Ecce Homo
por
Louis Claude de Saint Martin


Página 1

Capítulo I

Quando no campo das ciências exatas e naturais, nos defrontamos com os axiomas, não nos perguntamos porque estes são verdadeiros; estamos convencidos que encontram a sua resposta em si mesmos.

Tal sensação encontra a sua razão de ser na relação que existe entre a exatidão daqueles axiomas e a centelha de verdade que brilha em nossa mente. É como se nos encontrássemos de fronte a dois raios de uma mesma fonte de luz que mesmo parecendo distantes um do outro, unem-se pela sua analogia e penetrando-se transmitem o calor e a luz reciprocamente.

Servir-nos pelo menos da verdade que os axiomas nos ensinam mesmo parcialmente, pode ser importante para nós, mas a existência desses dois elementos essenciais que acabamos de conhecer não pode determinar nem a exatidão do axioma nem a intensidade da centelha de verdade em nossa mente. Ambos apresentam-se dotados de uma vida natural própria sem perigos de impedimento e os dois raios poderiam separar-se sem produzir nenhum efeito e não perderiam a sua essência e o seu caráter constitutivo. Um matemático poderia encontrar-se imerso no sono; isto certamente não impediria a verdade geométrica de existir e nem o engenheiro de possui-la ou servir-se dela no momento oportuno.

Existe porem, uma filosofia que nega tudo isto, porque não distingue nos seres a essência como algo distinto das suas várias propriedades, porque detém-se nas simples modificações das coisas e nega, ou antes, condena abertamente a existência autônoma dos seres alem das impressões. Queremos simplesmente advertir sobre isto, sem deter-nos em uma discussão, a todos aqueles que não conhecem esta filosofia e asseguramos, que encontrarão em si mesmos a defesa de tais dúvidas. Passemos adiante.

A alma humana, seja por um impulso próprio, seja por uma dádiva, eleva-se ao sentimento íntimo do ser universal que abraça tudo e produz cada coisa, ao sentimento daquele ser desconhecido que chamamos Deus. A alma não mais procura na descoberta de axiomas particulares como dar-se conta da verdade total da qual se sente conquistada, nem da viva alegria que a verdade lhe dirige; esta sente que este grande ser ou este grande axioma existe por si e que é impossível que não exista. Sente igualmente em si, através do contato divino, a realidade da própria vida pensante e imortal. Não tem mais necessidade de indagar sobre Deus nem sobre si mesma; e no afeto santo e profundo que experimenta e diz para si em um verdadeiro e particular êxtase de segurança:
- Deus e o homem são seres verdadeiros que podem conhecer-se na mesma luz e amar-se no mesmo amor.

Como pode a alma ter a sensação exata de tais verdades imutáveis? Em virtude da mesma lei que manifestou à sua mente a certeza dos axiomas parciais; esta sente a existência inatacável do princípio superior de seu ser e dela própria através da relação e das ligações que existem entre estes. Pois sem isto, a convicção da existência destes dois seres não poderia atingir-nos nem fixar-se em nós, e se este fogo divino não encontrasse em nós uma analogia poderosa, nos atravessaria sem deixar nenhum vestígio e nenhum sentimento de si.

Baseado na mesma lei - que aproveitamos ou não os tesouros de verdade revelados do contato divino - o fato possui indiscutivelmente uma grande influência sobre as nossas verdadeiras satisfações, mas não há nenhuma influência sobre a existência em si dos tesouros, nem sobre a existência da parte do nosso ser que constitui o seu receptáculo. Assim, a privação deste sublime sentimento nas almas alteradas, e todos os pensamentos ilógicos que dai derivam, não podem aniquilar nem o principio necessário e eterno dos seres nem a analogia divina que todos nós temos com este. Aquilo que é pode ser confirmado e valorizado pêlos sinais ou testemunhos exteriores, mas não pode derivar destes a própria realidade, enquanto esta é anterior, independente e o existir de fato a traz em si.

Este aspecto de lógica natural, classificando os testemunhos, não exclui os seus privilégios. Aquilo que é, não pode derivar a própria realidade dos sinais e dos testemunhos exteriores, pois tal realidade é anterior a estes. Não é portanto verdade, que na esfera temporal na qual nós estamos, sem eles e sem a sua ação, a realidade do fato não poderia manifestar-se fora de si própria; e nem aqueles sinais e testemunhos exteriores podem considerar-se como indicadores seguros da fiel expressão do tipo de realidade ou do tipo de idéia que se delineia nestes, para fazer-se conhecer. Esta lei, mal aprofundada, deu lugar ao erro dos filósofos induzindo-os a confundir o meio com o principio, o órgão da manifestação com a fonte desta manifestação.

Ora, visto que percebemos que não existe uma realidade que procura preencher a própria medida, devemos presumir que a imensa quantidade de objetos que nos rodeiam tenham um amplo e importante objetivo, isto é: promover as realidades, cada uma segundo o próprio gênero e a própria classe, ou se quiser, testemunhar em favor daquilo que é e de qualquer sua manifestação. De fato, é útil para o nosso pensamento conhecer os fatos e as realidades, e para a nossa alma assenhorar-se onde cresce o patrimônio da existência.

Mesmo havendo pouca familiaridade coma as obras já publicadas sobre temas do gênero, é necessário reconhecer que o nosso ser espiritual e o nosso ser físico, possuem algumas faculdades relativas ao importante escopo do conhecimento. Com efeito, os nossos órgãos materiais transmitem à nossa animação sensível, a impressão das formas e das imagens de todos os objetos que a eles se apresentam, assim como transmitem o sentido das diversas propriedades das quais tais objetos estão revestidos.

A nossa alma pensante em seguida, tem a tarefa e o poder de analisar todas aquelas propriedades, de considerar qual seja o escopo da existência de todos aqueles diversos objetos, quando o fim lhe é desconhecido. A alma pensante tem o direito de procurar nos objetos, a idéia da qual estes são a expressão, quais fatos estes atestam, ou quais realidades manifestam; e todos nós devemos admitir que não estamos real e completamente satisfeitos, se não quando, o nosso pensamento alegra-se no conhecer o fim ultimo dos objetos; assim como o nosso ser sensível alegra-se com as impressões que recebe das diversas propriedades dos próprios objetos: novo motivo para convencer-nos que todos os objetos são a expressão de uma idéia. De fato, como poderiam estes, conduzir nossa inteligência à este escopo luminoso e de satisfação, se não fossem eles próprios por assim dizer, descidos do mundo da luz ou do mundo das idéias?

