabedoria suprema apresentou ao homem objetos mais relativos ao seu Ser do que o haviam sido as virtudes senárias. E é bom observar que o homem teve o nascimento temporal, depois de todos os Seres da Criação, ficando assim mais próximo das Virtudes santas e setenárias que deviam consolidar-lhe a existência. Assim, nos livros hebraicos vê-se a dignidade do homem, o único a ter, sobre todos os Seres, o direito sublime de ser produzido pela própria Divindade e, segundo o texto, em imagem de Deus, ou seja como sendo dele a expressão e o símbolo: relações vivas e ativas, que os Tradutores traduziram impropriamente em suas palavras como à imagem e à semelhança de Deus, mas que indiquei no início desse Escrito e que encontram aqui uma feliz confirmação. Vemos aí o homem, colocado num lugar de delícias, junto à própria Vida, da qual corriam quatro rios e sem ter recebido outra proibição senão a de aproximar-se da ciência do bem e do mal, que se achava com ele no mesmo recinto, do mesmo modo que ainda hoje habita conosco. Vemo-lo estabelecido pelo Autor das coisas sobre todas as obras de suas mãos, na posição de comandá-las e submetê-las ao seu domínio. Não podemos duvidar de que o homem, em sua própria degradação, manifeste essa lei gloriosa, conduzida exclusivamente em seu favor, visto que ele ainda apresenta no corpo a base sensível de todas as medidas e que, apesar de sua ignomínia e fraqueza, não deixa de trabalhar para sujeitar a Natureza. Mas vemos também o homem despojado ignominiosamente desse domínio e conservando hoje dele apenas a figura mais imperfeita, como se houvesse feito aliança com a ilusão e o erro, pois o termo hebraico crb31 Nacash , do qual é tirado o nome da serpente, significa sedução, encantamento. "E até a serpente, animal tão desproporcionado, Ser desprovido de qualquer armadura corporal, sem escamas, sem plumas, sem pelo, sem pés, sem mãos, sem nadadeiras, possuindo toda a força nas fauces, força que não passa de peçonha, morte e corrupção, a serpente, repito, traz consigo sinais físicos e análogos à sedução à qual o pensamento do homem é susceptível. Dentre todos os animais ela é o único que tem a propriedade de formar um círculo perfeito com o corpo, com isso apresentando-nos, sob uma aparência regular, a forma e a base de todos os objetos sensíveis e compostos. Ao formar um círculo vazio, em que não vemos um centro, ela tem a propriedade de nos fazer perder de vista o Princípio simples do qual tudo descende e sem o qual nada existe. Portanto, não é de se admirar que vejamos tanto antagonismo entre o homem e a serpente, pois o homem, ao contrário, está ligado ao centro pela proporção da forma, ao passo que, na sua, a serpente só apresenta a circunferência ou o nada. Que isso não seja tomado como um jogo de imaginação: sob essas relações há importantes verdades veladas. E é nisso que encontraríamos, para nos instruirmos, relações metafísicas que existiram outrora entre o homem, a mulher e a serpente e que hoje se manifestam materialmente entre eles, em toda a regularidade dos números." Vemos, nos Livros, dolorosas punições ligadas ao erro e ao crime do homem. Ao buscar a luz em outro Princípio além daquele que o possui, ele perdeu de vista até mesmo o menor dos raios, como todos aqueles que, desde então, ao buscarem instrução e ciência em outro lugar fora dos princípios imateriais de todas as classes, tornaram-se estranhos à inteligência. E foi essa nudez que fez o homem envergonhar-se depois do pecado, mantendo igualmente toda a sua posteridade no opróbrio até que ela haja reencontrado suas primeiras vestes. "Pois a nudez que os Livros hebraicos lhe atribuem antes de seu crime e da qual se diz que ele não se envergonhava, apresenta uma outra verdade. O termo gharoum (nu), provém da raiz árabe ghoram, que significa "um osso despojado da carne". Ora, o osso é o símbolo sensível do termo força, virtude, pois o osso é a força e o sustentáculo do corpo. Por outro lado em nossa língua o termo osso, remonta, através do termo latino ossum, até à raiz hebraica ghatzam, que significa uma força, uma virtude. Assim, pois, apresentar-nos o primeiro homem em estado de nudez equivale a dizer-nos que ele era um Ser imaterial, uma virtude, uma força, uma potência desnudada de carne, ou sem corpo de matéria. Isso parece tão mais verdadeiro que na passagem seguinte o homem é apresentado sem mais enrubescer por causa da nudez. Realmente, já que a confusão que inspira o pudor só se prende aos sentidos carnais, o fato de o homem, embora puro e esclarecido, não experimentar então vergonha pela nudez nem quaisquer impressões de pudor, é uma prova evidente de que ele não possuía sentidos carnais." 31 ckn. O que está no original parece mais barash, pois as letras são beth, resh e shin. Se os Livros hebraicos ensinam sobre a horrível degradação do homem, confirmada por nosso estado atual, declaram de maneira ainda mais clara, os diversos socorros concedidos para a regeneração e dos quais vimos a necessidade, fundada no laço indissolúvel do chefe divino com sua imagem e no amor no qual vive abrasado pelo homem, extrato de sua essência e de suas virtudes. É por isso que no meio de todos os flagelos que acompanharam as muitas prevaricações da posteridade do homem, sentidas pela natureza até mesmo nos Princípios fundamentais, os Livros hebraicos que conservaram as narrativas sobre eles apresentam virtudes poderosas, postas em ação uma após outra para reparar as desordens. Nelas vemos, em épocas diferentes, seres virtuais: uns agem sobre a água, outros sobre o fogo, outros sobre a terra, repetindo nessas regenerações particulares o que aconteceu quando da regeneração primitiva, em que, antes de reabilitar o homem, seria preciso restabelecer seu domínio. O primeiro exemplo oferecido pelas Tradições hebraicas sobre essas verdades é a narrativa das prevaricações antigas, em que Nações inteiras dos primeiros tempos foram apresentadas como entregues ao império dos sentidos materiais a ponto de corromperem todos os caminhos da natureza, tendo merecido a punição pelo elemento da água. É ao mesmo tempo o quadro dos meios então empregados pela Sabedoria suprema para conservar na terra um asilo para as virtudes do homem justo e de todos os seres da criação. Quanto mais assombrosa parecer a influência geral dos crimes do homem sobre o elemento, mais somos forçados a concordar que somente a grandeza de seu ser pode resolver esse problema. Sua origem sublime é um testemunho verídico da extensão de seus direitos. Se não se deve impor limite às suas virtudes nem, conseqüentemente, aos frutos que são a recompensa delas, também não se deve impor limite às suas prevaricações nem às conseqüências que devem naturalmente acompanhá-las. Assim como o homem pode exercer o império de seus direitos legítimos e receber da natureza inteira as homenagens devidas a um Soberano, também pode mostrar sinais de traidor e de rebelde, atraindo sobre si o rigor das Potências que tivesse querido usurpar. Se quisermos descobrir a verdadeira causa do dilúvio, não nos detenhamos exclusivamente nos crimes carnais das primeiras Posteridades do homem: há uma desproporção grande demais entre a influência desses tipos de excesso sobre a dissolução dos corpos e o fenômeno destruidor apresentado pelo escriba como produzido pelo concurso de toda a Natureza: o enfraquecimento corporal do indivíduo que se abandona a tais excessos é a sua punição natural, o que deixa a justiça superior satisfeita, sem que precise estender a ação dos elementos primitivos universais. É preciso então admitir que as primeiras Posteridades puderam entregar-se a extravios mais consideráveis e a atos criminosos com poder suficiente para atrair sobre si flagelos sem limites e sem medida. Se o primeiro crime do homem o deixou sujeito aos elementos, mergulhando-o na imensa região das ações sensíveis e confusas, que erro cometeria ele se cresse que, por causa de semelhantes crimes, iria expor-se novamente ao furor dos elementos? A única diferença que devemos observar é que, como o homem primitivo não estava ainda materializado à época do primeiro crime, ele ressentiu a ação do próprio Princípio dos elementos, ao passo que, nas prevaricações de sua posteridade os elementos agiram sobre o homem através da ação grosseira, porque ele próprio está corporificado de maneira grosseira. Ora, segundo as noções físicas apresentadas neste escrito, devemos saber que a primeira aparência da corporificação das coisas grosseiras e sensíveis é a água. Esse flagelo extraordinário deve deixar de parecer impossível, visto que não é impossível ao homem ficar exposto a ele. E se os homens têm em si o direito de poder provocar a justiça de diversas maneiras, ela deve estar também pronta a deixar cair sobre eles o tipo de punição que seus crimes lhes acarretam, pois a possibilidade do pecado não deve ultrapassar a possibilidade da punição, sem o que a verdade estaria em perigo. Observemos, tomando sempre o físico sensível como guia, que, como nos indivíduos humanos a maior efervescência dos sentidos se faz sentir no primeiro terço da vida, ela deve ter seguido a mesma época para o homem em geral, e que os crimes intelectuais que puderam acompanhar os desvios e atrair as grandes catástrofes devem ter, por analogia, a mesma data. Donde, com atenção, poderíamos conseguir alguns esclarecimentos sobre a idade do Mundo e a época do Dilúvio. Foi em vão que os Observadores atacaram a realidade do Dilúvio, pela impossibilidade, segundo seus cálculos, de haver sobre a terra um volume de água suficiente para cobrir-lhe toda a superfície e elevar-se até às mais altas montanhas. Essa objeções têm por base apenas a falta da inteligência dos Tradutores e os erros espalhados pelos sistemas sobre a natureza da matéria, não reconhecendo nela outros princípios além dela mesma. Embora ao pé da letra o vocábulo hebraico hbra32 (arubboth), signifique cataratas, não seria, segundo os mesmos Intérpretes, derivado do verbo bbr (rabab), ou rbr33 (raba), que quer dizer ele foi multiplicado? Então o texto apresenta a idéia natural de uma ação mais extensa no agente que produz a água e, de modo algum, a do simples escoamento de uma água já existente, porque então haveria somente união, agregação, sem que víssemos o ato de um Ser vivo que cria e multiplica. De acordo com esse princípio, não poderíamos contestar a possibilidade das grandes revoluções da Natureza, o excesso de um elemento sobre outro e, como conseqüência, os flagelos universais que podem desabar sobre Regiões, Povos, e a Terra inteira. Seria preciso que começássemos negando a existência do próprio Mundo, já que ele é resultado aparente da ação viva e combinada dos elementos que alternativamente se combatem e se sobrepujam no seu recinto, manifestando uns para com os outros a vida e as leis recebidas das Potências supremas Os Observadores contestaram igualmente a existência da célebre Arca, construída pela ordem suprema, para conservar um rebento da raça humana. Qualquer que tenha sido essa Arca, por representar o Universo, ela teve, como ele, de encerrar, em natureza ou em princípios, todos os Agentes e faculdades que o compõem. E se as coisas parecem inexplicáveis para o homem que caminha na sua lei, elas não o são mais para aquele que a conhece e tem a idéia que deve ter de sua grandeza e dos direitos de seu Ser. Acrescentemos que, como o primeiro germe vivificador das coisas, a Arca foi levada sobre as águas; que como ele, ela flutuava sobre o caos e sobre o abismo terrestre para devolver, no tempo prescrito, a vida da qual estava privado; e que, como esse germe vivificador, continha um Agente puro, uma fonte viva de justiça e santidade, na qual os homens nascituros deveriam encontrar ainda vestígios do primeiro esplendor. Com relação à Arca, não posso eximir-me de convidar os Observadores a lançarem os olhos sobre as Tradições chinesas. Verão nelas que "o caráter que exprime barca, navio é formado pela figura de um navio, pela figura de boca e do algarismo oito, que pode fazer alusão ao número de pessoas que estavam na Arca. Encontram-se ainda os dois caracteres oito e boca, juntamente com o de água para exprimir navegação feliz34." Se isso for acaso, está bem de acordo com o fato. Dirijamos o olhar por um instante para os vestígios tão confusos e variados da inundação geral e do transtorno universal, cuja certeza em toda parte é atestada pelos sinais gravados em toda a superfície terrestre. 32 hbra ou tbra ? 33 rbr ou hbr, abr, br? 34 Este itálico é da tradutora.
No ponto da Física do qual já tratei, com relação à origem do Universo, tive em vista os resultados regulares que parecem ter acompanhado seu nascimento. Aqui considero-lhe as desordens. Nessa inundação geral que não podem negar, os Observadores querem ver apenas um fato físico, isolado e independente das relações que ele deve com a grande obra na qual estão empregadas todas as potências dos Seres. Mas se o plano imenso exposto nesses Escritos puder ampliar suas idéias sobre a natureza do homem e sua ligação com todas as coisas visíveis e invisíveis, eles encontrarão novos esclarecimentos nas mesmas tradições hebraicas, em que as leis das coisas são delineadas com fidelidade porque lançam em jogo todas as causas e todos os Seres. Verão nelas que, para terminar o Dilúvio, independentemente da ação dos elementos em convulsão, uma força superior fez cessar a ação do princípio da água, enviando ao mesmo tempo um ar, ou um sopro ativo, que, agitando em todos os sentidos as águas espalhadas sobre a terra, ocasionou enormes transposições de substâncias terrestres de um clima para outro, provocando, num tempo muito curto, revoluções que exigiriam tempos sem limites se não tivessem sido apenas o resultado de simples ações elementares. Não nos surpreenda, pois, que de uma combinação de ações tão opostas e violentas hajam resultado efeitos físicos tão bizarros e inexplicáveis quando se suprimem alguns dos Agentes que devem ter contribuído para produzi-los. Acostumemos nossos olhares a captar o conjunto dos princípios se quisermos captar o conjunto dos fatos. À famosa época do Dilúvio sucede um novo extravio da posteridade do homem, na qual os criminoso tentam usurpar as Virtudes dos Céus por vias terrestres, materiais e impuras, escondidas sob a expressão de um edifício audacioso que, construído de tijolos e tendo como argamassa o betume, proclamava simultaneamente a tola impiedade dos que o construíam e o pouco de consistência que sua obra devia ter. A seqüência desse crime foi a célebre confusão das Línguas, que dividiu um mesmo Povo em diversas Nações. Esse símbolo declara bem mais ainda a obscuridade e a confusão da inteligência dos Povos do que a variedade de sua linguagem sensível e intelectual - embora seja verdade que, formando a partir daí várias Seitas esparsas e separadas, em seguida eles viram a sua língua comum e primitiva alterar-se com o tempo, produzindo uma multidão incontável de outras línguas, quase absolutamente estranhas umas às outras. A divisão das línguas, perpetuada por toda a superfície da terra, reflete de maneira típica a situação atual do homem para quem, depois da queda, a Língua de todos os Seres verdadeiros que o cercam é ininteligível, e que não sabe qual meio empregar para revivificar sua correspondência com elas e retomar seu antigo domínio. Como conseqüência, as duas punições, sendo semelhantes, mostram que são o fruto do mesmo crime e que o homem só se encontra hoje tão estranho à língua da verdade por ter ousado, no princípio, falar outra língua além dela - assim como as posteridades primeiras só deixaram de entendê-la ao deixarem de ter como alvo a dominação exclusiva do Primeiro de todos os Seres e ao formarem o desígnio de substituí-lo por um outro Princípio. Exporei aqui uma verdade que irá lançar alguma luz sobre a origem primitiva e a degradação das ciências. Pretende-se que a princípio os homens se encontravam na mais profunda ignorância, reduzidos unicamente ao recurso dos instintos. São retratados com as cores que damos aos Povos selvagens, que só têm a Natureza a combater, as necessidades corporais a satisfazer e só se comunicam entre si através de suas idéias sensíveis. E querem que acreditemos que foram essas as bases sobre as quais foram erguidos, um após outro, os diversos andares do edifício dos conhecimentos humanos. Houve engano ao se situar nisso a origem cumulativa das ciências do homem. Quando, após a degradação, ele foi admitido na Terra, nela chegou com mais luz do que talvez nem mesmo sua posteridade veio a possuir, embora elas tenham sido inferiores às que ele fruía antes de descer. Ele foi como que o tronco dos Eleitos gerais, empregados pela bondade divina na reparação de seu crime. Transmitiu aos Descendentes as luzes das quais então gozava: eis aí a verdadeira herança da qual os primeiros homem eram tão ávidos e da qual os homens dos séculos posteriores conservaram apenas a figura em suas hereditariedades materiais. Mas as posteridades primitivas deixaram que essa herança fosse alterada, assim como o próprio homem perdera aquela da qual fruía durante sua glória; e a ignorância, aliando-se à iniquidade, apenas aumentou até que, havendo ambas chegado ao auge, os flagelos da justiça reduziram os homem às mais densas trevas e a uma dispersão absoluta. É à época derradeira que nos deveríamos transportar para encontrar o homem padecendo na incerteza e na miséria, reduzido somente aos recursos de seu instinto. É nessa época que se deve buscar a origem das línguas convencionais porque, estando todo conhecimento perdido para os homens, era necessário que eles empregassem objetos sensíveis para os signos de suas idéias. Tal foi a sorte de todo trabalho no qual foram obrigados a buscar recursos depois de haverem abandonado os móveis infalíveis que ainda podiam dirigi-los na Terra. Excitados pelas necessidades, seus esforços levaram-nos logo, por diversos meios, a descobertas, embora imperfeitas, dos móveis universais que lhes eram necessários, sem que qualquer Povo, qualquer Tribo, e qualquer indivíduo, talvez, tivesse caminhado nesse percurso com o mesmo passo ou pelas mesmas sendas. Foi então que as Ciências foram progredindo entre os homens, podendo nós seguir-lhes o encadeamento como que ininterrupto desde a época secundária até nossos dias. Se refletirmos nos inúmeros meios descobertos para disseminá-las, devemos mesmo garantir que elas irão desenvolver-se cada vez mais. Aconteceu com a espécie geral do homem o mesmo que com os seus indivíduos. Nada há de mais puro do que os primeiros raios de luz que iluminaram nosso Ser quando este se tornou susceptível de recebê-los. Bem depressa esses raios preciosos foram detidos, muitas vezes mesmo obscurecidos por paixões tempestuosas, que fazem o homem perder até a lembrança dos primeiros favores da inteligência saboreados ao sair da infância. Mas bem depressa também o vemos livrar-se dessas amarras para elevar-se às regiões das ciências e da razão e caminhar nas sendas imensas de luz e de verdades que, estendendo-se a cada dia diante de seus olhos, vão perder-se no infinito. Foi por conseqüência desse crescimento progressivo que, em meio às prevaricações e à dispersão dos antigos Povos, foi escolhido um Justo entre os caldeus para ser o depositário do conhecimento das diversas leis naturais do nosso Ser. Esse Justo foi tirado da cidade de dy (Ur), que em hebraico significa luz, para lembrar-nos a emanação do primeiro homem e de toda a sua espécie, que teve nascimento no seio da própria verdade e que por sua natureza pertence e corresponde ao centro universal da Vida. Esse Justo parecia sensivelmente favorecido por três sinais superiores ou pela presença de três Agentes imateriais corporificados em forma humana, que chegaram a receber sua hospitalidade. Fazendo alusão às três virtudes supremas, tais sinais anunciam a posição sublime à qual o homem era convocado. E essa posição seria: ser o Pai de uma Posteridade tão numerosa quanto as estrelas do Céu e o pó da Terra; penetrando no sentido dessa expressão figurada, recuperar as Virtudes superiores da qual o homem fora despojado e reconduzir os seres inferiores ou extraviados; ser o Chefe e o pai de um povo eleito entre todos os povos da Terra, destinado a ser o objeto dos favores da Divindade e a servir de farol a todas as Nações. O pensamento nos mostra que a escolha de um povo era necessária a fim de que o homem tivesse diante dos olhos e na sua própria espécie a repetição viva do que ele própria fora. Para cumprir essa gloriosa tarefa, eis a ordem que ele recebeu antes de tomar posse da terra que lhe fora prometida. Foi-lhe recomendado percorrê-la em latitude e longitude, novo índice da superioridade quaternária do homem com seus dois diâmetros, dos quais já falamos. Vemos esse homem privilegiado cometer um adultério, não apenas impune mas também autorizado, já em que nada prejudica sua eleição. Mas se, no entanto, vemos o adultério passar em seguida a ser considerado um pecado tão grande entre os hebreus, é que a lei não fora ainda publicada, é que a obra apenas atingia sua aurora e os homens, só conhecendo suas próprias virtudes pelas gerações carnais, não tinham alcance para regular-lhe a ordem através de uma lei superior e luminosa. E tal é o poder das leis sensíveis aos quais o homem está sujeito que, quanto mais nos aproximamos delas, tanto mais a sua verdadeira natureza torna a entrar no silêncio para deixar que reinem apenas as leis sensíveis. Eis por que na origem era permitido desposar a própria irmã, embora em seguida os homens só tenham podido formar alianças no quarto grau de parentesco: sendo esse número o da ação universal, ele dá a um mesmo sangue o tempo de se renovar e demonstrando ao homem que seu Ser intelectual ou quaternário deve ser o ordenador de suas faculdades. Após as promessas gloriosas feitas ao primeiro Chefe do Povo eleito, foi possível reconhecer com facilidade nesse homem Justo, em seu filho Isaac e em seu neto Jacó a expressão sucessiva e subdividida das três faculdades supremas, cujos sinais ele havia recebido ao mesmo tempo e que servem de tipo às que se manifestam na alma humana. De maneira visível, ele próprio demonstra o pensamento pela posição de sua eleição, que dele fez o primeiro depositário dos desígnios do grande Ser sobre a posteridade dos homens. Seu filho é o emblema da vontade, pelo sacrifício livre que faz de sua pessoa, e o filho de seu filho anuncia a ação pela luta que mantém contra o Anjo e pela numerosa família que dele sai. Aqui a liberdade da Inteligência não poderia estender-se mais: ver em Rebeca a imagem do mundo sensível e, nos dois filhos que lutam em seu ventre, reconhecer a imagem do homem e de seu irmão mais velho, seu inimigo, com o qual está aprisionado no Universo? Em seguida, os descendentes desse Justo hebreu tornaram-se escravos da Nação egípcia, cujo socorro haviam solicitado. O sentido do nome Egito, exprimindo a dor e a tribulação, a união da posteridade judia com essa Nação, declarava a união feita pelo primeiro culpado com a própria abominação, mostrando que ser algum pode precipitar-se em tal abismo sem ficar condenado a sofrer e nele permanecer durante um tempo proporcional à sua iniqüidade. Os Livros dos hebreus mostram as seqüências dessa criminosa aliança. Esse Povo, reduzido a consumir seus dias e trabalhos na poeira, exposto às injustas exações de seus tiranos, reflete a humilhante situação do homem no mundo, onde, mesmo com a ação horrivelmente restringida, ele tem de sustentar lutas maiores e mais multiplicadas do que no primeiro estado e onde tem de viver, embora, esteja, por assim dizer, separado da vida. Mas ele vê surgir um Agente célebre, que, como Filho dos hebreus, escapara à crueldade do Rei do Egito, ou às virtudes impuras que se opõem aos primeiros esforços do nosso Ser pensante e que trabalham a fim de impedir que ele reconquiste sua liberdade. Esse agente célebre está flutuando como o homem sobre as águas do abismo, preservado da voragem por um berço, assim como o homem o está pelas virtudes de seu corpo, elevado, dirigido por um Preceptor fiel, assim como o homem seria sempre se fosse ativo e dócil, e está encarregado como ele de velar pelo restabelecimento da ordem e da destruição da iniqüidade. Por seus trabalhos e vitórias sobre os egípcios, esse Justo mostra-nos então os poderes do homem sobre as virtudes do Universo e sobre o Princípio do Mal. Aqueles que afirmaram que o legislador estava de posse das Ciências dos egípcios não observaram que, antes de combater os Sábios dessa Nação, esse justo havia passado vários anos na casa de seu sogro Jetro, que era Sacerdote, onde se assentava junto a um dyb35, (Beur), vocábulo traduzido como um poço, mas que, pela análise - b (Beth - em) e dy, (ur - luz) nada mais significa do o lugar onde moram a ciência e a verdade. 35 Não seria ryb, com resh em vez de daleth? A superioridade do homem sobre as coisas sensíveis e os seus poderes sobre a corrupção nos foram traçadas no quadro da saída do Egito e no da travessia do Mar Vermelho. O primeiro nos mostra os egípcios aniquilados pelas pragas que haviam atraído sobre si, mas cedendo somente à décima. Pinta-os despojados de suas riquezas, nas quais devemos certamente compreender os instrumentos criminosos de seu culto. Mostra-os perseguindo por rotas incertas o povo hebreu, o único que gozava de maneira visível da luz, ao passo que as trevas se haviam espalhado sobre seus inimigos e sobre todo o Egito. O segundo nos representa os elementos obedecendo à voz que lhes ordena abrir uma passagem livre para os que eram conduzidos pela Sabedoria e voltar ao curso natural à aproximação dos ímpios, que, não tendo as virtudes necessárias para se defenderem, deviam ser suas vítimas. O segundo quadro nos ensina ainda que as substâncias corruptíveis do sangue são os verdadeiros entraves que retêm os homens no castigo e que é pela ruptura desses meios, ou separando-se o seu Ser intelectual do sangue, que ele recupera qualquer tipo de liberdade, o que já fora indicado pelo espírito do preceito da circuncisão, e que foi indicado em seguida pela proibição de que o Povo ingerisse sangue, porque a vida da carne está no sangue e porque a alma da carne fora dada ao hebreus, ou aos homens, para a expiação da alma. Expressões bastante claras para justificar o Legislador pela reprovação feita por vários não haver ele distinguido no homem um ser diferente do Ser sensível. Finalmente, através dos muitos acampamentos e muitos trabalhos que se seguiram depois da saída do Egito, o Legislador nos pinta as muitas interrupções que o homem deve suportar depois de sua passagem corporal para realizar o que no mundo só pôde conhecer em aparência. De modo que Moisés, sozinho, apresenta em si um tipo inteiro do curso universal do homem, desde sua origem terrestre até o final, para onde sua natureza primitiva não deixa de chamá-lo. Chegamos à época em que a voz divina se faz ouvir pelos hebreus, em que o próprio Legislador escuta, como todo o povo, a palavra sagrada que se transmitia aos homens para ensiná-los a se conduzirem somente por ela, a não confiar em Deuses estranhos e em seus ídolos que não falavam. Nos fatos que então irão passar-se, vemos figuradas a lei primeira do homem no estado de esplendor e a segunda lei desse mesmo homem no estado de reprovação. De fato, a primeira lei lhe foi retirada desde que ele se afastou do centro da verdade, assim como as primeiras Tábuas foram quebradas quando da idolatria do Povo hebreu. A segunda lei, embora contendo os mesmo preceitos que a primeira, ou seja: a obrigação indispensável de manifestar as propriedades de nosso Princípio e ser, de algum modo, o órgão vivo de suas virtudes, é inferior à primeira e infinitamente mais rigorosa. Além da experiência diária que nossa situação atual nos obriga a fazer dela, temos um seu indício nas mesmas Tábuas que as Tradições hebraicas nos apresentam. As primeiras Tábuas da Lei são apresentadas como tendo sido não somente escritas, mas também talhadas pela mão de Deus. Quadro instrutivo, cujo sentido verdadeiro é a emanação do homem a partir do seio da luz sobre a qual a mesma mão, que lhe dava o ser, gravava, ao mesmo tempo, o nome ou a convenção sobre a qual deveriam fundar-se todo o seu poder e toda a sua glória. Ao contrário, as segundas Tábuas nos são realmente dadas pelo Escriba como tendo sido escritas, assim como as primeiras, pela mão de Deus, mas a diferença entre elas é que as últimas tinham sido talhadas pela mão do homem e que foi sobre esta obra do homem que o Ser necessário, repleto de amor por suas criações, dignou-se ainda gravar seu selo e sua convenção, como o fizera sobre a substância pura da qual as primeiras Tábuas eram a imagem. Desse modo, a lei do homem, não estando hoje gravada em sua matéria natural, opera nele esse estado violento e doloroso que todos sofrem quando buscam essa lei com sinceridade e se aproximam dela, porque os padecimentos e a irritação são inevitáveis entre seres heterogêneos. O esplendor majestoso e terrível que acompanhou a promulgação dessas leis nos faz lembrar o quadro da origem das coisas, onde a desordem cedia lugar à harmonia; onde cada ser recebia sua ordem e sua lei; onde a luz, misturada e como que confundida com as trevas, tendia violentamente a separar-se delas; onde os criminosos que deviam habitar nas trevas eram arrastados com os estilhaços dessa medonha explosão e onde aqueles que haviam permanecido fiéis ao próprio Princípio juntavam-se à sua claridade divina para ler nelas os Decretos irrevogáveis de sua eterna Sabedoria e para exercê-los no Universo. É sempre em lugares elevados que nos são apresentados os grandes feitos. Em lugares em que o ar, sendo mais puro, parece transmitir ao nosso Ser influências mais salutares e uma existência mais de acordo com a nossa natureza e o nosso primeiro destino. Quando, mais tarde, essa mesma lei condenou o Povo hebreu e os seus Chefes que sacrificavam nos lugares altos, ela não pretendia falar precisamente de montanhas, mas de certos objetos da Natureza nos quais os sempre confiaram cegamente e que, tendo começado por servir de instrumentos ao Sabeísmo, acabaram por gerar os abusos da Astrologia judiciária. Enormes alterações foram introduzidas nas Ciências dos hebreus. Encontramos a prova disso nas águas de ciúme, através das quais o Sacerdote se certificava do pecado ou da inocência da mulher acusada de adultério. Tais provas, despojadas da virtude superior do homem, da qual se considera que o Sacerdote esteja particularmente revestido, parecem suspeitas, apresentando ao espírito apenas o engano e a impostura. Mas quando nos elevamos à natureza do homem e refletimos sobre a extensão de seus direitos, nada nos espanta em semelhantes narrativas, porque as causas segundas lhe estão subordinadas e ele tem o poder de dirigir-lhes os atos para a glória de sua inteligência e à manutenção da lei daquele que está encarregado de representar na Terra. Posteriormente, estando essa virtude superior enfraquecida pelos homens, eles, mesmo assim, conservaram as fórmulas. Vêm daí as provas da água, do fogo, do ferro em brasa e dos braços em cruz, que por longo tempo foram a única jurisprudência criminal de vários Povos. Eles mesmos, reprimidos pela superstição, ou cegados pela ignorância, só julgavam a partir dos fatos, não examinado se aqueles que pareciam presidir a eles tinham ou não títulos suficientes para merecerem confiança e não duvidavam da inocência do acusado quando sua coragem ou sua destreza o haviam feito resistir à prova. Os olhos se abriram tanto para as enganosas pretensões dos Juízes quanto para os abusos dessa Justiça extravagante. Mas o homens, poupando-se com isso de crimes atrozes, não continuaram avançando para o seu Princípio. Suprimiram os abusos sem tornarem seus passos mais seguros. Garantiram-se contra o erro de seus Antepassados, mas com isso não se tornaram mais sábios. Caíram até mesmo num outro excesso, pois, havendo apreciado as provas num tempo em que elas já estavam desprovidas de sua base, acreditaram que elas jamais tiveram base alguma. Assim foi com a lepra. Essa enfermidade era considerada pelos hebreus como uma punição por faltas conta a Lei: só podia, pois, ser curada pelo possuidor ou depositário da Lei. E esse privilégio, ou dom, pertencia verdadeiramente ao Sacerdote. Quando, mais tarde, a Arte de curar deixou de ser apanágio do Sacerdócio, quando o Médico acreditou que podia deixar de ser Sacerdote, as fontes da lepra permaneceram abertas como sempre e as fontes do remédio se fecharam. Então, nas trevas em que se concentrou, o homem sentiu-se inclinado a pensar que a lepra fosse incurável, que não tinha visto o que lhe faltava para curá-la, de modo que os males mais do que duplicaram. pois lhe restam sempre meios de contrair a lepra e ele não mais encontra aqueles que o livram dela. 5 O Sabbat, tão recomendado pela lei dos hebreus, relaciona-se ao Sabbat primitivo, seja por seu número ou por seu objeto. E é seguramente no espírito do Sabbat primitivo que lhes foi ordenado não semearem, não trabalharem a terra nem podarem a vinha durante o sétimo ano - ou ano sabático - não fazerem nesse mesmo ano espécie alguma de ceifa nem de colheita, e aguardarem a subsistência apenas dos produtos naturais da terra para com eles satisfazerem as necessidades presentes, sem inquietude alguma para com as necessidades futuras. Isso não nos exporia novamente a diferença que há entre as leis da matéria e as da inteligência? Não nos indicaria que a matéria só existe, produz e se alimenta por meios violentos e por uma cultura laboriosa, ao passo que a vida intelectual, ativa por si mesma, promete delícias fáceis e nutrição assegurada ao homem que a ela pode chegar? Não nos mostraria antecipadamente qual será o destino do homem quando, chegado o grande Sabbat, ele irá unir-se às próprias Virtudes divinas e possuir a Terra incriada, que está sempre produzindo por si mesma e sem ser cultivada? - quando, estando como que unido às fontes da vida, ele poderá saciar-se nelas continuamente, com a confiança de que elas serão sempre mais abundantes do que suas necessidades e jamais poderão estancar-se para ele. É preciso não esquecer que o verdadeiro Sabbat temporal deve ocorrer no décimo-quarto dia da lua de Março36. Foi nessa época que se fez a libertação do Povo hebreu, sendo essa a época natural em que são entreabertas as primeiras fontes de produção, pois é nesse tempo que os princípios vegetativos recebem as primeiras reações da primavera, tempo que devemos contar segundo a trajetória da lua, e não pela do sol, quando ambos os dois astros não se encontram juntos no mesmo ponto equinocial. Aqui eu acrescentaria que os hebreus perturbaram a hora do seu Sabbat ao começá-lo com a primeira estrela, em vez de começá-lo à meia-noite, que é a hora da primitiva instituição, visto ser essa uma hora central. Mas não é a única negligência que eles têm a se reprovar, pois, ao ser instituída, sua Lei era pura e apoiada em bases invariáveis. Vemos aí que até nos Regulamentos relativos aos alimentos tudo está fundado em princípios da mais sadia Física. A proibição de comer animais tidos como impuros pela Lei está ligada à natureza deles, cuja impureza, com relação a nós, está escrita em sua própria forma. "Aqueles cuja cabeça e corpo forem desguarnecidos de membros ofensivos e defensivos, aqueles cujo pescoço é tão grosso que, por assim dizer, coincide com o corpo, são os Seres menos puros, os menos regulares e, ao mesmo tempo, os mais nocivos ao homem, pois são aqueles cujo sangue é levado com mais abundância à parte superior e, para conservar a linguagem da Lei hebraica, seu sangue está materialmente na cabeça. Ora, o uso freqüente de semelhantes carnes não deixaria de causar a mesma perturbação no equilíbrio de nossos humores. É então que os enxofres grosseiros, dos quais nossa Natureza busca expurgar-se, refluem sobre nosso Ser obstruindo-lhe todos os órgãos. Ser algum está certamente mais interessado do que o homem em evitar esse terrível efeito porque, perturbada a sede de seu Princípio, o próprio Princípio pode sofrer com essa perturbação. Por sua natureza, o homem está destinado a ser superior a tudo o que seja sangue e impuro, já que sua própria cabeça, distinguindo-se do corpo por um pescoço estreito, parece ainda estar colocada verticalmente para que o sangue não possa ultrapassá-la e assim ela reine e domine sobre tudo o que está ligado ao sangue, e já que temos diante dos olhos o exemplo do embrutecimento dos negros, que devem isso em parte ao fato de que não apenas o seu sangue, mas a própria gordura está na cabeça. Tal fato é visível pela cor avermelhada e sombria da substância branda de seus cérebros e pela lã que neles faz as vezes de cabelos. 