A Chave dos Grandes Mistérios
Eliphas Levi
A Chave dos Grandes 
  Mistérios
  A CHAVE DOS GRANDES MISTÉRIOS........................................................................................1
  A TÍTULO DE INFORMAÇÃO...............................................................................................1
  PREFÁCIO..........................................................................................................................................2
  PRIMEIRA PARTE............................................................................................................................4
  MISTÉRIOS RELIGIOSOS......................................................................................................4
  Problemas a resolver......................................................................................................4
  Considerações preliminares............................................................................................4
  ARTIGO I.................................................................................................................................8
  Solução do primeiro problema.......................................................................................8
  Esboço da teologia profética dos números.....................................................................9
  ARTIGO II..............................................................................................................................39
  Solução do segundo problema......................................................................................40
  ARTIGO III.............................................................................................................................41
  Solução do terceiro problema.......................................................................................42
  ARTIGO IV.............................................................................................................................44
  Solução do quarto problema.........................................................................................44
  ARTIGO V..............................................................................................................................47
  Solução do último problema........................................................................................47
  RESUMO DA PRIMEIRA PARTE EM FORMA DE DIÁLOGO.........................................48
  A Fé, A Ciência, A Razão............................................................................................48
  SEGUNDA PARTE...........................................................................................................................53
  MISTÉRIOS FILOSÓFICOS..................................................................................................53
  Considerações preliminares..........................................................................................53
  Solução dos Problemas Filosóficos..............................................................................55
  TERCEIRA PARTE..........................................................................................................................61
  OS MISTÉRIOS DA NATUREZA.........................................................................................61
  O Grande Agente Mágico............................................................................................61
  LIVRO I..................................................................................................................................61
  OS Mistérios Magnéticos.............................................................................................61
  LIVRO II...............................................................................................................................117
  Os Mistérios Mágicos.................................................................................................117
  QUARTA PARTE...........................................................................................................................134
  OS GRANDES SEGREDOS PRÁTICOS OU AS REALIZAÇÕES DA CIÊNCIA............134
  Introdução...................................................................................................................134
  EPÍLOGO........................................................................................................................................145
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  PREFÁCIO
  Os espíritos humanos têm a vertigem do mistério. O mistério 
  é o abismo que atrai, sem cessar, nossa curiosidade inquieta por suas 
  formidáveis profundezas.
  O maior mistério do infinito é a existência de Aquele para 
  quem e somente para Ele - tudo é sem mistério.
  Compreendendo o infinito, que é essencialmente incompreensível, 
  ele próprio é o mistério infinito e externamente insondável, 
  ou seja, ele é, ao que tudo indica, esse absurdo por excelência, 
  em que acreditava Tertuliano.
  Necessariamente absurdo, uma vez que a razão deve renunciar para sempre 
  a atingi-lo; necessariamente crível, uma vez que a ciência e a 
  razão, longe de demonstrar que ele não é, são fatalmente 
  levadas a deixar acreditar que ele é, e elas próprias a adorá-lo 
  de olhos fechados. É que esse absurdo é a fonte infinita da razão, 
  a luz brota eternamente das trevas eternas, a ciência, essa Babel do espírito, 
  pode torcer e sobrepor suas espirais subindo sempre; ela poderá fazer 
  oscilar a Terra, nunca tocará o céu.
  Deus é o que aprenderemos eternamente a conhecer. É, por conseguinte, 
  o que nunca saberemos. O domínio do mistério é um campo 
  aberto às conquistas da inteligência. Pode-se andar nele com audácia, 
  nunca se reduzirá sua extensão, mudar-se-á somente de horizontes. 
  Todo saber é o sonho do impossível, mas ai de quem não 
  ousa aprender tudo e não sabe que, para saber alguma coisa, é 
  preciso resignar-se a estudar sempre!
  Dizem que para bem aprender é preciso esquecer várias vezes. O 
  mundo seguiu esse método. Tudo o que se questiona em nossos dias havia 
  sido resolvido pelos antigos; anteriores a nossos anais, suas soluções 
  escritas em hieróglifos não tinham mais sentido para nós; 
  um homem reencontrou sua chave, abriu as necrópoles da ciência 
  antiga e deu a seu século todo um mundo de teoremas esquecidos, de sínteses 
  simples e sublimes como a natureza, irradiando sempre unidade e multiplicando-se 
  como números, com proporções tão exatas quanto o 
  conhecimento demonstra e revela o desconhecido. Compreender essa ciência 
  é ver Deus. O autor deste livro, ao terminar sua obra, acreditará 
  tê-lo demonstrado.
  Depois, quando tiverdes visto Deus, o hierofante vos dirá: Virai-vos 
  e, na sombra que projetais na presença desse sol das inteligências, 
  ele fará aparecer o Diabo, o fantasma negro que vedes quando não 
  olhais para Deus e quando acreditais ter preenchido o céu com vossa sombra, 
  porque os vapores da terra parecem tê-la feito crescer ao subir.
  Pôr de acordo, na ordem religiosa, a ciência com a revelação 
  e a razão com a fé, demonstrar em filosofia os princípios 
  absolutos que conciliam todas as antinomias, revelar enfim o equilíbrio 
  universal das forças naturais, tal é a tripla finalidade desta 
  obra, que será, por conseguinte, dividida em três partes.
  Mostraremos a verdadeira religião com caracteres tais que ninguém, 
  crente ou não, poderá desconhecê-la, será o absoluto 
  em matéria de religião. Estabeleceremos, em filosofia, os caracteres 
  imutáveis dessa verdade, que é, em ciência, realidade, em 
  julgamento, razão e, em moral, justiça. Enfim, faremos conhecer 
  estas leis da natureza cujo equilíbrio é o sustento e mostraremos 
  o quanto são vãs as fantasias de nossa imaginação 
  diante das realidades fecundas do movimento e da vida. Convidaremos também 
  os grandes poetas do futuro para refazerem a divina comédia, não 
  mais de acordo com os sonhos do homem, mas segundo as matemáticas de 
  Deus.