Por outro lado, os hábitos mais comuns entre os homens não nos iluminam sobre a grande verdade, que todos os objetos que nos circundam são a expressão de uma idéia? Todas as invenções das quais se servem os homens hoje em dia para as próprias necessidades, para os próprios prazeres, para a própria comodidade, não portam em si o caráter da idéia a qual devem a própria origem? Um livro não é talvez o sinal do projeto de um homem que decidiu representar os próprios pensamentos em um único órgão? Uma carruagem não é o sinal da intenção de um homem fazer-se transportar rapidamente e sem fadiga? E também a casa não representa a exigência de obter uma vida cômoda protegidos das intempéries?

Acreditamos portanto, que a Sabedoria suprema tenha também idéias e planos nas suas obras, como nós temos nas nossas. Esta, alem disso é com certeza mais fecunda e mais inteligente do que nós. Portanto as suas obras, se conhecêssemos o espírito, teriam a sublime vantagem de dirigir ao nosso pensamento e a nossa alma satisfações mais vivas do que aquelas que dirigem à nossa vista ostentando-nos a pompa de sua magnificência exterior e da rica mas regular variedade de suas formas. Acreditamos ao mesmo tempo, que o objetivo da Sabedoria suprema seja aquele de aplicar o nosso ser na busca dos próprios planos, multiplicando sob os nossos olhos, a imensidade de objetos diversos. De fato, se é verdade que cada realidade procura fazer-se compreender e manifestar-se e que não pode faze-lo se não com os seus sinais e com o seus testemunhos, nós facilitaremos e ajudaremos esta manifestação interrogando cuidadosamente os testemunhos e os sinais, recolhendo com cuidado ainda maior as suas indicações.

Mas entre todos estes sinais e estes testemunhos, quem mais se não o homem poderia ser mais digno da nossa atenção, e revelar-nos as maiores verdades? Quem mais nos ofereceria indícios mais significativos? Quem mais deixaria correr perante nós os numerosos rios de fogo que parecem brotar vivamente de seu pensamento e de seu coração e que nos mostram, por assim dizer, como sentado sobre o trono de todos os mundos para julgá-los e governá-los sob os olhos do Soberano invisível, o único ser que o homem encontra acima de si?

Todos os outros sinais que compõem o universo não nos são oferecidos, dada a fragilidade que os caracteriza e a suas surpreendentes disparidades, se não como tantos outros reflexos passivos e parciais de potências espirituais e secundárias da divindade.

O homem, pelo contrário, aparecendo colocado sob o aspecto da própria divindade, apresenta-se destinado a refleti-la diretamente e de conseqüência fazê-la conhecer completamente. Portanto devemos procurar mais extensamente de qual fato, de qual realidade ele é chamado a ser o depositário e o testemunho perante todos os seres, pois reconhecemos nele a expressão falante do princípio eterno, e a irrecusável analogia que liga os seres uns aos outros. De fato, entre todas as criaturas ele representa o sinal ativo do axioma total, ou a mais ampla manifestação que o pensamento interior divino tenha emanado.

Se o homem é o único ser enviado como testemunha universal da universal verdade, recolhamos portanto os seus testemunhos, não o abandonemos se não depois de havê-lo cuidadosamente interrogado, e confrontado com si mesmo, com o objetivo de estabelecer os diversos esclarecimentos que podemos receber de seus diversos testemunhos.

Capítulo II

Os principais testemunhos do homem consistem no fato que, sendo ele evidentemente um santo e sublime pensamento de Deus, se bem que não seja "O Pensamento de Deus", a sua essência é necessariamente indestrutível; por que como poderia um pensamento de Deus perecer?

Em segundo lugar, através da via do pensamento que lhe é própria, Deus ama profundamente o homem; como Ele poderia não amar-nos, como poderia não amar o seu pensamento? Nós mesmos nos deleitamos com os nossos pensamentos!

E ainda (e este é o mais importante testemunho que nos oferece o homem), se o homem é um pensamento do Deus dos seres, nós podemos espelhar-nos só em Deus e compreendermos Deus e nós mesmos, só no seu esplendor, pois uma representação nos é desconhecida até quando não conseguimos atingir o pensamento da qual esta é testemunha e manifestação. Alem disso, mantendo-nos afastados desta luz divina e criadora da qual devemos ser a expressão em nossas faculdades, como o somos na nossa essência, seremos apenas testemunhas insignificantes, sem valor e sem caráter.

Verdade preciosa, é a que demonstra porque o homem, ao contrário aparece como um ser obscuro e é um problema tão complicado aos olhos da filosofia humana.
Mas ainda se conseguirmos espelhar-nos em nossa sublime fonte, como poderíamos delinear a dignidade da nossa origem, a entidade dos nossos direitos, e a santidade de nosso destino?

Homens passados, presentes e futuros, todos e cada um que representais, um pensamento do Eterno, sabeis quais seriam as vossas esperanças e as vossas felicidades, se todos os germens divinos que vos constituem estivessem em atividade e em desenvolvimento? Mas, se alem destes grandes privilégios a vossa sorte ainda vos procura com desgostos e gemidos e vos impede de exultar, procureis ao menos, fazendo refletir sobre vós os raios do vosso sol gerador, encontrar aquilo que o homem foi em uma época, que para vós transcorreu, mas cujos testemunhos presentes atestam que não vos foi sempre estranha.

O homem pode não ser mais aquele que foi a um tempo, mas pode sempre aperceber-se daquilo que deveria ser no futuro. Pode sempre sentir a inferioridade da própria substância perecível e material, que tem sobre ele somente o poder passivo de absorver as faculdades na confusão e na opacidade de que é suscetível, enquanto o ser humano tem o poder ativo de até criar múltiplas faculdades que não haveria nunca tido por natureza e sem a vontade do homem.

Aqui justamente apresentamos tal diferença em relação ao homem empírico; esta é muito importante para não reconhecer em vós os sinais da antiga dignidade e da supremacia do pensamento. Tal diferença, quero dizer, poderia conduzir o homem mais ao alto e demonstrar-lhe que as verdades interiores são muito mais instrutivas do que as verdades geométricas; de fato estas últimas se fundamentam somente sobre a superfície, enquanto as outras nascem do centro interior e permitem entrever a profundidade.

Portanto, disto persuadidos, remontamos à nossa origem. Penetramos, com a nossa atividade interior, até o estado no qual poderíamos descobrir se a influência criadora de nossa fonte suprema age no âmbito de nossa atual existência, e se esta transmitiu em nossa natureza todos aqueles princípios de ordem, de perfeição e de felicidade, que nós sentimos dever residir eternamente no Ser soberano do qual descendemos. Todos estes germens divinos, uma vez formados em nós, não trariam consigo o dom de uma vida potente e eficaz? A nossa inteligência não seria por ventura continuamente gerada do sopro destas inumeráveis e eternas fontes de vida que lhe dariam existência e luz? A nossa capacidade de amar seria preenchida da viva e doce universalidade de nosso Princípio originário e não deixaria nenhuma lacuna em nosso afeto sublime e em nosso impulso de santa gratidão para com ele.