36 Mais ou menos equivalente ao mês de Nizan. (N.T.) Se não apontamos as mesmas irregularidades nas outras espécies de Nações disformes mas se, no entanto, observamos nelas o mesmo embrutecimento, ou até mesmo costumes mais vergonhosos e inclinações mais malignas ou uma natureza mais frouxa e débil, é que em lugar do sangue e da gordura são outros princípios materiais que37 dominam em suas cabeças ." Inimigos do homem, os princípios imateriais não podem sobrepujá-lo sem que algumas de suas faculdades primitivas estejam oprimidas e embrutecidas, sem serem substituídas pelas faculdades que lhe são contrárias. O que eu disse sobre a disformidade dos animais tidos como impuros deve ser aplicado aos peixes, cujo corpo, formando uma única massa com a cabeça, parece trazer todas as marcas de impureza, de modo que se poderia perguntar: por que é que a Lei hebraica só proibia os que não tinham nadadeiras nem escamas? Em geral, a impureza dos peixes imundos deve ser menor do que a dos animais terrestres porque o sangue dos primeiros é tão temperado pelo fluido aquoso que não há abundância nem calor capazes de produzir grandes devastações. É por isso que a Lei tolerava os que não tinham em conjunto todos os sinais de impureza. Entretanto, como o elemento que habitam traz em si o caráter da origem confusa das coisas materiais, como é pela água que os Seres de matéria tomam sua corporificação, a Lei considerava os peixes como participantes, de alguma forma, na confusão de seu elemento: assim, eles não entravam nos sacrifícios. Não ignoramos que o sal, tão conveniente aos nossos alimentos, era essencialmente recomendado nos sacrifícios e que foi, em quase toda a Terra, o símbolo da Sabedoria. É que em geral os sais são substâncias muito instrutivas para o homem. Surgem através da reunião de suas diferentes partes espalhadas nas águas que as mantêm em dissolução e tornando-se, pela ação do fogo geral ou particular, outras tantas unidades ativas, potentes e depositárias de todas as propriedades que se manifestam nos corpos. Em suma, o sal é um fogo libertado das águas e as águas têm um número tão impuro que os hebreus só exprimem essa palavra pela dupla mym (maim). Acrescentemos que, se era dada preferência ao sal marinho sobre todos os outros, é que ele é quadrado em todas as faces e possui sete centros, que recebe mais diretamente as influências superiores pela ação da Lua sobre os mares e que seu ácido tem menos afinidade com os metais do que os outros sais." O pão ázimo, tão recomendado nas festas, tem certamente grandes significados, pois representa ao mesmo tempo a aflição da privação, a preparação para a purificação e a lembrança da origem. O vocábulo maná deriva de um substantivo hebraico que significa enumerar. E para chegar ao entendimento de sua distribuição diária, que os Livros hebraicos dizem ter sido feito ao povo, eis aqui o que é preciso conhecer. Assim como o Sol todos os dias percorre todos os pontos de nosso horizonte para revivificar toda circunferência, também os homens recebem todos os dias um raio do grande sol, que bastaria para os reanimar intelectualmente se não deixassem que ele fosse interceptado por mil obstáculos estranhos. Para a ordem física existe a cada dia um movimento universal pelo qual todas as esferas agem umas sobre as outras constituindo, reciprocamente, bases sobre as quais imprimem, com sua passagem, ações e números análogos aos traços encontrados nessa ordem. Não podemos negar que assim não seja na ordem intelectual, já que esta é o modelo daquela. 37 Atenção: Peço à revisão verificar se este que está em itálico no original. Porém, em nenhuma das ordens o homem pode ir além dos limites e das medidas de suas faculdades sem as destruir. E apesar de haver recebido essas faculdades por sua natureza, deve esperar que as virtudes e os números superiores as venham completar e nutrir, bem como não deve deixar de descansar nos socorros superiores nem de crer que eles possam renovar-se como as necessidades do homem. É isso o que significam os vasos dos hebreus, o maná com o qual os enchiam todos os dias e a proibição feita ao Povo de ajuntar porções duplas. Se havia dúvidas de que o maná tenha existido em natureza material, bastaria apenas que lembrássemos o que acabamos de ler. E se reconhecemos que em cada dia da vida nos é concedido o maná intelectual, teremos dado um grande passo para crer na possibilidade do outro, pois este poderia realmente provir de um ramo comum da mesma árvore, mas teria caído mais baixo, como se tivesse por objeto o corpo. Quanto às leis criminais, delineadas nos Livros hebraicos, embora estejam fundadas na mais exata justiça, não me proponho a justificar sua origem com tanto cuidado quanto o das leis de preceito e instrução das quais temos tratado até o presente momento: elas apresentam dificuldades demais para que ousemos asseverar que a mão do homem, ao redigi-las não tenha jamais tomado o lugar da mão suprema. A principal objeção é que, se o Chefe da Lei fosse obrigado a consultar a luz superior em todas as circunstâncias duvidosas, ser-lhe-ia inútil ter um Código criminal escrito. De fato, se por essa consulta ele ficasse conhecendo as penas decretadas pela Lei contra tal ou qual crime, ele o conheceria com o depoimento de duas testemunhas verídicas, das quais só posso dar uma idéia melhor comparando-as à assinatura de uma carta e ao seu conteúdo; "pois sabemos que os Antigos iniciavam sabiamente suas cartas com o próprio nome e que esse costume ainda subsiste entre vários Povos e nas Ordenações dos Soberanos." Mas, havendo o Chefe da Lei recolhido várias dessas Sentenças jurídicas, pôde ocorrer que ele as sentisse destinadas a servir-lhe de guias quando se apresentassem casos semelhantes, limitando-se a consultar sobre a culpa ou a inocência do acusado. Em seguida, a forma dessa Jurisprudência ainda degenerou e os sucessores dos verdadeiros Chefes, encontrando leis escritas para a punição de crimes, tomaram-nas como a única regra a consultar e as testemunhas humanas como as que o Legislador tivera em vista, por onde se vê que abusos devem ter resultado desse equívoco. Descubro de bom grado essa dificuldade para que minha marcha não pareça suspeita e para ter o direito de tomar a defesa do tesouro de instruções que, apesar dessa mistura, encontra-se encerrado nos Livros dos hebreus. Contemplemos aqui a Arca da Aliança, depósito de todas as Ordenações que o Povo deveria observar para conservar-se forte contra os inimigos. Comparando o Tabernáculo, e as Cerimônias que se ordenara fossem nele praticadas, com as primeiras ocupações do homem, veremos que oferecem a descrição dos símbolos antigos que a Sabedoria devia mostrar novamente ao homem a fim de jamais poder ser acusada de faltar à convenção com ele feita ao formá-lo. Também ao Agente escolhido para essa obra foi recomendado conformar-se ao plano que lhe fora mostrado na montanha a fim de que, sendo a cópia visível semelhante ao modelo que o homem não mais via, o homem pudesse aproximar-se de sua glória antiga e de seus conhecimentos primitivos. Se quisermos recuperar algumas idéias do modelo dessa cópia, é preciso estudá-la com cuidado: é preciso levar em conta as diversas divisões do Tabernáculo e os diversos véus que separam umas das outras para dar uma idéia das diversas progressões e interrupções da luz para nós; levar em conta o Oráculo envolvido e coberto pelas asas dos Querubins; a coroa, ou círculo de ouro, que o encima e parece colocada assim, como o anel de Saturno, para servir de órgão às virtudes superiores que nela devem descer; as mesas preparadas nas diversas regiões; os doze pães da proposição colocados em fileiras de seis para mostrar-nos as duas leis senárias, fontes de todas as coisas intelectuais e corporais e, por fim, o candelabro de sete braços repetindo o número da luz superior que iluminava e vivificava invisivelmente esse Santuário misterioso, sede de sua glória. Não apenas devia o Tabernáculo ter relações com o destino do Universo, mas devia ainda têlas com o homem, já que o homem era o seu primeiro objeto. Isso ficou suficientemente claro através do altar quadrado a ser colocado no Tabernáculo - ordem dada ao homem - com os vasos e instrumentos relativos ao culto que nele devia ser exercido. A forma quadrada é um símbolo análogo ao número do homem intelectual, símbolo que podemos distinguir com facilidade e que será desenvolvido ainda em seguida: "mas o próprio corpo do homem parecia ter também relações nisso, já que ele próprio forma um quadrado com suas dimensões. Além disso, o altar era sustentado e transportado por quatro varais ocos que não se destacavam dele. E esse tipo encontra-se em natureza física na forma material do homem." Não podemos considerar o fim corporal do Legislador dos hebreus, cuja sepultura permaneceu ignorada, assim como a histórias dos Eleitos, dos quais se declarou que haviam sido arrebatados em carros de fogo, sem formarmos uma idéia vasta e instrutiva de nosso verdadeiro destino. O homem é um fogo concentrado num envoltório grosseiro. Sua lei, como a de todos os fogos, é dissolvê-lo e unir-se à fonte da qual está separado. Se, negligenciando a atividade própria ao seu Ser, ele se deixa dominar pelo envoltório sensível e tenebroso, tal envoltório adquire um império de maior ou menor fortaleza e duração, segundo os direitos a ele concedidos por sua fraqueza, pendores ou deleites. Então seu fogo foi extinguido ou ficou sepultado sob esse véu obscuro e o homem, na hora da morte, encontrase como que embaraçado com as ruínas de sua forma corporal: e esses destroços devem permanecer amontoados sobre ele, tanto que ele não sentirá renascer no centro de sua existência nada de suficientemente vivo para quebrar e destruir os laços que o prendem à região inferior dos corpos. Se, pelo contrário, seguindo a lei de sua natureza, ele soube não apenas conservar a força e os direitos de seu próprio fogo mas também aumentá-los ainda pela ação de um fogo superior, não é de se admirar que na hora da morte seu ardor consuma mais prontamente a forma impura que até então lhe havia tolhido os movimentos e que o desaparecimento dessa forma seja mais rápido. Que será, pois, se o homem inteiro estiver abrasado desse fogo superior? Aniquilará até os menores vestígios de sua matéria. Nada se encontrará de seu corpo porque ele nada terá deixado de impuro, semelhante aos eleitos que, no fim da carreira, pareceram elevar-se às Regiões celestes em carros cheios de luz, que não passavam da explosão de uma forma pura, mais natural ao nosso Ser do que ao nosso envoltório material, e que jamais devemos deixar de ter, apesar de estarmos jungidos à matéria. Que devemos, pois, pensar das traduções em que Jó diz: "Em minha carne verei a Deus"? É preciso pensar que o texto é contrário a elas. E realmente o vocábulo zpqn (niquephu) pertence ao verbo [[qn (naquaph), que significa: ele quebrou, ele cortou, ele corroeu, mas, de modo algum, ele cercou. E Jó, depois de haver reconhecido que seu Redentor vive e que ele deve elevar-se acima do pó, acrescenta naturalmente: Quando eles (meus males) tiverem corroído ou destruído meu envoltório corporal, verei a Deus, não em minha carne, como dizem os Tradutores, mas fora de minha carne. Pois em ydcbm38 (mibbesari), como em mil outros casos, a partícula m (mem) é um ablativo extrativo que representa a existência fora de um lugar, fora de uma coisa, e não na existência nessa coisa ou nesse lugar: assim o texto traz aqui exatamente o oposto das traduções.39 38 Não será yrcbm? - beth em vez de resh? Deixo de lado essa multidão de fatos e quadros contidos nos Livros hebraicos desde a época em que Moisés foi substituído por um digno sucessor até o tempo em que mudou a forma de Governo. Com os princípios que estabelecemos, podemos facilmente descobrir o que é representado por Josué quando ele introduziu o Povo na Terra prometida aos seus Pais, quando se encontrou com o Príncipe dos Exércitos do Senhor e tomou aos Inimigos de seu Povo as Cidades de Cariat-sepher e de Cariat-arbé, ou a Cidade das Letras e a Cidade dos Quatro. Compreender-se-á o que o próprio Povo hebreu nos lembra ao deixar subsistirem várias Nações criminosas que tinha por ordem exterminar, esquecendo isso a ponto de fazer aliança com elas. Para os outros quadros que se encontram nos Livros, facilmente poderemos descobrir interpretações naturais e instrutivas; ainda mais que em nossos dias ficou demonstrado que a maior parte dos fatos que tinham parecido inconcebíveis eram-no muito menos do que as traduções nos faziam pensar: as raposas de Sansão, por exemplo, que se demonstrou serem feixes de matérias combustíveis, à quais, entretanto, é possível que ele tenha acrescentado fogos mais ativos do que os fogos vulgares. Da mesma forma, deixo todos os fatos que poderiam parecer revoltantes, tais como execuções sanguinárias, crueldades cometidas ou comandadas pelos Chefes e Depositários da Justiça, propondo-me falar delas no seguimento desse Escrito. Ainda assim, empreender a explicação universal de tudo o que está contido nos Livros hebraicos seria demonstrar que se é pouco versado no conhecimento da Sabedoria, já que não somente a vida de um homem bastaria para isso, mas também que seria preciso, talvez, a consumação dos séculos para desenvolver-lhe todos os pontos. Observemos pois, que, mesmo quando ainda se encontrarem vários pontos inexplicáveis, seja qual for a causa, isso em nada deveria diminuir, aos olhos dos homens sensatos, o mérito dos fatos cujas relações com nosso Ser e com a natureza das coisas são da mais perfeita evidência. Pertence a esse número a mudança sofrida na forma do Governo dos hebreus. Em qual tempo, sobretudo, ocorreu essa mudança? Foi quando a santidade da lei foi profanada. Foi quando a avareza de seus Sacerdotes se apropriava das Vitimas dos Sacrifícios e eles exerciam sua profissão sagrada como recurso para sua cupidez. Foi quando esses mesmos Sacerdotes, não mais sendo capazes de defender a Arca incorruptível da aliança do homem, haviam-na deixado cair nas mãos do inimigo, encontrando-se o Povo assim despojado de tudo o que constituía sua força e seu sustentáculo. 39 Jó, 19:26: No texto original deste livro: "Lorsqu'ils (mes maux) auront corrodé ou détruit mon enveloppe corporelle, je verrai Dieu, non pas dans ma chair, comme disent les Traducteurs, mais hors de ma chair." - Como curiosidade, vão algumas traduções de línguas conhecidas: "Quand ma peau sera détruite, il se levera; quand je n'aurait plus de chair, je verrai Dieu." (Quando minha pele for destruída, ele se erguerá; quando eu não tiver mais carne, verei a Deus). - Nouvelle édition d'après la traduction de Louis Segond. Trinitarian Bible Society. "Depois do meu despertar levar-me-á junto dele e em minha carne verei a Deus. - "Bíblia de Jerusalém. "Depois, revestido este meu corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus." Almeida, revista e atualizada no Brasil). Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. "And though after my skin worms destroy this body, yet in my flesh shall I see God." (E embora, depois de minha pele, os vermes destruam este corpo, ainda - ou contudo em minha carne verei a Deus). - Oxford University Press, sem data (adquirida na década de 50). "And after my skin has been destroyed, yet in my flesh I will se God." (E depois que minha carne for destruída, ainda - ou contudo - em minha carne verei a Deus) - The NIV Study Bible. The Zondervan Corporation, 1995. "Y después de deshecha esta mi piel, en mi carne he de ver a Dios." (E depois de desfeita minha pele, em minha carne hei de ver a Deus). - Antigua versión de Casiodoro de Reina (1569) revisada por Cipriano de Valera (1602). Otras revisiones: 1862, 1909, 1960. Sociedades Bíblicas Unidas. Revisión de 1960. "E quando, doppo la mia pelle, sarà distrutto questo corpo, senza la mia carne, vedrò Dio." (E quando, depois de minha pele, for destruído meu corpo, sem a minha carne verei a Deus). Versione nuova riveduta. Società Biblica di Ginevra. 1994. (NN.TT.) Foi então que, apesar dos sábios avisos do último dos Juízes, o Povo hebreu quis ser governado por um Rei, como as outras Nações. Mas da mesma forma que o primeiro homem, ao se separar do centro da luz, reduziu-se a ter como guia apenas uma débil centelha dessa Luz, assim também o Povo hebreu, ao abandonar seus guias naturais e submeter-se a um Rei, tinha como recurso apenas as únicas virtudes de um homem, ora frágil, ora mau, e a história dos Reis é, nesse gênero, o quadro mais instrutivo que a Tradição hebraica pôde transmitir-nos. De todos os Reis de Israel, ela não mostra um único que não haja cometido o crime e, entre os Reis de Judá, oferece apenas um pequeno número que dele estiveram isentos, tais como Asa, Josafá e Josias. E ainda faz reprovações ao primeiro por se haver aliado aos Reis estrangeiros e de ter tido, em sua enfermidade, menos confiança em Deus do que nos Médicos. Apressemo-nos a chegar à época célebre do Templo erguido ao tempo do terceiro Rei: monumento que as Tradições hebraicas representam como a primeira maravilha do mundo e ao qual os bastardos de Ismael prestam ainda uma espécie de homenagem. A construção desse Templo, feita pouco depois de o Povo hebreu ter abandonado seus guias naturais, é uma repetição perfeita da sorte que o homem sofreu depois de se haver separado da fonte de sua glória, quando ficou reduzido a ver a harmonia das virtudes divinas somente numa subdivisão grosseira e complicada. Essas imagens, por mais materiais que possam ser, ainda apresentam ao homem culpado os traços de seu modelo: sempre o autor dos Seres, ciumento de sua felicidade, oferece-lhes o quadro de seu poder, de sua glória e de sua sabedoria para fixar-lhes a vista na grandeza e na perfeição de suas perfeições e para reconduzir-lhes a inteligência à luz, depois que a luz lhes tiver fixado o sentido através de seus próprios emblemas. Assim, o edifício do Templo reunia tudo o que fora anunciado pelos sinais sensíveis das manifestações anteriores. Nessas proporções, e nas medidas verdadeiras e não literais, havia relações com a Arca, mencionada na tradição hebraica por ocasião do flagelo da justiça divina sobre os prevaricadores pelo elemento água: e assim o Templo foi, como a Arca, um nova representação do Universo. Ele oferecia os mesmos atributos que o Tabernáculo, cujo modelo fora dado ao povo judeu quando da promulgação da Lei. No Templo havia um lugar para os sacrifícios, tal qual eram realizados no Tabernáculo. Havia em ambos um lugar destinado à prece, que era como que o órgão das luzes e dos dons derramados pela mão do Eterno sobre o Povo eleito e seus chefes. Mas tudo no Templo era mais numeroso, mais abundante, mais vasto e mais extenso do que nos Templos anteriores para nos ensinar que as virtudes iam sempre crescendo e que, à medida que os tempos avançavam, o homem via multiplicarem-se em seu favor os socorros e os apoios. É para instruir-nos sobre essas verdades que cada um dos três Templos foi marcado por uma distinção particular. A Arca do Dilúvio era errante e flutuava sobre as águas para retratar-nos a incerteza e as trevas dos primeiros tempos. O Tabernáculo estava, alternativamente, em movimento e em repouso e, além disso, era o próprio homem que o transportava e o fixava nos lugares escolhidos a fim de nos simbolizar os direitos concedidos ao homem em sua segunda época - direitos aos quais pode aspirar ocasionalmente à posse da luz. Por fim, o terceiro Templo era estável e preso à terra para nos ensinar de maneira sensível os privilégios aos quais o homem pode um dia pretender - privilégios que se estendem até o ponto de fixar para sempre sua permanência na morada da verdade. Assim, o Templo de Jerusalém representava não somente o que acontecera em épocas anteriores, mas era ainda um dos símbolos visíveis mais instrutivos que o homem pôde ter diante de si para recuperar a inteligência do primeiro destino e a dos caminhos que a sabedoria tomara para aí reconduzi-lo. Nos sacrifícios e no derramamento do sangue dos animais, feitos no templo, ele encontrava a imagem do Sacrifício universal que o Seres puros não cessam de oferecer ao soberano Autor de toda existência, empregando com atividade sua própria vida ou sua ação para o sustentáculo de sua glória e de sua justiça. Acrescentemos por antecipação que, como tudo é relativo ao homem no mundo, era para o próprio homem que o sacrifício devia ser realizado, não tendo os sacrifícios animais, senão de maneira secundária, a faculdade de manifestar a glória do grande Ser. Na Natureza, somente o homem tem o direito de oferecer-lhe tributos dignos dele. Mas estando hoje na extremidade da cadeia dos Seres, ele se eleva gradativamente por meio deles: deixando a descoberto as virtudes dos seres mais inferiores, ele pode subir até às virtudes que os dirigem, chegando com essa progressão até uma força viva que o deixa em condições de cumprir a Lei, isto é, de honrar dignamente seu Princípio, apresentando-lhe oferendas nas quais estejam impressos os caracteres de sua grandeza. Se o Povo judeu foi o depósito de semelhantes instruções, se possui um templo que parece ser o hieróglifo universal, se os que desempenhavam funções nos foram anunciados como depositários das leis do culto e até mesmo realizando todos os feitos cuja fonte demonstrei estar no homem, é provável que o Povo judeu seja em verdade o povo escolhido pela Sabedoria suprema para servir de símbolo para a posteridade do homem. De acordo com isso, não poderíamos crer que esse Povo foi colocado, de preferência a todos os outros Povos, na posse dos meios de regeneração de que falamos, assim como do culto trazido necessariamente à Terra pelos agentes depositários das virtudes subdivididas do grande Princípio a fim de entregar ao homem o conhecimento desse Princípio. Cremos nisso, tanto mais que no culto desse Povo reconhecemos relações com a verdadeira natureza do homem e com suas verdadeiras funções, como já observamos existirem entre os Templo de Jerusalém e a harmonia do Universo. Veremos que as abluções freqüentes, os preparativos cuidadosos, os holocaustos de todo tipo, sejam de animais ou dos produtos da terra, e o fogo sagrado, sempre iluminando os sacrifícios e oferendas, eram emblemas bem instrutivos de todas as funções dos Seres para com o primeiro do Princípios e da superioridade desse Princípio sobre os Seres. Somente a ordem dos tempos fixados para os diferentes sacrifícios, a disposição dos instrumentos nele empregados, a qualidade das substâncias que nele entravam, o número e o arranjo das lâmpadas, enfim, todas as partes desse culto seriam certamente outros tantos indícios de algumas das virtudes superiores divididas pela Sabedoria suprema para o homem desde sua corrupção. Entretanto, esses objetos, comuns a todos os cultos, sendo exteriores e estranhos ao homem, não lhe davam o sentimento de seu verdadeiro caráter. Era preciso, pois, que os grandes símbolos fossem expressos por ele, fossem representados e postos em ação por Seres de sua própria espécie a fim de que ele tivesse o testemunho pessoal e íntimo de haver sido formado por uma obra assim. Se, na época de sua origem, ele pudesse ter simultaneamente três grandes objetos de contemplação - a Fonte de todas as potências, as virtudes que dela provêem para o cumprimento das Leis e os Seres que jamais cessam de prestar-lhe homenagem - seria preciso que no estado de degradação lhe restassem os indícios e os vestígios desse espetáculo sublime; que todos os grandes objetos estivessem presentes diante de seus olhos e que fossem apresentados por homens. Assim, no exercício e no conjunto do culto dos hebreus podemos observar essas três classes com a maior exatidão. O povo postado em ordem ao redor do templo, ou no átrio, lembrava ao homem a multidão de produções puras do Infinito que permanecem fielmente ligadas ao Princípio, tanto pelo amor à sua glória quanto pelo interesse pela própria felicidade. Os Levitas ocupados ao redor do Altar representavam-lhe, com sua ação, as funções dos Agentes privilegiados e escolhidos para fazer com que os dons e as virtudes do grande Princípio chegassem até as menores das criações. Por fim, o Sumo Sacerdote, entrando sozinho uma vez por ano no Santo dos Santos para trazer as súplicas de todo o Povo e fazer fluir até ele os socorros da vida, tornava-se para o homem uma imagem clara do Deus invisível, do qual bastava um ato de poder para animar de uma vez todo o círculo dos seres, ao passo que dentre todos os seres, que dele recebem perpetuamente até os germes da própria existência, nenhum deles jamais penetrou no santuário inacessível de sua essência. Eis como o homem conseguiu recuperar a idéia de sua primeira morada, uma vez que teve diante dos olhos um quadro reduzido, mas regular, e que viu ser representada em sua própria espécie o Deus dos Seres, seus Ministros e Adoradores. Neles ele até via os sinais sensíveis, tanto de seus antigos deleites quanto os frutos que serviam de recompensa à sua prece, uma vez que as Tradições hebraicas dão a entender como os sacrifícios eram coroados ao nos ensinarem que o templo se enchia da glória do Eterno ou dos indícios positivos de pensamentos puros dos quais já vimos que o homem estava cercado. Quanto à multidão inacreditável de animais que se diz terem sido imolados quando da dedicação do templo e, de maneira geral, nos sacrifícios dos hebreus, não tentaremos justificar essas narrativas nem refutar tudo o que foi dito sobre a impossibilidade de que o pequeno país dos judeus encerrasse um rebanho tão grande para fornecer tantas vítimas e que houvesse um número suficiente de sacrificadores para os imolar. Os que gastaram tempo e exercitaram o espírito para criticar os textos das Sagradas Escrituras podiam ter empregado ambos de maneira mais útil. Teria sido mais prudente buscar os meios de penetrar nos símbolos do que nos determos em seu invólucro. Seria preciso observar que, quanto mais as Tradições dos hebreus oferecem exatidão e profundeza nos pontos em que são claras, tanto mais devemos supor que elas, ao nos parecerem obscuras ou invariáveis, são-no de propósito para nos ocultarem verdades que só pertencem ao homem inteligente e que seriam nulas ou nocivas a qualquer outro que não estivesse preparado. Teria valido mais se nos fosse lembrado como a Língua hebraica está próxima dos objetos da inteligência, uma vez que nem mesmo possui uma palavra para exprimir a matéria e os elementos. Teria valido mais, repito, se nos fosse mostrado como o sentido primitivo de seus vocábulos mais comuns é espirituoso, justo e sublime, e ensinado que, longe de limitar a Língua hebraica a um sentido particular e literal, ela é tão vasta que, para apreendê-la no seu verdadeiro espírito, devemos ocupar-nos somente em ouvi-la. Pois na ordem verdadeira, cabe ao assunto e à inteligência guiar as Línguas, e não às Línguas guiar a inteligência e o assunto. Por fim, teria sido mais útil se nos fosse ensinado que cada Ser corpóreo é um símbolo de um faculdade invisível que lhe é análoga. Então, poderíamos tomar a idéia da força no touro, a da doçura e da inocência no cordeiro e a da putrefação e da iniqüidade no bode, bem como de todas as espécies de animais e mesmo das substâncias oferecidas em espécie nos sacrifícios. Talvez que com essa atenção já tivéssemos chegado a romper o véu. Pois é possível que a espécie de animal sacrificado fosse o símbolo físico da faculdade que lhe corresponde e que a quantidade ou o número das vítimas fosse a expressão alegórica dessa mesma faculdade que a Sabedoria buscava combater, de tão má que era; que ele se esforçasse, ao contrário, para conseguir do soberano Ser que ela fosse pura, ou pela qual lhe prestasse homenagem ao obtêla. 