  2
  Mistério dos outros mundos, forças ocultas, revelações 
  estranhas, doenças misteriosas, faculdades excepcionais, espíritos, 
  aparições, paradoxos mágicos, arcanos herméticos, 
  diremos tudo e explicaremos tudo. Quem pois nos deu esse poder? Não tememos 
  revelá-lo a nossos leitores. Existe um alfabeto oculto e sagrado que 
  os hebreus atribuem a Henoch, os egípcios a Tot ou a Mercúrio 
  Trismegistos, os gregos a Cadmo e a Palamédio. Esse alfabeto, conhecido 
  pelos pitagóricos, compõe-se de idéias absolutas ligadas 
  a signos e a números e realiza, por suas combinações, as 
  matemáticas do pensamento. Salomão havia representado esse alfabeto 
  por setenta e dois nomes escritos em trinta e seis talismãs e é 
  o que os iniciados do Oriente denominam ainda de as pequenas chaves ou clavículas 
  de Salomão. Essas chaves são descritas e seu uso é explicado 
  num livro cujo dogma tradicional remonta ao patriarca Abraão, é 
  o Sepher Yétsirah, e, com a inteligência do Sepher Yétsirah, 
  penetra-se o sentido oculto do Zohar, o grande livro dogmático da Cabala 
  dos hebreus. As clavículas de Salomão, esquecidas com o tempo 
  e que se dizia estarem perdidas, nós as encontramos, e abrimos sem dificuldade 
  todas as portas dos antigos santuários, onde a verdade absoluta parecia 
  dormir, sempre jovem e sempre bela, como aquela princesa de um conto infantil 
  que espera durante um século de sono o esposo que deve despertá-la. 
  Depois de nosso livro, ainda haverá mistérios, mas mais alto e 
  mais longe nas profundezas infinitas. Esta publicação é 
  uma luz ou uma loucura, uma mistificação ou um monumento. Lede, 
  refleti e julgai.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  3
  PRIMEIRA PARTE
  MISTÉRIOS RELIGIOSOS
  Problemas a resolver
  I. Demonstrar de uma maneira certa e absoluta a existência de um Deus 
  e dela dar uma idéia satisfatória para todos os espíritos.
  II. Estabelecer a existência de uma verdadeira religião de maneira 
  a torná-la incontestável.
  III. Indicar o alcance e a razão de ser de todos os mistérios 
  da religião única, verdadeira e universal.
  IV. Transformar as objeções da filosofia em argumentos favoráveis 
  à verdadeira religião.
  V. Traçar o limite entre a religião e a superstição 
  e dar a razão dos milagres e dos prodígios.
  Considerações preliminares
  Quando o conde Joseph de Maistre, este grande lógico apaixonado, disse 
  com desespero: O mundo está sem religião, assemelhou-se àqueles 
  que dizem temerariamente: Deus não existe. O mundo, com efeito, está 
  sem a religião do conde Joseph de Maistre, assim como é provável 
  que Deus, tal qual o concebe a maioria dos ateus, não exista.
  A religião é uma idéia apoiada num fato constante e universal; 
  a humanidade é religiosa: a palavra religião tem, portanto, um 
  sentido necessário e absoluto. A própria natureza consagra a idéia 
  que representa essa palavra e a eleva à altura de um princípio.
  A necessidade de crer liga-se estreitamente à necessidade de amar: é 
  por isso que as almas têm necessidade de comungar com as mesmas esperanças 
  e com o mesmo amor. As crenças isoladas não passam de dúvidas: 
  é o laço da confiança mútua que faz a religião 
  ao criar a fé. A fé não se inventa, não se impõe, 
  não se estabelece por convicção política; manifesta-se, 
  como a vida, com uma espécie de fatalidade. O mesmo poder que dirige 
  os fenômenos da natureza estende e limita, além de todas as previsões 
  humanas, o domínio sobrenatural da fé. Não se imaginam 
  as revelações, elas se impõem, e nelas se crê. Por 
  mais que o espírito proteste contra as obscuridades do dogma, está 
  subjugado pela atração dessas mesmas obscuridades, e freqüentemente 
  o mais indócil dos pensadores coraria em aceitar o título de homem 
  sem religião. A religião ocupa um espaço bem maior entre 
  as realidades da vida do que pretendem crer aqueles que dispensam a religião 
  ou que têm a pretensão de dispensá-la. Tudo o que eleva 
  o homem acima do animal, o amor moral, a abnegação, a honra são 
  sentimentos essencialmente religiosos. O culto da pátria e do lar, a 
  religião do juramento e das lembranças são coisas que a 
  humanidade jamais 4 abjurará sem se degradar completamente, e que não 
  saberiam existir sem a crença em alguma coisa maior do que a vida mortal, 
  com todas as suas vicissitudes, suas ignorâncias e suas misérias. 
  Se a perda eterna no nada tivesse de ser o resultado de todas as nossas aspirações 
  às coisas sublimes que sentimos serem eternas, a fruição 
  do presente, o esquecimento do passado e a displicência para com o futuro 
  seriam nossos únicos deveres, e seria rigorosamente verdadeiro dizer, 
  com um sofista célebre, que o homem que pensa é um animal degradado.
  Por isso, de todas as paixões humanas, a paixão religiosa é 
  a mais poderosa e a mais vivaz. Produz-se seja pela afirmação 
  seja pela negação, com igual fanatismo, uns afirmando com obstinação 
  o deus que fizeram à sua imagem, outros negando Deus com temeridade, 
  como se tivessem podido compreender e devastar por um único pensamento 
  todo o infinito que está ligado a seu grande nome.
  Os filósofos não refletiram suficientemente sobre o fato fisiológico 
  da religião na humanidade: a religião, com efeito, existe além 
  de toda discussão dogmática. É uma faculdade da alma humana, 
  da mesma forma que a inteligência e o amor. Enquanto houver homens, a 
  religião existirá. Considerada assim, ela não é 
  outra coisa que a necessidade de um idealismo infinito, necessidade que justifica 
  todas as aspirações ao progresso, que inspira todas as abnegações, 
  que sozinha impede a virtude e a honra de serem unicamente palavras que servem 
  para iludir a vaidade dos fracos e dos tolos em proveito dos fortes e dos hábeis.
  É a essa necessidade inata de crença que se poderia dar o nome 
  de religião natural, e tudo o que tende a diminuir e limitar o impulso 
  dessa crença está, na ordem religiosa, em oposição 
  à natureza. A essência do objeto religioso é o mistério, 
  uma vez que a fé começa no desconhecido e abandona todo o resto 
  às investigações da ciência. A dúvida é, 
  aliás, mortal à fé; ela sente que a intervenção 
  do ser divino é necessária para cobrir o abismo que separa o finito 
  do infinito e afirma essa intervenção com todo o ímpeto 
  de seu coração, com toda a docilidade de sua inteligência. 
  Fora desse ato de fé, a necessidade religiosa não encontra satisfação 
  e transmuta-se em ceticismo e em desespero. Mas, para que o ato de fé 
  não seja um ato de loucura, a razão quer que ele seja dirigido 
  e regulado. Pelo quê? Pela ciência? Vimos que nesse caso a ciência 
  é impotente. Pela autoridade civil? É absurdo. Colocai guardas 
  para vigiar as orações!
  Resta, pois, a autoridade moral, única que pode constituir o dogma e 
  estabelecer a disciplina do culto de comum acordo, dessa vez, com a autoridade 
  civil, mas não conforme às suas ordens; é preciso, em uma 
  palavra, que a fé dê à necessidade religiosa uma satisfação 
  real, inteira, permanente, indubitável. Para tanto, é preciso 
  a afirmação absoluta, invariável, de um dogma conservado 
  por uma hierarquia autorizada. É preciso um culto eficaz que dê, 
  com uma fé absoluta, uma realização substancial aos signos 
  da crença.