Alguns consideram fazer a nossa origem remontar a duas épocas anteriores ao estado no qual se encontra o homem hoje; evidentemente, para alegrar-se com a idéia sábia e consoladora que o mal primitivo não foi eterno, e para deixar à Deus a glória de haver exercitado o sublime privilégio que ele possui, de gerar todas as suas criaturas na plenitude da alegria e de uma felicidade selada por cada penosa função e por cada luta perigosa. Os que sustentam tal hipótese afirmam que na primeira de tais épocas, dado que o mal ainda não existia ou em outros termos, nenhum ser havia ainda se separado do plano divino, as nossas alegrias não teriam então necessidade de realizar-se alem de nossa existência. De fato, se estas tivessem realizado-se, isto teria significado o engrandecimento sem fim do eu no infinito, a única coisa real para nós. Teríamos assim conseguido exprimir a nossa felicidade e o nosso amor, em continua ascensão em direção a nossa Fonte, que nunca haveria cessado de inclinar-se amavelmente em nossa direção. Não teríamos necessidade de manifestar-nos diretamente, pois ao nosso redor, tudo estava completo e a Verdade preenchendo tudo por si, nos olhava como adoradores eternos, sem usar-nos como os seus símbolos e os seus testemunhos. Todos os seres por fim, teriam a alegria da visão e da presença da Verdade absoluta, e nada faltaria para a plenitude de seus afetos e de suas esperanças, tendo a visão da imensidão e da infinita atividade divina.

Sem dirigirmos o nosso olhar a uma ordem de coisas tão elevadas, contentemo-nos aqui em contemplar o momento da nossa missão no universo. Nos deteremos portanto sobre a segunda época de nossa origem, a mais próxima da nossa atual condição. De fato, estando a primeira época tão afastada de nós não teríamos nem menos idéia de sua existência se a segunda não funcionasse como sua intermediária.

Em tal segunda época, que continuaremos a considerar neste caso como a nossa existência primitiva, recebemos os caracteres dos símbolos e dos testemunhos da Divindade no Universo, e nos foi dada toda a potência e todo o esplendor divino conforme o escopo sublime da nossa qualidade espiritual e a nobilidade dos direitos divinamente concedidos para cumprir tal escopo. Por qual motivo de fato, fomos afastados do âmbito da imensidade divina, na qualidade de sinais e de testemunhos, se não para repetir no lugar onde a suprema Sabedoria nos enviou, aquilo que acontecia no círculo divino do ser? E como poderia existir uma zona separada e particular, se alguns seres, turbando o próprio equilíbrio, não tivessem interditado o acesso ao espaço universal, dado que o princípio da Unidade procura inundar tudo por sua natureza, e visto que o mal não pode ser outro se não a concentração parcial de um ser livre e a sua abstração voluntária do reino da universalidade?

Assim como na ordem eterna da imensidade divina, Deus basta à plenitude da contemplação de todos os seres, nós, no momento em que recebemos uma missão individual e uma existência separada dele, poderíamos representa-lo e ser os seus sinais e testemunhos, somente mostrando, com a nossa dimensão, a imagem mais tênue de Deus, para os seres que, concentrados na própria existência, teriam perdido de vista a presença divina, e estariam encerrados na atmosfera particular de seu erro.

Neste âmbito devia manifestar-se de nós mesmos, no momento da nossa origem, todo o plano válido para o andamento da nossa obra. Era necessário que nós explicássemos os pensamentos vivos e luminosos, as virtudes vivificantes e as ações eficazes, para poder ser os representantes do supremo Autor de nosso ser. Quanto mais aprofundarmos a analogia que reconhecemos entre a alma humana e o seu eterno Principio, tanto mais sentiremos que, sendo Deus a fonte radical e primitiva de tudo o que é perfeito, não poderíamos ser derivados dele, se não dotados daqueles sublimes caracteres que temos apenas delineado, e do qual nossos fracos pensamentos, quando sãos e regulares, nos representam ainda hoje algumas imagens.

A divindade de fato, não haveria escolhido o próprio pensamento, se não tivesse como objetivo refletir-se em nós, com toda a sua majestade.

Os traços deste selo sagrado, que caracterizam o "animo" do homem, resistem eternamente a todos os poderes destrutivos. Malgrado a vastidão do tempo, malgrado a espessura das trevas, todas as vezes que o homem contempla as suas relações com Deus, encontrará em si os elementos indissolúveis da sua essência original e os indícios naturais de seu destino glorioso. Ele sentirá que segundo este destino glorioso, uma força potente e temível nos foi conferida para submeter a autoridade divina àqueles que poderiam desconhecê-la. Se continuássemos unidos ao nosso ser, nada teria nos subtraído tal potência, se não a houvéssemos liberada por nós mesmos. Ele sentirá ainda que teríamos domínio sobre o nosso império, depois de tê-lo subjugado, e estaríamos ornados de todos os crismas necessários para anunciar em todos os lugares a nossa legítima soberania. Sentirá alem disso, que estávamos sobriamente vestidos para tornar ainda mais majestosa a nossa presença e para que todas as zonas no nosso domínio sujeitas ao esplendor que nos circundava, pudessem oferecer-nos o testemunho de respeito e submissão, devido a missão divina confiada a nós pela mão suprema. Hoje, o único meio para o homem representar-se no seu antigo estado, é aquele de considerar os frágeis sinais que a sua mente pueril substituiu sobre a terra: o gladio dos conquistadores, os cetros, as coroas, a pompa que circunda os soberanos e a respeitosa dedicação de seus súditos. Poderiam encontrar-se ainda alguns traços desformes dos nossos títulos originais, mas jamais recuperar-lhes a virtual função.

Mas se é ainda possível para o homem encontrar em si mesmo e nas imagens passageiras da potência convencional e terrestre, os vestígios daquilo que ele poderia ter sido, lhe é mais fácil provar a dolorosa distância daquele destino glorioso; e se ele tem ainda indícios de seus direitos primitivos, tem também provas bem mais numerosas que estes indícios não estão mais em seu poder.