6 Dentre os objetos apresentados pelas Tradições o que mais deve interessar-nos é a eleição dos Justos, suscitados pela Sabedoria divina que, não podendo abandonar os homens, signos de sua glória, apresenta-lhes modelos de tempos em tempos. Nenhum desses tipos foi mais semelhante do que o justo Elias, cujo nome abarca todas as classes de Seres superiores à matéria e que se deu a conhecer pelas ações mais extraordinárias. Mas é por ele participar na força do Princípio de todas as coisas que o assombro deve cessar à vista de semelhantes fatos. Se ele estava ligado ao Ser que tudo criou, à fonte da qual manam todos os sinais sensíveis materiais ou imateriais em ação no universo, que dificuldade haveria em ter ele, sob o símbolo de um Corvo, recebido alimento de uma mão superior? Que dificuldade em ter desvendado a impostura dos Sacerdotes de Baal, manifestando as forças do verdadeiro Deus? Que dificuldade, até mesmo por ter devolvido a vida a um cadáver, já que agia por esse mesmo Deus que a havia dado? Não fiquemos surpresos, pois, com os direitos a ele concedidos para multiplicar os alimentos da viúva de Sarepta, para reter ou fazer cair, como lhe aprouvesse, as chuvas e os orvalhos; para consumir os Capitães de Acazias com o fogo do céu. Se não perdermos de vista os desígnios da Divindade para conosco, se lermos o livro do homem, nele encontraremos os elementos dessas maravilhas. Vemos mesmo aqui a nossa vantagem por estarmos fortemente unidos por pensamento, desejo e ação às virtudes dos Seres privilegiados, pois o discípulo fiel e sucessor de Elias repetiu quase todos os prodígios de seu Mestre. Mas uma das belas instruções deixadas por Elias é que, enquanto estava na montanha, reconheceu que o Deus do homem não se encontrava nem num vento violento, nem no estremecimento do ar nem no fogo grosseiro e devastador, mas numa brisa doce e leve que anuncia a calma e a paz com que a Sabedoria preenche todos os lugares de que se aproxima e realmente, é um dos sinais mais seguros para desenredar a verdade da mentira. Os diversos Justos que seguiram a mesma carreira estavam encarregados de anunciar aos Reis e aos Povos a sorte que deveriam esperar se viessem a afastar-se de sua Lei. E como há caminhos sem número para nos extraviarmos e como os males que respondem a esses desvios são igualmente inumeráveis, os Eleitos, com o dever de apresentar-nos o quadro de todos eles, cumpriram a tarefa pelos meios e sinais mais análogos àquilo que deveriam anunciar. É por isso que a Justiça suprema, com o desígnio de fazer o povo hebreu sentir o horror de suas alianças idólatras, apresentou-lhe como sinal a união de um de seus Enviados com uma prostituta40, união que reproduzia também a realizada pelo primeiro homem com substâncias impuras, tão contrárias ao seu Ser. É por isso que a Justiça, querendo anunciar a esse Povo a dispersão que o ameaçava e o estado vergonhoso ao qual iria ser reduzido por seus inimigos, ordenou a um outro de seus Agentes que se apresentasse, despido de suas vestes, saindo por uma abertura feita por ele mesmo em sua própria casa e empreendendo uma fuga secreta. É por tudo isso que, querendo representar ao Povo hebreu os tratamentos indignos que iria sofrer na servidão, não receou fazer com que ele visse um Justo mergulhado na dor mais atroz41 e tendo como alimento os objetos mais repugnantes. O homem pode reconhecer-se nesses vários quadros desde que os compare à sua deplorável situação. Tal foi a fonte da multidão de alegorias e fatos emblemáticos que a história dos Profetas nos oferece com traços tão extraordinários que não podemos concebê-los quando os separamos dos acontecimentos secretos que deles foram objeto e ocasião. 40 Livro do Profeta Oséias 1:2-3. (N.T.) 41 Jó. (N.T.) Vêm daí os erros multiplicados daqueles que ousaram julgar tais narrativas sem lhes reconhecer o sentido nem as relações: os Observadores criaram fantasmas para combatê-los com mais vantagem. Assim, só conseguiram alcançar vitórias imaginárias. Quando, menosprezando as instruções dos diversos Eleitos, o Povo e os Mestres se abandonaram aos pecados da putrefação, os Livros dos hebreus nos relatam a história de uma nova servidão mais humilhante e mais dura ainda do que a primeira: na do Egito, os hebreus haviam descido voluntariamente a uma terra estrangeira, ao passo que na segunda servidão o inimigo vinha atacá-los dentro do próprio recinto de sua Cidade, espalhando seu sangue, arrancando-os de seus lares, arrebatando e profanando-lhes os objetos mais caros do culto. Podemos mesmo notar que foi dito que esses inimigos cruéis mandaram arrancar os olhos ao Rei dos hebreus e esse Chefe, simbolizando a luz do povo, mostrava que a maneira pela qual a Justiça usa de rigor contra os Prevaricadores é apagar-lhes a tocha da inteligência. Esse tipo foi repetido durante a servidão pela evasão de várias Tribos que, subtraídas ao jugo de seus Tiranos em Babilônia, distanciaram-se, e foram, por caminhos ocultos, habitar um país desconhecido na Terra. Nele elas ainda exercem o Culto do Eterno em sua pureza, segundo as Leis do hebreus; nele expiam, no luto e na tristeza, as prevaricações de seus Antepassados e representam o órgão vivo e puro de nossos pensamentos, que se distancia quando somos pusilânimes e que sofre longe de nós por causa de nossos extravios voluntários, a fim de que suas lágrimas sejam oferecidas como tributo a Justiça da Sabedoria suprema, que se esquece do crime dos culpados para prestar atenção às dores do inocente. Acontece o mesmo com a Arca da Aliança, que os Macabeus nos ensinam ter sido depositada por Jeremias, durante o cativeiro, em lugar desconhecido, onde deverá permanecer até a consumação das coisas. Mas em todos esses tipos vemos que a clemência acompanha constantemente a justiça, deixando sempre a esperança aos infelizes condenados à privação. É por isso que foi anunciado que no fim dos tempos as Tribos exiladas virão reunir-se ao seu Povo e que a Arca sairá do lugar escondido que a encobre, com o mesmo brilho e a mesma majestade que cercaram a Montanha célebre onde a Lei da aliança foi dada ao homem. Um Rei vencedor da Assíria42, sábio e participante das Ciências dos hebreus, reconhece que chegou o termo da escravidão. Encarrega um Justo43, indicado pela Sabedoria divina, de conduzi-los à Terra de seus Pais para aí reconstruírem o Templo abandonado durante todo o tempo da terrível servidão, na qual se viram privados de seu culto e de seus verdadeiros sacrifícios e na qual, mergulhados na tristeza, haviam pendurado seus instrumentos de música nos ramos dos salgueiros para não misturarem seus cantos aos concertos impuros de seus Mestres. Tais quadros são tão naturais e semelhantes que se torna inútil expor-lhes as relações. É o que acontece com a diferença encontrada entre o segundo Templo e o primeiro. Era tão chocante que aqueles que haviam conhecido o Templo antigo e viram a construção do novo não puderam deixar de derramar lágrimas amargas, tanto sentiam o preço daquele que haviam perdido. Isso nos faz lembrar que o templo corporal habitado hoje pelo homem não passa de uma cloaca, um calabouço tenebroso, se comparado ao Templo no qual teve sua primeira morada. O Sacerdote encarregado da reedificação do Templo reencontrou um dos exemplares da Lei. Aqueles que haviam crido que poderiam rejeitar as Profecias dos Livros hebraicos supondo que o próprio Esdras havia forjado tais livros, poderiam ter feito com que essa objeção valesse para as Profecias, cujo advento o havia precedido, mas não para aquelas cujo cumprimento só deveria ocorrer depois deles, mas não podem negar que estas eram em número muito maior. 42 Ciro, rei dos persas. Esdras 1:1-8 e 5:12-17, 6:1-5. (N.T.) 43 Zorobabel. Esdras 2:2 e 3:8. (N.T.) Ao restabelecer o culto, Esdras restabeleceu as oferendas de trigo, vinho e óleo usuais nos bons tempos do Povo hebreu. Não ocultarei que essas três substâncias combinadas constituem os fundamentos materiais sobre os quais se assenta o edifício intelectual da Grande Obra do restabelecimento das coisas, porque uma é o recipiente, outra é o agente ativo e gerador e a terceira é o elo intermediário. Para dar uma idéia das propriedades do óleo, observarei que ele se compõe de quatro substâncias elementares que lhe proporcionam relações ativas com os quatro pontos cardeais da circunferência universal. Dentre os diversos tipos de óleo, o de oliva ocupa o primeiro lugar porque como a polpa de seu fruto é exterior, ela recebe, através desse meio, as primeiras ações das influências, sem nos esquecermos de que, por sua qualidade natural, ela fixa e detém em si as mesmas influências. E vem daí que, para retratar as prevaricações dos Caldeus, Baruque nos apresenta mulheres queimando caroços de oliva diante de seus falsos deuses." Pouco tempo após a libertação do segundo cativeiro, os Fortes deixam de combater e tornamse semelhantes a mulheres. Vemos as suas virtudes se consumirem e corromperem. Vemos a Árvore escolhida tornar-se tão frágil e estéril que, segundo a expressão alegórica dos Profetas, não produzia nem mesmo um único Ramo bem forte para dele se fazer um Cetro para o Príncipe. Vemos o Povo cair em tal estado de cegueira que não receia ir, a preço de dinheiro, solicitar junto aos Idólatras o grande Sacrifício de seu próprio Templo. Vemos em seguida um inimigo poderoso cercar-lhe os muros, fazê-lo experimentar todos os horrores da guerra e da escassez. E reconhecemos nesses males sem número e flagelos terríveis o cumprimento das ameaças muitas vezes reiteradas ao Povo hebreu, caso ele não guardasse a Lei da aliança: esposos infelizes, nutridos com comidas delicadas, viam-se de tal modo premidos pela fome que chegariam a arrancar o próprio fruto e, depois de o haver devorado, ainda disputariam a massa informe e repugnante pela qual o homem se liga ao ventre de sua mãe. Imagem horrível que ensina ao homem corporal tanto a sua abominável origem como a dura necessidade que tem de devorar diariamente o amargor e a impureza com as quais o primeiro crime o confundiu. Logo o Sacrifício perpétuo é interrompido por falta de vítimas, montões de mortos se acumulam ao redor do Altar, soldados armados e cobertos do sangue de seus irmãos se estabelecem naquele lugar temível, onde somente o Sumo Sacerdote podia entrar uma vez por ano. É então que, subjugado pelo número e pela miséria, ele se torna errante, sem Templo, sem Sacrificador, sem Altar, assim como o homem, depois da queda, rasteja vergonhosamente na privação dos primeiros direitos e das funções sublimes que deveria exercer no Universo. Considerados nesse conjunto e sob esse ponto de vista, as Crônicas do hebreus, apresentamnos um espelho fiel onde podemos contemplar a história do homem. Não podemos deixar de também reconhecer neles os vestígios de uma luz e de uma força superiores, da qual o homem entregue a si mesmo é totalmente incapaz. Falo das virtudes que tiveram de trazer socorros visíveis à sua morada cheia de trevas ou dos Agentes, muitos dos quais são anunciados nas Sagradas Escrituras como não possuindo Genealogia nem Antepassados. O número dos Agentes e as diferentes épocas em que se manifestaram designam a subdivisão das potências divinas que fazem no mundo o tormento do homem, mas que ele deve suportar antes de recuperar o domínio, e cujos quadros não podem ser figurados diante dele sob condições por demais severas visto que, para aquele cujo sentimento derradeiro foi o desprezo da verdade, o primeiro deverá ser o terror dessa mesma verdade. Temos agora de fixar nossas idéias nas aparências de crueldade e injustiça oferecidas pelas Tradições dos hebreus e na escolha feita pela Sabedoria de um Povo que tão mal respondeu aos seus benefícios. Detenhamo-nos a princípio nas execuções cruéis, o enorme derramamento de sangue realizado pela mão dos hebreus, apesar da Lei formal que lhes proibia derramá-lo. Falemos dos flagelos lançados sobre Povos inocentes para a expiação das faltas de seus Chefes. Falemos dos sofrimentos de que muitos foram vítimas, não somente pela prevaricação dos Antepassados, mas também pela de outros culpados com quem eles não pareciam ter as mesmas relações. A primeira dificuldade é resolvida pela para contradição. Quanto mais era precisa a proibição feita ao Povo hebreu de derramar sangue, tanto mais a Sabedoria fazia conhecer que o direito de Justiça estava reservado a ela somente e que, como somente ela podia dar vida aos homens, somente ela tinha o poder legítimo de dispor da vida. Mas, ao reservar-se o direito exclusivo de agir sobre o homem, a Sabedoria não perde o direito de agir por ele. Assim, seja qual for a maneira pela qual demonstre sua ação, ela nada muda nas leis que a constituem, pois é sempre ela que opera e, ao empregar a mão do homem, não faz senão exercer, de maneira mais aproximada do estado grosseiro dos culpados, o império contínuo que exerce em toda a posteridade do homem, como em todos os Seres. Sendo o homem então apenas o agente ou o órgão da Justiça, não existe para ele prevaricação nem pecado e, enquanto não derramar sangue por sua própria autoridade e sua própria causa, não é culpado aos olhos da justiça. Verdade que os homens freqüentemente aplicam inadequadamente à sua Justiça convencional e a todos os estágios da ordem social, ao passo que ela só convém ao homem em sua Lei verdadeira: verdade mesmo assim, da qual a Justiça humana ainda conserva os vestígios e a marca, uma vez que considera inocentes todos os que julgam e matam em nome do Príncipe e que apenas usa de severidade contra aqueles que julgam e matam em seu próprio nome. O Escriba hebreu nos mostra como a mão do homem era passiva nesses grandes acontecimentos e como era dirigida por uma força superior, já que, num instante e com uma quantidade insuficiente de homens, apresenta-nos com freqüência números prodigiosos de imolações à Justiça. Quanto às execuções sanguinárias e cruéis, para pecados nos quais o Povo não havia participado, sem lembrar aqui o que foi dito sobre o pecado do homem, devemos distinguir os pecados particulares dos pecados comuns a toda uma Nação. Pois a constituição dos corpos é tal que tanto o mal como o bem são reversíveis em todos os membros. Vemos até exemplos deles na ordem simples das coisas humanas. Além do mais, o que deveria abafar qualquer murmúrio é a incerteza em que vivemos de que a Sabedoria suprema pague os serviços que exige de nós; de que, depois de ter exercido seus poderes sobre os objetos de sua Justiça para aterrorizar os olhos do culpado, ela os ressarça pelos trabalhos por eles suportados e de que, sendo mais nobre e mais fecunda do que todos os Soberanos da Terra, não possa verter na alma dos homens alguns raios de sua glória que apresentem aos seus olhos as recompensas, acima de qualquer relação com as penas e os trabalhos. Considerando, sob esse ponto de vista, a marcha da Sabedoria, que temos a dizer quando ela nos emprega? A injustiça não é fazer com que o obreiro trabalhe, mas fazê-lo trabalhar e reter-lhe o salário. Se em seguida quisermos reunir no pensamento os males que em toda a terra afligem a posteridade do homem e compará-los aos flagelos de todo tipo, cujo rigor, seguindo as Tradições hebraicas, o Povo judeu tantas vezes experimentou, veremos que essas penas foram mais freqüentes e mais multiplicadas no Povo destinado a manifestar os efeitos das virtudes divinas. Em que pese a dificuldade de admitir flagelos tão gerais e males tão numerosos, infligidos ao mesmo tempo a um único País e a um único Povo - já o disse - a prevaricações gerais devem ter atraído molestamentos gerais. E, de acordo com o que deixamos entrever sobre os direitos da vontade do homem, por si ou contra si, não há meios nem fatos que devam surpreendê-lo, nem parecerem sobrenaturais à sua verdadeira essência. É verdade que, em geral, os males naturais que afligem as nações, operando sem o concurso da mão do homem, não podem ser comparados aos feitos relatados nos Livros dos hebreus, em que a Justiça divina contra os culpados é quase sempre exercida por homens. Mas se a Sabedoria suprema escolher de um Povo dentre todos os outros Povos para o cumprimento de seus desígnios, se verdadeiramente fez essa escolha para apresentar ao homem a posição privilegiada que lhe dera outrora entre as outras potências, qualquer que seja o Povo escolhido, é preciso que vejamos reunidas nele as ações diversas que constituiriam uma ordem de Seres, se eles estivessem em estado de perfeição. Mas, estando a posteridade do homem na degradação, ela só pode representar essa ordem de Seres de maneira muito irregular. E a irregularidade consiste em mostrar, numa mesma espécie, todas as ações de espécies contrárias. Consiste em restringir de tal modo o quadro que, na mesma ordem de Seres, vemos virtudes ativas e virtudes passivas; consiste em que, numa mesma Raça e num mesmo Povo, se encontrem, ao mesmo tempo, o Juiz, o vingador e o culpado, enquanto que tais nomes deveriam pertencer a Seres diferentes. "Quanto à proibição de derramar sangue, busquemos saber por que é que está dito nos Livros hebraicos que Deus reclamará a alma do homem da mão do homem, e até mesmo da dos animais. E a respeito do termo mão, rebatamos de início um erro dos Tradutores. dy (iad, mão), vem hdy (iadah, ele lançou), porque realmente é a mão o instrumento que lança. Mas o termo dy (iad) significa também força, poder. Ora, se a inteligência tivesse guiado os Tradutores, eles teriam dito nos Provérbios que a morte e a vida estavam na força da língua, o que teria sido muito mais expressivo, em vez de nos dizerem, como o fizeram, que estavam na mão da língua, o que oferece uma idéia ininteligível e extravagante. Transformemos aqui pois, o termo mão no termo poder, lembrando-nos dos perigos que ameaçam o homem impuro que deixa o corpo antes do tempo.44 Sendo a Lei dos Seres irrevogável, eles são forçados a cumpri-la. Ora, se o homem intelectual deve permanecer durante algum tempo no sangue, caso seja privado do seu, liga-se a outro sangue, geralmente ao de seu assassino, seja homem ou animal, porque então esse sangue está mais próximo e mais desenvolvido. Em ambos os casos, só podem resultar grandes desordens para ele, já que um Ser só pode habitar o corpo que lhe é próprio e natural. Ao se ligar ao sangue de outro homem, ele o incomoda sem encontrar repouso, porque um outro ser situa-se em cima: unindo-se ao sangue do animal, liga-se a amarras ainda mais grosseiras e mais estranhas a ele e todos esses males são outros tantos obstáculos que o retardam e molestam em sua marcha. Podemos ver, pois, por que é que Deus irá reclamar a alma do homem da mão ou do poder de tudo o que é sangue, uma vez que o homem é seu dízimo pelas relações originais do seu quaterno com dez. Podemos ver em que é que se funda o horror que os homens costumam ter dos assassinos. Enfim, por é que as nações da Terra consideraram como cobertos pela mais extrema reprovação aqueles cujos cadáveres ficam expostos para servirem de pasto às aves e outros animais." Tomemos a segunda questão, com relação à gratidão do Povo escolhido. A maior parte do Observadores fica chocada com o fato de que, havendo os Livros hebraicos apresentado um Povo eleito pela Sabedoria suprema para ser como que o espelho de suas virtudes e leis, esse Povo se haja tornado o mais grosseiro, mais bárbaro e ignorante da Terra; com o fato de que, longe de combater pela mão que o escolhera, ele se arma a todo instante contra ela; com o fato de que, observando somente a letra dos preceitos dessa Sabedoria, ele tornou-se como que inútil aos desígnios dela. 44 "A morte e a vida estão no poder da língua; o que bem a utiliza, come do seu fruto." (Provérbios 18:21.) (N.T.) Se os Observadores houvessem aberto os olhos para o verdadeiro destino do homem, para o amor inextinguível de seu Princípio, inflamado de zelo e de ardor por ele, para persuadir a todos os Povos de que o Princípio não deixa de ocupar-se em livrá-los das trevas e privações, teriam reconhecido que os Livros hebraicos, assim como as outras Tradições, nada mais eram do que a história do homem. Teriam reconhecido que esse Princípio primeiro, cuja imagem o homem estava encarregado de manifestar na terra, fornecia-lhe ainda no mundo os meios para cumprir seu destino; que o mais sensível entre todos era mostrar-lhe a própria posteridade, o tipo daquilo que ele teria sido se houvesse conservado os direitos de sua origem. Assim esse Princípio primeiro teria podido e devido escolher, dentre a posteridade criminosa, algum Ser menos culpado e mais próximo de si, fazê-lo depositário das virtudes que sua Justiça permitia outorgar à Terra para conduzi-la ao seu centro; dar a esse ser, como prosseguimento da convenção primitiva, a promessa que de que se ele fizesse delas um emprego legítimo, não somente as conservaria para si mesmo e sua posteridade, mas ainda que as aumentaria infinitamente e a um número inimaginável; ao contrário, se ele e seus descendentes viessem a desprezá-las, todos os dons lhes seriam retirados e então, em vez de iluminar as Nações e conduzi-las ao centro, tornar-seiam objeto de sua Justiça e opróbrio da Terra. Os Observadores teriam visto que isso equivaleria a repetir em um quadro sensível e temporal a convenção primeira na qual estava baseada a emanação do homem e pela qual ele devia gozar de todas as vantagens inerentes ao esplendor de sua fonte, se permanecesse unido a ela, como devia esperar todos os males e aviltamentos se dela se separasse. Mas, embora a Sabedoria suprema tenha podido e devido fazer temporariamente a escolha de que falamos, embora haja eleito um Ser justo para confiar-lhe o tesouro de seus benefícios - pois ímpio algum pode nisso tomar parte - se em seguida a posteridade desse Justo viesse a afastar-se de sua lei, tornando-se ela, por conseqüência, um receptáculo de ignomínia e objeto do desprezo de todos os Povos, diríamos, por causa disso, que a escolha da Sabedoria foi indigna dela? E teria sido menos pura a primeira escolha que tivesse feito, embora ela se houvesse transformado na própria impureza? Seria preciso então dizer que o homem, emanado da Sabedoria suprema, fosse sem glória e corrompido na origem, porque hoje nós o vemos rastejar-se no pecado e no opróbrio. Confessemos, pois, que esse Povo, em que pese ter auxiliado tão pouco a mão que o escolhera, não deixava de ser, quando de sua eleição, a chama viva que devia brilhar em nossas trevas e nos apresentar novamente os quadros temporais dos quais o homem invisível é o modelo. Reconheçamos, por fim, que ele devia ser a prova clara do princípio exposto sobre a necessidade da comunicação das virtudes subdivididas da Sabedoria suprema entre os homens. Não podemos nem mesmo negar que, na dispersão absoluta à qual ficou entregue, ele apresente ainda indícios dessa verdade. Esse Povo, escolhido pela Sabedoria para ser seu símbolo na Terra, representava o estado glorioso do homem na pureza de sua origem e as sublimes funções que o chamaram para manifestar essa Sabedoria no Universo.
Esse Povo representava
mesmo a ordem e a harmonia da Unidade suprema que todos os Seres deveriam contemplar
ininterruptamente a fim de se conformarem à regularidade de seu modelo;
em suma, era como que o farol das Nações e a tocha que devia iluminá-las
pouco a pouco. Quando o Povo hebreu caiu em culposas divisões, quando,
por seus crimes, foi arrastado a esquecer seus títulos num culto falso
e ímpio e na rigorosa dispersão que devia ser sua seqüência,
sua natureza primeira em nada mudou: embora o exercício de seus direitos
e faculdades lhe fosse retirado, sua unidade de eleição em nada
foi reduzida; embora os membros desse corpo fossem inteiramente dispersados
e subdivididos, continuaram conservando suas relações fundamentais.
Assim, esse Povo oferece sempre a marca primitiva que o constitui: traz sempre
sobre si o selo do Ministério para o qual foi chamado e leva por toda
parte sua essência indelével, assim como o homem conservou a sua,
apesar do crime e da degradação. Assim, quando a Justiça
deixa esse Povo errar entre todas as nações, mostra-lhe sempre
que há nele traços, embora alterados, de origem respeitável,
que atestam a existência de virtudes e perfeições divinas.
Apresenta-lhe ainda as colunas do Templo, embora as ofereça derrubadas.
Com isso, ela dá ainda às Nações, em imagens desfiguradas,
os indícios secretos das virtudes que o amor e a sabedoria fizeram penetrar
nas moradas dos homens para mostra-lhes sempre quadros vivos do Ser verdadeiro
segundo o qual foi moldada sua existência; e estando o Povo disperso entre
todas as nações da Terra, elas têm diante dos olhos, ao
mesmo tempo, tanto os Agentes que deveriam ser os órgãos da verdade
quanto os flagelos que os perseguem por haverem ousado desprezá-la. Não
podemos encerrar de maneira melhor o que se refere às Tradições
dos hebreus senão mostrando sobre o que é que repousam os sublimes
privilégios dos quais o Povo é depositário. É que
foi ele que teve na Língua o primeiro Nome positivo e coletivo de todas
as faculdades e atributos do grande Ser, Nome que encerra distintamente o princípio,
a vida e a ação primordial e radical de tudo o que pode existir;
Nome pelo qual os astros brilham, a terra frutifica, os homens pensam; Nome
pelo qual eu pude, Leitor, escrever-vos estas verdades e pela qual podeis entendê-la.
É verdade que esse Nome passou de uma a outra em todas as Línguas
da Terra, mas a nenhuma delas levou a imagem completa que apresenta na Língua
dos hebreus. Umas fizeram dele apenas uma denominação indicativa
da existência de um Ser superior, sem nada exprimir de suas virtudes.
Outras conservaram alguns de seus traços principais; porém, fazendo
abstração de todos os outros, não retrataram à nossa
inteligência um quadro justo do nosso Deus. Outras, por fim, como as Línguas
vizinhas do hebraico pela sua antigüidade, conservaram em grande parte
as letras que compõem o Nome do Deus universal, mas, havendo-lhe alterado
a forma e a pronúncia, bem depressa deixaram de atribuir-lhe as vastas
e profundas idéias das quais ele era o germe. Somente o hebraico possui
intato o Nome supremo, tronco sobre o qual serão enxertados todos os
outros. Nome destinado à sustentação da posteridade humana.
Não nos espantemos, pois, de que esse Povo nos seja apresentado como
o farol das Nações e o foco invisível sobre o qual, desde
a queda do homem, têm-se refletido os primeiros raios do grande Ser. Cremos
haver apresentado até aqui um conjunto de princípios suficientemente
ligados, conseqüentes e verdadeiros para derrubar as doutrinas do erro
e do nada, e não duvidamos havê-las substituído por uma
mais sólida, mais luminosa e consoladora. Se o homem descuidou-se até
o presente de procurar manifestar as propriedades da fonte da qual descende,
pelo menos não pode mais acusá-la nem queixar-se de que ela não
lhe tenha fornecido meios para isso. Pois, embora o homem, por uma seqüência
natural de seus desvios, tenha ficado reduzido a contemplar as imagens das faculdades
divinas numa subdivisão dolorosa e penosa, elas se multiplicaram para
ele de tal forma que não lhe deixam motivos de queixas. Não somente
cada substância e cada ação da Natureza exprime um traço
das faculdades criadoras que as produziram; não somente os feitos do
homem proclamam que ele emanou de uma fonte pensante, que foi separado dela
por um crime e que, por uma necessidade indestrutível e pela lei que
o constitui, a Sabedoria e ele devem tender continuamente a reunirse. Mas ainda
todas as Tradições da terra demonstram que essa fonte não
deixou de aproximar-se do homem, apesar de sua mancha, e que ela circula em
torno dele através de canais inumeráveis em todas as partes de
sua habitação corrompida, mostrando-se visível em todos
os seus passos. Assim, tudo o que o homem percebe pelo olhos corporais, todos
os atos que exerce e produz segundo as leis da Região sensível,
tudo o que recebe pelo pensamento, tudo o que até mesmo aprende pelas
Tradições, pelas diversas doutrinas de seus semelhantes, pelo
espetáculo de um culto sublime dado à Terra, pelo estado vergonhoso
e desprezível dos que o perderam por o haverem profanado, e pelo quadro
passado e presente de todo o Universo, tudo isso são outros tantos testemunhos
irrevogáveis que lhe falam a língua de seu Princípio e
de sua lei. Se a sabedoria forma o homem com a condição expressa
de que ele a manifeste no Universo, não a creiamos por isso mais injusta
nem impotente ao contemplarmos os caminhos que ela não deixa de empregar
para restabelecer a união que deveria ter sempre reinado entre ela e
nós, reconhecendo que, enquanto estamos sempre faltando à nossa
convenção, a Sabedoria se ocupa em cumprir a sua. 7 Busquemos
agora colocar-nos em guarda contra o emprego errôneo que os homem fizeram
das verdades e consideremos os diversos ramos da Ciência que, em suas
mãos, foram com tanta freqüência separados do tronco natural.
Eu cumpriria mais prazerosamente esta tarefa pois parece aproximarem-se os tempos
em que, de algum modo, se torna necessário lembrar aos homens esses objetos
importantes. Apagaram-se os vestígios da barbárie; estamos cansados
dos estudos vagos e ociosos que os sucederam. Os sistemas absurdos que se haviam
erguido com excesso de precipitação sobre suas ruínas enterram-se
nas trevas e parecem dirigir-se ao fim. E embora essas plantas venenosas hajam
deitado profundas raízes em vários lugares, lançaram, ao
mesmo tempo, toda a sua semente, não lhes restando, por isso, mais força
para crescerem, de modo que devem aniquilar-se por sua própria impotência.
Entre os escombros informes desses colossos da imaginação e da
corrupção vemos aparecer uma classe de Observadores prudentes
e judiciosos que, instruídos pelos desvios dos que os precederam, interessam-se
em tornar a sua marcha mais segura. Uma propensão secreta fixa-lhes a
atenção nos indícios das verdades esparsas pelo Universo.
Sua emulação, dirigida, de algum modo, pela Natureza, faz com
que diariamente descubram vestígios de luz de cuja existência,
alguns momentos antes, não teriam suspeitado. Em suma: os espíritos
fermentam e se purgam de maneira sensível através das substâncias
estranhas com as quais foram por tanto tempo confundidos. É provável,
pois, que os Observadores, estando ainda ocupados por algum tempo com leis,
Seres, fenômenos celestes e terrestres, relações físicas
do homem com tudo o que existe, com a comparação das Línguas
e o verdadeiro sentido das Tradições, irão perceber por
fim o imenso território dos conhecimentos do homem, gozando então
de um sistema de ciência verdadeiro, conseqüente e universal. Observemos
aqui que a mais importante e principal das descobertas seria reconhecer a sensibilidade
da Terra, pois é fácil garantir que o nosso planeta desfruta dessa
faculdade, uma vez que todos nós a desfrutamos corporalmente e que nosso
corpo provém da terra. Assim como todas as pequenas partes de nosso corpo
comunicam realmente a sua sensibilidade ao Princípio corporal imaterial
que nos anima, também todos os seres terrestres comunicam a sua de maneira
invisível ao Princípio sensível da Terra. E podemos julgar
qual seja o extremo grau de sua sensibilidade, já que ela reúne
tanto a nossa quanto a de outros seres sensíveis de nossa Região,
sem contar que tem outra relações de outro gênero com outras
classes de seres que pareceriam ainda mais distanciados, só podendo corresponder-se
com ela através de seu número e suas ações secundárias.
Mas, para compreendermos melhor a importância da doutrina sobre a sensibilidade
de nosso Globo, saibamos que ele é a base de todos os fenômenos
sensíveis, assim como o homem é a base de todos os fenômenos
intelectuais, e que assim a Terra e o homem são os dois pontos sobre
os quais refletem as ações das virtudes destinadas a se manifestarem
no tempo. Eis aí uma das fontes dos sublimes conhecimentos em direção
aos quais o homem parece caminhar sem saber e que um dia deverão ensinar-lhe
qual é a verdadeira ocupação e o verdadeiro destino de
seu Ser. Mas não podemos refletir sobre o homem sem reconhecermos que
esta época pode ser para ele tão temível quanto desejável.
Pois em qual tempo a árvore da Ciência não esteve sobrecarregada
com o peso de ramos estranhos que lhe foram enxertados? Vimos que a Idolatria
provém do fato de que o homem desceu da idéia pura e do culto
simples de seu Princípio para objetos inferiores. Ora, se o tempo material
só começou para o homem a partir do pecado, vemos o quanto lhe
é difícil viver no tempo material sem ser Idólatra. Realmente,
que aconteceu ao culto simples ao qual o homem era convocado por sua natureza
e do qual distinguiu tão poucos vestígios em redor de si desde
a degradação, a esse Culto oferecido ao Eterno pelos Seres puros
e independentes das amarras que nos comprimem, segundo suas virtudes e seu número?