  A religião, assim compreendida, sendo a única que satisfaz a necessidade 
  natural de religião, deve ser chamada de a única verdadeiramente 
  natural. E chegamos por nós mesmos a esta dupla definição: 
  a verdadeira religião natural é a religião revelada, é 
  a religião hierárquica e tradicional, que se afirma absolutamente 
  acima das discussões humanas pela comunhão da fé, da esperança 
  e da caridade. Ao representar a autoridade moral e ao realizá-la pela 
  eficácia de seu ministério, o sacerdote é santo e infalível, 
  enquanto a humanidade está sujeita ao vício e ao erro. O padre, 
  ao agir como padre, é sempre o representante de Deus. Pouco importam 
  as faltas ou mesmo os crimes do homem. Quando Alexandre VI fazia uma ordenação, 
  não era o envenenador que impunha as mãos aos bispos, era o papa. 
  Ora, o papa Alexandre VI nunca corrompeu nem falsificou os dogmas que o condenavam, 
  os sacramentos que, em suas mãos, salvavam os outros e não o justificavam. 
  Houve sempre e em todos os lugares homens mentirosos e criminosos; mas, na Igreja 
  hierárquica e divinamente autorizada, nunca houve e nunca haverá 
  nem maus papas nem maus padres. Mau e padre são palavras que não 
  se ajustam.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  5
  Falamos de Alexandre VI e acreditamos que esse nome baste, sem que nos oponham 
  outras lembranças justamente execradas. Grandes criminosos puderam duplamente 
  desonrar-se, por causa do caráter sagrado de que estavam revestidos; 
  mas não lhes foi dado desonrar esse caráter, que continua sempre 
  radiante e esplêndido acima da humanidade que cai. Dissemos que não 
  há religião sem mistérios; acrescentemos que não 
  há mistérios sem símbolos. Sendo o símbolo a fórmula 
  ou a expressão do mistério, ele só exprime sua profundidade 
  desconhecida por imagens paradoxais emprestadas do conhecido. Devendo caracterizar 
  o que está acima da razão científica, a forma simbólica 
  deve necessariamente encontrar-se fora dessa razão: daí, a palavra 
  célebre e perfeitamente justa de um Pai da Igreja: Creio, porque é 
  absurdo, credo quia absurdum.
  Se a ciência afirmasse o que não sabe, destruiria a si própria. 
  A ciência não pode, portanto, realizar a obra da fé, tanto 
  quanto a fé não pode decidir em matéria de ciência. 
  Uma afirmação de fé com que a ciência tenha a temeridade 
  de ocupar-se será apenas um absurdo para ela, da mesma forma que uma 
  afirmação de ciência que nos fosse dada como artigo de fé 
  seria um absurdo na ordem religiosa. Crer e saber são dois termos que 
  nunca se podem confundir.
  Tampouco poderiam opor-se um ao outro num antagonismo qualquer. É impossível, 
  com efeito, crer no contrário do que se sabe sem deixar, por isso mesmo, 
  de o saber, e é igualmente impossível chegar a saber o contrário 
  do que se crê sem deixar imediatamente de crer. Negar ou mesmo contestar 
  as decisões da fé, e isso em nome da ciência, é provar 
  que não se compreende nem a ciência nem a fé: com efeito, 
  o mistério de um Deus em três pessoas não é um problema 
  de matemática; a encarnação do Verbo não é 
  um fenômeno que pertença à medicina; a redenção 
  escapa à crítica dos historiadores. A ciência é absolutamente 
  impotente para decidir se se tem ou não razão de se acreditar 
  ou não no dogma; ela pode constatar somente os resultados da crença 
  e, se a fé torna evidentemente os homens melhores, se, aliás, 
  a fé em si mesma, considerada como um fato fisiológico, é 
  evidentemente uma necessidade e uma força, será preciso que a 
  ciência o admita e tome o sábio partido de contar sempre com a 
  fé.
  Ousemos afirmar agora que existe um fato imenso, igualmente apreciável 
  pela fé e pela ciência, um fato que torna Deus visível de 
  algum modo sobre a terra, um fato incontestável e de alcance universal; 
  esse fato é a manifestação, no mundo, a partir da época 
  em que começa a revelação cristã, de um espírito 
  desconhecido pelos antigos, de um espírito evidentemente divino, mais 
  positivo que a ciência em suas obras, mais magnificamente ideal em suas 
  aspirações que a mais elevada poesia, um espírito para 
  o qual era preciso criar um nome novo, completamente inaudito nos santuários 
  da Antigüidade. Assim, esse nome foi criado, e demonstraremos que esse 
  nome, que essa palavra é, em religião, tanto para a ciência 
  quanto para a fé, a expressão do absoluto; a palavra é 
  caridade e o espírito de que falamos chama-se o espírito de caridade.
  Diante da caridade, a fé prosterna-se e a ciência, vencida, inclina-se. 
  Há evidentemente aqui alguma coisa maior do que a humanidade; a caridade 
  prova por suas obras que não é um sonho. É mais forte do 
  que todas as paixões; triunfa sobre o sofrimento e a morte; faz que Deus 
  seja compreendido por todos os corações e parece já preencher 
  a eternidade pela realização iniciada de suas legítimas 
  esperanças.
  Diante da caridade viva e atuante, que Proudhon ousará blasfemar? Que 
  Voltaire ousará rir? Empilhai, um sobre os outros, os sofismas de Diderot, 
  os argumentos críticos de Strauss, as Ruínas de Volney - tão 
  bem nomeadas, pois esse homem não poderia fazer senão ruínas 
  -, as blasfêmias dessa revolução cuja voz extingue-se uma 
  vez no sangue e outra no silêncio do desprezo; acrescentei a isso o que 
  o futuro pode nos reservar de monstruosidades e devaneios; depois, que venha 
  a mais humilde e a mais simples de todas as irmãs da caridade, o mundo 
  abandonará todas as suas tolices, todos os seus crimes, todos os seus 
  devaneios doentios, para inclinar-se diante dessa realidade sublime.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  6
  Caridade! palavra divina, palavra que, por si, leva à compreensão 
  de Deus, palavra que contém uma revelação inteira! Espírito 
  de caridade, aliança de duas palavras que são toda uma solução 
  e todo um futuro! Que pergunta, com efeito, essas duas palavras não podem 
  responder? O que é Deus para nós senão o espírito 
  de caridade? o que é a ortodoxia? não é o espírito 
  de caridade que não discute sobre a fé a fim de não alterar 
  a confiança dos pequenos e de não perturbar a paz da comunhão 
  universal? Ora, o que é a Igreja universal senão a comunhão 
  em espírito de caridade? É pelo espírito de caridade que 
  a Igreja é infalível. O espírito de caridade é a 
  virtude divina do sacerdócio.