É inútil aqui corroborar com outras demonstrações a degradação da espécie humana; é preciso ser desorganizado para negar esta degradação que é evidentemente constatada dos suspiros com os quais o gênero humano preenche continuamente a terra, e a idéia radical que o Autor dos seres coloque todas as suas produções nos seus elementos naturais. Então porque nós estamos tão afastados do nosso? Por que mesmo sendo ativos por natureza estamos como que submersos e acorrentados pelas coisas passivas? Os homens tem o direito de buscar onde desejarem as causas desta real e aflitiva desarmonia exceto no capricho e no rigor do nosso Princípio soberano, cujo amor, cuja sabedoria e justiça constituem o baluarte perene contra os nossos murmúrios.

De resto, ocupando-nos aqui somente das conseqüências e não das causas desta degradação, pretendemos dirigir-nos somente àqueles que não lhe negam a existência, e que malgrado as dificuldades que afrontam para explicar o mal e a sua origem, julgam, não truncando negativamente a questão como faz a filosofia imprudente, estarem mais satisfeitos com uma verdade difícil e obscura de quanto estariam com um absurdo evidente.

Para delinear as conseqüências desastrosas da nossa degradação, é necessário restaurar-se no estado glorioso do qual gozávamos, como também ao tesouro do qual tivemos em comum a custódia e a divisão. É necessário reconhecer que compartilharíamos solidamente a gloria e a recompensa desta magnífica manifestação, pois compartilharíamos solidamente também os trabalhos da grande obra de purificação a nós designado por Deus. Mas dado que não podemos imputar à Sabedoria suprema de haver conspirado conosco no abuso daqueles sublimes privilégios, somos obrigados a atribuir todos os erros à potência livre do nosso ser. Sendo frágil por natureza - (se assim não fosse teriam existido dois Deuses) - tal potência abandonou-se as miragens da ilusão e precipitou-se no abismo por própria culpa. Julgo inútil analisar novamente tal verdade, havendo-a já amplamente ilustrada em meus escritos anteriores.

Os princípios da sã justiça, imortais como a nossa essência e que igualmente a tal essência, sempre restarão em nós, se bem que muito freqüentemente não os aplicamos justamente, nos ensinam em que coisa nos transformamos por nossa culpa, e nos mostram quais satisfações tal justiça exige de nós.
Começa aqui a aclarar-se o título desta obra e o sentido destas duas palavras "Ecce Homo".

Capítulo III

Se houvéssemos permanecido fieis ao nosso santo destino, deveríamos manifestar todos e cada um, segundo o próprio dom, a glória do Princípio eterno. Mas sem sombra de dúvida, devemos reconhecer não haver observado a lei suprema, considerando a nossa atual miséria e simultaneamente o fato que o Autor da justiça não poderia abandonar-nos injustamente em um estado de sofrimento e de privação. O abuso dos nossos privilégios nos induziu a uma manifestação oposta aquela a nós solicitada, disto deriva portanto, que ao invés de sermos testemunhas de glória e de verdade somos somente testemunhas de desonra e de falsidade.

Visto que hoje toda a família humana partilha da mesma punição, como a um tempo partilhou das mesmas recompensas, cada indivíduo deveria oferecer um sinal particular da humilhação atual como ofereceu um sinal particular de potência na ordem triunfal, segundo o dom que lhe competia. Pretendo dizer que cada um deveria oferecer um sinal particular da pobreza e da privação a qual a justiça suprema nos submeteu no mundo inferior; a fim que em presença de um sinal tão diferente daquele que deveríamos manifestar, se possa dizer de nós com insulto e escárnio: Ecce Homo: Eis O Homem será o nosso título degradante e nos recobrirá de humilhação desvelando os frutos amargos que o horror semeou em nós, enquanto deveríamos brilhar na glória se o nosso nome houvesse conservado o seu autêntico caráter.

É suficiente dirigir o olhar à condição dos homens sobre a terra, para julgar a importância de tal justiça.

Quem de nós não pagou de um modo ou de outro o próprio tributo de humilhação? Onde está a nossa força? Onde está a nossa potência? Onde está a nossa luz? Exceto a indigência a desordem e a doença, quais outros testemunhos apresentam hoje as nossas diversas faculdades? Todas as influências que exercitamos ao nosso redor, não são talvez somente influências letais? Existe talvez um só homem sobre a terra que não esteja em condições de oferecer um ou mais sinais desta pesada reprovação?
Oh! homem Se não estás ainda tão consciente para derramar lágrimas sobre a tua miséria, pelo menos não te lances até o ponto de julgá-la um estado de felicidade e de saúde. Não permitas deixar-te levar pela sedução dos mitos. Não te comportes como uma criança doente que para de gritar porque se distraiu com o ruído de um brinquedo que se lhe agita em frente aos olhos, e se acalma, como se não devesse mais temer o mal, momentaneamente tranqüilizado pelo fascínio do brinquedo. A tua mente se deterá por pouco sobre as ilusões que te distraem do mal; mas este não tardará em fazer-se sentir, e tu, Oh! homem, assustado pelo perigo que te ameaça, descobrirás com qual justo fundamento a Sabedoria procura colocar-te em guarda dos teus males exortando-te a sarar.

Todavia, malgrado o rigor das leis que a justiça nos impõe, as conseqüências da nossa condenação, se tornariam muito mais suportáveis uma vez reconhecida a suprema equidade do nosso Juiz. Se trata de reconhecer a bondade de suas reais intenções a nosso respeito e de nos resignarmos voluntariamente à inevitável potência de seus decretos.

Algumas vantagens imediatas derivariam do exemplo mútuo naturalmente oferecido pêlos indivíduos. O estado enfermo, débil e tenebroso dos nossos semelhantes, seria para nós um meio visível de instrução chamando continuamente à nossa mente a degradação da família humana.

De outra parte nós retribuiríamos aos outros o mesmo favor oferecendo aos seus olhos um espetáculo análogo. Assim representando uns aos outros o reflexo do pecado e da humilhação comum, estaremos todos em condição de reconhecer a iluminada justiça da sentença que atraímos sobre nós; será este o momento inicial do nosso processo de regeneração o qual procura avivar-nos a Sabedoria suprema. Essa é a única estrada que pode levar-nos ao soberano Princípio do amor do qual recebemos forma, e que nós mesmos fomos forçados a banir-nos dos domínios que nos havia confiado.

Oh! valentes homens das letras, servi-vos da vossa eloquência, para delinear com cores persuasivas e encorajantes o quadro instrutivo da família humana, o estado no qual os indivíduos representam uns aos outros outras tantas lições viventes.