Sublime demais para a Terra, ele se furta aos nossos olhos e não permite
que o contemplemos. Como o esquecimento desse culto foi o primeiro passo dado
pelo homem ao se afastar do Princípio, seu único recurso estava
nos Agentes puros, noutros tempos seus Ministros, agora seus Mestres; Agentes
ligados ao tempo como ele, porém não mais encerrados como ele
nas amarras de um corpo grosseiro e corruptível; Agentes nos quais Deus
escreve sem cessar hoje em dia, como escrevia no homem e que por sua vez escrevem
em todas as partes do Universo, a fim de que o homem em toda parte seja levado
a instruir-se. De algum modo, poderíamos dizer que vivemos habitualmente
nas leis da segunda classe, já que recebemos pensamentos diários
que nos vêm daqueles que a compõem e nela habitam. Entretanto,
como somos quase sempre passivos nessas comunicações e como um
simples culto denota atividade, devemos presumir que aos nossos estudos a segunda
classe apresente objetos mais físicos, mais decisivos e mais positivos
e que, por isso, exija cuidados mais vigilantes e mais bem dirigidos do que
aqueles que ocupam a maior parte dos homens. Essa classe, sem ser tão
perfeita como a primeira, é o mais alto termo ao qual o homem pode sabiamente
dirigir o olhar durante o curto instante que passa na terra. Não exige
nenhuma matéria, nenhum instrumento, nenhum órgão estranho
àqueles com que o homem foi provido pela natureza. Desde o nascimento
o homem traz consigo todos os materiais e bases dessa lei; sem isso, jamais
esse edifício poderia ser erguido. No entanto, em suas ações
essa classe conhece tempos e suspensões que lhe são permitidos,
visto que tal é a lei dos Agentes encerrados no tempo. E se há
Mestres que ensinam o contrário, não passam de ignorantes ou de
impostores. Mas, quanto mais sublime é essa classe, mais difícil
é ao homem manter-se nela. Para consegui-lo, é preciso que tudo
o que nele houver de ilusão dos sentidos desapareça e seja aniquilado
para deixar que brilhe apenas sua essência pura e real. Conservando sempre
a integridade indestrutível de seu Ser, as ilusões que o ocupam
devem dar lugar a substâncias sólidas e verdadeiras, assim como
os vegetais tenros que na terra perdem a flacidez, recebendo em seus ductos
uma matéria durável que, sem lhes mudar a forma, dá-lhes
uma consistência à toda prova. Enfim, o homem, unindo a vida de
um outro Ser à sua própria, deve renovarse perpetuamente sem deixar
de ser ele mesmo, e a vida desse outro Ser é a do Infinito. Não
fiquemos surpresos de que essa classe parecesse tão elevada aos que a
conheceram, de que desde a queda do homem muitos dentre eles limitassem a esse
ponto sua adoração e de que isso fosse a primeira fonte da Idolatria
temporal. Há uma classe inferior a essa. Embora na terceira posição,
é a que tem mais conformidade ao estado enfermo e degradado do homem.
É mista como ele e como ele encerra duas bases consideráveis.
A primeira tem como objeto os conhecimentos análogos à verdadeira
natureza do homem; a segunda abrange a natureza sensível. Ambas são
puras, respeitáveis, plenas de maravilhas para quem souber seguir-lhe
as relações trazendo a elas uma intenção simples,
tranqüila, humilde e, de preferência, disposta a contemplar e admirar
esses belos espetáculos, em lugar de reinar sobre eles e glorificar-se
de fazer parte deles. Ambas são os depósitos dos sinais hieroglíficos
que serviram de germe aos símbolos da Fábula. Ambas foram conhecidas
por vários Sábios antigos e modernos. Ambas são a fonte
de diversos Cultos exercidos na Terra de maneira visível, porque não
há nenhum deles que não tenha pelos menos vestígios de
tais Cultos. E quando esses traços estiverem ainda mais alterados, os
desejos mais puros e constantes do homem que os percorre na simplicidade de
seu coração poderão fazer com que ele lhes recupere a eficácia
primitiva. Se a primeira dessas bases deve servir de modelo à segunda,
a segunda deve apoiar-se na primeira para satisfazer às leis de nosso
Ser e estabelecer um equilíbrio perfeito em todas as faculdades que nos
compõem. Se o homem, aspirando à ciência espiritual, negligencia
os recursos que a Natureza lhe apresenta, corre o risco de passar da ignorância
para a loucura. Se a Natureza elementar nos é nociva, é-o quando
nos deixamos escravizar por ela e não quando lhe penetramos nas virtudes.
Em suma, ignorar a Natureza é rastejar diante dela, subordinar-se a ela,
ficando-se entregue a seu curso tenebroso. Conhecê-la é vencê-la
e elevar-se acima dela. E aqueles que se ocupam com os objetos verdadeiros reconhecem
tão bem sua utilidade que, quando se sentem fatigados por causa de uma
abundância por demais grande dos frutos de seus estudos, basta-lhes às
vezes fixarem-se num objeto físico para se aliviarem. Além do
mais, se estamos colocados no meio dos objetos físicos, isso é
uma prova de que o Ser supremo quer que comecemos a conhecê-lo dessa maneira.
Se ele nos colocou este livro diante dos olhos, é para que o leiamos
antes dos livros que ainda não vemos. É um dos maiores segredos
que o homem pode conhecer: o de não ir logo a Deus, mas de ocupar-se
longamente com o caminho que conduz a ele. Entretanto, evitemos separar a base
inferior do móvel intelectual que deve vivificá-la e que é
seu verdadeiro alvo ou seja: procuremos não contemplar os objetos físicos
sem tomarmos como guia a tocha da inteligência, pois ela é o Deus
da Natureza. Sem essa luz, veremos em tais objetos apenas uma aparência
confusa sem jamais penetrarmos na sabedoria da ordem e da harmonia que os constituem,
assim como jamais nos aproximaremos do Deus superior à inteligência
se começarmos a divinizar nosso coração, visto que nada
se realiza sem analogia. Evitemos perder de vista o alvo superior limitando-nos
exclusivamente aos conhecimentos sensíveis e elementares. Foi nesse perigo
que caíram os homem de quase todos os tempos. Foi nele que caiu Ismael,
depois Esaú, que por ele perdeu seu direito de primogenitura. É
por esse motivo que os árabes, descendentes de Ismael e que foram fontes
tão fecundas das Ciências naturais, que nesse gênero passam
como os Instituidores de todas as Nações, ficaram, no entanto,
abaixo do verdadeiro destino do homem. Foi afastando-se ainda mais dessa classe
que os maometanos reduziram a Religião dos árabes a simples observações
de ritos corporais sem inteligência nem luz; e assim, entre eles a liberdade
dos sentidos, é, por assim dizer, sem freios; e talvez não seja
sem razões relativas a esse objeto que Maomé se dizia inspirado
pelo Anjo da Lua. Assim, para se obter um exemplo completo de conhecimentos
e de virtudes, é claro que as duas bases, a intelectual e a elementar,
devem socorrer-se mutuamente. Da divisão das duas bases realizada pelo
árabes, bem como pelos primeiros homens, resultou uma fonte imensa de
abusos e erros que formam uma quarta classe. Arrastados em direção
às substâncias naturais, os homens dessa classe, à força
de se fixarem somente nelas, tiveram uma visão menos aguda. Como alvo,
tiveram apenas o Ser inferior do homem e, se se ocuparam algumas vezes do Ser
superior, foi apenas para lhe apresentarem objetos que não são
dignos dele. Daí surgiram, em todos os tempos, as Ciências baseadas
em fórmulas e segredos, Ciências cujo sucesso, segundo aqueles
que as ensinam, depende exclusivamente de uma matéria morta, de amuletos,
pentáculos e talismãs; ou da observação de objetos
sensíveis, do vôo dos pássaros, do aspecto de certos astros,
das feições e da estrutura do corpo humano, o que fica compreendido
sob os nomes de Geomancia, Quiromancia, Magia, Astrologia, todas elas Ciências
nas quais o Princípio, subordinado às causas segundas, deixa o
homem na ignorância da verdadeira Causa. Ora, da ignorância ao erro
e à iniqüidade é só um passo, como um terreno inculto
coberto de sarças, que logo se torna um covil de serpentes. É
com isso que Mestres cegos e impostores, abusando da fé dos Povos cujas
paixões e vícios lisonjeiam, vivem desviando os homens de seu
destino original e do verdadeiro objeto de sua confiança. Não
falo daqueles que, gozando da reputação mais célebre entre
os homens, ainda estão abaixo dos que acabo de descrever. Não
somente afastaram, como os outros, o móvel visível que preside
a todas as leis dos Seres; não somente tornaram-se cegos quanto ao destino
e o Princípio das coisas naturais, mas também perderam o conhecimento
das propriedades das menores substâncias; observaram apenas os efeitos
exteriores dos corpos sem se ocuparem com as verdadeiras relações
dos Seres com o homem. Entretanto, como a inteligência do homem não
pode ficar sempre adormecida, eles buscaram pelo menos as leis e as relações
que os Seres podiam ter entre si, mas, por haverem separado os Seres do Princípio,
viram-se forçados a explicá-los por conta própria. E daí
resultaram as doutrinas materiais e incoerentes da criação dos
astros por divisões de uma mesma massa de matéria incandescente,
as comparações tão aviltadas do nascimento desses grandes
e vivos móveis com as fusões passivas e mortas de nossas substâncias
terrestres - sistemas que custam aos seus Autores esforços infinitamente
maiores do que fora preciso para se elevarem desde o início a um Princípio
ativo ordenador de todos os Seres, que em cada um infunde uma medida de força,
virtudes e vida análoga aos seus desígnios. Nessas corporações
só existem a falsidade e o erro que mantêm o homem no sofrimento
e ele realiza uma ação pacífica e natural quando permanece
na verdade. Mas isso eu já disse e não devo mais falar dessa ordem
de sábios: são nulos com relação à ciência
e aos objetos de que tratamos. Existe, por fim, uma quinta classe de Ciências:
a da própria abominação, que possui meios, símbolos
intelectuais e sensíveis como as classes precedentes; conhece o número
e as propriedades da fumaça; tem um culto, que exige mesmo uma certa
pureza para ser realizada; e há na Terra uma Nação que
vende aos outros Povos uma parte dos ingredientes necessários a esse
culto, mas os resultados são horríveis. Seus sinais são
comumente traçados sobre os que a professam e exercem a fim de que os
homens tenham diante deles os exemplos patentes da justiça. Como o objeto
dessa Ciência é falso e corrompido, ela conduz os homens por sendas
contrárias às da verdade. Mas como também essa verdade
está em toda parte, os monstros de que falamos não podem dar um
passo sem encontrá-la e, não se apresentando a ela pelas sendas
naturais, só se aproximam para serem repelidos. Conhecem-na somente para
lhe provarem os rigores, sem poderem gozar da paz que lhe é própria.
A essas diversas classes de Ciências é preciso acrescentar as nuanças
intermediárias. Não devemos esquecer que cada uma dessas classes
pode conduzir a termos indefinidos - seja no número de ramificações
que encerra, seja na extensão dessas ramificações - e que
pode aliar-se às outras classes no todo ou em parte, com as mais próximas
ou com as mais distantes, formando amálgamas em que o pensamento do homem
tem dificuldade em reconhecer-se. Desde as areias do mar até às
regiões mais elevadas dos Seres, em toda parte o homem é capaz
de assentar símbolos multiplicados e variados de seus títulos
primordiais. É capaz, conforme prova a cada dia através das Artes,
de seus gostos e paixões, de pôr sua alma nos olhos, nos ouvidos,
nas mãos, nos pés, no paladar, na cabeça, no coração
e nos órgãos impuros. E essas coisas, ligadas corporalmente a
ele mesmo, não são mais do que a imagem de objetos distintos dele,
com os quais pode identificar-se. De acordo com isso, não devemos admirar-nos
da mistura que notamos entre as doutrinas da Terra e de nelas vermos combinações
diversas do divino, do espiritual, do material e do impuro - porque essas classes
estão abertas ao homem e porque, quando ele não regula sua marcha
por um guia infalível, deixa entrar em sua obra vestígios impuros
de sua corrupção e ignorância. Por sua natureza, é
indubitável que o homem pode agir em Deus, com Deus, por Deus, sem Deus
e contra Deus. Dentre todas as Ciências, não é difícil
ver por qual teríamos interesse de nos decidir. Mas, tendo em vista a
mistura à qual ficam expostas ao passarem pela mão dos homens,
poderia acontecer que, sob aparências ilusórias, fôssemos
induzidos em erro. Defendamo-nos, então, dos Mestres que apoiarem sua
Ciência apenas numa base material, em fórmulas e receitas científicas,
sempre concentradas nas causas segundas, pois - repito - das causas segundas
às causas corrompidas não há quase intervalo algum. E já
é muito, se aqueles que se apegam exclusivamente a semelhantes meios
e os ensinam não merecem mais do que a nossa compaixão. Os que
anunciam uma Ciência mais alta e meios superiores exigem ainda mais nossa
vigilância e reflexões porque, sendo a sua marcha menos conhecida,
deve ser-lhes mais fácil enganar-nos. Há então duas maneiras
de julgá-los: através de suas instruções e através
de seus feitos. Deixo os feitos em último lugar para aqueles que não
passam de testemunhas, embora sejam muito úteis para os que têm
a felicidade de serem seu instrumento. Mas, como essa senda é também
a da ilusão, da astúcia e da má fé, o primeiro dever
da prudência é observar com cuidado tudo o que é anunciado
e empregado, a fim de não tomarmos como efeito das causas superiores
o que seria o das causas naturais ou subordinadas. Há também uma
medida a ser guardada nessas observações, que é a de não
nos deixarmos cegar ao ponto de querermos tudo explicar pelo mecanismo das causas
segundas. Foi o que aconteceu a alguns Comentadores dos Livros hebraicos que,
ao falarem da Lei dada no Monte Sinai, representaram como simples meteoros o
brilho, os fogos e os sons imponentes que acompanharam esse acontecimento. A
instrução é, pois, a pedra de toque mais segura para se
julgar a Ciência apresentada por um Mestre, conhecer a meta que o anima
e a marcha dada por ele às suas faculdades. Essa instrução,
ousamos dizê-lo, é a que foi apresentada nesta Obra. Instrução
fundada na natureza do homem, em suas relações com seu Princípio
e com os Seres que o cercam. É essa instrução que lhe ensina
o quanto ele é superior à natureza elementar. Não passando
de uma unidade composta, ou de uma fração da grande unidade, ela
segue necessariamente a lei das frações numéricas: diminuir
a sua exaltação ou ser sempre mais numerosa nas raízes
do que nas potências; assim, quanto mais o universo material avança
em idade, mais se aproxima do nada, uma vez que se eleva às suas potências.
É essa instrução que apresenta o Ser intelectual do homem
como um inteiro - pois que ele se prende à raiz intelectual e divina
da qual todas as potências são inteiros; por conseqüência,
ela que anuncia que, segundo a lei dos inteiros, ele deve ampliar-se e estender-se
à medida que se eleva às suas potências - pois que o privilégio
dos inteiros é manifestar cada vez mais sua grandeza e a indestrutibilidade
de seu ser. É essa instrução que mostra o número
do homem como o mais vasto à medida que ele se eleva às suas potências
e nos faz compreender que deve haver um termo em no qual, achandose completa
a ação temporal desse número, ele só pode agir no
infinito e, como conseqüência, fora dos limites materiais, particulares
e gerais. Realmente, é este o quadro do curso progressivo do homem intelectual:
na infância, ele não pensa por causa do corpo; na juventude, pensa
pelo corpo; na idade madura, pensa com o corpo; na velhice, pensa apesar do
corpo, depois da morte, pensa sem o corpo. É essa instrução
que não podemos acusar de querer dominar sobre a crença dos homens,
pois, ao contrário, ela os exorta a não darem um passo sem exame;
é essa doutrina que, mostrando no homem os vestígios e as ruínas
de um magnífico Templo, apresenta-lhe as ações da Sabedoria
e da Verdade como sempre inclinadas a reerguê-lo sobre seus alicerces.
Ela lhe ensina que os caminhos traçados pelos homens esclarecidos, ou
Eleitos gerais, lhe são necessários na idade média de sua
reabilitação, mas que as verdadeiras luzes que convêm a
cada um em particular chegam por um canal mais natural ainda, e ao abrigo de
toda ilusão, quando o homem fez por longo tempo uma negação
absoluta de si mesmo, quando não se torna arrogante, quando não
foi sábio aos seus próprios olhos e quando, como a filha de Jefté,
chorou sinceramente a sua virgindade. É essa instrução
que lhe demonstra ter que o crime do homem fez subdividir, com relação
a si, todas as virtudes cujo vasto conjunto ele outrora podia contemplar de
uma vez só; mas como é indelével a natureza dos Seres,
já que o homem é a expressão característica do Princípio
supremo, há uma necessidade eterna de que essa lei opere. É essa
instrução que o leva a reconhecer que a multidão de feitos,
ações, Agentes e virtudes derramados no Universo, seguindo as
tradições de todos os Povos, não passam da própria
execução dessa lei co-eterna e indestrutível que, havendo
constituído o homem, acompanha-o e acompanhá-lo-á para
sempre em todos os momentos de sua existência. Por fim, é essa
instrução que o faz considerar os feitos da natureza como expressão
de sua verdadeira ciência e da sublimidade de suas funções
primitivas, o que podemos ver no arcoíris, fenômeno formado pela
reflexão dos raios solares assim como as virtudes intelectuais são
reflexos da Ação do Deus supremo. Aparecendo somente quando há
nuvens, ele parece situar o limite entre o seu caos cheio de trevas e a morada
da luz; traz um número regular em suas cores; apresenta-se na forma de
uma circunferência de tal modo subordinada ao homem que este lhe ocupa
sempre o centro, fazendo-se seguir por ela em todos os passos. Com isso, oferece
a seus olhos um quadro imenso, onde ele pode ver as primeiras relações
que tinha com a unidade, com os Agentes submetidos dos quais dispunha conforme
sua vontade, e com a morada da desordem e da confusão da qual os Ministros
fiéis o mantinham cuidadosamente separado. Em suma, o arco-íris
apresenta um quadro tão fecundo que a Sabedoria não podia ter
escolhido um símbolo mais belo, quando, por ocasião do Dilúvio,
quis anunciar as virtudes superiores e universais das quais, desde os tempos
mais remotos, fez os órgãos e os sinais de sua aliança
com o homem. Aqueles que, com uma doutrina tão sublime, se apresentassem
para nos guiar na carreira da verdade poderiam merecer nossa confiança.
Pois, se acontecesse que sua marcha não fosse conforme aos seus princípios,
tais princípios nos bastariam para abrir-nos a inteligência o suficiente
para sentirmos a falsidade dessa marcha e para que a pureza de nossos desejos
lhe tornasse impotentes os esforços. Mereceriam ainda mais essa confiança
se nos ensinassem a discernir a ciência da sabedoria, complemento e alvo
de toda ciência. Não é necessário crermos que essa
sabedoria esteja unicamente à nossa disposição e que dependa
absolutamente de nós, como o hábito dos exercícios corporais
com os quais podemos fortalecer-nos à força de repetições,
ficando certos assim de alcançarmos bons resultados Temos em nós,
é verdade, várias faculdades intelectuais e espirituais que podem
aperfeiçoarse pelo nosso trabalho: são as virtudes secundárias
e até mesmo a ciência. Mas, quanto à sabedoria, não
é à viva força que a alcançaremos: é à
Corte dos Reis que precisamos marchar com humildade, submissão, cuidado
e atenção constante para cativar-lhes a benevolência; onde,
a qualquer instante que nos reparem, é preciso que nos encontrem prontos
a agradarlhes e a nos sacrificarmos por eles. É tanto pela paciência
quanto pela autoridade e pela violência que devemos afastar os rivais
que se nos deparam. A doçura e o amor, eis as rotas que conduzem à
ventura. E ainda assim, apesar de todos os cuidados, o Príncipe talvez
não se digne honrar-nos com um olhar. Julguemos agora se a sabedoria
é uma coisa preciosa e se não há nada a que ela possa ser
comparada. O homem deveria querê-la continuamente, mas com palavras de
fogo que exprimissem o quanto a deseja. Seu rosto deveria trazer antecipadamente
a alegria com a qual esse tesouro pode enchê-lo. É uma sede ardente,
uma necessidade voluptuosa, é todo o seu Ser interior que deve falar.
Poderíamos ouvir nossos Mestres se eles nos mostrassem as imprudências
às quais o espírito do homem fica exposto em sua marcha por causa
de seus julgamentos por demais precipitados, se eles nos dissessem que em qualquer
grau de conhecimento, de virtudes ou de sabedoria em que possamos estar, sempre
nos resta mais para adquirir além do que temos: se nos dissessem que
as plantas que prosseguem em pacífica perseverança o curso de
sua ação deveriam servir-nos de modelos, que todos os momentos
empregados pelo homem em contemplar-se são subtraídos ao tempo
destinado ao seu crescimento; poderíamos ouvi-los se nos dissessem que
não apenas não deveríamos dar importância aos deleites
mais amplos aos quais podemos inclinar-nos como homens (mas que seria preciso
considerar bem menos ainda os deleites e os favores particulares, como o complemento
da obra) nem a uma ciência isolada como a universalidade das maravilhas
encerradas na aliança do homem com o Princípio, pois essa falsa
maneira de ver seria o primeiro obstáculo aos nossos progressos. E se
viéssemos a insinuar isso a outras pessoas, poderíamos estar certos
de que estaríamos enganando a elas e a nós mesmos. Poderíamos
ouvir os Mestres com atenção se, depois de nos termos instruído
por esses princípios, eles nos exortassem a examinar se não há
um complemento da grande obra. E aqui vamos ver que nasce uma nova ordem de
coisas. Que coisa seriam os conhecimentos do homem, que coisa seria esse Ser
feito para possuir a unidade das ciências e das verdades se ele não
tivesse a esperança de conhecer, quando nada, uma subdivisão das
virtudes divinas? Se sua natureza o convida a contemplar a reunião dessas
mesmas virtudes e a ser delas o símbolo vivo, como recuperaria privilégios
tão sublimes se apenas tivesse visto raios esparsos dessa unidade? Que
coisa são os Heróis, os Semideuses e os Agentes célebres
cuja correspondência com a Terra as Tradições históricas
estão sempre a nos apresentar? Cada um deles foi depositário de
apenas algumas virtudes particulares da unidade. Um manifestou-lhe a força
pela grandeza de seus empreendimentos e imensos trabalhos. Outro manifestou-lhe
a justiça pela punição dos malfeitores e pela sujeição
dos rebeldes. Outros manifestaram-lhe a bondade e a beneficência pelas
Ciências e socorros por eles trazidos aos infelizes, e pelas doçuras
que deram a experimentar aos homens de paz. E o mesmo pode ser dito dos Agentes,
sem excetuarmos aqueles dos quais, nas Tradições dos hebreus,
falamos que mostravam ao homem virtudes isoladas, temporais e passageiras e
por isso não lhe davam um idéia perfeita de seu Ser nem dos direitos
ligados à sua natureza. Faltava-lhe ainda o complemento desse conhecimento
para conceber o sentido de todos os emblemas grosseiros que tinham bem representado
a lei do homem, porém que fazendo isso de maneira material, quando, pelo
contrário, ela deveria ser representada pela virtude do homem e pelos
feitos que emanassem dele mesmo. Era preciso então que uma AÇÃO
PODEROSA demonstrasse a real e fecunda existência do homem facilitando-lhe
o entendimento de seu Ser e elevando-o a um estado de superioridade para o qual,
desde a queda, ele não deixava de tender por uma lei simples e mais una
do que todas as que a haviam precedido, uma lei mais análoga à
verdadeira natureza do homem, cuja grandeza e sublimidade não deixaremos
de defender. Finalmente, era preciso que a Sabedoria abrisse para a posteridade
humana uma porta a mais do que as que estão contidas no quadrado da potência
do homem. Ou seja: que a Sabedoria devia abrir uma qüinquagésima
porta para abolir o número de servidão operado pelo duplo poder
do mal, a fim de que o homem, depois de se haver libertado, pudesse ainda libertar
o seu recinto, "e era esse o espírito da lei hebraica que, ao fim
de cinqüenta anos, dava liberdade ao escravos e fazia com que os bens alienados
tornassem a passar para as mãos de seus primeiros Mestres". Por
essa virtude nova, não somente o homem devia ver desaparecerem em si
as leis do instinto e das afeições dos brutos, mas também
substituí-los pelos direitos e afeições da inteligência.
Não somente devia reconhecer os poderes da ordem e da justiça,
mas também aprender a elevar-se acima da própria justiça,
conduzindo-se por uma lei bem diferente daquela que fora escrita apenas para
os escravos e os malfeitores. Em suma: devia aprender a julgar o verdadeiro
destino de seu Ser, que não fora feito para permanecer preso em amarras,
mas para fazer o bem, como Deus, por natureza, por amor e sem ser movido pelo
sistema das punições e recompensas. Durante o primeiro período
de expiação, o homem, tal como a criança nos laços
cheios de trevas da matéria, certamente experimentava os benefícios
da Sabedoria. Mas, ao receber esses benefícios, como a criança,
sem os perceber nem reconhecer a mão que os derramava sobre ele, era
passivo e seu Ser real e inteligente não saboreava ainda o verdadeiro
alimento, que consiste na atividade e na vida. No segundo período, suas
faculdades mais desenvolvidas deixavam-no em condições de tirar
proveito dos dons a ele prodigalizados. Foi então que Agentes virtuosos
e esclarecidos, colocados junto dele, sujeitavam-no a sacrifícios para
fazê-lo compreender o estado de violência e sujeição
em que toda a Natureza se encontrava com relação a ele, uma vez
que tudo dava a vida por ele. Com isso, os Agentes, o instruíam sobre
o destino das diversas artes do Universo. Ensinavam-lhe que na criação
universal não havia um único Ser que não fosse à
imagem de uma das virtudes divinas, que a Sabedoria multiplicara essas imagens
em torno do homem a fim de que, quando ele lhas apresentasse, ela fizesse, com
relação às virtudes, sair de si mesma uma nova unção,
transmitindo assim ao homem todos os socorros de que precisa e a fim de que,
quando o modelo se unisse à cópia, o homem pudesse possuir a ambos.
Representar-lhe o Universo como um grande Templo, em que os astros são
as tochas, a terra é o altar, os Seres corpóreos são os
holocaustos e o homem é o sacrificador equivale a mostrarlhe seu destino
em cores vivas. Com isso, ele podia recuperar idéias profundas sobre
a grandeza de seu primeiro estado que o chamava a ser no Universo nada menos
que o SACERDOTE DO ETERNO. Porém, apesar dessa luz brilhante, transmitida
ao homem pelos Eleitos do segundo período, quando lhe anunciaram ser
ele o Sacerdote do Eterno, ele não tinha ainda a explicação
desse título sublime. Por mais magnífico que fosse, o quadro das
relações representadas pelos Eleitos oferecia-lhe objetos inferiores
à sua própria natureza. Ele apenas via potências esparsas
e divididas e holocaustos corruptíveis; não via os indícios
de uma oferenda imperecível nem a unidade dos agentes que deviam concorrer
nesse quadro para através deles gozar da plenitude de seus direitos.
Estava, pois, reservado a um terceiro período o fazê-lo adquirir
o conhecimento mais perfeito da verdade e o ensinar-lhe que, se a partir de
simples imagens temporais foi possível fazê-lo descobrir algumas
virtudes superiores, ele não deve impor limite algum às suas esperanças
apresentando à verdade uma imagem emanada dela própria. Pelos
socorros que envia ao homem, essa verdade anima-o com a mesma unidade, garantindo-lhe
a mesma imortalidade. É pois aí que o homem, descobrindo a ciência
de sua própria grandeza, aprende que, quando se apóia numa base
universal, seu Ser intelectual torna-se o verdadeiro Templo; que as tochas que
deviam iluminá-lo são as luzes do pensamento que o cercam, seguindo-o
por toda parte; que o Sacrificador é a confiança que ele tem na
existência necessária do princípio da ordem e da vida, é
a persuasão ardente e fecunda, diante da qual a morte e as trevas desaparecem;
que os perfumes e as oferendas são a sua prece, são o desejo e
o zelo que ele tem pelo reino da exclusiva unidade; que o altar é a convenção
eterna, fundada em sua própria emanação e à qual
Deus e o homem vêm render-se como que de conformidade para renovarem a
aliança de seu amor e nela encontrarem, um, a sua glória, e o
outro, a sua felicidade. Em suma: que o fogo destinado à consumação
dos holocaustos, esse fogo sagrado que jamais deveria apagarse, é o da
centelha divina que anima o homem. Houvesse ele sido fiel à lei primitiva,
esse fogo tê-lo-ia tornado para sempre como uma lâmpada brilhante
e compassiva, colocada na senda do Trono do Eterno, a fim de iluminar os passos
daqueles que se haviam afastado dele, porque o homem não deve mais duvidar
de que recebeu a existência para ser o testemunho vivo da luz e o símbolo
da Divindade. Para melhor nos convencermos de como era necessário que
uma Unidade de virtudes viesse completar diante dos homens o quadro de seu Ser,
apenas ligeiramente esboçado pelas manifestações particulares,
direi alguma coisa sobre os Números. Mas antes devo prevenir que essa
senda é tão vasta que jamais o homem, ou ser algum, a não
ser Deus, poderá conhecer-lhe toda a extensão. Além do
mais, ela é tão respeitável que dela só posso falar
com reservas, seja por ser impossível fazê-lo às claras
e de maneira manifesta em nossa língua vulgar, seja porque ela encerra
coisas às quais não se deve aspirar sem preparo. Entretanto, esforçar-me-ei
para que o homem de desejo me compreenda o quanto lhe for necessário,
nada negligenciando para conciliar sua instrução com a prudência.
Mas, se acontecer que ele não me compreenda, rogo-lhe não consultar,
para seu próprio interesse, sobre o que lhe confio, os Sábios
consagrados na opinião humana, pois eles ressecaram a Ciência não
a usando como substância para si. Só possuem seu esqueleto descarnado,
havendo-se evaporado diante deles os sumos mais nutritivos sem que tivessem
a sabedoria de contêlos. A Ciência é livre. Pretenderam fixar-lhe
leis e interditar ao gênero humano a esperança da descoberta fora
das decisões por eles tomadas, mas ela fugiu deles e eles caminham num
vazio obscuro. Ela é incompressível como a água. Quiseram
comprimi-la: ela partiu as amarras por eles infligidas e eles permaneceram na
aridez. Que o Leitor não se dirija a eles para esclarecer suas dúvidas:
nada mais fariam do que aumentá-las ou substituí-las por coisas
enganosas. Se no que vai ler alguma coisa o embaraçar, concentre-se em
si mesmo e tente, por uma atividade interior, tornar-se simples e natural, não
se irritando se o sucesso se fizer esperar. As suspensões que experimentar
costumam ser os próprios caminhos que o preparam secretamente e que devem
conduzi-lo até ele. Os números são os envoltórios
invisíveis dos Seres, assim como os corpos são os seus envoltórios
sensíveis. Não podemos duvidar de que não haja um envoltório
invisível para os Seres, porque todos eles têm um Princípio
e uma forma. Situados nos dois extremos, ficam a uma distância grande
demais um do outro para poderem unir-se e se corresponderem sem intermediários.
Ora, é o envoltório invisível, ou o número, que
faz as vezes de intermediário. Assim, nos corpos a terra é o envoltório
invisível do fogo, a água é o da terra e o ar é
o da água, embora essa ordem seja muito diferente nos elementos não
corporificados. Não ignoramos que as leis e as propriedades dos Seres
estão escritas nos envoltórios sensíveis: todas as aparências
pelas quais eles se comunicam com nossos sentidos são a expressão
e a própria ação de tais leis e propriedades. O mesmo podemos
dizer dos envoltórios invisíveis, que devem conter e trazer em
si as leis e as propriedades invisíveis do Seres, assim como os envoltórios
sensíveis indicam as propriedades sensíveis. Se estão escritas
neles, a inteligência do homem deve então poder lêlas, assim
como os sentidos lêem ou experimentam os efeitos das propriedades sensíveis
delineadas nos corpos e que age pelo envoltório sensível dos Seres.