  Dever dos homens, garantia de seus direitos, prova de sua imortalidade, eternidade 
  de felicidade iniciada para eles na terra, objetivo glorioso dado a sua existência, 
  fim e meio de seus esforços, perfeição de sua moral individual, 
  civil e religiosa, o espírito de caridade abrange tudo, aplica-se a tudo, 
  tudo pode esperar, tudo empreender e tudo cumprir.
  Era pelo espírito de caridade que Jesus, expirando na cruz, dava a sua 
  mãe um filho na pessoa de São João e, triunfando sobre 
  as angústias do mais horrível suplício, soltava um grito 
  de libertação e de salvação ao dizer: "Pai, 
  nas tuas mãos entrego meu espírito." Foi pelo espírito 
  de caridade que doze artesãos da Galiléia conquistaram o mundo; 
  amaram a verdade mais do que suas vidas; e foram sozinhos dizê-la aos 
  povos e aos reis; provados pela tortura, foram considerados fiéis. Mostraram 
  às multidões a imortalidade viva em sua morte e regaram a terra 
  com um sangue cujo calor não podia extinguir-se, pois neles ardia a chama 
  da caridade. Foi pela caridade que os apóstolos constituíram seus 
  símbolos. Disseram que acreditar juntos é melhor do que duvidar 
  separadamente; constituíram a hierarquia sobre a obediência, tornada 
  tão nobre e tão grande pelo espírito de caridade, que servir 
  assim é reinar; formularam a fé de todos e a esperança 
  de todos e puseram esse símbolo sob a guarda da caridade de todos. Ai 
  do egoísta que se apropria de uma só palavra dessa herança 
  do Verbo, pois é um deicida que quer desmembrar o corpo do Senhor.
  O símbolo é a arca sagrada da caridade, quem quer que o toque 
  é atingido pela morte eterna, pois a caridade retira-se dele. É 
  a herança sagrada de nossos filhos, é o preço do sangue 
  de nossos pais. Era pela caridade que os mártires se consolavam nas prisões 
  dos césares e atraíam para sua crença seus guardas e mesmo 
  seus carrascos.
  Era em nome da caridade que São Martinho de Tours protestava contra o 
  suplício dos priscilianos e separava-se da comunhão do tirano 
  que queria impor a fé pela espada. Foi pela caridade que tantos santos 
  consolaram o mundo dos crimes cometidos em nome da própria religião 
  e dos escândalos do santuário profanado.
  Foi pela caridade que São Vicente de Paulo e Fenelon impuseram-se à 
  admiração dos séculos, mesmo aos mais ímpios, e 
  fizeram calar de antemão o riso dos filhos de Voltaire diante da seriedade 
  imponente de suas virtudes.
  Foi pela caridade, enfim, que a loucura da cruz tornou-se a sabedoria das nações, 
  porque todos os nobres corações compreenderam que é mais 
  elevado acreditar ao lado dos que amam e devotam-se do que duvidar ao lado dos 
  egoístas e dos escravos do prazer!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  7
  ARTIGO I
  Solução do primeiro problema
  O Verdadeiro Deus
  Deus só pode ser definido pela fé; a ciência não 
  pode negar nem afirmar que ele existe. Deus é o objeto absoluto da fé 
  humana. No infinito, é a inteligência suprema e criadora da ordem. 
  No mundo, é o espírito de caridade.
  Será o Ser universal uma máquina fatal que tritura eternamente 
  as inteligências ocasionais ou uma inteligência providencial que 
  dirige as forças para a melhoria dos espíritos? A primeira hipótese 
  repugna à razão, é desesperadora e imoral.
  Ciência e razão devem, portanto, inclinar-se diante da segunda. 
  Sim, Proudhon, Deus é uma hipótese, mas é uma hipótese 
  tão necessária que, sem ela, todos os teoremas tornam-se absurdos 
  ou duvidosos.
  Para os iniciados da cabala, Deus é a unidade absoluta que cria e anima 
  os números.
  A unidade da inteligência humana demonstra a unidade de Deus. A chave 
  dos números é a dos símbolos, porque os sintomas são 
  as figuras analógicas da harmonia que vem dos números.
  As matemáticas não saberiam demonstrar a fatalidade cega, uma 
  vez que são a expressão da exatidão que é o caráter 
  da mais suprema razão.
  A unidade demonstra a analogia dos contrários; é o princípio, 
  o equilíbrio e o fim dos números. O ato de fé parte da 
  unidade e retorna à unidade.
  Vamos esboçar uma explicação da Bíblia pelos números, 
  porque a Bíblia é o livro das imagens de Deus.
  Perguntaremos aos números a razão dos dogmas da religião 
  eterna, e os números responderão sempre, reunindo-se na síntese 
  da unidade.
  As poucas páginas que se seguem são simples apanhados das hipóteses 
  cabalísticas; são externas à fé e as indicamos somente 
  como pesquisas curiosas. Não nos cabe inovar em matéria de dogma, 
  e nossas asserções como iniciado estão inteiramente subordinadas 
  à nossa submissão como cristão.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  8
  Esboço da teologia profética dos números
  I - A Unidade
  A unidade é o princípio e a síntese dos números, 
  é a idéia de Deus e do homem, é a aliança da razão 
  e da fé.
  A fé não pode ser oposta à razão, é exigida 
  pelo amor, é idêntica à esperança. Amar é 
  acreditar e esperar, e esse triplo ímpeto da alma é chamado virtude, 
  porque é preciso coragem para realizá-lo. Mas haveria coragem 
  nisso se a dúvida não fosse possível? Ora, poder duvidar 
  é duvidar. A dúvida é a força equilibrante da fé 
  e tem todo o seu mérito.
  A própria natureza nos induz a crer, mas as fórmulas de fé 
  são constatações sociais das tendências da fé 
  numa época dada. É o que dá a infalibilidade à Igreja, 
  infalibilidade de evidência e de fato. Deus é necessariamente o 
  mais desconhecido de todos os seres, uma vez que só é definido 
  em sentido inverso de nossas experiências, é tudo o que não 
  somos, é o infinito oposto ao finito por hipótese contraditória.
  A fé e, por conseguinte, a esperança e o amor são tão 
  livres que o homem, longe de impô-los aos outros, não os impõe 
  a si mesmo.
  São graças, diz a religião. Ora, será concebível 
  que se exija a graça, isto é, que se queira forçar os homens 
  ao que vem livre e gratuitamente do céu? É preciso desejar-lhes 
  isso.
  Raciocinar sobre a fé é disparatar, uma vez que o objeto da fé 
  é externo à razão. Se me perguntam:
  "Existe um Deus?", eu respondo: "Acredito que sim." "Mas 
  o senhor tem certeza disso?" "Se tivesse certeza, não acreditaria 
  nele, eu o saberia."