A visão da miséria comum, suscitará então nos indivíduos um horror salutar de si próprios e um interesse apaixonado pela reabilitação de todos os membros desta grande família. Mostre-lhes no ato de nutrir-se do pão das lágrimas, enquanto observam uns ao lado dos outros, o silêncio triste da dor, sem interrompe-lo se não para fazer perceber o ritmo acossante da expiação, afim que o homem possa dizer do homem: - Irmão, fundamos sobre uma falsa humanidade o reino da morte e este nos abraça agora com as suas trevas. Não escondamos tal homem de mentira, mantendo-o ainda fechado nas suas desgraças e nas suas baixezas; procuremos fazê-lo emergir ao aberto afim que o vento vivo penetre-o até a raiz, e o reino da morte estremecido nos seus fundamentos, possa desabar e perder-se no fundo dos próprios abismos.

Mas o homem está bem longe de oferecer um espetáculo similar, nem de prostrar-se de fronte a irrevogável justiça que não cessa de soar sobre ele; o mesmo princípio de desordem que nos fez decair da nossa dimensão original, nos persegue, nos acompanha e ainda anima a nossa degradada existência. Como nos mascarou a fonte mortal do nosso extravio, assim este dissimula, dia após dia, os frutos e as conseqüências. O único objetivo de tal princípio destrutivo, é aquele de prolongar a existência do fundamento do mal afim que, perpetuando a nossa ilusão, este possa perpetuar o próprio reino, que infelizmente para nós, fundamenta-se somente sobre os nossos desenganos e sobre as nossas trevas. Aquela força enganosa nos persuade de que seguindo as suas insinuações sedutoras não nos degradamos; e agora que a seguimos, esta procura convencer-nos que não estamos decaídos e nos induz a persuadir da mesma forma todos aqueles que nos cercam. Em outras palavras, nos leva a impor o sinal de nossa específica condenação aos nossos semelhantes, ao invés de confessá-lo junto com o tipo de privação que nos é imposta. O mesmo princípio deteriorante teve a habilidade de aumentar a carga que nos exaure, com as conseqüências da própria degradação, e com os múltiplos desejos que nos devoram e que nos ocultam o caminho a seguir para levar-nos em direção a reintegração. Os homens procuram portanto, aparecer como se fossem efetivamente dotados dos dons que pertenceriam a nossa verdadeira natureza se todos não houvéssemos cavado um enorme abismo entre nós e a verdade. Os mesmos se preocupam em ocultar a falta de virtudes, a carência de talento, os defeitos físicos e os defeitos que derivam dos privilégios de algumas formas sociais e políticas. O olho de nossos semelhantes tornou-se para nós o único objetivo e o único incentivo para as nossas ações e para os nossos movimentos. A superficialidade assim nos desvia da evolução, que representava o objetivo da Sabedoria, quando, banindo-nos da sua presença exilou-nos todos no mesmo lugar. A contínua ilusão ao invés nos leva sempre mais à ruína e à completa destruição.

De resto desejaríamos aparecer aos olhos do universo, qual divindade própria e verdadeira. Não tendo conseguido tal empresa, não quisemos renunciar a ela completamente, e procuramos ser investidos do nome sacro, pelo menos na opinião dos nossos semelhantes, e de impressionar-lhes com a nossa superioridade, onde estejam dominados, e possam iludir-nos com o doce som da palavra Ecce Deus, ao invés se irritar-nos e cobrir-nos de vergonha com a degradante definição Ecce Homo.
Em resumo, nos comportamos como aqueles seres lesos em todos os membros, que aspiram ainda a beleza e a uma vida normal, e procuram mascarar a própria mal formação com todo tipo de artifícios, sem preocupar-se com a fragilidade dos meios empregados com tal objetivo.

O sacerdote uma vez privado da verdadeira potência e da verdadeira luz, é obrigado a transmitir uma fé cega no caráter e no fundamento assim como o filósofo e o orador suplicam com os sofismas e com a formalidade da eloquência, a falta dos princípios fundamentais, necessários a estabelecer o reino da verdade. Sempre por tais razões, os legisladores exaltam os direitos dos povos e a potência das nações, mesmo não tendo claro os verdadeiros fundamentos da soberania política. A final também o hipócrita busca com dissimulações e astucia, o bom nome que não pode esforçar-se em obter com as virtudes; sem considerar aqui todos os abusos, todas as baixeza e todas as injustiças que afligem em toda parte as associações humanas.

Portanto, nós homens adotando meios desviados e corruptos, substituímos a salutar confissão do nosso estado humilhante, pelo quadro de uma glória que é somente fruto de mentira. Enfim a humanidade, ao invés de buscar entre os próprios componentes consolo recíproco, no seu estado de prova, não cessa de atrair males contínuos.
De fato, o emprego habitual dos nossos dias é semelhante a um sacrificar-se recíproco em quanto que percorrendo o caminho traçado pela consciência da nossa fragilidade poderíamos reciprocamente encaminhar-nos no bem.

Os caminhos não naturais sobre os quais o homem se retarda diariamente terminam com contínuas quedas e desilusões; em vão os esforços que ele cumpre para destruir a humilhante sentença da própria condenação, fazem-na mais vergonhosa para ele, acrescentando novas perspectivas de decadência a sua degradação original. Ainda inutilmente, ele sente que os meios dos quais se serve são apenas sugestões e não tem uma base bastante profunda para podê-lo conduzir ao verdadeiro objetivo. Todos estes remédios não tendo em si o princípio da vida, são mais nocivos para o seu espírito de quanto não o são as substâncias das quais ele recorre para remediar as carências do físico. Não obstante isto o homem continua a prosseguir no caminho improvisado pela própria imprudência, e continua a esperar que lhe venha cancelado o humilhante título: Ecce Homo.

Capítulo IV

Independente dos meios comuns e gerais dos quais se servem quotidianamente o erro e a mentira para obscurecer o olhar sobre o nosso estado de miséria, e para iludir-nos com esperanças inúteis, o espirito das trevas descobriu outros instrumentos muito mais desviantes e funestos.

De fato, os erros dos quais já falamos, recaem mais sobre o aspecto exterior do homem e sobre suas características visíveis, do que sobre aquele interior e espiritual. A simples moral então será suficiente para mantê-lo afastado de tais erros; estes portanto, mesmo sendo causa de dor, poderiam fazer no máximo mais difícil o caminho da vida. Pelo contrário, os instrumentos de fraqueza dos quais estamos para falar, tem o tremendo poder de transtornar o homem a tal ponto de não permitir-lhe reencontrar a justa via; aqui o sentido da frase Ecce Homo se revela num trágico pranto.

O nosso estado primitivo permitia aproximar-nos de conhecimentos superiores, e de alegrar-nos visivelmente com a vida do espírito, revestido de todo o esplendor da sua luz. Nos conferia também autoridade sobre os diversos habitantes de todo o mundo, hoje para nós ocultos pelo denso véu dos elementos.