Eis o que o conhecimento dos números pode prometer àquele que,
não os tomando como meras expressões aritméticas, sabe
contemplá-los segundo a ordem natural e ver neles os princípios
co-eternos da verdade. Além disso, é preciso saber que, como os
Seres são infinitos e de vários gêneros as suas propriedades,
há também um infinidade de números. Assim, há números
para a constituição fundamental dos Seres; para sua ação,
seu curso, bem como para seu começo e seu fim, caso estejam sujeitos
a ambos. Há o mesmo para os diversos graus da progressão que lhes
está fixada. E são como tantos outros limites em que os raios
divinos se detêm e se refletem em direção ao Princípio,
não apenas para apresentar-lhe as próprias imagens, não
apenas para oferecer-lhe gloriosos testemunhos de sua exclusiva superioridade
e infinidade, mas também para haurirem a vida, a medida, o peso e a sanção
de suas relações com ele. Tudo o que vimos só podem existir
no primeiro Princípio dos Seres. Há também números
mistos para exprimir as diversas uniões e composições de
Seres, ações e virtudes. Há números centrais, números
mediais, números circulares e números de circunferência,
e também números impuros, falsos e corrompidos. E, repitamos,
todas essas coisas indicam os diversos aspectos sob os quais podemos considerar
os Seres e as diferentes propriedades, leis e ações, visíveis
ou invisíveis, das quais não podemos duvidar que eles sejam susceptíveis.
E talvez a verdadeira causa pela qual os números têm parecido tão
quiméricos à maioria dos homens é o hábito dos Calculadores
de derivarem todos os números do zero, ou seja: começarem em suas
divisões geométricas contando a partir de zero antes de numerar
a primeira unidade. Não viram que essa unidade visível e convencional
que se torna a primeira base de suas medidas nada mais é que a representação
da unidade invisível, colocada antes do primeiro grau de todas as medidas,
dando origem a todas, nem que, se foram forçados a representá-la
por um zero, era para exprimir seu inacessível valor e não para
considerá-la como um nada, pois ela é a fonte de todas as bases
sobre as quais o homem pode operar. Vemos aqui que, assim como os números
são infinitos, também é simples e natural a idéia
que devemos ter deles. Ela se tornará ainda mais simples quando observarmos
que a multidão imensa de números, que se subdividem e se estendem
até o infinito, remontam, por uma marcha direta, até dez números
simples, os quais entram nos quatro outros números, e estes na unidade
da qual tudo saiu. Eis o motivo pelo qual, existindo no meio de todos os objetos
da Natureza, temos, no entanto, somente dez dedos, quatro membros e um só
corpo para apalpar os objetos, aproximar-nos deles e deles dispor; "pois
os dedos dos pés têm como objeto o dar-nos flexibilidade, elasticidade
e rapidez na marcha, assim como solidez e força quando estamos firmemente
erguidos: e se, por força do hábito, já vimos homens servindo-se
com sucesso dos dedos dos pés, o exercício forçado para
conseguir isso e as tentativas inúteis de tantos outros, provam suficientemente
que tais dedos não foram dados pela natureza com vista a tal destino:
se trazem o número dez, como os dedos das mãos, é que tudo
se repete, mas com qualidades e propriedades inferiores, segundo a inferioridade
das classes." A alegoria do Livro de dez folhas na Obra já citada
oferece claramente diversas propriedades ligadas aos dez números intelectuais.
Basta acrescentar que de seus diversos conjuntos e combinações
resulta a expressão de todas as Leis e ações de quaisquer
dos Seres, assim como da combinação ativa de diversos Elementos
resulta a variedade infinita das produções corporais e dos fenômenos
elementares. Entre os exemplos que poderia citar, limitar-me-ei a um apenas.
Mas o homem será objeto dele, como o é desta obra e com isso aprenderemos
a julgar os exemplos sobre os quais me calarei e sobre outras propriedades dos
números. Os filósofos antigos nos transmitiram a soma dos quatro
primeiros números, a qual, dando dez como resultado, oferece um meio
natural de ler claramente a imensa virtude do quaternário. Os novos filósofos
contentaramse em lançar o ridículo sobre essas idéias numéricas
sem compreendê-las nem refutá-las. Vimos nesta Obra qual é
o destino original do homem, que devia ser o símbolo e o Ministro da
Divindade no Universo. Vimos também que ele estava marcado com o selo
quaternário. É bem singular que esse sublime destino do homem
se encontre escrito nas expressões dos antigos Filósofos. Pois,
levando-se o número quaternário até o resultado das potências
que o constituem, ele produz dois números, ou duas ramificações
que, reunidas, formam o numero dez, desta maneira:
Ora, encontrando-se o número quatro situado entre a unidade e o número
dez, não parece ter a função de transmitir a unidade até
a circunferência universal, ou zero? Melhor dizendo: não parece
ser o intermediário colocado entre a Sabedoria suprema, representada
pela unidade, e o Universo, representado pelo zero? Eis a figura natural:
Traço aqui
esta figura com caracteres numéricos primitivos, atribuídos aos
árabes, pois foram por eles transmitidos, mas que os Sábios desta
Nação reconhecem pertencer a povos mais antigos. Esses caracteres
que, para os olhos experientes, trazem a marca exata dos mais altos segredos
das Ciências naturais e físicas, foram traçados para os
homens comuns por Sábios e para estes por uma mão ainda mais pura
a fim de ajudá-los a caminhar com passo firme na estrada das verdades.
Não podemos, pois, pela lei dos números e pela figura que acabo
de traçar, convencermo-nos da primeira dignidade do homem, que, correspondendo
do Princípio da luz aos Seres mais distantes dela, era destinada a comunicar-lhes
as suas virtudes. Nesses números encontraremos igualmente a caminhada
pela qual o homem se extraviou. Se, em vez de manter-se no centro de seu posto
eminente, o homem, ou o quaternário, afastou-se da unidade aproximando-se
da circunferência figurada pelo zero, até confundir-se com ela
e nela encerrar-se, tornou-se, a partir de então, material e tenebroso
como ela. Eis a nova figura produzida por esse crime: "No número
de dias necessários para que o feto humano tenha vida não poderíamos
mesmo encontrar vestígios dessa união do quaternário com
o zero? Os Fisiólogos nos garantem que são necessários
cerca de 40 e ainda seria difícil duvidar de que tal tenha sido a fonte
e a conseqüência do pecado do homem, uma vez que esse número
se apresenta aos nossos olhos na reprodução da espécie
humana.45" 45 A gestação humana é contada em 40 semanas.
(N.T.) Observemos, contudo, para confortar a inteligência do Leitor, a
quem essas verdades podem parecer muito estranhas, que não é necessário
aplicar esse número de 40 dias ao crime do homem, pois o vemos reinar
hoje em sua reprodução corporal. O número atual dessa Lei
não passa de uma conseqüência e uma expiação
do número falso que agiu interiormente. Por fim, encontramos ainda nessa
figura simples
uma prova evidente de todos os princípios precedentemente expostos sobre
a necessidade de haver a comunicação das virtudes superiores até
na infeliz morada do homem. De um a dez há vários números
diferentes, todos ligados por um laço particular ao primeiro elo da corrente,
embora tenhamos o direito de separá-los para examiná-los sob um
aspecto particular. Se o quaternário, ou o homem, tinha descido até
a extremidade inferior dessa corrente, ou até o zero, e se, no entanto,
o Princípio supremo o escolheu para seu regime representativo, não
seria necessário que os números, ou as virtudes superiores e intermediárias
entre um e dez, descessem até ele - que não tem o poder de transpor
o limite que lhe está prescrito para remontar até elas - que descessem
até sua circunferência para que ele pudesse recuperar o conhecimento
do que perdeu? Eis aí todas as potências de subdivisão cuja
correspondência com o homem, apoiada nas tradições e alegorias
dos Povos, já expus. Mas isso não basta ainda para a inteira regeneração
do homem: se a Unidade não houvesse penetrado na circunferência
por ele habitada, ele não teria recuperado sua idéia completa
e teria permanecido abaixo de sua lei. Foi preciso também que essa Unidade
fosse precedida por todos os números intermediários porque, como
a ordem foi invertida pelo homem, ele só pode conhecer a primeira Unidade
que abandonou depois de haver conhecido todas as virtudes que dela o separam.
Isso lança uma grande luz sobre a natureza da manifestação
universal, cuja necessidade reconhecemos para o cumprimento dos decretos supremos.
Qualquer que seja o Agente encarregado de realizá-la, é certo
que ele não pôde ser inferior aos Agentes particulares que manifestaram
as faculdades superiores apenas em suas subdivisões e, se os Agentes
particulares, embora reduzidos a virtudes parciais, representaram, no entanto,
as potências da Sabedoria - sem o quê eles teriam sido inúteis
para os seus desígnios - com muito mais razão o Agente universal
devia ser depositário dos mesmos direitos e poderes. Assim, a manifestação
universal das potências divinas, sucedendo-se às leis rigorosas
da justiça que resultariam da subdivisão delas, teve de coroar
todos os bens que o homem podia esperar, fornecendo-lhe a visão das verdades
positivas entre as quais ele teve origem. Ao mesmo tempo, admitamos que bastava
um Agente revestido de tal poder para reerguer o homem da queda e ajudá-lo
a restabelecer a semelhança e as relações com a Unidade
primeira. Se pelo mais elevado dos homens foram gerados todos os males de sua
infeliz posteridade, era impossível que eles fossem reparados por algum
homem dessa posteridade: seria preciso supor que seres degradados, despojados
de todos os direitos e virtudes, fossem maiores do que aquele que era iluminado
pela própria luz; seria preciso que a fragilidade estivesse acima da
força. Ora, se os homens se encontram em estado de fragilidade, se estão
todos ligados pelas mesmas amarras, onde encontrar entre eles um Ser em condições
de romper-lhes e desprender-lhes as correntes? E, em qualquer lugar que esse
homem fosse escolhido, acaso não ficaria forçado a esperar que
lhe viessem partir as suas? Verdade é que, como os homens se encontram
respectivamente na mesma impotência e que, mesmo assim, são todos
chamados por sua natureza a um estado de grandeza e liberdade, só poderiam
ser restabelecidos nesse estado por um Ser igual a eles: o que prova que o Agente
encarregado de lhes apresentar novamente a unidade divina deve ser, por si mesmo,
mais do que o homem. Mas se dirigirmos a vista para acima das virtudes do homem,
encontraremos as virtudes da Divindade da qual o homem foi emanado diretamente
e sem o concurso de qualquer Potência intermediária. Possuindo
mais do que as virtudes do homem, o Agente do qual falamos não pode ter
menos do que as virtudes de Deus, visto que nada existe entre Deus e o homem.
É preciso admitir então que, se a Virtude divina não houvesse
doado a si mesma, jamais o homem teria recuperado o conhecimento dela. Assim,
jamais lhe teria sido possível remontar ao ponto de luz e de grandeza
para onde os direitos de sua natureza o haviam chamado. Assim, o selo do grande
Princípio teria sido impresso em vão em sua alma. Assim, esse
grande Princípio teria falhado no mais belo de seus poderes, o amor e
a bondade, pelos quais não deixa de conseguir para o homem os meios de
ser feliz. Esse grande Princípio teria sido frustrado em seu decretos
e na convenção indelével que liga todos os Seres a ele.
Quando declaro que nada há entre o homem e Deus, digo-o na ordem de nossa
verdadeira natureza, na qual veramente nenhum outro poder, além do poder
do grande Princípio, devia dominar-nos. No estado atual, há realmente
alguma coisa entre Deus e nós: e é a falsa maneira de ser, a transposição
de poderes que, imprimindo em nós a desordem universal, causa o nosso
suplício e o horror da nossa situação passageira no tempo.
Nova razão para a Virtude divina ter-se aproximado de nós a fim
de restabelecer a ordem geral, reconduzindo todos os poderes às suas
posições naturais, restabelecendo a Unidade primitiva; dividindo
a corrupção que se reunira no centro, distribuindo as virtudes
do centro para todos os pontos da circunferência, ou seja, destruindo
as diferenças. É uma verdade, ao mesmo tempo profunda e humilhante
para nós, que aqui no mundo as diferenças sejam as únicas
fontes dos nossos conhecimentos, uma vez que, se é delas que derivam
as relações e as distinções entre os Seres, são
essas mesas diferenças que nos privam do conhecimento da Unidade, impedindo
que dela nos aproximemos. Ora, sentimos que se a Virtude divina não houvesse
dado os primeiros passos, o homem jamais teria esperado retornar a essa Unidade.
De duas Virtudes separadas, como iria a mais fraca, a totalmente impotente,
remontar sozinha e por sua conta ao seu termo de reunião? E sem o Agente
universal, o homem bem teria sabido, através das as manifestações
anteriores, que havia potências e virtudes espirituais, porém jamais
teria sabido, por experiência, que havia um Deus, já que somente
a Unidade de todas as suas virtudes é que poderia fazer com ele o conhecesse.
Assim, reconheçamos com confiança que o Agente depositário
de todos os poderes, seja qual for o nome que lhe dermos, deve ter possuído
o conjunto de todas as virtudes supremas, que antes dele jamais se haviam manifestado,
a não ser em sua própria divisão; que esse Agente teve
de levar consigo o caráter e a essência divina e que, penetrando
na alma dos homens, pôde fazê-los sentir o que é o Deus deles.
E aqui eu lembraria a figura precedente, que representa o estado de privação
em que todos nós padecemos por estarmos separados do nosso Princípio.
Veremos que, aproximando-se os caracteres e fazendo a unidade penetrar no quaternário
do homem, desse modo, [figura: círculo, dentro dele o 4 com a unidade]
fica restabelecida a ordem universal, uma vez que os três caracteres se
acham em sua progressão e harmonia naturais. Essa ordem certamente existia
quando mesmo da subdivisão desses tipos, pois é indestrutível,
mas aí só existia horizontalmente, ou em latitude, enquanto que
na figura que os reúne aqui no mesmo ponto e no mesmo centro, ela existe
segundo o seu verdadeiro número e sua verdadeira lei, que é a
perpendicular. Por fim, para falar sem mistérios, foi nessa época
que o Grande NOME dado aos hebreus teve toda ação. Sob a lei da
justiça ele agira exteriormente: era preciso penetrar no centro para
operar no homem a explosão geral da qual seu ser intelectual é
suscetível e libertá-lo do estado de concentração
ao qual fora reduzido pela queda. De acordo com as idéias profundas apresentadas
por essas demonstrações, não nos admiremos das diferentes
opiniões nas quais os homens se detiveram a respeito do Agente universal.
Seja qual for a idéia que deles hajam formado, nada há relativamente
a virtudes, dons e poder que não tenham encontrado nele. Uns dizem que
era um Profeta; outros, um homem profundo no conhecimento da Natureza e dos
Agentes espirituais; outros, um Ser superior; outros, por fim, uma Divindade.
Todos tiveram razão, todos falaram de conformidade com a verdade e todas
essas variedades provêem apenas das diferentes maneiras como os homens
se colocam para contemplar o mesmo objeto. O erro cometido pelos primeiros foi
o de querer tornar exclusivo e geral o ponto de vista particular que a eles
se apresentava; o dos segundos, o de não se proporcionarem à fragilidade
de seus Discípulos e de quererem fazê-los admitir, sem o concurso
da inteligência, as verdades mais fecundas que o espírito do homem
possa abranger. Os diferentes graus de Ciência e de vontade são
então as únicas causas da diversidade das opiniões que
reinam entre os homens a respeito desse grande objeto. Existem aqueles para
quem o Agente veio, outros para quem ele vem e outros para quem ele não
somente não veio, mas também para quem não vem ainda. Os
mesmos princípios expostos nos ajudaram a descobrir qual deve ter sido
a época conveniente à manifestação desse Agente.
Pois se ele foi colocado pela Sabedoria suprema para a cura dos males ligados
à esfera estranha e cheia de trevas que habitamos, deve ter seguido todas
as suas leis. Segundo a ordem física, uma doença só se
cura depois que o remédio penetrou na própria sede da vida, no
centro do Ser. É o que se vê com evidência na maior parte
das desordens corporais, que só são perfeitamente remediadas pela
purificação do sangue. Mas o sangue é o centro dos corpos
animais, o seu princípio corporal mais interior, pois, cercado dos outros
princípios, pode ser considerado como no centro da circunferência
animal, de onde envia as emanações de sua própria vida
às subdivisões corporais mais extremas. Foi então preciso
que o Agente universal, encarregado da grande obra da regeneração
das Potências, penetrasse as substâncias mais íntimas de
todo ser impuro, que comunicasse seus poderes ao próprio centro das coisas
temporais, que por esse efeito surgisse no meio do tempo - como no meio das
ações dos seres emanados - a fim de agir com mais eficácia
e ao mesmo tempo sobre o centro e sobre a vida de todas as circunferências.
Se desejássemos conhecer uma época positiva e determinada sobre
essa manifestação, seria bem possível descobri-la ajuntando-se
várias noções esparsas nas Tradições do hebreus.
Seria necessário nos lembrarmos de que as suas Escrituras nos ensinam
sobre a lei temporal senária que dirigiu a criação das
coisas e sobre a Lei santa e setenária que lhe fez o complemento. Seria
preciso compreender o sentido da passagem que declara que mil anos são
para Deus como um dia, pois não parece que os que a empregaram em seus
discursos e os que a combateram a tenham compreendido, uns melhor do que os
outros. Seria necessário conhecer a relação de todas essas
expressões, seja com o número ternário e aparente dos elementos
corporais, seja com o número real da unidade do Princípio. Veríamos
que as leis e as ações superiores estão designadas nos
números ou envoltórios intelectuais dos Seres, com tanta clareza
quanto as leis materiais nos corpo. Mas como seria preciso que o Leitor tivesse
noções muito detalhadas sobre tais assuntos, seria inútil
oferecer-lhe, sobre eles, resultados que permaneceriam nulos para a sua instrução,
até que ele mesmo tivesse certeza. Eu me contentaria de levá-lo
no caminho, falando-lhe ainda do número quaternário, cujas propriedades
mostramos acima. O homem, a quem convém de maneira especial o número
quaternário, foi emanado para ocupar o centro intermediário entre
a Divindade e o Universo. Pela queda, foi precipitado numa circunferência
muito inferior à que ocupava antes. Porém, como sua natureza não
mudou apesar da degradação, ele teve de ocupar o centra da nova
região, como havia ocupado o da antiga, e isso porque, a qualquer grau
que os Seres desçam, seu caráter se conserva e se manifesta. Se
na queda o homem ainda ocupou um centro, sempre trouxe em si o seu número
primitivo e quaternário, alguma alteração que esse número
deve ter sofrido pela oposição de uma região que lhe é
tão contrária. Se o homem, conservando seu número quaternário,
ocupe ainda um centro na própria morada da confusão que habita,
o Agente universal, encarregado de apresentar-lhe seu modelo, teve de fazer
isso de conformidade com todas as leis. Ou seja: que, surgindo no centro do
tempo, ele teve de imprimir o número quaternário até sobre
a época de sua manifestação temporal, sendo o quaternário
dos tempos e o centro dos tempos uma única coisa. "Realmente, o
quaternário, que dirige necessariamente a grande obra, deve dirigir-lhe
as conseqüências, assim como lhe dirigiu as diferentes preparações.
Pois esse número, que se liga ao mesmo tempo à expiação
e a regeneração, estende-se ou se restringe, em razão do
objeto que os seres têm a cumprir. O primeiro homem caminhou por quarenta
para conseguir a remissão de sua falta e a reconciliação
da posteridade temporal. Jacó caminhou por quarenta para conseguir a
reconciliação de sua posteridade espiritual. O Libertador dos
hebreus caminhou por quarenta para conseguir a libertação de seu
Povo. O grande Regenerador preparou a reconciliação universal
por um quádruplo cubo decenário, porque, sendo o eixo, o centro
e o primeiro de todos os tipos, somente a ele convinha a obra do meio dos tempos,
pela qual ele abrangia os dois extremos como depositário do complemento
de todos os números." Desde sua chegada, esse número de ação
quaternária se simplifica e se simplificará cada vez mais em razão
das futuras oposições extremas pelas quais será necessário
que o homem possa regenerar-se em menos tempo do que pelo passado. Essa progressão
irá diminuindo até que o quaternário aja de maneira tão
rápida e instantânea que acabe confundindo-se na unidade da qual
saiu. É então que as coisas temporais acabarão e que o
amor e a paz reinarão no coração dos homens de desejo.
Se refletirmos sobre o número Sabático, ou Setenário, que
completou a origem das coisas, ficaremos sabendo que esse mesmo número
deve completar-lhe a duração e que, sendo quatro o centro dos
tempos, é também o centro de sete. Mas evitemos numerar o curso
temporal da sétima ação, como o das seis outras ações
que a antecedem. Por não cair exclusivamente nos corpos, ela se furta
aos nossos cálculos, e seria impossível ao homem marcar-lhe o
termo, porque ela é governada por números superiores dos quais
ele não saberia dispor. Temos aqui algo em que exercer a inteligência,
mas temos também algo com que compensá-la pelos esforços
que lhe restam fazer para ter certeza da idade e da antigüidade do mundo.
Tudo o que posso dizer é que, para calcular esse ponto com exatidão,
é preciso tomar como escala o ano terrestre. Por que, irão perguntar-me,
tomar como escala o ano terrestre, em vez dos dias, semanas, meses, e até
mesmo as revoluções de um outro planeta além do nosso?
É que, como o tempo é a expressão de seis e uma ações
primeiras e constitutivas da Natureza, seria preciso que nesses períodos
e épocas especiais ele tivesse uma relação direta com ela;
seria preciso que nos apresentasse quadros reduzidos, porém completos
e proporcionais ao grande quadro da origem do Universo, de sua duração
total e destruição. Ora, sabemos que o ano terrestre é
o período que representa com mais exatidão os grandes traços
do Princípio das coisas, pois nesse curto espaço ele nos mostra
a imagem de tudo o que foi, de tudo o que é e de tudo o que será;
o único período cujo curso encerra para nós a vegetação,
a criação e a destruição universais, a verdadeira
repetição de todas as coisas passadas, presentes e futuras, reunindo
todos os tipos e épocas, materiais ou imateriais, concedidas à
inteligência do homem para fazê-lo renascer e ajudálo a sair
de seus abismos. Diz-se que esse período é o mesmo de todas as
revoluções terrestres, que é o verdadeiro cálculo
da terra e que no seu período particular a terra pinta em ação
viva todos os traços do período geral. Não é preciso
mais do que isso para demonstrar que o ano terrestre é o número
simbólico do período universal e que, como tal, torna-se a base
de nossos cálculos. E isso mesmo é o que poderia vingar a terra
pelo desprezo que lhe votaram os homens ignorantes, que na sua pouca extensão
quiseram ver motivos para desdenhá-la com relação ao Universo.
Se a terra não estivesse mais ligada do que qualquer outro Ser corporal
às leis e Princípios primeiros que dirigiram e criaram todas as
coisas, não traria, de modo tão claro como o faz, o seu número
e todos os seus caracteres. Quanto à revivificação ligada
ao ato universal, central e quaternário, temos dela sinais indicativos
nas Tradições dos hebreus sobre a origem do Universo. Ensinam-nos
que o Sol foi formado no quarto dia e que antes disso nenhum ser animalmente
animado tinha vida. Foi o seu fogo de reação que concorreu para
fazer sair do seio da terra e das águas todos os Seres corpóreos
que habitam o Universo material. Por esse quadro, isso não nos declara
que, tornando-se o homem pecador e sujeito ao tempo, só recobraria sua
verdadeira luz na época quaternária da duração das
coisas temporais? Não fixa o número dessa luz e traça a
lei pela qual ela se dirigiu e se dirigirá eternamente? É por
isso que a Lei dada ao Povo hebreu só estendia a punição
dos pecados até a quarta geração. Ora, o Reparador universal,
surgindo na quarta idade do Universo, satisfazia plenamente à Lei, podia
nessa época consumar a expiação universal das prevaricações
de toda a posteridade dos homens. Por conseqüência, podia realizar
a expiação das máculas e da ilegitimidade de seus próprios
antepassados e a de todas as maldições a que seu ministério
podia expô-la por parte dos homens. Entretanto, desejo apresentar a formação
do Sol no quarto dia como o sinal profético de um acontecimento previsto
então, visto que, de acordo com muitos, o pecado que a ocasionou não
podia ser previsto sem que o Autor das coisas fizesse dele o pró e o
contra e participasse no erro de sua criatura? Não devo, de preferência,
apresentar essa formação do Sol no quarto dia como uma simples
confirmação da ação do número quaternário
- que devia ser completa antes que o homem culpado e cheio de trevas pudesse
recuperar a vida de seu Ser intelectual - assim como os animais permaneceram
na inércia e, por assim dizer, no nada até o momento em que o
Sol elementar veio dar impulso à ação que lhes era própria?
É fora de dúvida que, se já foram cometidos tantos erros
sobre a presciência divina, é que aqueles que disputam sobre esses
objetos confundem duas ordens de coisas muito diferentes: a ordem visível
das coisas corruptíveis em que vivemos e a ordem das coisas incorruptíveis,
que era a da nossa verdadeira natureza. Em lugar de fazerem essa importante
distinção, imputam à Sabedoria suprema um concurso universal
com nossas obras, que ela tem, talvez, por alguns de nós em nosso estado
atual, no qual estamos ligados às ações variadas dos Seres
não livres, mas que não saberíamos imputarlhe no nosso
estado primitivo sem injuriá-la nem desnaturar-lhe todas as Leis. Não
nos detenhamos por mais tempo nessa questão. Ela está entre aquelas
que são inúteis e perigosas de tratar pelo raciocínio separado
da ação. Devemos agir para conseguir bases de meditação
e não meditar antes de termos conseguido essas bases. Sem isso, cada
um erra no vazio e no espaço cheio de trevas. Cada um apreende um sentido
particular que, por ignorância e leviandade, quer generalizar. Tudo se
obscurece porque tudo se divide. Tudo se aniquila porque o homem reduzido a
si mesmo esgota suas forças e nada recebe para renoválas. Eis
de onde provêem os Cismas, as Seitas, ou seja: o nada. Uma das grandes
ciências é saber deter-se oportunamente. Limitemo-nos então
a reconhecer que o Agente universal, surgindo no meio dos tempos, numa época
quaternária, e dando ao homem a verdadeira reação de que
precisava, colocou-o em condições de entrar em seu antigo domínio
e de percorrer-lhe todas as partes. Se o corpo do homem lhe apresenta dois diâmetros,
se com isso esse corpo é um símbolo perecível da medida
universal, seu Ser intelectual, que depende do princípio infinito, está,
com muito mais razão, revestido do sinal quaternário que participa
do infinito e com o qual pode medir eternamente todos os Seres. Mas os dois
diâmetros corporais do homem estão, por assim dizer, confundidos,
insensíveis, desfigurados e sem ação no seio da mulher
até o momento em que, alcançando a luz elementar, lhe é
permitido desenvolvê-los. Isso nos indica então que a medida quaternária
do homem intelectual estava restringida e como que nula desde que ele cometera
a desordem; e que ela só poderia estender-se e desenvolver-se na época
da grande luz, época em que as virtudes da Unidade sensibilizaram a si
mesmas, a fim de fluir nos quatro canais que formam o caráter hieroglífico
do homem. Essa época fornece, pois, ao homem os meios positivos de exercer
por sua vez a mesma reação sobre tudo o que ainda lhe é
obscuro e oculto. E nada mais há nas leis e na natureza do Seres que
possa recusar-se ao seu império, uma vez que os Seres são subdivisões
da medida universal e dependem todos parcialmente do grande quaternário.
Mas para que o desenvolvimento universal produzisse semelhantes efeitos, teve
de operar-se no meio do tempo universal e no meio do tempo particular, a sua
representação abreviada e que divide em quatro o curso da Lua.
O Agente encarregado dessa obra teve de completá-la não somente
entre a Lua nova e a Lua cheia, mas ainda no meio de um período setenário
de dias, submúltiplo do período lunar. Foi, ao mesmo tempo, no
centro de uma semana, no centro do mês periódico da Lua e no centro
do curso universal da Natureza que esse Agente divulgou aos homem a Lei secreta
a eles velada desde o exílio nessa morada de expiação a
fim de que, agindo virtualmente nesses três centros, abrisse a passagem
às virtudes das três faculdades supremas, as únicas que
podem revivificar os três órgãos intelectuais do homem e
conceder a audição, a vista e a palavra à sua inteira posteridade.
É nessa época tríplice que ele teve de entrar no Santo
dos Santos, vestir-se com o Éfode, a Túnica de linho, o peitoral,
a Tiara usada pelo Sumos Sacerdotes em suas funções, e que eram
para eles o símbolo das verdadeiras vestes com as quais um dia o Regenerador
deveria cobrir a nudez da posteridade humana. Nesse ponto, ele teve de desenvolver
a Ciência aos olhos daqueles que havia escolhido. Teve de restabelecer
diante deles as palavras apagadas no velho Livro confiado outrora ao homem e
pelo homem desfigurado. Teve até de dar-lhes um novo Livro mais extenso
que o primeiro para que com isso aqueles que a quem ele fosse transmitido pudessem
reconhecer e dissipar os males e as trevas com que a posteridade do homem estava
envolvida e ainda aprendessem a evitá-las e a se tornarem invulneráveis.
Nesse ponto, ele teve de preparar o perfume antigo do qual se fala no livro
do Êxodo, composto de quatro aromas de peso igual, e que os Sacerdotes
só podiam usar no Templo, sob as mais rigorosas proibições.
Teve de encher o incensário sagrado e, depois de haver perfumado todas
as regiões do Templo, teve de convencer os Eleitos de que eles nada podiam
fazer sem esse perfume. Por fim, sua obra teria sido inútil para eles
se ele não os houvesse iniciado em seus conhecimentos, ensinando-lhes
a colher eles mesmos esses quatro preciosos aromas, a com eles comporem por
sua vez esse mesmo perfume incorruptível e a extraírem dele as
exalações puras que, por causa de sua viva salubridade são
destinadas, desde a origem da desordem, a impedir a corrupção
e a sanear todo o Universo. Pois o Universo é como um grande fogo aceso
desde o início das coisas para a purificação dos Seres
corrompidos. Seguindo a lei dos fogos terrestres, ele começou cobrindo-se
de fumaça. Em seguida a chama desenvolveu-se e deve continuar, de maneira
imperceptível, a consumir todas as substâncias materiais e impuras
a fim de retomar sua primeira brancura e devolver aos Seres as suas cores primitivas.
É por isso que na ordem elementar, depois a chama de ter irrompido, depois
de ter-se elevado acima das matérias combustíveis, continua a
dissolvêlas delas até a destruição total. É
por isso que, à medida que foi atraindo a si todos os Princípios
de vida das matérias, que as libertou, unindo-as à sua própria
essência, eleva-se com eles nos ares concedendo-lhes a existência
livre e ativa da qual não desfrutavam no corpo. Como eles, o Chefe Universal
de todos os Instituidores espirituais do culto puro e sagrado teve de reapresentar
na terra o que acontece na classe superior. E isso de conformidade com a grande
verdade de que tudo o que é sensível é apenas a representação
daquilo que não o é, e que toda ação que se manifesta
é a expressão das propriedades do Princípio oculto ao qual
pertence. O Eleito universal deve até ter cumprido essa Lei de maneira
mais eminente do que todos os Agentes cuja obra acabava de completar, uma vez
que estes somente haviam mostrado na terra o culto de justiça e de rigor,
e que ele próprio vinha trazer-lhe o culto de glória, de luz e
de misericórdia. Assim, em todos os atos e no culto que exerceu, ele
teve de demonstrar tudo o que se realiza na ordem invisível. Do alto
de seu trono, a Sabedoria divina não deixa de criar os meios para a nossa
reabilitação. No mundo, o regenerador universal não deve
ter deixado de cooperar no consolo corporal e espiritual dos homens transmitindo-lhes
diversos dons, relativos à própria preservação e
à de seus semelhantes, ensinando-lhes a afastarem de si as armadilhas
que o cercam e a se preencherem com a verdade. Do alto de seu trono, a Sabedoria
divina não deixa de atenuar o mal que cometemos e de absorver nossas
inquietações na imensidão de seu amor: no mundo o Regenerador
universal perdoou os culpados e, quando os acusaram diante dele, mostrou que
absolvê-los seria uma obra muito maior do que condená-los. Por
fim, do alto de seu trono, a Sabedoria divina concede suas próprias potências
e virtudes para anular o tratado pecaminoso que submeteu toda a posteridade
do homem à escravidão: no mundo, o Regenerador universal teve
de dar seu suor e sua própria vida para que pudéssemos conhecer
de maneira sensível as verdades sublimes e para nos arrebatar à
morte. É assim que a ordem visível e a ordem invisível,
movidas por uma correspondência íntima, apresentam aos homens a
unidade indivisível do móvel sagrado que tudo faz agir. Para a
Inteligência nada mais há, inferior ou superior, entre os poderes
supremos. Em todas as partes da grande obra ela não vê mais do
que um único fato, um único conjunto e, por conseguinte, uma única
mão. É uma verdade indubitável que tais fatos jamais teriam
acontecido ao homem se aquele que vinha realizá-los não houvesse
permanecido em junção, em todos os atos de seu ministério,
com a Unidade, com à está eternamente ligado por sua essência.