  Formular a fé é admitir termos da hipótese comum.
  A fé começa onde a ciência acaba. Ampliar a ciência 
  é aparentemente suprimir a fé, e, na realidade, é ampliar 
  igualmente seu domínio, pois é ampliar sua base.
  Só se pode adivinhar o desconhecido por suas proporções 
  supostas ou passíveis de serem supostas do conhecido.
  A analogia era o dogma único dos antigos magos. Dogma verdadeiramente 
  mediador, pois é metade científico, metade hipotético, 
  metade razão e metade poesia. Esse dogma foi e será sempre o gerador 
  de todos os outros.
  O que é o Homem-Deus? É o que realiza na vida mais humana o ideal 
  mais divino.
  A fé é uma adivinhação da inteligência e do 
  amor dirigidos pelos índices da natureza e da razão. Faz parte, 
  portanto, da essência das coisas de fé serem inacessíveis 
  à ciência, duvidosas para a filosofia e indefinidas para a certeza.
  A fé é uma realização hipotética dos fins 
  últimos da esperança. É a adesão ao signo visível 
  das coisas que não se vê.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  9
  Sperandarum substantia rerum
  Argumentum non apparentium
  Para afirmar sem disparate que Deus existe ou não, é preciso partir 
  de uma definição sensata ou insensata de Deus. Ora, essa definição 
  para ser sensata deve ser hipotética, analógica e negativa do 
  finito conhecido. Pode-se negar um Deus qualquer, mas o Deus absoluto não 
  se nega tanto quanto não se prova; é sensatamente suposto e nele 
  se acredita.
  Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão 
  a Deus, disse o Mestre; ver com o coração é acreditar e, 
  se essa fé se relaciona ao verdadeiro bem, não pode ser enganada 
  contanto que não procure definir muito seguindo as induções 
  arriscadas da ignorância pessoal. Nossos julgamentos, em matéria 
  de fé, aplicam-se a nós mesmos, será para nós como 
  tivermos acreditado. Isto é, nós próprios nos fazemos à 
  semelhança de nosso ideal.
  Quem faz os deuses torna-se semelhante a eles, assim como todos aqueles que 
  lhes dão sua confiança.
  O ideal divino do velho mundo fez a civilização que acabou, e 
  não se deve desesperar ao ver o deus de nossos bárbaros pais tornar-se 
  o diabo de nossos filhos mais esclarecidos. Fazem-se diabos com deuses de refugo, 
  e Satã só é assim tão incoerente e tão disforme 
  porque é feito com todos os retalhos das antigas teogonias. É 
  a esfinge sem palavra, é o enigma sem solução, é 
  o mistério sem verdade, é o absoluto sem realidade e sem luz.
  O homem é o filho de Deus, porque Deus, manifestado, é chamado 
  o filho do homem. Foi depois de ter feito Deus em sua inteligência e seu 
  amor que a humanidade compreendeu o verbo sublime que disse: Faça-se 
  a luz!
  O homem é a forma do pensamento divino, e Deus é a síntese 
  idealizada do pensamento humano.
  Assim, o Verbo de Deus é o que revela o homem, e o Verbo do homem é 
  o que revela Deus.
  O homem é o Deus do mundo, e Deus é o homem do céu.
  Antes de dizer: Deus quer, o homem quis.
  Para compreender e honrar Deus todo-poderoso, é preciso que o homem seja 
  livre. Obedecendo e abstendo-se por temor ao fruto da ciência, tendo sido 
  inocente e estúpido como o cordeiro, curioso e rebelde como o anjo de 
  luz, o homem cortou o cordão de sua ingenuidade e, caindo livre sobre 
  a terra, arrastou Deus em sua queda.
  E é por isso que, do fundo dessa queda sublime, revela-se glorioso com 
  o grande condenado do calvário e entra com ele no reino do céu.
  Pois o reino do céu pertence à inteligência e ao amor, ambos 
  filhos da liberdade! Deus mostrou ao homem a liberdade como uma amante, e, para 
  pôr seu coração à prova, fez passar, entre ela e 
  ele, o fantasma da morte.
  O homem amou e sentiu-se Deus; deu por ela isto que Deus acabava de nos dar: 
  a esperança eterna.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  10
  Lançou-se em direção de sua noiva através da sombra 
  da morte e o espectro desapareceu.
  O homem possuía a liberdade; tinha abraçado a vida.
  Expia agora tua glória, ó Prometeu!
  Teu coração devorado sem cessar não pode morrer; é 
  o teu abutre e Júpiter que morrerão. Um dia despertaremos enfim 
  dos sonhos penosos de uma vida atormentada, a obra de nossa provação 
  terá acabado, seremos fortes o bastante contra a dor para sermos imortais. 
  Então viveremos em Deus, numa vida mais abundante, e desceremos às 
  suas obras com a luz de seu pensamento, seremos levados ao infinito pelo sopro 
  de seu amor. Seremos, sem dúvida, os primogênitos de uma nova raça; 
  anjos do porvir.
  Mensageiros celestes, vogaremos na imensidão e as estrelas serão 
  nossas brancas naus. Transformar-nos-emos em doces visões para acalmar 
  os olhos dos que choram; colheremos lírios resplandecentes em prados 
  desconhecidos e espargiremos seu orvalho sobre a terra. Tocaremos a pálpebra 
  da criança que dorme e alegraremos docemente o coração 
  de sua mãe com o espetáculo da beleza de seu filho bem-amado.
  II - O Binário
  O binário é mais particularmente o número da mulher, esposa 
  do homem e mãe da sociedade.
  O homem é o amor na inteligência, a mulher é a inteligência 
  no amor. A mulher é o sorriso do criador contente de si próprio, 
  e foi depois de tê-la feito que ele descansou, diz a parábola celeste.
  A mulher está antes do homem, porque é mãe e tudo lhe é 
  perdoado de antemão porque dá à luz com dor.
  A mulher foi quem primeiro se iniciou na imortalidade pela morte; o homem, então, 
  a viu tão bela e a compreendeu tão generosa, que não quis 
  sobreviver a ela, e amou-a mais do que sua vida, mais do que sua felicidade 
  eterna.
  Feliz proscrito! já que lhe foi dada como companheira de seu exílio.
  Mas os filhos de Caim revoltaram-se contra a mãe de Abel e escravizaram 
  sua mãe.
  A beleza da mulher tornou-se uma presa para a brutalidade dos homens sem amor. 
  Então, a mulher fechou seu coração como um santuário 
  desconhecido e disse aos homens indignos dela: "Sou virgem, mas quero ser 
  mãe, e meu filho ensinar-vos-á a me amar." Ó Eva! 
  sê saudada e adorada em tua queda!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  11
  Ó Maria! sê abençoada e adorada em tuas dores e em tua glória! 