Depois da nossa queda, a Sabedoria, em um instante providencial, escolheu um qualquer mortal, mesmo envolto em trevas, para fazê-lo participe de tão grande privilegio.
Mas as mesmas trevas reanimaram-se em contraste com a presença de uma tão grande luz, e procuraram tomar-lhe o lugar, repetindo os eventos dos quais eram testemunhas, ou mesmo atingindo o espírito do homem com os meios para enganá-lo.

As potências obscuras de fato, podem ler contemporaneamente nos férteis meandros do seu pensamento, um modo ainda mais válido e capaz de dirigir contra o eu aquele mesmo pensamento que deveria constituir o seu guia, o seu apoio, a sua certeza em um destino universal.

As graças superiores enviadas diretamente da Sabedoria à alguns mortais tinham uma dupla prerrogativa. Ensinavam igualmente a doçura e a magnificência dos dons oferecidos à nossa alegria, para fazer-nos compreender o quanto absurdo tem sido a negação na qual tivemos a imprudência de imergir-nos. Em tal espírito, aqueles homens privilegiados divulgam as suas instruções ao outros seres.

As obras geradas e corruptas das trevas tem pelo contrário o objetivo de persuadir o homem, que ele goza ainda de todos o seus direitos e de ocultar-lhe o real estado de privação espiritual, que é o verdadeiro sinal característico ao qual está ligada à definição Ecce Homo. No conhecimento de tal privação está a condição indispensável da nossa reconciliação com a Sabedoria. Não basta apenas o homem afastar-se de seu interior, para que os frutos das trevas o envolvam e se misturem a sua atividade espiritual, assim como a respiração, se contaminada por um ar malsano, seria sufocante e infectada por um miasma podre pela corrupção. A Sabedoria suprema sabe bem qual o estado dos nossos abismos e portanto procura socorrer-nos o mais possível; freqüentemente porem é obrigada a retirar-se em si mesma, devido a horrível desfiguração dada às suas próprias mensagens. Se qualquer mortal tiver sorte suficiente para provar a aproximação de tal Sabedoria e de poder divisar pela virtude da sua luz a decadente matéria da qual somos compostos e a amargura com a qual a própria Sabedoria se aflige, conhecerá, seja por experiência que por analogia, quais riscos o homem corre do momento no qual se afasta do seu centro interior para terminar na exterioridade.

Os sábios procuram divulgar os seus ensinamentos, com a máxima prudência, e tomam precauções para que os tesouros da verdade não sejam enlameados pela corrupção que opera nos abismos do mundo. Estes sabem muito bem que a fonte da luz reside no centro interior e invisível, e que a razão pela qual o mundo procede assim tão lentamente em direção aos caminhos consagrados do esplendor, é que este se serve somente do instrumento de comunicação exterior e superficial, sem procurar fudamentá-lo sobre raízes vivas, ou sobre a Potência interior, a única chama que pode reavivar todas as autênticas perspectivas do nosso comunicar. De fato, somente no interior, reside a Palavra viva e criadora.

Além disso, freqüentemente o mundo esquece que as mais preciosas verdades que lhe é dado conhecer, segunda suas naturezas, podem vir expressas somente na dor e com o silêncio, e que a boca física do homem não é digna de enunciar como o ouvido físico não é digno de escutar.

Por causa da sua imprudência transformada em hábito, o homem está eternamente imerso nos abismos da confusão. Abismos destinados a tornarem-se sempre mais funestos e obscuros e à gerar contínuos estados de oposição. Colocado assim no centro de potências múltiplas e terrificantes, que o puxam e arrastam em todos os sentidos, seria verdadeiramente um prodígio se o homem conseguisse conservar no coração um sopro do céu e em toda a espiritualidade uma centelha de luz.

Quais vantagens não oferecemos, com a nossa leviandade, ao Príncipe das trevas, que procura estabelecer o seu reino na imitação da verdade? Certamente nós procuramos abandonar-nos o menos possível a esta fraqueza secreta que nos induz a procurar fora de nós o apoio que podemos encontrar somente em nós mesmos: tentemos conservar-nos, restabelecendo a nossa qualidade de Seres naturais, verdadeiros e simples como crianças ainda susceptíveis para acolher os dons que do alto nos são concedidos. Mas não obstante as várias missões espirituais e divina das quais possamos estar investidos, o Príncipe das trevas nos leva a adentrarmos sempre mais na espacialidade exterior.

Uma vez nesta imersos, ele nos retém com o fascínio e com as alegrias que lá começamos a experimentar e que nos faz rapidamente esquecer aquelas da vida interior, as quais são tão calmas e pacíficas quantas as primeiras são agitadas e turbulentas. Depois de haver-nos retido na exterioridade física, ele nos induz a habitar com o veneno da nossa própria contemplação e com o funesto instrumento do olho dos nossos semelhantes. Estes, estando afastados como nós do próprio interior, exercitam a sua influência desviante sobre nossas imprudentes manifestações, arrastando-nos na obscuridade e na mentira, despertando finalmente em todos nós os instintos opostos aos chamados da simplicidade, da tranqüilidade e da humildade, inalteráveis e duráveis, que nos teriam animado se com sábia precaução, tivéssemos feito agir o nosso interior e não estivéssemos afastados deste.

Certamente o homem não violaria a liberdade do próprio semelhante, fazendo-o consciente do quanto a verdadeira obra do homem está longe de todos os impulsos exteriores. Como já foi dito, o nosso lugar no mundo exprime o aspecto típico da mesma divindade. Nós repousamos sobre uma raiz viva que deve operar em nós todas as atividades regulares para uma harmonia germinativa. Em torno a nós, e também por nosso intermédio, verificam-se fatos exteriores com respeito ao curso ordinário da natureza. Mas quer exista uma natureza e um mundo, quer não exista, a nossa obra deve sempre haver o seu curso. Nós representamos uma insignificante nulidade, enquanto Deus resume a razão de tudo: devemos portanto venerar à Deus, e não ancorar-nos aos fatos impuros ou legítimos quais quer que sejam estes.

Entre os caminhos secretos e perigosos dos quais o Príncipe das trevas se assenhora para desviar-nos, devemos colocar todas as extraordinárias manifestações que tem caracterizado os séculos e que não nos prejudicariam tanto, se não houvéssemos perdido de vista o verdadeiro caráter do nosso ser, e sobretudo se conhecêssemos melhor a perspectiva espiritual da nossa história a partir da origem de todas as coisas.

Desde sempre, a maior parte daqueles caminhos foram abertos de boa fé, e sem nenhum objetivo perverso, por parte daqueles que os conheciam. Mas não podendo encontrar, em tais homens favorecidos pela sorte, "a prudência da serpente" com a "inocência da pomba", estes estimularam em si o entusiasmo da inexperiência, ao invés do sentimento sublime e profundo da santa magnificência de Deus.