Do mesmo modo, as manifestações possíveis das potências
divinas que a Sabedoria envia para o socorro do homem seriam nulas para ele
se houvesse a menor separação, a menor divisão entre essas
potências: estando o homem no último elo da corrente, jamais veria
chegarem até ele as virtudes da extremidade superior se alguns dos elos
intermediários fossem rompidos. E para afirmar nossa confiança,
seja sobre a união necessária das virtudes com o Princípio,
seja sobre a possibilidade em geral de todas as manifestações
de que falei, lembrarei aqui que a matéria, embora verdadeira com relação
aos corpos e aos objetos materiais, é aparente para o intelectual; que
em razão dessa aparência as ações superiores podem
alcançar-nos e que podemos elevar-nos até elas. Isso seria impossível
se o espaço que nos separa fosse fixo, real e impermeável. Assim
também não haveria intercâmbio algum de influências
entre a terra e os astros se o ar entre eles não fosse fluido, elástico
e compressível. Toda recompensa que desejo daquele a quem revelo essas
verdades é que ele medite sobre as leis da refração, que
observe que ela é maior em razão da densidade dos meios e que
assim reconheça que o objeto do homem na terra dever ser o de empregar
todos os direitos e toda a ação de seu Ser para rarefazer, o quanto
puder, os meios que se situam entre ele e o verdadeiro Sol, a fim de que, estando
como que nula a oposição, a passagem seja livre e que os raios
da luz cheguem até ele sem refração. Devemos ver que o
próprio homem, embora separado da Sabedoria da qual hauriu a vida, só
o está relativamente a si mesmo, e de modo algum aos olhos da suprema
Inteligência que, abrangendo a universalidade dos Seres e sendo a única
a lhes dar a existência, demonstra a impossibilidade existir um ser que
lhe seja desconhecido. Mas desde que, apesar de nossas máculas e nossa
degradação, não podemos jamais subtrairnos à visão
íntima, inteira e absoluta do grande Princípio, talvez ele estivesse
menos distanciado da nossa visão do que julgamos se, para percebermos
a sua presença, seguíssemos caminhos mais verdadeiros e menos
obscuros. Talvez todos os obstáculos fossem nulos e insensíveis
se, para restabelecer nossas relações com ele, empregássemos
todos os esforços que empregamos para destrui-las. Se tais relações
são o privilégio das Potências puras que a Sabedoria queira
comunicar-nos, é que essas Potências, não as alterando como
nós por uma marcha desregrada, permanecem unidas à Sabedoria por
sua própria vontade, como o são por sua essência, e conservam
assim a unidade de suas faculdades e correspondências com ela. Devemos
então concordar em que as manifestações superiores, cuja
necessidade sentimos para nos apresentarem novamente os direitos de nossa primeira
Natureza, só apresentam separação relativamente a nós
que estamos cerceados em limites estreitos e que, pela fragilidade de nossos
olhos, só vemos uma parte do quadro, ao passo que aquele que o mantém
na mão vivifica-o, contempla-o e o vê sempre por inteiro. Assim,
tudo está ligado por Deus, tudo se relaciona, tudo existe em conjunto.
Todas as virtudes, inerentes a ele ou dele emanadas, todos os seres por ele
escolhidos, todos os homens que ele fez nascer e todos os recursos que empregou
desde a origem das coisas e que empregará até o seu fim e na eternidade
de si mesmo, estão sempre presentes diante dele. De outro modo, sua obra
seria perecível; ele só produziria seres mortais e qualquer coisa
poderia ser subtraída à sua universalidade. Devemos repetir também
que a vontade falsa do Ser livre é a única causa que pode excluí-lo
da harmonia universal da Unidade, pois ele depende sempre dessa Unidade por
sua natureza. Daí resulta que, ao se esforçar para imitar as potências
puras que manifestam diante dele as virtudes divinas, unindo-se a sua vontade
à vontade do grande Princípio, ele desfrutaria como elas de todas
as suas relações com esse Princípio. Seria semelhante a
ele pela indestrutibilidade de seu Ser, fundada sobre a lei de sua emanação;
estaria englobado na harmonia de todas as faculdades divinas. E entre todas
as virtudes que a Sabedoria lhe faz manifestar, não nenhuma haveria que
não lhe fosse conhecida e da qual não pudesse desfrutar: de outro
modo ele não conheceria a sua unidade. Como o amor pela felicidade dos
Seres é especialmente a essência da Sabedoria, quando ela faz as
potências divinas subdivididas e a sua própria potência chegarem
até nós, tem como objeto conduzir-nos à unidade harmônica,
na qual todos os Seres podem desfrutar da plenitude da própria ação.
Ela semeou essas virtudes ao nosso redor a fim de nos levar a recolhê-las,
a ajuntá-las e fazer delas o nosso alimento diário. Em suma: a
compor com elas uma unidade, aproximando os tempos e as distâncias que
a mantêm afastadas e desviando delas todos os obstáculos e véus
que a ocultam aos nossos olhos, impedindo-nos de percebê-las. Assim todas
as virtudes divinas, ordenadas pelo grande Princípio para cooperarem
na reabilitação dos homens, existem sempre ao nosso redor e junto
de nós, não deixando jamais o recinto em que estamos encerrados
- assim como as criações da Natureza elementar cercam continuamente
nossos corpos, sempre prontas a nos transmitirem suas propriedades salutares,
a nos curar e até mesmo a nos preservar de nossas enfermidades se nossas
visões falsas e contrárias a essa Natureza não nos afastassem
com tanta freqüência do conhecimento de seus tesouros e dos frutos
que poderia obter. Assim, sem os obstáculos que nós mesmos contrapomos
às ações benéficas do grande Princípio, não
haveria nenhuma dessas virtudes que pudéssemos colher e da qual pudéssemos
apropriar-nos, se assim podemos dizer, como poderíamos apropriar-nos
de todas as virtudes das substâncias salubres da Natureza elementar. Assim,
sem a depravação ou a fragilidade de nossa vontade, não
estaríamos separados de todos os Seres e Agentes salutares - cujos benefícios
estão consagrados nas diferentes Tradições - apenas na
aparência, ficando mais perto deles na realidade. Todas as obras do grande
Princípio nos estariam presentes, e desde o princípio dos tempos
até agora, nenhum Ser, nome, potência, feito ou Agente permaneceria
desconhecido de nós, de modo que os Eleitos que operaram na terra a seqüência
de fatos a nós transmitidos pelas Tradições dos Povos.
Todas as suas luzes, conhecimentos, nomes, sua inteligência e suas ações
compor-nos-iam um único quadro, um único ponto de vista, um único
conjunto, com detalhes destinados à nossa instrução e submetidos
ao nosso uso. Isso demonstra quão inúteis os Livros seriam se
fôssemos sábios, pois os Livros são coletâneas de
pensamentos e vivemos em meio a pensamentos. Realmente, se tudo é necessariamente
ligado, inseparável, indivisível, como que provindo da essência
divina; se as virtudes que emanam do grande Princípio estão sempre
unidas e numa correspondência perfeita e íntima, é evidente
que o homem, não podendo aniquilar nem mudar a própria natureza
- que o liga necessariamente à unidade universal - nunca deixa de estar
em meio a todas as virtudes divinas enviadas no tempo. É evidente que
está cercado por elas, que não pode dar um passo nem fazer um
movimento sem se comunicar com elas, que não pode agir, pensar e falar
na solidão mais profunda sem tê-las por testemunha, sem ser por
elas visto, ouvido e tocado. E, se entre ele e elas não houvesse o fruto
de sua vontade covarde e corrompida, ele as conheceria tão intimamente
como elas o conhecem, teria sobre elas os mesmos direitos que elas têm
sobre ele. E não iremos longe demais ao afirmar que ele poderia estender
seus privilégios até conhecer, de maneira visível, Fohi,
Moisés, o próprio Regenerador universal, uma vez que esse privilégio
abrange de maneira geral todos os seres que desde o princípio dos tempos
foram convocados à terra. Que razão nos impediria até mesmo
de crer que, sem estar corrompida a nossa vontade, teríamos direitos
semelhantes sobre os grandes fatos e as grandes ações vindouras?
Se nossa natureza nos chama para participar nas propriedades da unidade, não
devemos, como ela, abranger todos os espaços e tempos, por estarmos,
como ela, acima de tudo o que é passageiro e temporal? Sim, se é
verdade que na nossa essência estamos inseparavelmente ligados à
unidade, devemos estar ligados em todos os fatos que lhe são próprios,
nos que existiram antes dos tempos, nos que existirão até o fim
do tempos, nos mesmos que acontecerão depois da dissolução
e do desaparecimento das coisas aparentes e compostas. Pois não dependeríamos
mais da Unidade se nossos direitos fossem apenas parciais e não pudéssemos
contemplar-lhes o conjunto em todos os detalhes do espetáculo da imensidade.
Vemos, com isso, como se simplifica a idéia que temos dos Profetas. Sua
glória e suas luzes deveriam ser a de todos os homens. Todos os homens
são profetas por natureza. É a sua fragilidade e a sua depravação
que os impede de manifestarem esses privilégios. A etimologia desse nome
prova-o. Os hebreus exprimiam-no por Roëh, particípio do verbo Raah,
ele viu. Assim chamavam os profetas de Videntes. Assim podemos derivar daí
os direitos e as virtudes dos Reis, a quem, segundo o verdadeiro significado,
deveria pertencer principalmente a qualidade de Vidente. Assim o primeiro Rei
de Israel recebeu seus títulos e sua autoridade do Vidente Samuel, porque
então os Chefes temporais dos hebreus eram Videntes, como o homem o era
em seu primeiro estado e como sua posteridade deveria ter sido. Por fim, os
dois mundos estão cheios de tesouros, nascidos ou por nascer, que se
manifestam de acordo com a vontade do homem quando ele é sábio.
Se existe um Seminal universal em ambos, esse Seminal é sem limites,
sem número e sem fim. Para produzir e se mostrar só espera um
choque ou uma razão conveniente, e essa razão é a pureza
dos desejos do homem. Pode ele, pois, queixar-se de sua ignorância, pode
ter males e penas uma vez que a todo instante tem o poder de instruir-se ou
de rogar com eficácia ao seu Deus? Quanto ao mais, os que não
quiseram crer nas próprias almas, porque nelas não lhes seria
mostrado tudo o que lhes dizem que deve estar, demonstrariam com isso bem pouca
inteligência. Realmente, mostrá-la no estado de trevas em que se
afundam não seria mostrá-la. Mas, antes de garantir que as maravilhas
que lhes atribuímos não são encontradas nessa alma, seria
preciso que eles houvessem feito alguns esforços para procurá-las,
e talvez esses esforços as teriam feito nascer. Talvez reconhecessem
que não lhes seria tão difícil, como pensam, tornarem-se
felizes e que, se quisessem sê-lo, bastaria que falassem. Aqui apresenta-se
uma questão importante: saber quais são os meios sensíveis
empregados pelo Agente universal para apresentar de maneira visível a
unidade de suas virtudes ao Universo no meio dos tempos e no centro de todas
as imensidades temporais, universais e particulares. Mas sobre esse assunto
eu pouco diria. Não ficou esquecido que virtude superior alguma ou pensamento
algum chega junto ao homem sem condensar-se, por assim dizer, e unir-se às
cores sensíveis da região que habitamos, observando-se, todavia,
que seguem as Leis terrestres sem serem por elas comandados, e que as dirigem
e aperfeiçoam, em vez de permanecerem ligados e encerradas por suas ações
passivas. Nem ficou esquecida a dignidade da forma do homem. Assim, basta saber
que o Agente universal teve de seguir a lei comum a todos os Agentes que se
haviam manifestado. No entanto, acrescentemos que, assim como por sua Natureza
divina ele congregou em si as virtudes intelectuais dos Agentes que o tinham
precedido, também a sua forma corporal teve de encerrar as virtudes subdivididas
e contidas em todos os corpos do Universo. Acrescentemos ainda que, segundo
a obra já citada, se é verdade, que o primeiro homem terrestre
não teve mãe - pois que antes dele nenhum corpo material havia
existido - era necessário que o único que podia transmitir a luz
à sua posteridade não tivesse pai. E isso não nos surpreenderá
se penetrarmos no conhecimento do Princípio que primitivamente formou
esses corpos. Por fim, como o primeiro homem colocou o mal ao lado do bem, era
necessário que o Ser regenerador colocasse o bem ao lado do mal a fim
de equilibrar o peso e ação do pecado e completar os temos da
proporção. Ora, a matéria à qual o homem se uniu
de maneira criminosa não será a fonte do erro e dos padecimentos
por ele experimentados? Não o mantém ela como que acorrentado
entre as substâncias que na ordem sensível lhe apresentam todos
os signos da realidade, mesmo não tendo símbolo para seu Ser pensante?
Ao se unir voluntariamente e de maneira pura a uma forma sensível, o
Regenerador universal agiu de maneira oposta, ou seja: apresentou aos olhos
da matéria todos os indícios da imperfeição e da
fragilidade da qual ela é susceptível, sem que quaisquer dessas
fontes de corrupção chegassem até ele. Em suma: se a matéria
havia encantado o homem e subjugado os olhos de seu espírito, era preciso
que o regenerador universal encantasse a matéria e demonstrasse o seu
nada, fazendo reinar diante dela o verdadeiro, o puro e o imutável. Assim,
de conformidade com as leis, ele só se mostrou na terra para retratar
ao homem a própria situação e traçar-lhe a história
inteira de seu Ser. Ou seja: se o Regenerador apresentou ao homem o quadro de
seu estado misto e degradado, manifestou-lhe também o de seu estado simples
e glorioso. E para esse fim, é preciso que sua morte haja operado nele,
diante dos homens, uma separação visível das substâncias
que nos compõem a fim de que, por essa visível análise
não tenhamos dúvida de esse amálgama impuro é formado
hoje pela união de um princípio superior e sublime com um princípio
terrestre e corruptível. "Em suma: era preciso que o hieróglifo
fosse apagado para que surgisse a língua. Vimos que o hieróglifo
é anterior às línguas, o que autorizaria a afirmar que
os Eleitos anteriores não passavam de hieróglifos dos quais o
Eleito universal era a língua. Havia dois alfabetos, visto que era preciso
que ele soubesse duas línguas: a dos Eleitos anteriores e a sua. Os números
desses dois alfabetos são fáceis de conhecer, pois que são
o duplo do número do homem. E o número do homem existe simultaneamente
para sua eleição, seu termo e seu progresso em cento e quarenta
e cinco mil oitocentos e sessenta e sete." Era preciso, ao mesmo tempo,
que a separação visível fosse realizada através
de um meio violento para lembrar ao homem que foi um meio violento que outrora
uniu seu Ser intelectual ao sangue. Era preciso ainda que essa separação
fosse voluntária, uma vez que a primeira união o fora. Não
era preciso, entretanto, que a Vítima voluntária imolasse a si
mesma, pois que então não seria mais irrepreensível e o
sacrifício teria sido sem efeito. Era preciso também que aqueles
que imolavam a Vítima não a conhecessem pelo que ela era, porque
então não a teriam imolado. Recolhamo-nos aqui e contemplemos
a universalidade das virtudes divinas em oposição à universalidade
das desordens que haviam maculado todas as classes dos Seres. Consideremos a
unidade dos bens apagando a unidade dos males, suportando e anulando simultaneamente
todos os seus esforços. Mergulhemos nesse abismo de sabedoria e de amor,
onde a própria Vítima generosa se sacrifica sem pecado e onde
os cegos sacrificadores, destruindo-lhe o envoltório aparente, deixam
a descoberto o único modelo da ordem e da pureza extraindo, sem o saber,
um eletro universal. Os benefícios do qual o Agente é o órgão
e o depositário não tiveram de limitar-se ao lugares onde ele
surgiu nem aos homens por ele escolhidos, nem mesmo a todos aqueles que existiam
então na face da terra. Ao comunicar seus dons aos Eleitos, dera-lhe
o germe da obra, devendo em seguida desenvolvê-lo e realizá-lo
em vastas proporções em todas as regiões atingidas pelas
conseqüências do crime, ou seja: em todas as classes dos Seres, pois
nenhuma delas deixara de ser abalada. Assim, os corpos dos elementos, expostos
pela fraqueza e o crime do homem à contra-ação que continuamente
lhe perturba leis, devem ter recebido, por aquele que tudo vinha regenerar,
preservativos próprios para mantêlas na harmonia que as constitui
e a afastar as ações destrutivas. Com isso, devem ter sido preparados,
para receberem ainda em si tanto os direitos mais possantes do homem quanto
os mais manifestos. E se o ferro, se mantido na direção correta
em relação ao ímã, pode adquirir uma parte das qualidades
magnéticas, seria surpreendente se os homens que seguiram com constância
a vereda das virtudes do Agente universal se enchessem dessas mesmas virtudes
e, ardendo de zelo e confiança, tenham acalmado os ventos e as vagas,
detido o efeito do veneno das víboras, devolvido o movimento aos paralíticos,
curado os enfermos e até mesmo arrebatado vítimas à morte?
Essa influência universal sobre a terra e os elementos foi-nos marcada
por alguns sinais visíveis da parte daquele que vinha regenerá-la
- do mesmo modo quando da saída do Egito surgiram, de maneira manifesta,
os indícios de um socorro e de um virtude superior, através do
sangue aplicado nas três diferentes partes das portas dos hebreus. Ora,
os sinais da obra que o Regenerador realizava de maneira invisível no
Universo tiveram de ser encontrados nas leis da decomposição de
seu próprio corpo, já que seu corpo encerrava os princípios
mais puros e mais ativos da Natureza. Ele manifestou três atos sucessivos
de purificação, realizados pelas três substâncias
puras de sua forma material em dissolução nos três elementos
terrestres que serviram de princípios a todos os corpos; elementos que
o pecado infectara, infectando, através deles, toda a Natureza; elementos
novamente maculados pela prevaricações das primeiras posteridades
do homem e cuja purificação os Eleitos anteriores, por mais virtuosos
que fossem, não haviam completado. Realmente, a unidade ternária
que tudo produzira, só podia tudo restabelecer pelo mesmo número.
Mas com a diferença de que, agindo então sobre as coisas compostas,
ela procedia por ações distintas, enquanto que na origem, operando
sobre os próprios princípios, tudo produzira num único
feito. Depois de haver regenerado as três bases fundamentais da Natureza,
era preciso regenerar as virtudes que lhe servem de móveis e reação;
devolver a todos os móveis invisíveis a atividade perdida pela
criminosa negligência do homem que, encarregado de presidir à sua
harmonia, deixara alterar-se sua pureza e sua justiça. Ou, melhor dizendo,
era preciso destruir todos os obstáculos que o pecado do homem deixara
nascer junto dos móveis e em todas as partes do Universo. São
essas barreiras terríveis que toda a posteridade deve atravessar antes
de entrar novamente na morada da luz. São essas as diversas suspensões
que se apresentam ao pensamento como inevitáveis ao homem depois que
ele se separar da forma sensível. Foi a essas barreiras invisíveis
que o Reparador estendeu suas virtudes. Pelo direito do qual era depositário,
pôde facilitar-lhes o acesso de tal maneira que todos aqueles nelas detidos
desde a origem da desordem, bem como os que não tinham podido ainda aproximar-se
pudessem hoje, fortificando-se com as mesmas virtudes, superar os obstáculos
sem perigo, como que trazendo de novo consigo o mesmo caráter e o mesmo
nome que lhes abriu outrora todos os recintos e, no meio dos mais terríveis
malfeitores, garantiu-lhes respeito e segurança. As virtudes dos móveis
superiores são reapresentadas e postas em ação de maneira
mais sensível pelos sete Astros Planetários. É delas que
se trata, na obra já citada, pela alegoria das sete árvores e
da escala geográfica do homem. São elas os órgãos
do número quaternário, cuja força e existência são
demonstradas pelas quatro espécies de astros que compõem a região
celeste, a saber: os Planetas, os Satélites, os Cometas e as estrelas
fixas. Como tais, têm o mais alto valor para o homem. De fato, são
elas as colunas poderosas que devem servir-lhe de defesa e que constituíam
para ele o obstáculo mais temível até que uma mão
benigna o viesse ajudar a vencê-lo. São elas as sete portas da
ciência, que só podem ser abertas por aquele que possui a dupla
chave quaternária. São elas os sete dons que, desde o pecado,
foram retirados dos homens mas que, circulando sempre ao nosso redor sem que
deles desfrutemos, permitiram afirmar-se que o próprio Justo pecava sete
vezes por dia, segundo a verdadeira definição da palavra Pecado.
Por esse número foram derrubadas as muralhas de Jericó. Por esse
número foi curada a lepra de Naaman. São os sete tipos das sete
ações que as Tradições hebraicas nos representam
como tendo dirigido e completado a origem das coisas. E como antes, enquanto
duraram, serviram de colunas ao Templo que o homem deveria ter ocupado no universo."
Depois do crime, os sete Tipos permaneciam sem ação, aguardando
aquele que devia reanimá-los. Desde que ele surgiu, esses Tipos retomaram
vida e, reproduzindo-se em suas próprias virtudes, como o próprio
Deus, desde então eles têm manifestado seu ato sensível.
Como a primeira potência dessa manifestação era designada
pelo número quarenta e nove, depois de sete semanas, ou quarenta e nove
dias, após a consumação da obra os dons visíveis
deveriam derramar-se. Porque era então que deveria abrir-se a qüinquagésima
porta pela qual os escravos aguardavam a libertação, porta que
tornará a abrir-se novamente no fim dos tempos para aqueles que, segundo
Daniel, terão a felicidade de esperar e de atingir a mil e trezentos
e trinta e cinco dias." Não era igualmente necessário que
aquele que devia derramar esses dons na terra percorresse o espaço que
a separa do primeiro Autor do Seres? Que depois de haver purificado os sete
canais, pelos quais as virtudes devem fluir no tempo, fosse tomar, no Altar
de ouro, o pão da proposição sempre colocado diante do
Eterno? E que, transportando-o a todas as regiões do Universo, o distribuísse
não somente aos homens que desde o início dos séculos haviam
passado pela habitação terrestre que ocupamos, mas até
àqueles que existiam no corpo nesse teatro de expiação,
visto que viviam todos eles em escassez de seu verdadeiro alimento? Além
disso, não podemos eximir-nos de admitir que esse grande ato devia ser
produzido através de uma palavra46. Se não temos outro instrumento
para manifestarmos nossas idéias, resulta igualmente que o Ser princípio,
de quem somos o símbolo e a representação, somente pela
palavra podia ensinar-nos os desígnios sagrados que tinha para nós
desde o início de nossa existência e que o homem havia desprezado.
46 No sentido de palavra falada. (N.T.) Como conseqüência, no meio
dos tempos, se ele devia manifestar-nos uma unidade de palavra, devia então
manifestar de novo a profundidade de seus pensamentos, deixando-nos em condições
de recuperar o próprio segredo da sabedoria e de todas as virtudes. Ora,
eis a progressão da manifestação de suas potências.
O Universo material é a expressão de sua palavra física,
as Leis e os tesouros da primeira Aliança do Ser princípio com
a posteridade do homem são a expressão de sua palavra espiritual:
a grande obra realizada pela segunda Aliança é a expressão
de sua palavra divina. Ao mesmo tempo, pareceria necessário que essa
grande obra fosse coroada na terra pela multiplicação das línguas.
Por se abandonarem a excessos pecaminosos com relação à
verdade, as primeiras posteridades do homem, haviam sofrido como punição
a terrível confusão das línguas, que tornara todos os indivíduos
e Povos estranhos uns aos outros. Os remédios da Sabedoria suprema, sempre
em proporção nossos males, deviam então tomar o caminho
que nos era o mais favorável: o de multiplicar os dons das línguas
naqueles a quem iria encarregar de anunciar essas virtudes e manifestá-las
na terra. Em meio à multiplicação das línguas eles
deveriam achar-se em condições de fazer com que os remédios
chegassem a todos os lugares atingidos pelo mal e convocar à união,
à inteligência, e à vida todos os que estavam entregues
pelo pecado à dispersão, às trevas e à morte. Ou
seja: por essa multiplicação das línguas podiam novamente
ajuntar e reunir todos aqueles que a confusão das línguas havia
separado. Verdade profunda, instrutiva para os que não são estranhos
aos raios da luz e bastante felizes para às vezes contemplar com confiança
os caminhos e os frutos da Sabedoria! Se no mundo só conhecemos as coisas
através de seus sinais e não de seus Princípios, se numa
circunstância tão importante os desígnios da Sabedoria em
favor do homem deviam ser exprimidos de uma maneira que estivesse a salvo de
qualquer equívoco, seria preciso que ela tomasse línguas de fogo
como sinais sensíveis. Eis como as virtudes divinas, estando sempre ligadas
umas às outras de maneira invisível, teriam preparado novamente
o Universo para o homem e ao mesmo tempo restabelecer o homem nos seus direitos
sobre o Universo. É então que se cumpre a obra universal temporal.
O Reparador não podia trazer novamente a calma ao Universo, não
podia regenerar a vida na alma do homem sem devolver a paz e a felicidade ao
Seres de uma outra classe, aos Seres superiores ao tempo por suas funções
primitivas e que, por causa do zelo pelo reino da verdade, encontram-se à
vista da desordem desde a origem, mas que foram feitos para contemplar para
sempre o espetáculo vivificante da perfeição e da ordem.
Se a degradação do homem os fez exercer funções
estranhas ao seu verdadeiro emprego, o ato realizado para sua reabilitação
devolve-lhes a esperança dos primeiro deleites, que são os de
ver reinar por toda parte a regularidade, a exatidão e a unidade. É
tempo de confessá-lo: a principal verdade que essa época universal
temporal descobriu para o homem foi a de ensinar-lhe o verdadeiro uso do benefício
praticado por todos os Povos desde que saíram do estado de natureza bruta,
a qual, embora ainda separada do estado da lei da inteligência, limitava-se
a atos de humanidade, ao alívio das necessidades do corpo e aos deveres
de hospitalidade. Quando o exercício dessa virtude começou a aperfeiçoar-se,
ela continuou ensinando ao homem os mesmos deveres, mas também ensinou-lhe
a prestar outros serviços aos seus semelhantes. Fê-lo compreender
que diante desses semelhantes ele é responsável por todas as virtudes
que em si existem, uma vez que essa virtude lhe foi dada pela Sabedoria suprema
como um caminho de reação para, por sua vez, fazer sair as virtudes
que neles há. E assim, por uma obra tão sublime, a tarefa do homem
apresenta-lhe deveres mui rigorosos, já que ele não pode permanecer
abaixo de si mesmo sem prejudicar seus semelhantes e que uma única de
suas fraquezas deve custar aos outros uma virtude. Mas, unindo-se à Inteligência,
que deve ter sido descoberta quando da grande época, esse benefício
torna-se ainda mais eminente pelo fato de depender da ação imediata
do primeiro de todos os Princípios com a qual nossa natureza nos chama
a concorrer. O ardor de seu amor por nós faz com que ele, digamos, desprenda
de si Virtudes sem número e Potências tão puras e tão
ativas quanto ele mesmo. Desprendendo-as, ele as expõe (se é que
podemos servir-nos destas expressões) à nudez, ao frio, à
fome e a todos os sofrimentos da região temporal. E como ele as desprende
apenas para nós, apenas para fazê-las chegar até nós,
jamais poderemos honrá-lo melhor, jamais poderemos exercer a hospitalidade
mais de acordo com a sua vontade, nem com maior vantagem para nós, do
que deixando ao abrigo aqueles que ele nos envia, mas que estão fora
e que só pedem para entrar, vestindo aqueles que se despem por nós,
dando de comer e de beber ao que sofrem fome, sede e a mais completa pobreza
para virem desalterarse, aquecer-se, revestir-se do homem, se assim pudermos
dizer; ou antes, para revivificar a ele mesmo, transfundindo o próprio
sangue nas suas veias. Seria abominável se o Reparador universal houvesse
escolhido uma substância material universal para tomá-la como base
de suas virtudes espirituais divinas e se, fazendo-a entrar no culto por ele
estabelecido, ela recebesse dele uma virtualidade que não teria por sua
natureza? Essa idéia é ainda mais verossímil porque, de
acordo com o conhecimento que temos do homem, ele pode transmitir suas frágeis
virtudes a uma substância determinada que julgar adequada - o que, tanto
na física como na moral, infelizmente foi fonte de numerosas ilusões
na terra. "De todas as substâncias da natureza corporal empregadas
pelo Reparador no Culto que vinha estabelecer a mais favorável é
o trigo. Além de suas qualidades particulares que o tornam apropriado
à alimentação do homem, ele tem na língua hebraica
o nome de bar, que exprime também a pureza, a purificação,
e sua raiz, barar ou barah, significa escolha, eleição, de onde
se derivam berith (aliança) e baruch (bênção). Além
disso, não é em vão, que, segundo as Tradições
judias, o pão, o trigo e a farinha da melhor qualidade aparecem empregadas
com muita freqüência nos sacrifícios, seja nas alianças
dos homens com os Seres superiores, seja na preparação feita pelos
hebreus para as suas Festas. E mil provas tiradas da ordem temporal podem justificar
tudo o que acabamos de dizer em favor dessa substância. O vinho pertencia
também ao número das substâncias prescritas na lei religiosa
dos hebreus para as empregarem nas cerimônias santas. Entretanto, ele
não oferece propriedades tão extensas nem tão salutares
quanto o trigo. E a vinha até demonstra por sinais materiais que seu
número se opõe ao da pureza. Mas o Regenerador universal teve
necessariamente de empregar o vinho em seu culto, porque ele é o tipo
de sangue no qual estamos encerrados e porque, como a iniqüidade, deve
ser consumido e desaparecer a fim de nos mostrar as condições
exigidas pela justiça para que sejam apagados os vestígios de
nossa privação." Se alguns homens, seduzidos pelas luzes
falaciosas de seu julgamento, ficassem chocados de ver que as substâncias
materiais têm realmente seu lugar no culto estabelecido pelo Reparador
universal; se a partir disso considerassem esse culto e o sacrifício
que nele deve ser realizado como totalmente figurativos e como uma simples aparência,
cairiam visivelmente em erro porque, desde então o sacrifício
seria nulo, e por isso mesmo inútil, aos Seres verdadeiros pelos quais
deve ser oferecido. Por outro lado, se o espírito superior do homem,
querendo contemplar os direitos desse ato eficaz e real, buscasse-os entre os
números passivos, não seria de temer-se que encontrasse apenas
a aparência da realidade, em vez da própria realidade? Não
perderia de vista os frutos essenciais desse culto que deve restabelecer todos
os números em sua ordem natural, a fim de que vejamos simultaneamente,
no mesmo ato, manifestar-se a sublimidade dos números verdadeiros, desaparecer
a nulidade dos números passivos e retificar a irregularidade dos números
falsos - ou seja: que nesse ato a plenitude dos números deva exibir-se
diante do homem para apagar a disformidade que resulta da separação
entre eles? Por fim, haveria perigo em se crer que nesse ato, simultaneamente
corporal, espiritual e divino, nesse ato que apenas tende a libertar o homem
de tudo o que é sangue e matéria, tudo devesse ser ESPÍRITO
E VIDA, como aquele que o instituiu e que o vivifica e como o homem que deve
dele participar? Mas cabe àqueles que são os seus depositários
decidir se é correto que esse Culto exista na terra. Limitemo-nos a reconhecer
que todas as outras partes de um Culto que é ESPÍRITO E VIDA devem
ser de molde a nos esclarecerem em nossas trevas. É preciso que elas
sejam como que uma interpretação sensível das maiores verdades
que o homem possa conhecer e que são verdadeiramente análogas
a ele. É preciso que esse culto, considerado em seus tempos, em seu número
e em suas diversas cerimônias, seja um círculo de ações
vivas em que o homem inteligente e não prevenido possa encontrar a representação
característica das leis de todos os Seres, idades e fatos. Ou seja: que
o homem deve reconhecer nele não somente a sua própria história
desde a origem primitiva até a reunião futura com o seu Princípio;
não somente história a da natureza inteira e dos Agentes físicos
e intelectuais que a compõem e dirigem, mas ainda a da mão fecunda
que está sempre reunindo diante de nossos olhos os vestígios mais
salientes e adequados à explicação da verdadeira natureza
de nosso Ser. Eis quais devem ser os sinais sensíveis dos dons que o
Reparador universal trouxe à terra. Eis o quadro abreviado de tudo o
que ele teve de realizar a fim de que os homens fossem ligados a ele pela unidade
de ação, como está ligado pela unidade de essência
com a Divindade. Isso equivale a detalhar suficientemente os poderes do Agente
universal, a mostrar suficientemente os direitos que ele deve ter à confiança
do homem. Basta-nos reconhecer, somente com as luzes naturais, quão necessário
nos foi ter semelhante tipo diante de nossos olhos. Seria imprudente e uma ofensa
ao Agente querer proclamar isso com mais clareza, pois para fazê-lo com
verdadeira eficácia, seria preciso que ele próprio surgisse. Além
do mais, se detivéssemos mais longamente os olhos dos homens nessas pesquisas
profundas, pareceria estarmos excluindo as pessoas simples e sem estudos dos
privilégios concedidos a toda a posteridade humana. O homem, cujo coração
ardente consome sem cessar as plantas selvagens que o rodeiam; o homem que considera
o Agente do qual recebeu o pensamento como o Ser de ciúme que se aflige
quando amamos qualquer coisa além ele; o homem que, imolando perpetuamente
a si próprio, está sempre humilde e trêmulo diante de Deus,
porque o segredo de Deus é revelado somente àqueles que o temem;
o homem simples que segue com fidelidade e confiança os Preceitos que
o Agente universal deve ter ensinado e que provêm de uma fonte por demais
benigna para conduzir à ilusão e ao nada - esse é o que
pode pretender entrar no conselho da paz, enquanto a ciência mais elevada
que se possa adquirir é um edifício frágil e vacilante,
pois não se firma em todas as bases que serão sempre o seu mais
firme apoio. Se o homem dirigisse a visão ao Eletro universal reanimando-se
ao calor de um único de seus raios, seria bem mais puro, mais luminoso
e maior do que poderia tornar-se com os discursos e raciocínios de todos
os Sábios da terra. Além disso, se há verdades que devem
ser divulgadas, há muitas que devem ser caladas, e a experiência
se une à razão para convidar à reserva mostrando os males
inevitáveis provindos, em todos os tempos, do fato de serem dados à
publicidade. Dentre as Instituições sábias e religiosas
mais célebres que já existiram, nenhuma existe que não
haja coberto a Ciência com o véu dos mistérios. Tomemos
como exemplo o Judaísmo e o Cristianismo. As Tradições
judaicas nos ensinam como o Rei Ezequias foi punido por haver mostrado seus
tesouros aos Embaixadores da Babilônia. E vemos através dos antigos
Ritos cristãos, pela Carta de Inocêncio I ao Bispo Decêncio
e pelos escritos de Basílio de Cesaréia que o Cristianismo possui
coisas de grande força e de grande peso que não são e jamais
poderão ser escritas. Enquanto as coisas que jamais poderão ser
escritas só foram conhecidas por aqueles que devem ser seus depositários,
o Cristianismo gozou de paz. Mas quando os Imperadores romanos, cansados de
perseguir os Cristãos, desejaram ser iniciados em seus mistérios;
quando os Mestres dos Povos puseram os pés no Santuário, querendo
dirigir aos objetos mais sagrados do culto olhos que para isso não estavam
preparados; quando fizeram do Cristianismo uma Religião de Estado considerando-a
somente um instrumento político, quando seus Súditos foram forçados
a se tornarem Cristãos, surgindo assim a obrigação de se
admitir sem exame todos aqueles que se apresentavam então nasceram as
incertezas, as doutrinas contrárias e as heresias. O obscurecimento sobre
os objetos da Doutrina e do Culto tornou-se quase universal porque as mais sublimes
verdades do Cristianismo só podiam ser bem conhecidas por um pequeno
número de Fiéis. Aqueles que apenas as entreviam ficavam expostos
a interpretações falsas e contraditórias. Foi o que aconteceu
no tempo de Constantino, chamado o Grande. Assim, mal adotara ele o Cristianismo,
começaram os Concílios gerais, e esse tempo pode ser considerado
como a primeira época de decadência das virtudes e das luzes entre
os Cristãos. A exemplo de Constantino, seus Sucessores, desejando difundir
o Cristianismo, empregaram os privilégios e as graças a fim de
lhe conseguirem Prosélitos. Mas os que eram conseguidos por tais meios
viam menos a Religião para a qual eram chamados do que os favores do
Príncipe e as atrações da ambição. Por seu
lado, os próprios Chefes espirituais, para atraírem novos apoios,
favoreceram os desejos e as paixões dos Príncipes. E aliando-se
a cada dia ao temporal, foram afastando-se cada vez mais de sua pureza primitiva,
de modo que cristianizando uns o que era civil e o político e civilizando
outros o Cristianismo, formou-se dessa mistura um monstro com seus membros qualquer
relação entre si, do que só puderam resultar efeitos discordantes.