  Santa crucificada que sobrevivia a teu Deus para enterrar teu filho, sê 
  para nós a última palavra da revelação divina!
  Moisés chamava Deus de Senhor, Jesus chamava-o de meu Pai, e nós, 
  pensando em ti, diremos à Providência: "Sois nossa mãe!"
  Filhos da mulher, perdoemos a mulher decaída.
  Filhos da mulher, adoremos a mulher regenerada.
  Filhos da mulher, que dormimos em seu seio, que fomos embalados em seus braços 
  e consolados por seus carinhos, amemo-la e amemo-nos entre nós!
  III - O Ternário
  O ternário é o número da criação.
  Deus criou a si próprio eternamente e o infinito que ele preenche com 
  suas obras é uma criação incessante e infinita.
  O amor supremo contempla-se na beleza como em um espelho, e experimenta todas 
  as formas como enfeites, pois é o noivo da vida.
  O homem também afirma e cria a si próprio: enfeita-se com suas 
  conquistas, ilumina-se com suas concepções, reveste-se com suas 
  obras como que com vestes nupciais. A grande semana da criação 
  foi imitada pelo gênio humano divinizando as formas da natureza. Cada 
  dia forneceu uma revelação nova, cada rei progressivo do mundo 
  foi por um dia a imagem e a encarnação de Deus! Sonho sublime 
  que explica os mistérios da Índia e justifica todos os simbolismos!
  A elevada concepção do homem-Deus corresponde à criação 
  de Adão, e o cristianismo, à semelhança dos primeiros dias 
  do homem típico no paraíso terrestre, foi apenas uma aspiração 
  e uma viuvez.
  Esperamos o culto da esposa e da mãe, aspiramos às núpcias 
  da nova aliança. Então os pobres, os cegos, todos os proscritos 
  do velho mundo serão convidados para o festim e receberão um traje 
  nupcial; e olhar-se-ão uns aos outros com uma grande doçura e 
  um inefável sorriso, porque terão chorado muito tempo.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  12
  IV - O Quartenário
  O quaternário é o número da força. É o ternário 
  completado por seu produto, é a unidade rebelada reconciliada à 
  trindade soberana.
  No ardor primeiro da vida, o homem, tendo esquecido sua mãe, compreendeu 
  Deus apenas como um pai inflexível e cioso.
  O sombrio Saturno, armado com sua foice parricida, põe-se a devorar seus 
  filhos.
  Júpiter teve cenhos que abalaram o Olimpo, e Jeová, trovões 
  que ensurdeceram as solidões do Sinai. E, no entanto, o pai dos homens, 
  embriagado às vezes como Noé, deixava o mundo perceber os mistérios 
  da vida.
  Psiquê, divinizada por suas aflições, tornava-se esposa 
  do Amor; Adônis ressuscitado reencontrava Vênus no Olimpo; Jó, 
  vitorioso ao mal, recuperava mais do que tinha perdido. A lei é uma prova 
  de coragem. Amar a vida mais do que se teme as ameaças da morte é 
  merecer a vida.
  Os eleitos são os que ousam; ai dos tímidos!
  Assim, os escravos da lei que se fazem os tiranos das consciências, e 
  os servidores do temor, e os avaros de esperança, e os fariseus de todas 
  as sinagogas e de todas as igrejas, estes são os réprobos e os 
  malditos do Pai!
  Cristo não foi excomungado e crucificado pela sinagoga?
  Savonarola não foi queimado por ordem de um pontífice da religião 
  cristã?
  Os fariseus não são hoje o que eram no tempo de Caifás?
  Se alguém lhes fala em nome da inteligência e do amor, escutá-lo-ão?
  Foi arrancando os filhos da liberdade à tirania dos Faraós que 
  Moisés inaugurou o reino do Pai. Foi quebrando o jugo insuportável 
  do farisaísmo mosaico que Jesus convidou todos os homens à fraternidade 
  do filho único de Deus.
  Quando caírem os últimos ídolos, quando se quebrarem as 
  últimas correntes materiais das consciências, quando os últimos 
  matadores de profetas, quando os últimos sufocadores do Verbo forem confundidos, 
  será o reino do Espírito Santo.
  Glória, pois, ao Pai, que enterrou o exército do Faraó 
  no mar Vermelho! Glória ao Filho que rasgou o véu do templo e 
  cuja cruz extremamente pesada posta sobre a coroa dos Césares quebrou 
  contra a terra a fronte dos Césares!
  Glória ao Espírito Santo que deve varrer da terra com seu sopro 
  terrível todos os ladrões e todos os carrascos para dar lugar 
  ao banquete dos filhos de Deus!
  Glória ao Espírito Santo que prometeu ao anjo da liberdade a conquista 
  da terra e do céu.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  13
  O anjo da liberdade nasceu antes da aurora do primeiro dia, antes mesmo do despertar 
  da inteligência, e Deus o denominou estrela da manhã.
  Ó Lúcifer, tu te desligaste voluntária e desdenhosamente 
  do céu onde o sol te inundava com sua claridade, para sulcar com teus 
  próprios raios os campos agrestes da noite. Brilhas quando o sol se põe 
  e teu olhar resplandecente precede o nascer do dia.
  Cais para de novo levantar; experimentas a morte para melhor conhecer a vida. 
  És, para as glórias antigas do mundo, a estrela da noite; para 
  a verdade renascente, a bela estrela da manhã!
  A liberdade não é a licença: a licença é 
  a tirania.
  A liberdade é a guardiã do dever, porque ela reivindica o direito. 
  Lúcifer, cujas idades das trevas fizeram o gênio do mal, será 
  verdadeiramente o anjo da luz quando, tendo conquistado a liberdade ao preço 
  da reprovação, fizer uso dela para se submeter à ordem 
  eterna, inaugurando assim as glórias da obediência voluntária. 
  O direito é apenas a raiz do dever, é preciso possuir para dar.
  Ora, eis como uma elevada poesia explica a queda dos anjos.
  Deus tinha dado aos espíritos a luz e a vida, depois lhes disse: Amai.
  - O que é amar?, responderam os espíritos.
  - Amar é dar-se aos outros, respondeu Deus. - Os que amarem sofrerão, 
  mas serão amados.
  - Temos o direito de não dar nada, e nada queremos sofrer, disseram os 
  espíritos inimigos do amor. - Estais em vosso direito, respondeu Deus 
  -, e separemo-nos. Eu e os meus queremos sofrer e morrer, mesmo para amar. É 
  nosso dever!