O Príncipe do mal teve assim a possibilidade de intrometer-se nestes caminhos, e nestes gerar uma infinidade de diferentes combinações que tendem a obscurecer a simplicidade ditada pela Luz. Em alguns o Príncipe das trevas provoca leves sombras, quase imperceptíveis absorvidas pela abundância de luzes que as contrabalançam; outras são contagiadas por uma contaminação suficiente para dominar o elemento puro. Em outras enfim, o Príncipe das trevas estabelece o próprio domínio para tornar-se o único chefe e o único regulador das situações.

Alguns escritores inspirados e de boa vontade nos mostraram, na constituição do universo, uma das vias das quais se serve o Príncipe das trevas para propagar as suas ilusões. Tais escritores, prestaram às nações desviadas o maior serviço que se poderia esperar; deverão meditar atentamente sobre este raio de luz. Raio que revelará claramente a fonte da abominação e dos erros religiosos, que por outro lado atraíram, sobre povos famosos, as vinganças da cólera divina. As nações poderão obter os conhecimentos mais vastos e mais úteis para os nossos tempos modernos, os quais, sob tal aspecto, assemelham-se muito mais aqueles antigos de quanto se possa imaginar. A inteligência do homem tem à disposição esta chave; podemos portanto limitar-nos a considerar os frutos da obra das forças tenebrosas, que desviaram tantos mortais; e a percorrer tanto os diferentes sinais sob os quais tais frutos podem ser reconhecidos quanto as desilusões reservadas àqueles que destes se nutrem.

Capítulo V

Podemos aprender a discernir a falsidade das manifestações e dos movimentos exteriores, quando as obras que destes derivam são por assim dizer, as sombras de si próprios, mudanças superficiais e por conseqüência não suficientemente vivificantes para religar-nos ao plano da grande obra de Deus.

Por outro lado o escopo do projeto divino, pelo contrário consiste em reconduzir-nos ao nosso centro interior onde habita o divino, evitando dispersar-nos nos centros externos, frágeis, tenebrosos e corruptos onde Deus não reside. Alem disso conseguimos reconhecer a falsidade quando as missões dos seres enviados para instruir-nos possuem um caráter vago e indeterminado. A confusão se verifica quando estes enviados se encontram subordinados a árbitros incapazes de julga-los. Estes se tornam altamente partícipes da destruição de suas próprias obras, pois submetem as suas faculdades iluminantes à direção de guias estranhos a tais inteligências. Ainda podemos reconhecer o erro, quando as profecias dos mesmos enviados oferecem, independentemente deste caráter incerto, o incentivo a afastar-nos do destino natural do espírito do homem. Como se viu, tal espírito é o primeiro sinal e o primeiro testemunho da tonalidade divina, e malgrado, esteja bem longe de atingir aqui sobre a terra o nível dos privilégios e do esplendor originais, este não pode dar um só passo seguro, se não pelo vislumbre da débil centelha que lhe resta.

O espírito do homem, enquanto é o sinal e o testemunho da Divindade, não satisfaria o próprio objetivo natural, se representasse somente o sinal e o testemunho do espírito e dos anjos, das potências da natureza sejam terrestres ou celestes, e das almas dos desencarnados. Se depois de ser anunciado como o sinal e o testemunho da luz divina, este se transformasse, por suas imprudentes ações, no sinal e no testemunho de seres ignorantes, de ações tenebrosas e corruptas, a involução seria ainda mais grave. É impressionante portanto constatar com qual profusão e com qual confusão todos estes erros e todas as particularidades que daí derivam, possam também introduzir-se nas vias de excepcionais manifestações benéficas. Enfim, pressentimos o erro quando estas vias extraordinárias não se apoiam em sólidas estruturas.

As próprias Sagradas Escrituras não seriam verdadeiras se não depusessem em favor do caráter divino como distintivo no homem, do qual ele freqüentemente reconhece estar revestido por meio do Autor supremo dos seres. As escrituras alem disso, não seriam aceitáveis se não elegessem o homem a ser o sinal e o testemunho da Divindade única, e se não reconduzissem a alma a este único objetivo mostrando o mal e as trevas que a espera, se a alma transforma-se num sinal e testemunho de formas divinas diversas. Enfim as escrituras não seriam verdadeiras se em todos os eventos que relatam, em todas as profecias que contem e em todas as maravilhas que manifestam deixassem algo à glória humana dos indivíduos, e não indicassem claramente o objetivo exclusivo da afirmação universal da única Verdade suprema. Sob todos estes pontos de vista, as Sagradas Escrituras servem de suporte à natureza do homem, ao seu destino que lhe foi designado em base a sua origem e finalmente deve inspirar cada ação do mesmo. As escrituras apresentam o homem como a criatura chamada à ser a imagem e semelhança de Deus, à dirigir todas as obras à ele confiadas pela sua potência, a conquistar a terra e povoá-la, à atribuir aos seres os nomes que à eles competem e tudo isto, colocando o homem sob o olhar da Divindade, em uma correspondência direta com esta.

Depois da narração sobre a queda, as Escrituras não cessam de recordar ao homem qual era o seu lugar primitivo e de prometer-lhe que se seguir com zelo e coragem as normas e exortações que a suprema Sabedoria enviar para confortá-lo, o Eterno será o seu Deus e a humanidade será o povo do Eterno. As escrituras não cessam de colocar o homem em guarda contra as insídias dos seres habitantes da triste morada que ele ocupa atualmente; procuram mostrar sob mil formas e com muita ênfase os meios pelos quais aqueles seres utilizam para destruir sua felicidade, até quando não conseguirem mais fazê-lo partícipe da sua suas abominações, e a colocá-lo a serviço de seus ídolos.

As Escrituras descrevem ainda sob os aspectos mais humilhantes o estado de miséria no qual o indivíduo se reduz havendo esquecido Deus e sendo negligente ao defender-se dos próprios inimigos. De resto o homem é uma criatura verdadeiramente cara ao amor divino; deduzimos sempre pelo quanto se referem as Escrituras. De fato, o inabalável Princípio de todas as coisas colocou-se ao lado do homem, como ao lado do próprio pensamento, para subtraí-lo do destino de morte ao qual estava exposto, e para pagar em nosso nome, o débito do qual somos todos responsáveis perante a justiça humana. Portanto, o rio do amor divino, que é a nossa fonte de vida, não pode parar de fluir para nos regenerar. Aqui sobre a terra o coração do homem não se torna árido pelos próprios irmãos, malgrado as suas injustiças, e estaria sempre pronto à padecer por eles se pudesse a tal preço restituir-lhes a exultante consciência da virtude. Assim também o eterno rio da vida não secou na ora da nossa falta; simplesmente reduziu-se e retirou-se, condenando-nos a comer com o suor da fronte o pão da vida que deveríamos comer não sem trabalho mas sem fadiga.