Os sofistas das diversas Escolas admitidas ao Cristianismo aumentaram ainda
mais a desordem ao misturarem a essa religião simples e sublime uma multidão
de questões vãs e abstratas que, em vez da união e das
luzes, produziram a divisão e as trevas. Os Templos do Deus de paz foram
convertidos em Escolas científicas onde os diversos Partidos discutiam
com mais violência do que os antigos filósofos nos pórticos
de Atenas e Roma. Suas disputas eram tanto mais perigosas quanto mais prejudicavam
as coisas por causa das palavras. A maioria não sabia que a verdadeira
ciência tem uma língua particular, somente podendo exprimir-se
com evidência através de seus próprios caracteres e símbolos
inefáveis. Nessa confusão, a chave da ciência não
deixou de estar ao alcance do Ministro dos Altares, como num centro de unidade
que ela jamais devia abandonar. Mas a maior parte deles não se servia
dela para penetrar no santuário, chegando a impedir que o homem de desejo
dele se aproximasse, de medo que lhes percebesse a ignorância. E proibiam
que se buscasse conhecer os mistérios do reino de Deus embora, segundo
as próprias Tradições dos Cristãos, o Reino de Deus
esteja no coração do homem e em todos os tempos a Sabedoria o
haja instado a estudar seu coração. Os Chefes espirituais que
se preservaram da corrupção, lamentando-se dos extravios da multidão,
esforçavam-se, através do ensino e do exemplo, por conservar no
homens o zelo, as virtudes e o amor da verdade. Mas foi em vão que se
ergueram contra os abusos: o monstro que já havia nascido era por demais
favorável aos desejos ambiciosos de seus Partidários para que
eles não tomassem o cuidado de fortalecê-lo. Jovem ainda ao tempo
dos primeiros Imperadores gregos, embora já demostrasse orgulho, durante
alguns séculos ele apenas aplicou alguns golpes fracos de pouca repercussão.
Tais foram os frágeis empreendimentos de Símaco contra o Imperador
Anastácio. Mas, ao alcançar a idade em que podia exibir sua ferocidade,
os primeiros Imperadores franceses facilitaram-lhe os meios. O pai de Carlos
Magno viu o papa a seus pés suplicando-lhe que o defendesse contra os
lombardos - e antecipadamente, o Príncipe recebera a Sagração
de sua mão como recompensa pelos serviços que iria prestar. Essa
união bizarra não demorou a ter as mais estranhas seqüências.
Os que a princípio apenas haviam unido uma cerimônia piedosa aos
direitos políticos de um Soberano afirmaram logo que lhe haviam dado
os mesmo direitos; pouco depois, que eram deles os depositários; e por
fim, acabaram por declarar que, quando lhes aprouvesse, poderiam retirálos
daqueles a quem se haviam persuadido de os haver concedido. Também o
filho de Carlos Magno, cujo Pai vira o Papa a seus pés, foi, não
somente aos pés do Papa, mas até mesmo no meio de uma assembléia
dos seus próprios Súditos, destituído pelo Bispo Ebbon.
Segunda época, em que os extravios vieram da parte dos chefes espirituais.
Depois que essa torrente rompeu os diques, não houve desordem que não
se visse nascer. A ambição e o despotismo, cobrindo-se então
com o véu da Religião, fizeram correr mais sangue em dez séculos
do que o derramado pelas hordas de Bárbaros desde o nascimento do Cristianismo,
e para fremir de horror, basta abrir a história de Comneno em Constantinopla,
dos Filipes na França, dos Fredericos na Alemanha, dos Suinthilas na
Espanha, dos Henriques e dos Eduardos na Inglaterra. Entretanto, chegou o momento
em que os olhos deveriam começar a se abrir. Quando os Chefes do Cristianismo
se confundiram com o Templo e o Tabernáculo, dos quais deveriam ser apenas
as colunas; quando quiseram sacrificar sua ignorância; quando tinham já
levado a extravagância ao ponto de lançar decretos que proibiam
aos Soberanos excomungados obter vitórias e até a interditar aos
Anjos, pelos mesmos decretos, que recebessem as almas daqueles que haviam proscrito;
e quando, ao se erguerem vários pretendentes à Tiara, eles foram
vistos a se excomungarem reciprocamente, entregando-se a batalhas sanguinolentas
até nos Templos dos Cristãos, os Povos estarrecidos perguntaram-se
se essas cabeças, cobertas de anátemas, ainda poderiam ser sagradas,
permitindo-se arrefecer seu entusiasmo para substituí-lo pela reflexão.
Mas nesses tempos infelizes em que o sagrado e o profano eram confundidos, em
que a disputa era a única ciência do Cristianismo público,
em que os Clérigos não eram julgados dignos das funções
do Altar senão depois de haverem passado pelas frívolas provas
de uma escolástica bárbara, podiam as reflexões dos Povos
ser susceptíveis de exatidão e de maturidade? Vendo as desordens
daqueles que professavam os dogmas sagrados esses homens grosseiros não
se contentaram com duvidar dos Mestres, levando a imprudência até
ao ponto de suspeitar dos próprios dogmas e, à força de
considerá-los com esse espírito de desconfiança, acreditaram
ver neles dificuldades insolúveis. Terceira época, na qual os
desvios vieram da parte dos membros. Daí as diversas Seitas que vimos
nascer no seio do Cristianismo a partir dos séculos terceiro e quarto
e que, servindo de pretexto à ambição, foram dele mutuamente
os instrumentos e as vítimas. Porém, a esses erros misturaram-se
infelicidades de um ou de outro tipo, e mais ainda que se viram, ao mesmo tempo,
a crença das coisas verdadeiras e a credulidade pecaminosa confundidas
e proscritas por sentenças bárbaras, o que estimulou os maus Obreiros
e fez calar cada vez mais os Obreiros legítimos. Então, dentre
os Chefes espirituais, os que haviam conservado o depósito em sua pureza
não teriam sido mais ouvidos se tivessem querido dirigir o pensamento
do homem ao nível elevado do Sacerdócio inefável que o
aproxima da Divindade, e se tivessem querido empenhá-lo na busca das
Ciências divinas, fazendo com que sua ação se voltasse sobre
si mesmo, e despojando ele de tudo o que é estranho ao seu Ser, para
se apresentar todo inteiro com um desejo puro aos raios da inteligência.
Também as controvérsias apaixonadas e sanguinolentas dos últimos
séculos não produziram sistemas absurdos e opiniões mais
atrevidas ainda do que as que já havia desorientado os homens desde o
nascimento do Cristianismo? Os Observadores, revoltados com a diversidade e
a oposição das idéia sobre os Dogmas mais essenciais, atacaram
a própria base da Instituição cristã, não
tardando a rejeitá-la, depois de tê-la confundido com o edifício
monstruoso haviam erguido em seu seio pelo orgulho e pela ignorância.
Que se deveria esperar deles, depois de terem aplicado esse golpe à única
Religião que apresentara aos homens o caráter admirável
de se expandir sem jamais dobrar-se diante dos Povos conquistadores? De haver
conquistado, não Nações grosseiras e bárbaras, como
se viu acontecer com a religião de Maomé, mas Nações
sábias e civilizadas? De as haver vencido não pelas armas, mas
pelos únicos encantos de sua doce Filosofia? Os Observadores que assim
haviam ignorado a base do Cristianismo não podiam emitir um julgamento
mais favorável sobre as outras Religiões. De modo que, não
percebendo mais laço algum entre o homem e o Princípio invisível,
acreditaram que os homens estavam de tal maneira separados desse Princípio
que nenhuma Instituição religiosa poderia reaproximá-lo
dele. Quarta época de degradação, em que o homem, tornando-se
Deísta, viu-se apenas a um passo da ruína. Os progressos do erro
não pararam aí. Apresentaram-se novos Observadores que, para se
livrarem da confusão espalhada pelo Deísmo sobre as ciências
religiosas, ensinaram opiniões ainda mais destrutivas. Não somente
disseram que os Instituidores do Cristianismo e de todas as Religiões
eram ignorantes, enganadores, e até mesmo inimigos da moral que professavam;
que seus Dogmas eram nulos e contraditórios, já que eram contraditos;
que a base sobre a qual tais Dogmas se apoiavam era imaginária e que,
conseqüentemente, o homem não tinha relação alguma
com as virtudes superiores, mas chegaram até a duvidar de sua natureza
imaterial. Com isso, cumpriram a ameaça feita aos hebreus de que, caso
negligenciassem a lei, acabariam bem depressa por cair num em grau de miséria
e abandono que não creriam mais na própria vida. Finalmente, com
isso foram levados a negar a própria existência do Princípio
de todas as existências, já que negar a natureza imaterial de uma
criação tal como o homem é o mesmo negar a natureza imaterial
de seu Princípio regenerador. Quinta e última época de
degradação em que o homem, não sendo mais do que trevas,
está abaixo até mesmo do inseto. Desse sistema funesto provieram
todos os desatinos filosóficos que reinaram nesses últimos tempos.
As primeiras posteridades haviam pecado pela ação, querendo igualar-se
a Deus através de suas próprias virtudes; as últimas pecam
por nulidade, crendo que no homem não há nem ação
nem virtudes. Daí veio o delírio de um Ateu moderno47 que, escrevendo
contra a Divindade, acreditou ter demonstrado o seu nada pelo fato de que, segundo
ele, se ela existisse, ter-lhe-ia punido a audácia. Não podemos
responder-lhe que a Divindade pode existir sem punir ataques impotentes? Que
se deve, de preferência, crer que verdadeiramente ele não a atacou?
Que os escritos vãos não podem incendiar os raios de sua cólera?
E que ele não era bastante avançado para elevar a voz até
ela, nem bastante instruído para proferir contra ela verdadeiras blasfêmias?
47 Talvez o autor se refira a Voltaire. (N.T.) Vimos qual foi, desde o início
do Cristianismo, a progressão da desordem à qual as disputas científicas
arrastaram os homens e a desordem que produziu a publicidade fácil demais
das coisas que não podem ser bem concebidas pela multidão, nem
deixar de ser secretas, sem que se exponham a serem mal compreendidas ou mal
interpretadas. Qual é, pois, a via que o espírito do homem deve
tomar para sair desse estado desordenado e devotado à incerteza? É
aquela que ele irá descobrir quase sem esforços se olhar para
si mesmo. Uma consideração atenta do nosso Ser nos instruiria
sobre a sublimidade de nossa origem e nossa degradação. Far-nos-ia
reconhecer em torno de nós e em nós mesmos a existência
de virtudes supremas de nosso Princípio. Convencer-nos-ia de que foi
necessário que as virtudes superiores se apresentassem ao homem de modo
visível na terra para chamá-lo às sublimes funções
que tinha a cumprir em sua origem. Demonstrar-nos-ia a necessidade de um culto
a fim de que a presença dessas virtudes não deixassem de ter eficácia
em nós. Distinguiríamos os vestígios dessas verdades em
todas as Instituições religiosas. E em vez de a variedade dessas
Instituições nos fazer duvidar da base em se apóiam, nós
retificaríamos, pelo conhecimento dessa base, tudo o que elas podem ter
de defeituoso. Ou seja: que ordenaríamos em nosso pensamento as verdades
esparsas, mas imperecíveis, que atravessam todas as Doutrinas e Seitas
do Universo. Ao nos elevarmos assim de verdades em verdades, com o auxílio
de uma reflexão simples, justa e natural, remontaríamos até
o plano de um tipo único e universal, de onde teríamos domínio
com ele sobre os Agentes particulares intelectuais e físicos que lhe
foram subordinados. Sendo ele a chama viva de todos os pensamentos e ações
dos Seres regulares, pode expandir ao mesmo tempo a mesma luz em todas as faculdades
dos os homens. E é essa luz brilhante que o homem pode fazer brilhar
em si mesmo, porque ele é a solução de todos os enigmas,
a chave de todas as Religiões e a explicação de todos os
mistérios. Mas - ó homem! - quando houveres chegado a esse termo
feliz, se fores sábio, guardarás tua ciência em teu coração.
A Lei sensível e a subdivisão universal, às quais os homens
estão sujeitos, submeteu-os a uma forma de matéria, mas a Terra
mostra-se por demais pequena para que todos possam habitar juntos. Foi preciso
que eles viessem, progressivamente, haurir nela as forças e os socorros
necessários para atravessarem o espaço que os separa da fonte
de toda luz. Se o homem duvidava ainda de sua degradação, bastava
essa prova para convencer-se dela, já que é impossível
conceber alguma coisa mais vergonhosa e triste para os seres pensantes do que
estarem eles num lugar em que só podem existir com um pequeno número
de seus Concidadãos - pois por sua natureza, por mais numerosos que sejam,
foram feitos para habitar e agir todos juntos. Eis por que os homens que ainda
não haviam nascido quando da manifestação geral no meio
dos tempos não puderam receber-lhe as vantagens efetivas e diretas, como
aqueles que já haviam percorrido a superfície da terra ou que
a habitavam desde aquela época. Podemos até dizer que o Agente
universal, submetido à lei temporal e trazendo a inteligência à
terra de maneira visível, não a manifestou simultaneamente por
seus atos em todos os lugares de nossa habitação terrestre e que,
se ele a manifestou em potência em todas as partes da terra, só
o fez em ato nos lugares por ele habitados, ou talvez em algumas outras regiões,
mas de maneira estranha à matéria e em favor de alguns Eleitos
destinados a concorrer em sua obra. A virtude e os poderes dos sinais visíveis
que em todos os lugares do mundo acompanham os pensamentos deviam residir com
inteira superioridade naquele que os produz. Mesmo hoje, não havendo
ainda nascido todos os homens, a posteridade humana não vê o conjunto
dos fatos da unidade. Não vê em ato sobre toda a sua espécie
a obra universal da Sabedoria, essa grande obra, cujo objeto é: que os
Seres tenham ao mesmo tempo diante dos olhos os símbolos reais do infinito
e que, desaparecendo os limites do tempo, tenham todos, como antes do pecado,
a prova intuitiva de que é o próprio Deus que tudo conduz. Acrescentemos:
como o Universo inteiro é a prisão do homem, jamais a espécie
humana poderá ao mesmo tempo, sem que o Universo material seja destruído,
ser testemunha do grande espetáculo da imensidade da qual saiu. O curso
da vida do homem em particular vem em apoio dessa verdade. À medida que
seu Ser intelectual se eleva para a luz, seu corpo se curva dobrando sobre si
mesmo. Devemos convencer-nos de que, quando houver reunido em si todas as virtudes
comportadas por sua região terrestre, sua forma corruptível não
poderá mais existir com ele, como certos frutos que se separam naturalmente
de seu invólucro após conquistarem a maturidade - de modo que
a vida de um é a morte do outro. Pela mesma Lei, quando estiver completo
o número dos homens que devem existir materialmente na terra, a forma
universal, recuando sua ação, deixará de existir para eles
e a plenitude desse número temporal tornará a existência
do Universo inútil para o homem. Por fim, se as faculdades do homem particular
não podem gozar da universalidade de sua própria ação
enquanto ele estiver ligado aos menores vestígios de sua matéria;
se ele não pode ser verdadeiramente livre enquanto estiver submetido
às influências dos seres contrários à sua natureza;
se não pode contemplar o conjunto da Região sublime onde nasceu
enquanto a menor parcela corruptível existir nele e nesses quadros sublimes,
o mesmo acontece com a espécie universal do homem. Ora, a terra e todas
as grandes colunas do Universo ainda escondem em si os raios das substâncias
puras arrastadas com ele na queda. Se o homem está destinado a reaproximar-se
delas, é preciso então que desapareçam todos os escombros
para que, de um lado, as substâncias superiores e, do outro, as virtudes
de todos os homens, formando como que dois feixes de luz, possam animar-se reciprocamente
e manifestar todo o seu brilho. Sabemos que os testemunhos universais dos Povos
concordam nesse ponto. Todos consideram o estado violento da Natureza e do homem
como conseqüência da desordem e uma preparação para
um estado mais calmo e mais feliz. Todos aguardam um termo para os sofrimentos
gerais da espécie, assim como a cada dia a morte põe um termo
aos sofrimentos corporais dos indivíduos que souberam defender seu Ser
de qualquer amálgama estranho. Por fim, não existe um Povo - e,
podemos dizer, um homem - entregue a si mesmo para quem o Universo temporal
não passe de uma grande alegoria ou de uma grande fábula que deve
ceder lugar a uma grande moralidade A dissolução geral seguirá
as mesmas leis da dissolução dos corpos particulares. Quando o
Universo estiver na sétima Potência de sua raiz setenária,
todos os princípios de vida difundidos na criação se reunirão
no centro, assim como o calor dos animais agonizantes abandona insensivelmente
toda a forma para se concentrar no coração. Não podemos
deixar de admitir na Natureza um centro ígneo, ativo e vivo, já
que cada um dos menores corpos particulares têm um princípio ou
um centro qualquer de vida que os faz existir. Como esse centro ativo e universal
está aderido à terra, é natural pensarmos que é
a ela que os outros seres irão reunir-se. E quando as Tradições
dos Cristãos nos fazem a estranha predição de que, no fim
dos tempos, as estrelas cairão sobre a terra, falam apenas da reunião
dos diversos centros com o centro universal - o que não deve ser difícil
de compreender, uma vez que as estrelas não poderão cair na terra
sem deixar que sua forma se dissipe - assim como as diversas partes de nossos
corpos se dissolvem e desaparecem à medida que seus princípios
secundários se reúnem ao Princípio regenerador. Uma única
diferença se faz notar entre a morte dos corpos particulares e a morte
do Universo: é que, como são fatos segundos, após a morte
os indivíduos corporais sofrem as leis segundas: a putrefação,
a dissolução e a reintegração. Enquanto que o Universo,
sendo um fato primeiro na ordem corporal, precisa apenas de uma lei para completar
o curso de sua existência. Seu nascimento e sua formação
foram o efeito da mesma operação, e assim será na sua morte
e desaparecimento total. Por fim, para que o Universo existisse, bastou que
o Eterno falasse. Bastará que o Eterno fale para que o Universo não
exista mais. Lembremos aqui que, à imagem do grande Ser, o homem emprega
os mesmos meios e faculdades tanto para dar existência às suas
obras materiais quanto para destruí-las. Antes do desaparecimento final,
haverá enfermidades na Natureza universal, assim como as que são
provocadas pela diminuição do calor nos corpos particulares antes
que sua ação cesse totalmente. Serão suspensas as virtudes
ternárias do homem que servem de colunas ao Universo, assim como a força
e a atividade nos abandonam quando nos aproximamos naturalmente do nosso fim.
Tal é o sentido das Tradições dos Cristãos quando
nos apresentam todos os flagelos ternários manifestando-se à voz
dos sete Agentes superiores, ou seja: quando os sete Agentes devolverem ao grande
Ser os direitos e as virtudes com que ele os havia dotado para o cumprimento
de seus desígnios no Universo. Tal é, repito, o sentido das Tradições
quando nos oferecem, com relação aos diversos termos da época
setenária, a alteração, o incêndio, a destruição
da terceira parte da terra, das árvores e da erva verde; da terceira
parte do mar, dos peixes, dos navios, dos rios e das fontes; da terceira parte
do Sol, da Lua e da Estrelas; da terceira parte dos homens - quando nos falam
do nascimento de novos animais, surgindo do seio da terra sobre sua superfície
para atormentar seus Habitantes, assim como às vezes saem, da carne do
homem, vermes e insetos repugnantes que o devoram antes de seu termo; quando
nos falam da mudança de cor nos astros, do transporte de ilhas e montanhas;
e quando nos retratam a combustão de todos os elementos para no fim dos
tempos nos descreverem as desordens que os fizeram começar. Mas não
é apenas no corpo que o homem avançado em idade experimenta o
enfraquecimento: experimenta-o também na inteligência se não
teve o cuidado de tirar proveito dos socorros oferecidos em épocas diversas
de sua vida e de cooperar no desenvolvimento das faculdades destinadas a um
crescimento contínuo. Seu espírito vê-se então numa
dupla privação, não desfrutando dos tesouros da Sabedoria,
que não soube adquirir, nem da atividade da juventude, cuja época
para ele já passou. Tal é também a sorte de homem em geral:
os socorros enviados aos homens foram aumentando desde a origem das coisas até
o meio dos tempos, embora o uso feito deles não tenha estado na mesma
proporção. Esses socorros crescem igualmente desde o meio dos
tempos porque então abriram o caminho do infinito. Mas como se simplificam
cada vez mais, tornando-se mais intelectuais, seriam imperceptíveis e
inúteis para a posteridade humana se ela não seguisse a mesma
progressão, de modo que chegaria a perder de vista até mesmo os
frutos inferiores que os socorros haviam começado a fornecer-lhe. Imaginemos,
pois, as posteridades futuras oprimidas pelas desordens das causas físicas
e por aquelas que terão deixado dominar no seu Ser intelectual. Imaginemos
os homens dos tempos vindouros perdendo a esperança de se verem renascer
e condenados à esterilidade desde que tocaram no complemento do número
temporal dos homens. Imaginemo-los ainda mais apavorados com essa esterilidade
porquanto ele lhes apresentará a imagem importuna do nada, porquanto
ficarão mais atormentados pelas ações corrosivas que sobre
eles se acumularão por haverá menos indivíduos entre os
quais elas se dividam. Imaginemos esses homens expostos às medonhas convulsões
da Natureza, sem nada haverem adquirido em sua inteligência, nem as luzes,
nem as forças suficientes para se defenderem delas, nem a resignação
para se submeterem às que forem inevitáveis. Vejamo-los de tal
modo desligados de seus apoios que não possam mais ouvir-lhes a voz ,
porém buscando-os ainda pela necessidade irresistível de sua natureza.
Esta será a fome e a sede que, segundo os Profetas, devem ser enviadas
à terra: não a fome do pão, nem a sede da água,
mas a fome e a sede da palavra; desejo tanto mais doloroso que, segundo os próprios
Profetas, os homens circularão por toda parte para buscar essa palavra
e não a encontrarão. Representemo-nos, por fim, os homens maldizendo,
talvez, o Deus supremo, que, no entanto, não deixará de estender-lhes
a mão para ajudá-los a transpor o poço do abismo. Pois
essa mão benigna, que jamais reteve seus dons dos filhos do homem, retê-los-á
bem menos ainda num tempo em que forem extremas as suas necessidades. Para cúmulo
das aflições, os homens dos tempos futuros perceberão sem
disfarce o quadro dos séculos, assim como o homem particular, ao aproximar-se
do fim, vê de ordinário desenhar-se diante de si, com traços
rápidos e vivos, todo o círculo de sua vida passada. Esse homens
infelizes serão dilacerados pela dor ao compararem no quadro dos séculos
a imensa e inesgotável abundância de bens, dos quais a terra nunca
deixou de ser cumulada, com a horrível prostituição que
a posteridade do homem com eles fez em todos os tempos: de um lado, verão
reunidos os numerosos tesouros de virtudes que desde a origem das coisas têm
sido enviados em socorro do homem e que estão sempre ao seu alcance;
do outro, o homem terá diante dos olhos os frutos impuros da iniqüidade,
igualmente acumulados no crisol do mundo, cuja depuração retardaram
para um número tão grande dos que o habitaram. No meio dessas
desordens, formemos a imagem de homens ignorantes, impuros, impostores, buscando
apagar nos semelhantes os raios da luz natural que nos ilumina a todos e esforçando-se
por ocupar em seus espíritos o verdadeiro e único apoio cujo socorro
os homens podem esperar. Formemos por fim a imagem dos tempos futuros infectados
dos venenos de uma doutrina de morte que irá afastar os homens de seu
alvo em vez de reaproximá-los dele. O que vai tornar esses Mestres cegos
tão perigosos é que o homem pecador, estando então mais
desenvolvido do que ainda é, atacará os homem com fatos, enquanto
que até agora os atacou quase somente com discursos. Se a posteridade
humana aproveitou tão pouco dos socorros que a cercaram, se não
fez mais do que deixar as trevas em lugar da luz, como resistirá a tais
Adversários? Não vemos aí mais do que um medonho abismo
cuja obscuridade e horror só podem ir aumentando até que, não
havendo mais lugar algum visível nem invisível entre o Universo
corrompido e o Criador, a dissolução geral do Mundo venha ao mesmo
tempo acabar com os erros e as iniqüidades dos homens. A própria
Lei dada no meio dos tempos não aniquilou o germe das desordens que os
homens são sempre Mestres em produzir e multiplicar. Durante sua manifestação
temporal o Eleito universal foi encarregado de apresentar e explicar a Lei aos
homens, mas não de executá-la sem o concurso de sua vontade. Bastava,
pois, dar-lhes uma idéia justa da Ciência divina e ensinar-lhes
que essa ciência é a das leis empregadas pela Sabedoria suprema
para fornecer ao Seres livres os meios de entrar novamente na sua luz e na sua
unidade. Uma vez dado esse conhecimento ao homens, foramlhes concedidos os tempos,
não para esquecer e profanar o conhecimento mas para meditar sobre ele
e dele tirar proveito. Quando os tempos se houverem escoado; quando, segundo
a expressão dos Profetas, os séculos houverem entrado novamente
em seu antigo silêncio e os Astros reunido em uma única as suas
sete ações, sua luz ter-se-á tornado sete vezes mais brilhante.
Então, graças à sua claridade, a inteligência do
homem descobrirá as criações que houver deixado germinar
em si mesmo e se nutrirá dos próprios frutos que houver semeado.
Ai dela, se seus frutos forem selvagens, corrompidos ou maléficos! Não
tendo então outro alimento, será forçada a alimentar-se
ainda deles e de provar-lhe o contínuo amargor. Como as substâncias
falsas e impuras nela gerados por suas desordens não podem entrar na
reintegração, somente a violenta ação de um fogo
ativo terá força suficiente para dissolvê-los. Ai da inteligência,
se derramou o sangue dos Profetas! Não somente se houver contribuído
na destruição corporal daqueles que trouxeram esse nome à
terra, mas muito mais ainda se repeliu as noções íntimas,
as Ações vivas que a Sabedoria lhe transmitia a cada instante.