  O anjo caído é pois aquele que desde o princípio recusou 
  amar; não ama, e é todo o seu suplício; não dá, 
  e é toda a sua miséria; não sofre, e é seu nada; 
  não morre, e é seu exílio. O anjo caído não 
  é Lúcifer, o porta-luz, é Satã, o caluniador do 
  amor. Ser rico é dar; não dar nada é ser pobre; viver é 
  amar, não amar nada é estar morto; ser feliz é devotar-se; 
  existir somente para si é reprovar a si próprio, é seqüestrar-se 
  no inferno. O céu é a harmonia dos sentimentos gerais; o inferno 
  é o conflito dos instintos lassos. O homem do direito é Caim, 
  que matou Abel por inveja; o homem do dever é Abel, que morre para Caim 
  por amor.
  E tal foi a missão do Cristo, o grande Abel da humanidade.
  Não é pelo direito que devemos ousar em tudo, é pelo dever.
  O dever é a expansão e a fruição da liberdade; o 
  direito isolado é o pai da servidão.
  O dever é a obrigação, o direito é o egoísmo.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  14
  O dever é o sacrifício, o direito é a rapina e o roubo.
  O dever é o amor, o direito é o ódio.
  O dever é a vida infinita, o direito é a morte eterna.
  Se é preciso combater pela conquista do direito, é somente para 
  adquirir a potência do dever: e por que seríamos livres se não 
  fosse para amar, devotarmo-nos e, assim, assemelharmo-nos a Deus? Se é 
  preciso infringir a lei, é quando ela submete o amor ao medo. Aquele 
  que quiser salvar sua alma perdê-la-á, diz o livro santo, e aquele 
  que consentir em perdê-la salvá-la-á.
  O dever é amar: pereça todo aquele que cria obstáculos 
  ao amor! Silêncio aos oráculos do ódio!
  Aniquilamento aos falsos deuses do egoísmo e do medo! Vergonha aos escravos 
  avaros de amor!
  Deus ama os filhos pródigos!
  V - O Quinário
  O quinário é o número religioso, pois é o número 
  de Deus reunido ao da mulher.
  A fé não é a credulidade estúpida da ignorância 
  maravilhada.
  A fé é a consciência e a confiança do amor.
  A fé é o grito da razão que persiste em negar o absurdo, 
  mesmo diante do desconhecido. A fé é um sentimento necessário 
  à alma como a respiração à vida: é a dignidade 
  do coração, é a realidade do entusiasmo.
  A fé não consiste na afirmação deste ou daquele 
  símbolo, mas na aspiração verdadeira e constante às 
  verdades veladas por todos os simbolismos.
  Um homem rejeita uma idéia indigna da divindade, quebra suas falsas imagens, 
  revolta-se contra odiosas idolatrias, e dizeis que é um ateu?
  Os perseguidores da Roma decaída também chamavam os primeiros 
  cristãos de ateus, porque não adoravam os ídolos de Calígula 
  ou de Nero.
  Negar toda uma religião e mesmo todas as religiões de preferência 
  a aderir a fórmulas que a consciência reprova é um corajoso 
  e sublime ato de fé.
  Todo homem que sofre por suas convicções é um mártir 
  da fé. Talvez se explique mal, mas prefere a justiça e a verdade 
  a qualquer coisa; não o condeneis sem entendê-lo.
  Acreditar na verdade suprema não é defini-la, e declarar que nela 
  se crê é reconhecer ignorá-la.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  15
  O apóstolo São Paulo limita toda fé a estas duas coisas: 
  acreditar que Deus existe e que ele recompensa aqueles que o procuram.
  A fé é maior que as religiões, porque precisa menos dos 
  artigos da crença. Um dogma qualquer constitui apenas uma crença 
  e pertence a uma comunhão especial; a fé é um sentimento 
  comum a toda a humanidade.
  Quanto mais se discute para precisar, menos se acredita; um dogma a mais é 
  uma crença de que uma seita se apropria e eleva assim, de alguma maneira, 
  à fé universal. Deixemos os sectários fazerem e refazerem 
  seus dogmas, deixemos os supersticiosos detalharem e formularem suas superstições, 
  deixemos os mortos enterrarem seus mortos, como dizia o Mestre, e acreditemos 
  na verdade indizível, no absoluto que a razão admite sem compreender, 
  no que pressentimos sem saber.
  Acreditemos na razão suprema.
  Acreditemos no amor infinito e tenhamos piedade das estupidezes da escola e 
  das barbáries da falsa religião.
  Ó homem! dize-me o que esperas, e eu dir-te-ei o que vales. Rezas, jejuas, 
  velas e crês que escaparás assim sozinho, ou quase sozinho, à 
  perda imensa dos homens devorados por um Deus cioso. És um hipócrita 
  e um ímpio. Fazes da vida uma orgia e esperas o nada como sono, és 
  um doente ou um insano. Estás pronto a sofrer como os outros e pelos 
  outros e esperas a salvação de todos, és um sábio 
  e um justo.
  Esperar não é ter medo.
  Ter medo de Deus! Que blasfêmia!
  O ato de esperança é a oração.
  A oração é o derramar-se da alma na sabedoria e no amor 
  eternos.
  É o olhar do espírito para a verdade e o suspiro do coração 
  para a beleza suprema.
  É o sorriso da criança para a mãe.
  É o murmúrio do bem-amado que se debruça para os beijos 
  de sua bem-amada.
  É a doce felicidade da alma amante que se dilata num oceano de amor.
  É a tristeza da esposa na ausência do novel esposo.
  É o suspiro do viajante que pensa em sua pátria.
  É o pensamento do pobre que trabalha para alimentar a mulher e os filhos. 
  Oremos em silêncio e ergamos em direção de nosso Pai desconhecido 
  um olhar de confiança e de amor; aceitemos com fé e resignação 
  a parte que nos cabe nas penas da vida, e todas as batidas de nossos corações 
  serão palavras de oração.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  16
  Necessitamos acaso informar a Deus que coisas lhe pedimos, já não 
  sabe ele o que nos é necessário? Se choramos, apresentemos-lhe 
  as nossas lágrimas; se nos regozijamos, dirijamos-lhe o nosso sorriso; 
  se ele nos atinge, baixemos a cabeça; se nos acaricia, adormeçamos 
  em seus braços! Nossa oração será perfeita, quando 
  orarmos sem sequer saber que oramos.
  A oração não é um ruído que fere os ouvidos, 
  é um silêncio que penetra no coração.
  E doces lágrimas vêm umedecer os olhos, e suspiros escapam como 
  a fumaça dos incensos. Fica-se tomado por um inefável amor a tudo 
  o que é beleza, verdade, justiça; palpita-se de uma nova vida 
  e não se teme mais morrer. Pois a oração é a vida 
  eterna da inteligência e do amor; é a vida de Deus na terra.
  Amai-vos uns aos outros, eis a lei e os profetas! Meditai e compreendei essa 
  palavra.