Este rio foi progressivamente alimentado pelas relações posteriores com o homem promovidas com a evolução dos tempos. Assumiu enfim a sua antiga extensão, cumprindo para nós a lei de nossa condenação que nós mesmos nos recusamos a cumprir; transformando novamente a sua potência na nossa natureza humana; se revestiu das possibilidades terrestres, de todos os sinais de escárnio e coroado de espinhos, ferido por golpes, sujo pelas cuspidas, abandonado por todos, sofreu ao ponto que se mostrasse publicamente com uma cana como cetro e que se dissesse dele aos olhos das nações da terra: Ecce Homo: eis o estado a que o homem se reduziu, desde o primeiro pecado e através de todas as sucessivas prevaricações.

Graças a esta humilhante confissão, a Justiça reabriu para nós todas as portas do amor porque desta forma as conseqüências do pecado do homem foram manifestadas e denunciadas pelo próprio homem. Sem este terrível testemunho, a morte do Reparador seria uma atrocidade injusta e a misericórdia divina um capricho.

As escrituras pretendem portanto indicar especificamente o veículo do qual se serviu o rio vivificante do amor, para descer como de uma montanha até o nosso ser. Os testemunhos das Escrituras não servem para a alma do homem como prova de todos os princípios que a alma pode ler em si mesma e que são anteriores as próprias escrituras; estas porém, podem oferecer ao homem um apoio sempre sólido e um alimento salutar, e como tais entram novamente no rol dos meios que nos são oferecidos para julgar as manifestações do espírito em geral.

Sirvamo-nos portanto de todos os princípios que apenas delineamos e apliquemo-los àquelas manifestações da vida nas quais o erro se insinua facilmente sobre a verdade, onde paramos na ascensão e colocamo-nos no caminho do Príncipe das trevas entre maravilhas que nos surpreendem e tesouros que nos circundam.

Os caminhos e os dons parciais puderam e poderão verificar-se na atmosfera relativa de todos os tempos, porque em todos os tempos existiram e existirão seres que mesmo não sendo dedicados ao mal, encontram-se todavia em um nível muito inferior em relação ao espírito divino para serem animados por toda a sua força e por toda sua plenitude. Mas para que estas vias limitadas possam ser trocadas pela iniciativa da viva luz, devem ter pelo menos o caráter da vida, devem representar pelo menos em uma menor escala a produção da grande obra. Sem estes pré-requisitos estes seres possuem somente uma função figurativa e se limitam ao aspecto superficial das situações de modo que todos aqueles que se abandonam à estes não penetram nunca até o centro da obra.

Ora, por algumas razões que não creio sejam necessárias aqui expô-las a obra parcial assume facilmente no pensamento do homem o caráter da obra total; a obra do espírito é confundida é confundida facilmente com aquela da Divindade; a obra das potências naturais aparece facilmente com obra do espírito; e mais facilmente ainda a ação das potências cegas e corrompidas é confundida com a ação das potências naturais.

O Príncipe das trevas se aproveita desta infeliz tendência do homem para a confusão e a favorece servindo-se dos direitos que lhe permitimos assumir sobre nós.
Na sua condição relativa o homem deve então combater dois obstáculos, aquele da própria fraqueza e aquele do Príncipe das trevas; obstáculos entre os quais nos movemos sobre o plano terrestre. Pelo contrário o homem admitido na plenitude da obra divina, não deve realizar o mesmo trabalho nem correr os mesmos perigos que descrevemos. Portanto geralmente os homens geralmente trocaram por missão divina as simples missões espirituais; confundirão as missões espirituais com aquelas naturais, as missões naturais com aquelas tenebrosas ou sub-naturais.

Cada um procurou propagá-las do modo como erroneamente as compreendeu, enquanto era necessário concentrá-las na íntima e limitada atmosfera quando verdadeiras ou afastá-las para sempre se estas não tinham o caráter da verdade.

Podemos imaginar quantas ofensas os mesmos portadores de cada missão tenham feito a si mesmos, saindo das próprias esferas e expondo-se imprudentemente e sem forças suficientes a influências antagônicas e corruptas de tantas outras esferas que deveriam permanecer desconhecidas para sempre.

Os frutos que o Príncipe das trevas obteve são incalculáveis e muitas instituições sobre a terra tem sido endereçadas por ele, sejam aquelas reverenciadas como sacras, sejam aquelas que em base a progressivas alterações, conservaram de sua autentica natureza simples emblemas e se transformaram totalmente em instituições profanas. Entre estes dois extremos existem numerosos estados intermediários; mas os germens mais mortais produziram seus frutos nos pontos mais periféricos, porque quanto mais tais germens decaem mais encontram terreno capaz de fecundar-lhes. Como conseqüência as instituições profanadas revelam a sua origem seja prescrevendo regras absurdas de conduta, seja através de seus meios inerentes, cujos relatos revelaram os espaços puramente naturais, mas honrados como divinos por quase todos os povos da terra, dados as trocas espirituais (bons e maus) dos quais tais espaços são suscetíveis.

Será suficiente aqui, para que o leitor atento faça comparações necessárias, mencionar os cabelos e as unhas que por uma lei muito instrutiva, não são sensíveis; a cabeça do homem na qual a sinuosidade do celebro e do cerebelo tem relação com o intestino. Citemos ainda os astros, nos quais a mitologia de todos os tempos colocam inúmeras imagens hipóteses enfáticas para satisfazer a fantasia humana. Enfim recordemos o Deuteronômio cujo texto o povo hebraico e com este todos os outros povos podem aprender a precaver-se contra a idolatria pois encontram as bases das relações, a mágica analogia dos planos temporais e o conselho para guardar-nos dos Deuses das outras nações.

Concluindo, solicitando um proceder em direção ao inferior o Príncipe das trevas nos impede de obedecer a Lei. Ao invés de fazer-nos aparecer na nossa miséria e com a nossa qualidade humilhante de Ecce Homo, faz com que nos contentemos com as simples potências espirituais e com as simples potências elementares e também com as meras potências figurativas ou talvez simplesmente com as potências de reprovação e ao final nos iludimos em estar revestidos pelas verdadeiras potências de Deus para gozarmos de todos os direitos da nossa origem.

Da facilidade com a qual o Príncipe das trevas generalizou as missões parciais e as alterou até transformá-las em ilusórias, são derivadas as falsas missões.

Página 1