Essas Ações, tendo como alvo apresentar a verdade ao homem para
que ele pudesse vê-la como elas próprias a vêm, tornam-se
para ele verdadeiros Profetas, cujo sangue será exigido novamente com
rigor inflexível se ele tiver sido bastante negligente para deixá-lo
fluir sem proveito, bastante depravado para deter-lhe a influência sobre
seus semelhantes! Ai da inteligência se, devendo agir somente em concerto
com seu Princípio, quis, no entanto, agir sem ele porque, após
a dissolução de seus laços corporais, ficará reduzida
mais uma vez a agir sem esse Princípio, como terá feito no curso
de sua vida terrestre! Tal será a diferença extrema entre o nosso
estado atual da vida corporal e o que deve seguir-se a ele e que ainda só
sensível ao nosso pensamento. No mundo só conhecemos, digamos,
através de nossos desejos a ação viva e intelectual que
nos é própria porque, durante nossa permanência na matéria,
os meios mais eficazes dessa ação nos são recusados. Mas,
ao sairmos dela, se durante nossa vida corporal conservamos a pureza de nossas
afeições, esses meios eficazes nos cercam, sendo-nos prodigalizados
sem medida; e deleites desconhecidos do homem terrestre o compensam amplamente
das privações suportadas. Ora, na morte o homem perde todos os
objetos, meios e órgãos que serviam de alimento e canal ao crime.
E se durante a vida corporal ele nutriu em si inclinações falsas
e hábitos de erro, ao ficar separado do corpo, nada mais lhe resta do
que a desordem de seus gostos e desejos corrompidos, como o horror de não
mais os poder cumprir. Assim, pois, a situação futura do ímpio
será tanto mais terrível quanto, estando dissolvido o invólucro
material que hoje nos oculta a luz, ele vir a chama viva da verdade sem dela
poder aproximar-se, o que foi previsto com antecedência no Universo temporal
pelos satélites de Saturno, os quais, circulando ao redor do anel cujo
centro é ocupado por esse astro, não podem penetrar em sua área.
A respeito disso, temos ainda um quadro sensível em várias substâncias
elementares. Depois e haverem sofrido as diversas operações do
fogo, vitrificaram-se e adquiriram uma transparência que nos deixa perceber
a luz da qual anteriormente nos mantinham separados. Do mesmo modo, depois das
diversas ações dos Seres destinados a cumprir os desígnios
do Criador no Universo, eles se libertarão, pelas virtudes de um fogo
superior, de todas as substâncias de sua Lei temporal, as quais não
passam de impureza com relação ao primeiro estado no qual jamais
deviam deixar de estar. Tomarão então uma claridade viva e formarão
ao redor do Ímpio uma barreira luminosa, através da qual sua vista
intelectual poderá penetrar, mas que ele mesmo não poderá
atravessar enquanto sua vontade permanecer impura e ele não houver vomitado
até à última gota a bebida de iniqüidade cujo amargor
e horror totais terá sido forçado a provar durante os séculos.
É aí que se encontrará o complemento de um tempo, dos tempos
e da metade de um tempo. Depois do parto universal, haverá um produto
como nos partos particulares e isso é o metade de um tempo de Daniel.
Ora, de acordo com a idéia que demos da vontade, é impossível
marcar outro termo a essa privação ou a esse metade de um tempo,
a não ser aquele que o Ímpio marcar para si mesmo. Pois, como
medir então a duração de seus atos? Bastaria que eles pudessem
ser comparados ao tempo, e a medida do tempo será quebrada. Mas como
o Ímpio estará junto à luz sem poder usufruí-la,
seus sofrimentos serão inconcebíveis. Não conhecerá
o choro e o ranger de dentes, aos quais já se fez alusão na obra
já citada pelo número cinqüenta e seis, visto que essa expressão
representa simultaneamente o Princípio da idolatria e o limite o separará
da morada da perfeição. Estando, pois, excluído da ordem
e da pureza, o horror e o desespero serão o seu caminho, o furor e a
raiva as suas únicas afeições, até que, reduzido
a dilacerar seus flancos para nutrir-se e estancar a sede com o próprio
sangue, ele próprio devore a corrupção da qual se infectou
e faça passar sua fonte inteira pelos ardores de seu próprio fogo.
Se, ao contrário, o homem apenas recebeu e cultivou em si germes salutares
e análogos à sua verdadeira natureza; se foi bastante feliz para
regar com suas lágrimas essa planta fértil que todos encerramos
em nós mesmos; se compreendeu que devia trazer, como todos os Seres,
os signos característicos de seu Princípio e que ser algum, exceto
o primeiro de todos os Princípios, podia haver-lhe dado existência;
se desejou assemelhar-se a esse Princípio conformando-se às suas
imagens enviadas no tempo; se tentou torná-lo conhecido por seus semelhantes,
amando-os como ele os ama, tolerando seus desvios como ele os tolera, transportando-se
pelo pensamento aos tempos de calma e de unidade em que as desordens não
mais o afetarão; e se ele se esforçou para atravessar esta morada
de trevas sem fazer aliança com as ilusões que a compõem,
havendo tomado nessa passagem laboriosa somente aquilo que pudesse ampliar sua
própria natureza sem desfigurá-la - então ele colherá
frutos cujo gosto, cor e perfume deleitarão os sentidos intelectuais
de seu Ser, ao mesmo tempo que estes lhe estimularão continuamente todas
as faculdades. Nada os separará das esferas superiores, das quais as
esferas visíveis não passam de imagens imperfeitas, e cujo movimento,
dirigido segundo relações inalteráveis, gera a mais sublime
harmonia, transmitindo os acordes Divinos à universalidade dos Seres.
"Aí, como os Anjos no Céu, ele não será mais
marcado pelo número da reprovação expressa hoje pela diferença
de sexos, porque o Princípio animal, aquele cuja ação geradora
e constitutiva refere-se especialmente à produção dos sexos,
será enviado de volta à fonte e não mais agirá materialmente.
Haverá corpos, no entanto, mas animados por uma ação mais
viva do que a da matéria, e neles serão caracterizadas somente
as partes da nossa forma que servem de sede ao espírito e que o manifestam,
ou as que podem ser empregadas no exercício puro de suas funções."
Todas as ciências e virtudes dos Agentes que a Sabedoria divina apresentou
para sustentáculo e instrução do homem desde a origem da
desordem tornar-se-ão seu quinhão: ele terá a sua força,
seu zelo pelo reino da verdade, sua inteligência para compreendê-la
e sua pureza para dela usufruir. Havendo deixado longe de si as alegorias e
os símbolos, reconhecerá intuitivamente essas mesmas virtudes
que a caridade apartou do Princípio para virem guiar e sustentar o homem
até mesmo no lugar de sua laboriosa expiação. Nele elas
gozarão do fruto de seus trabalhos: nelas ele gozará do prazer
inexprimível de poder tocar e abençoar com mãos benignas.
Como todos estarão libertados das solicitudes e dos atos dolorosos aos
quais a Lei do tempo os sujeita ainda, erguerão com segurança
os olhos cheios de alegria e comoção em direção
à fonte da qual receberão todos os deleites. Revestindo-se da
simplicidade de seu primeiro caráter, terão o direito de levar
a mão ao incensório e oferecer, cada um segundo sua medida e seu
número, perfumes puros e voluntários àquele que lhes terá
feito experimentar a paz sagrada e as virtuais delícias da verdade. Sabemos
que os testemunhos universais dos Povos estão de acordo sobre essa Doutrina
consoladora. Se todos os Povos têm o seu Minos, se todos têm a idéia
de seu formidável Tribunal e a do Tártaro, onde os homens culpados
passarão dias de horror e de trevas, também têm a idéia
dos campos afortunados onde os Seres virtuosos e pacíficos gozarão
sem perturbação nem inquietações do fruto dos dons
felizes que tiverem espalhado na terra. O homem puro poderá então
recuperar o acesso a esse Templo imperecível cujas maravilhas devia divulgar
e da qual o crime o baniu. Ele se aproximará da Arca sagrada sem temor
de ser derrubado porque, mais poderosa do que aquela de que nos falaram as Tradições
dos hebreus, ela só deixará entrar em seu recinto aqueles que
houver purificado. Aí, Ser algum ficará exposto à punição
de Oza, porque a Arca sagrada é o depósito da clemência
e da vida e, assim como é, ao mesmo tempo, o centro, o germe e a fonte
de todas as Potências, para sempre será totalmente impossível
que o homem seja admitido ao seu culto sem que ela própria lhe abra seu
Santuário. O Sumo Sacerdote da lei anterior ao tempo, o mesmo que presidiu
de maneira invisível aos cultos de todos os Povos da terra, - uma vez
que não há nenhum dentre eles que anuncie os vestígios
da verdade - o mesmo que teve de apresentar ao homem, no meio dos tempos, o
quadro de seu Ser e a reunião de todas as virtudes divinas subdivididas
para nós por causa do pecado, será também aquele que irá
presidir a esse culto futuro e posterior ao tempo, pois sendo o único
Agente universal da Sabedoria suprema, é o único que pode distribuir
a universalidade das graças que destina a todos os seus filhos. Ele habitará,
no meio dos Levitas escolhidos que, havendo vencido a corrupção
tal como ele, serão julgados dignos de cumprir as funções
santas nos Templo. Lá, ele os verá trazer sem descanso ao seu
redor as oferendas de seus louvores e de seu amor e, derramando ele mesmo sobre
elas a sua unção vivificante, fará com que dela se exalem
perfumes odoríferos e numerosos, que esparzirão a santidade por
toda a extensão de augusto recinto. Tais perfumes, sucedendo-se com abundância
inexaurível, elevar-se-ão até a fonte primeira de toda
vida e de toda inteligência, e essa fonte inesgotável, sempre penetrada
pela atividade dos perfumes, entreabrir-se-á sempre para deixar, com
a mesma abundância e continuidade, dimanar até a alma dos homens
as doçuras de sua própria existência. Assim, o homem poderá
nutrir-se para sempre da vida de seu modelo. Assim o grande Ser poderá
contemplar-se eternamente em sua imagem, porque, ele próprio regenerando-a
incessantemente, dar-lhe-á com isso o direito sublime de ser o signo
indelével de seu Princípio. Por fim, cada homem gozará
não apenas do dom que lhe será próprio, mas poderá
ainda participar nos dons de todos os Eleitos que compuserem a assembléia
dos Sábios. Como no mundo os diversos homens, ao se reaproximarem, poderiam
multiplicar reciprocamente suas virtudes, nutrir-se cada um com as que brilham
em seus semelhantes, derramar sobre todos o talento de um, fazer germinar em
um os talentos de todos: tal será o esplendor futuro dessa comunicação
mútua pela qual todos os homens, unindo seus deleites aos do grande Ser
e de todas as suas criações, farão com que todos os indivíduos
vivam no mesmo ser e o mesmo Ser em todos os indivíduos. Esse culto futuro
em nada se assemelhará aos sacrifícios severos e sanguinários
relatados nos Livros dos hebreus para fazer com que o homem conheça de
maneira sensível a severidade da justiça e para lembrar-lhe a
separação penosa que neste mundo ele tem a obrigação
contínua de fazer de todas as substâncias estranhas à sua
verdadeira Natureza se não quiser permanecer na ilusão e na morte.
Esse culto será até superior ao culto temporal, à Lei da
graça estabelecida pelo regenerador universal, onde deve ainda haver
tempos, intervalos, objetos mistos e passageiros. Então não mais
haverá diferentes estações, nem mais nascente, nem mais
poente para os Astros que nos irão iluminar. Não mais passagem
da luz às trevas, não mais momentos estabelecidos para a prece
do homem, não mais momentos em que suas necessidades ou máculas
o obriguem a suspendê-la. Aqueles que forem admitidos aos sacrifícios
nem mesmo serão perturbados pela diversidade de línguas, pois
a ordem universal está ligada à uniformidade das línguas
e o Princípio supremo é tão majestoso que basta a reunião
das vozes de todos os Seres para o celebrar. Assim, pois, todos os sábios
reunidos, no mesmo instante, junto ao mesmo Altar e sem jamais cessar, poderão
ler, sem perturbação nem desconfiança, no Livro eterno,
sempre aberto diante de seus olhos, OS NOMES SAGRADOS QUE FAZEM FLUIR A VIDA
EM TODOS OS SERES.....! 2 Homens de paz, homens de desejo, tal é o esplendor
do Templo no qual um dia tereis o direito de tomar lugar. Um privilégio
como esse não deve surpreender-vos, já que neste mundo podeis
lançar os fundamentos desse Templo, começar a erigi-lo, e até
mesmo orná-lo em todos os instantes de vossa existência. A natureza
inteira vos oferece o exemplo: quando os vegetais são semeados na terra,
quando os animais estão no ventre da mãe, todos trabalham, empregando
continuamente suas ações para transformar seu estado grosseiro
e informe numa maneira de ser ativa, livre e aproximada da perfeição
que lhe própria. Mas, para terdes direito a essa sublime expectativa,
sondai com freqüência o vosso Ser a fim de terdes a certeza de que
ele só anseie pelo reino da verdade, e não pelo vosso. É
essa a bússola do Sábio, o pacto que ele deve fazer sempre consigo
próprio. Conservai sempre uma idéia bem nobre do Princípio
que vos anima para crerdes que, depois daquele que vos deu a existência,
nada há para vós tão respeitável quanto vós
mesmos. Será isso uma muralha que vos defenderá não somente
das aproximações de tudo o que for contrário à vossa
natureza, mas também de tudo o que não for digno dela e que não
tenha relações verdadeiras convosco. Como os homens são
a expressão das faculdades do grande Princípio, cada um deles
é assinalado de maneira mais especial por uma dessas faculdades. Mas,
embora ele deva manifestar mais naturalmente as propriedades análogas
ao Princípio; embora no mundo estejam todos sujeitos a experimentar períodos
de lentidão, a percorrer progressões diversas e graus diversos
na aquisição e no desenvolvimento do dom que lhes é próprio;
não obstante, ligados por sua essência ao Princípio universal
dos Seres, todos eles têm relações com a universalidade
de suas virtudes e de sua luz, mas de maneira proporcionada à esfera
que habitam e à inferioridade da criação com relação
ao seu Princípio regenerador. A partir de então, se o homem que
atingiu a idade madura ainda for estranho a qualquer ciência e qualquer
luz e se ainda for inacessível a qualquer deleite puro, honesto, natural
e verdadeiro, não será um homem completo, pois o conhecimento
e a felicidade nada mais são que a aplicação do emprego
ativo e vivo das virtudes supremas aos diversos objetos, classes e situações
onde ele possa encontrar-se. Assim, o homem infeliz está como que morto,
já que não conhece a vida; o homem ignorante é um doente
e um enfermo que assim se tornou apenas por não haver exercido sua forças;
e o homem misantropo e sem caridade é um covarde e um ímpio, já
que não faz uso do que nele existe para vivificar o que lhe causa aversão
e que não tem confiança suficiente em seu Princípio para
crer que esse Princípio tenha força quando ele apelar ao seu socorro.
Ó homens! -tentarei apresentar-vos aqui alguns meios de preservação
para vos garantir dos desvios e desventuras que vêm como conseqüência.
Lembrai-vos de que, segundo o ensinamento dos Sábios, assim como é
em cima é em baixo, e imaginai que vós mesmos podeis concorrer
nessa semelhança agindo de modo que em baixo seja como em cima. Lá
se é simples e puro como o Princípio que tudo tem em si, lá
reinam o ardor e o zelo para que as Leis do Templo permaneçam intatas
e para sempre honradas pela veneração dos Seres. E lá os
anseios e desejos ardentes não cessam de exalar-se diante de Trono do
ETERNO, seja para implorar-lhe a clemência para com os infelizes prevaricadores,
seja para celebrar suas virtudes e benefícios. Aprendei, pois, nesses
atos sublimes, o ministério que vos é confiado: os Agentes que
os exercem nada mais fazem do vos indicar as vossas obrigações
e não teríeis a faculdades de ler neles se não tivésseis
a de imitá-los. "Não negligencieis os socorros da terra sobre
a qual caminhais. Ela é a verdadeira cornucópia para o vosso estado
atual e, não sem razão, considerada por alguns observadores como
contendo um ímã enorme no seu interior. Pois realmente ela é
o ponto de reunião de todas as virtudes criadas. Até mesmo é,
de algum modo, o reservatório da verdadeira Fonte da Juventude, da qual
a fábula nos transmitiu tantas maravilhas, pois nessa fonte é
preparada a substância que serve de base e de primeiro grau para a regeneração
ou o renascimento de todos os Seres. E é o crisol das almas tanto quanto
dos corpos feliz daquele que souber descobrir-lhe as propriedades! Pois não
conhecer as coisas por elas mesmas é não saber nada e não
basta crer que tudo esteja ligado, que tudo está ativo; é preciso
que busquemos estar certos disso e senti-lo. Aprendereis então o que
significa ajudar a terra a Sabatizar e por que razão os hebreus mereceram
tantas reprovações por se haverem descuidado desse dever enquanto
habitavam a terra prometida. Pois no físico ativo acontece o mesmo que
no físico passivo, onde vemos que, se o homem não prestar seus
cuidados à terra através da cultura, ela apresentará uma
vegetação grosseira e selvagem. "As propriedades da água
não vos serão menos úteis de conhecer porque, como mina
de todos os sais e contendo em si todos os germes de corporificação,
ela é, em princípio e potência, o que a terra é somente
em ato, na qualidade de uma matéria já determinada. Vereis que
a cor verde é particularmente destinada ao reino vegetal, expressão
dos princípios da água e que possui nos três reinos a mesma
posição intermediária da água nos três elementos
e do verde entre as sete cores do arco-íris. Não desdenheis de
observar que em toda a superfície do globo terrestre a água permanece
sempre em nível mais baixo do que as terras que a circundam embora, por
sua natureza fluida, esteja destinada a ser mais elevada: vereis nessa imagem
física uma representação natural e sensível da posição
inferior que todas as virtudes ocupam hoje para virem em vosso socorro, embora
tenham sido feitas para dominar em todas as regiões. Podereis também
considerar a água sob um outro ponto de vista, a saber: com relação
às desordens por ela causadas na superfície terrestre, porque
no sensível todos os tipos são duplos e porque o da água
traz especialmente esse número. Comparandose, pois, as diversas regiões
por ela submergidas com as que ela deixa a descoberto; considerando-se a figura
exterior de nosso globo, na qual a água e a terra estão associadas
de maneira tão diversa, podereis estender vossas luzes sobre os efeitos
progressivos, gerais e particulares do crime e sobre o verdadeiro estado da
Geografia intelectual, antiga, presente e futura. Mas sobre esse artigo, bem
como sobre todos os desse gênero, não vos detenhais à primeira
impressão. Quanto mais as descobertas são susceptíveis
de serem ampliadas, tanto mais é importante não adotá-las,
a não ser com bastante precaução e prudência. Se
tiverdes a felicidade de adquirir conhecimento das propriedades do fogo, elas
vos parecerão preferíveis a todas as outras forças elementares,
porque aí tocareis a própria raiz da grande árvore temporal,
à qual estão ligados todos os fenômenos físicos e
por onde flui a seiva que anima e nutre os Agentes sensíveis. E para
mostrar-vos com segurança a verdadeira posição desse elemento
acima dos dois outros, observai que o Sol é sempre luminoso por si mesmo
e em todos os sentidos, enquanto que a Lua e a Terra têm apenas uma luz
emprestada, ficando metade delas sempre nas trevas. Se em seguida quiserdes
avaliar o estado penoso e degradado do homem no mundo, tanto com relação
aos conhecimentos elementares quanto aos conhecimentos superiores por eles representados,
notareis que, dos três Agentes destinados particularmente à nossa
instrução, o Sol está sempre na plenitude quando se apresenta
aos nossos olhos; a Lua, somente uma vez por mês e a Terra, jamais, já
que nela só podemos descortinar um horizonte muito limitado. Mas, para
reanimar nossa esperança no meio das privações que sofreis,
prestai atenção ao fato de que, a exemplo da ação
universal da vida, qualquer fluido, aquático, ígneo, magnético
ou elétrico, tende sempre a recuperar o equilíbrio e a se dirigirem
aos lugares em que fazem falta. Prestai atenção ao fato de que
o ar mais grosseiro, o mais concentrado nos corpos materiais, está sempre
em correspondência com o ar da atmosfera, passando continuamente pelos
corpos e penetrando até nos menores vasos, mas, quando se sensibiliza,
por assim dizer, e se modifica de acordo com as nossas situações
e os estados de nossa forma, não deixa por isso de manter a comunicação
com o ar mais puro, mais livre e mais destacado do etéreo. Se todos esses
conhecimentos elementares vos parecessem indiferentes, é porque talvez
ainda não apreendestes o conjunto e a universalidade do império
do homem. Mas os Sábios de todos os tempos os pesquisaram cuidadosamente,
considerandoos um bem que faz parte de seu domínio e uma via favorável
para escalar graus mais elevados. Esses mesmos Sábios foram por demais
prudentes para quererem caminhar numa carreira semelhante sem leis nem regras
constantes porque sentiram que nada devia haver de arbitrário no culto
que o homem está encarregado de exercer na terra. É aqui que os
números sensíveis exercem maravilhosamente os seus direitos, classificando
numa ordem exata as propriedades de todas as regiões, reinos, espécies
e indivíduos do Universo elementar. É aqui que se pode começar
a adquirir um conhecimento certo das Leis iniciais, médias e terminativas
de todas as coisas corporais porque, como essas coisas são mistas, são
suscetíveis de decomposição e análise e porque o
número de seus princípios é análogo ao número
de as suas ações, sejam primitivas e de origem, de existência
e de duração, de enfraquecimento e de destruição.
Por fim, é aqui que são feitas as primeiras aplicações
do verdadeiro sentido do termo iniciar que, na etimologia latina, quer dizer
reaproximar, unir ao princípio, significando o termo initium tanto princípio
quanto começo. E, conseqüentemente, nada mais de acordo com as verdades
expostas anteriormente do que o emprego das iniciações em todos
em povos, nada de mais análogo à situação e à
esperança do homem do que a fonte da qual derivam as iniciações
e o objeto que elas tiveram de propor-se por toda parte: anular a distância
que existe entre a luz e o homem, ou de reaproximá-lo de seu Princípio
restabelecendo-lhe o mesmo brilho em que se achava no princípio. Quando
os Agentes sensíveis de que acabo de falar houverem consumido com sua
atividade as substâncias impuras que maculam vossos órgãos
materiais; quando eles vos houverem regenerado corporalmente com sua própria
vida, contribuindo assim para que vossas faculdades intelectuais retomem o equilíbrio
e a agilidade proporcionados à vossa situação enferma e
dolorosa, erguei os olhos para as virtudes esparsas e subdivididas de todos
os Seres de uma outra ordem, antecessores da época da inteligência
como seus Agentes e Ministros. Buscai, tirando proveito constante dos pensamentos
que eles vos enviam, tornar-vos suficientemente análogos a eles para
facilitar a reaproximação de sua essência e da vossa. Com
essa união, eles vos convencerão, de novo e fisicamente, que estais
destinados a contemplá-los na totalidade e na unidade, e vos confirmarão
a certeza de todos os conhecimentos elementares cuja descoberta e aquisição
já tereis feito, porque o mesmo princípio que produziu os Seres
e os Agentes de todas as classes dirige e governa a todos por uma única
e mesma Lei. Também na mesma região, no mesmo fato e no mesmo
fenômeno em que perceberdes uma verdade naturalmente elementar, estai
certos, se fizerdes emprego oportuno de vossas faculdades, de que encontrareis
uma verdade natural intelectual; estai certos de que percebereis na nova classe
o mesmo plano da classe precedente, de que até mesmo nele reconhecereis
propriedades análogas e inclinadas para o mesmo fim, porque tudo se liga,
tudo se toca, tudo é um nos meios, assim como no objeto que o Autor das
coisas se propôs. É assim que no homem os órgãos
corporais que manifestam as mais perfeitas funções animais, tais
como as que se realizam na cabeça e no coração, são
igualmente a sede dos mais belos traços de seu Ser imaterial, a saber:
o amor e a inteligência. Por fim, não somente não há
fato físico algum que não seja vizinho de uma verdade intelectual,
mas não existe nenhum nos grandes fenômenos e no jogo das grandes
molas do Universo que não seja o prognóstico de uma dessas verdades
e que não a proclame tal como ela deve chegar em seu tempo - de modo
que o Universo material, considerado nesse aspecto, é para o homem intelectual
uma verdadeira profecia." Por servirem de intermediários entre os
objetos físicos e os divinos, os Agentes superiores vos indicarão,
por sua ação, o verdadeiro destino do homem e o verdadeiro lugar
que ele deveria ocupar, ou seja; que vos exporão por si mesmos as verdadeiras
relações existentes entre Deus, o homem e o Universo. Por um lado,
eles vos mostrarão novamente a quantidade e a subdivisão de todas
as coisas elementares e inferiores que, em virtude de seu número e multiplicidade,
não oferecem em si mais do que confusão e ruína. Por outro,
através de sua união mútua e geral e de sua perfeita correspondência,
vos convencerão da unidade do Princípio supremo. Mostrar-vos-ão,
através de sua harmonia universal, que a unidade é o único
número sobre o qual repousam todos os dons que nossas necessidades não
deixam de atrair sobre nós, dons que todos os homens da terra, sem exceção,
perseguem por movimentos secretos dos quais não são donos. Far-nos-ão
conhecer que se, a exemplo deles, nos mantivéssemos constantemente diante
dessa unidade, isto é, sob nossa linha superior e divina, desceria sobre
nós uma substância fixa e pura de força e de ação
que, acumulando-se ao nosso redor, formaria uma base maior ou menor, mais vasta
ou menos vasta, conforme lhe abríssemos, para mais ou para menos, os
nossos canais imateriais próprios para se alimentarem dela. Como no mundo
o homem é mais freqüentemente o tipo do mal do que do bem, ele justifica
essa verdade com exemplos funestos, em vez de justificá-la com exemplos
consoladores. Assim, o que experimentamos com mais freqüência é
que a base da qual acabo de falar diminui para nós à medida que
estreitamos os canais intelectuais - que são como que os sentidos de
nosso espírito - e quando interceptamos inteiramente a comunicação,
nosso centro intelectual, não recebendo mais a substância que deveria
formarlhe a base, vacila sobre si mesmo e tomba, ficando exposto à revolução
das circunferências inferiores e horizontais que o arrastam, deixando-o
errar segundo suas leis desordenadas: "é o que as justiças
humanas têm representado pelo costume de lançar aos ventos as cinzas
dos criminosos". Ao contrário, os Agentes puros e intermediários,
oferecendo senão os tipos do bem, devem dar-nos a conhecer que, se não
fechássemos nenhum de nossos canais imateriais, veríamos nossa
base estender-se a uma distância imensa e conseguir, talvez, extensão
suficiente para cobrir o Universo inteiro. Nem mesmo podemos duvidar disso se
refletirmos sobre nosso destino primitivo e nos lembraremos de que era esse
o estado da majestade do homem, que as virtudes do Universo eram necessárias
para contê-lo e servir-lhe de sede - da mesma forma que, em seu estado
atual, a forma corporal em que está aprisionado só lhe abrangeria
e sustentaria o Ser intelectual na extensão de todas as suas faculdades
por ser a mais regular das formas e o resumo mais semelhante do grande Universo.
Isso é uma base bem extensa e de apoio sólido, uma união
geral e do vasto conjunto dos Agentes puros e intermediários que, planando
acima do mundo sensível, tendem a vos secundar, defender e cercar-vos,
para que possais elevar-vos como eles com segurança e uma verdadeira
luz até à Unidade universal que os domine e a todos vivifica.
Por conseguinte, esses mesmos Seres, puros e intermediários, vos ensinarão
que o Agente depositário dessa unidade, trazendo em si a vida e a claridade,
pode produzir em vós, como neles produz, a força e a paz que lhe
são próprias, pois a mais bela de suas virtudes é o desejo
de partilhá-las todas convosco. Assim esse Agente, móvel de todos
os dons e socorros que alcançam vossa região, tornar-se-á
o agente de todos os movimentos de vosso Ser quando todas as vossas faculdades
dispostas por vossos desejos, "pela terra, pelo óleo, pelo sal e
pelo fogo", houverem recuperado o grau de pureza necessário para
que se vos abram as primeiras portas do Templo e nele sejais adotados pelos
Guias fiéis que no mundo devem transmitir-vos as virtudes do Santuário,
até haverdes adquirido o direito e o poder de irdes vós mesmos
hauri-las na mesma fonte que eles. Reconhecei, pois, que, desde o grau mais
inferior até o mais superior podeis esperar socorros em todos os passos
que tendes a dar para percorrer a carreira e reabilitar-vos nos direitos de
vossa origem. Reconhecei também que nenhum desses socorros pode ser estranho
ao Agente universal que determinou a época da inteligência e trouxe
aos homens o complemento de todas as virtudes e luzes. Como sua essência
é inerente ao próprio centro de onde provêm todas as essências,
todos os fatos puros e todos os apoios, nada do que é realizado no bem
pode ser realizado sem seu consentimento e sem ser dele o princípio mediato
ou imediato. Assim, quando vos ocupardes em atrair para vós as virtudes
diversas dos Seres imateriais encarregados de pôr novamente em ação
o vosso pensamento, serão os socorros do Agente supremo que recebereis,
pois os Seres são seus órgãos e administradores. Mesmo
quando vos aplicardes apenas a objetos elementares, se sentirdes que vossos
conhecimentos e vossas forças se ampliam, tende a certeza de que ainda
é Ele que realiza através dos Seres os sucessos que obtendes,
assim como é Ele que a todo instante opera a sua existência e todos
os seus atos regulares. Portanto, não existe obra pura, de qualquer gênero
que seja, em que não possais reconhecerlhe a potência e, por assim
dizer, comunicar-vos com Ele. A única diferença que distingue
as diversas operações é que, em umas, Ele age através
de simples emanações ativas e que, nas outras, por emanações
inteligentes; que, para umas, Ele preserva, anima e instrui e que, para outras,
renova, eleva e santifica. Mas nessa diversidade de ações, e sob
os nomes de Preservador, Instrutor, Renovador e Santificador, não podeis
eximir-vos de ver o próprio Ser, o próprio Agente supremo e universal,
pelo qual tudo é medido, tudo existe, e que apenas se reveste desses
diferentes caracteres para melhor prestar socorro às nossas necessidades
e preencher em toda a extensão os vastos desígnios que tem para
nós. É preciso não esquecer que, se os homens fossem atentos
e procurassem dobrar-se aos ditames da sabedoria, veriam, cada um em particular,
realizar-se neles, e com relação a eles, a mesma ordem de fatos,
a mesma seqüência de manifestações que reconhecemos
anteriormente ter-se operado em geral em toda a nossa espécie para o
cumprimento da grande obra. Se, por esses caminhos mediatos e secundários
podeis, de algum modo, receber sempre os socorros do supremo agente que em todas
as épocas tem sido o artesão e o sustentáculo dessa grande
obra, e experimentar continuamente consolações particulares, é
fácil para vós julgar o que seriam os vossos deleites e os vossos
sucessos se, pela vossa confiança nos socorros e consolações
vos elevásseis para serdes amparados imediatamente por sua própria
potência. Quando, pois, vossos males se tornarem por demais prementes,
quando as águas de vossa obscura morada estiverem prestes a inundar-vos,
e mesmo quando as trevas da ignorância vos parecerem penosas e insuportáveis,
pedi à SABEDORIA, por intermédio do Agente, alguns raios de seu
fogo para os dissipar. Poderia ela, sem se esquecer de si mesma, não
se render aos anseios de sua própria substância e às virtudes
dAquele sobre quem repousam, ao mesmo tempo, seu NÚMERO e seu NOME? Pedi
à Sabedoria, repito, por intermédio dEle, que ela própria
supra à vossa impotência, que ponha o seu pensamento no lugar do
vosso pensamento, Sua vontade no lugar da vossa vontade, Suas palavras no lugar
das vossas palavras e, depois de haver assim renovado todo o vosso Ser, e vos
houver tornado invencíveis e incorruptíveis como Ela, não
poderá recusar vossas ofertas, já que serão os Seus próprios
dons que lhe apresentareis. Com isso, ela não estabelece um termo às
vossa esperanças. Com isso, ela assegura força ao vosso ser se
ele estiver padecendo, abundância se ele estiver em carência, ciência
se for ignorante. Mais ainda: garante-lhe a vida e a luz mesmo quando ele estiver
morto e sepultado no mais profundo abismo. Pois, se por suas faculdades ativas
o Princípio supremo concebeu a harmonia dos Seres sensíveis e
por suas faculdades pensantes produziu vosso Ser inteligente, como poderia ser-lhe
mais difícil regenerar vossas virtudes do que terlhes dado existência?