  E, quando tiverdes compreendido, não leiais mais, não procures 
  mais, não duvideis mais, amai! Não mais sejais sábios, 
  não mais sejais eruditos, amai! Essa é a doutrina da verdadeira 
  religião; religião quer dizer caridade, e o próprio Deus 
  não é senão amor. Eu já vos disse: amar é 
  dar.
  O ímpio é aquele que absorve os outros.
  O homem pio é aquele que se expande na humanidade.
  Se o coração do homem concentra em si próprio o fogo com 
  o qual Deus o anima, é um inferno que devora tudo e que só se 
  preenche de cinzas; se ele o faz resplandecer fora, torna-se um doce sol de 
  amor.
  O homem doa-se à família; a família doa-se à pátria; 
  a pátria, à humanidade. O egoísmo do homem merece o isolamento 
  e o desespero, o egoísmo da família merece a ruína e o 
  exílio, o egoísmo da pátria merece a guerra e a invasão.
  O homem que se isola de todo amor humano ao dizer: Eu servirei a Deus, este 
  se engana. Pois, diz o apóstolo São João, se ele não 
  ama ao próximo que vê, como amará a Deus que não 
  vê? É preciso dar a Deus o que é de Deus, mas não 
  se deve recusar mesmo a César o que é de César.
  Deus é quem dá a vida, César é quem pode dar a morte.
  É preciso amar a Deus e não temer a César, pois está 
  dito no livro sagrado: Quem com ferro fere com ferro perecerá.
  Quereis ser bons, sede justos; quereis ser justos, sede livres!
  Os vícios que deixam o homem semelhante à besta são os 
  primeiros inimigos da sua liberdade.
  Olhai o bêbado e dizei-me se essa besta imunda pode ser livre!
  O avaro maldiz a vida de seu pai e, como o corvo, tem fome de cadáveres.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  17
  O ambicioso quer ruínas, é um invejoso em delírio; o devasso 
  escarrou no seio da mãe e encheu de abortos as entranhas da morte.
  Todos esses corações sem amor são punidos pelo mais cruel 
  dos suplícios: o ódio.
  Pois, saibamo-lo bem, a expiação está contida no pecado.
  O homem que faz o mal é como um vaso de barro defeituoso, quebrar-se-á, 
  a fatalidade o quer.
  Com os escombros do mundo, Deus refaz estrelas; com os escombros da alma, refaz 
  anjos.
  VI - O Senário
  O senário é o número da iniciação pela prova; 
  é o número do equilíbrio, é o hieróglifo 
  da ciência do bem e do mal.
  Quem procura a origem do mal procura o que não é.
  O mal é o apelativo da desordem do bem, é a tentativa infrutífera 
  de uma vontade inábil.
  Cada um possui o fruto de suas obras, e a pobreza é somente o aguilhão 
  do trabalho. Para o rebanho dos homens, o sofrimento é como o cão 
  pastor que morde a lã das ovelhas para recolocá-las no caminho.
  É por causa da sombra que podemos ver a luz; é por causa do frio 
  que sentimos o calor; é por causa da dor que somos sensíveis ao 
  prazer.
  O mal é, portanto, para nós, a ocasião e o começo 
  do bem.
  Mas, nos sonhos de nossa inteligência imperfeita, acusamos o trabalho 
  providencial, por não o compreender.
  Assemelhamo-nos ao ignorante que julga o quadro no começo do esboço 
  e diz, quando a cabeça está feita: "Então esta figura 
  não tem corpo."
  A natureza continua calma e realiza sua obra.
  A relha não é cruel quando rasga o seio da terra, e as grandes 
  revoluções do mundo são a lavoura de Deus.
  Tudo tem seu tempo: aos povos ferozes, senhores bárbaros; ao gado, açougueiros; 
  aos homens, juizes e pais.
  Se o tempo pudesse transformar os carneiros em leões, eles comeriam os 
  açougueiros e os pastores.
  Os carneiros nunca se transformam porque não se instruem, mas os povos 
  instruem-se. Pastores e açougueiros dos povos, tendes razão, portanto, 
  em ver como inimigos aqueles que falam a vosso rebanho.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  18
  Rebanhos que conheceis ainda apenas vossos pastores e que quereis ignorar seu 
  comércio com os açougueiros, sois desculpáveis por apedrejar 
  aqueles que vos humilham e que vos inquietam ao falarem de vossos direitos.
  Ó Cristo! Os grandes condenam-te, teus discípulos renegam-te, 
  o povo amaldiçoa-te e aclama teu suplício, somente tua mãe 
  chora, Deus abandona-te!
  Eli! Eli! Lamma Sabachtani!
  VII - O Setenário
  O setenário é o grande número bíblico. É 
  a chave da criação de Moisés e o símbolo de toda 
  a religião. Moisés deixou cinco livros, e a lei resume-se em dois 
  testamentos. A Bíblia não é uma história, é 
  uma coletânea de poemas, é um livro de alegorias e imagens. Adão 
  e Eva são somente tipos primitivos da humanidade; a serpente que tenta 
  é o tempo que põe à prova; a árvore da ciência 
  é o direito; a expiação pelo trabalho é o dever. 
  Caim e Abel representam a carne e o espírito, a força e a inteligência, 
  a violência e a harmonia.
  Os gigantes são os antigos usurpadores da terra; o dilúvio foi 
  um imensa revolução. A arca é a tradição 
  conservada numa família: a religião, nessa época, torna-se 
  um mistério e a propriedade de uma raça. Caim é maldito 
  por ser seu revelador. Nemrod e Babel são duas alegorias primitivas do 
  désposta único e do império universal sempre sonhado desde 
  então; empreendido sucessivamente pelos assírios, os medas, os 
  persas, Alexandre, Roma, Napoleão, os sucessores de Pedro, o Grande, 
  e sempre inacabado por causa da dispersão de interesses, figurada pela 
  confusão das línguas.
  O império universal não deveria realizar-se pela força, 
  mas pela inteligência e pelo amor. Por isso, a Nemrod, homem do direito 
  selvagem, a Bíblia opõe Abraão, homem do dever, que se 
  exila para buscar a liberdade e a luta numa terra estrangeira de que se apodera 
  pelo pensamento. Tem uma mulher estéril, é seu pensamento, e uma 
  escrava fecunda, é sua força; mas, quando a força produz 
  seu fruto, o pensamento torna-se fecundo, e o filho da inteligência exila 
  o filho da força. O homem de inteligência é submetido a 
  duras provas; deve confirmar suas conquistas pelo sacrifício. Deus quer 
  que ele imole seu filho, isto é, a dúvida deve pôr à 
  prova o dogma e o homem intelectual deve estar pronto a tudo sacrificar diante 
  da razão suprema. Deus, então, intervém: a razão 
  universal cede aos esforços do trabalho, mostra-se à ciência 
  e apenas o lado material do dogma é imolado. É o que representa 
  o carneiro preso pelos chifres entre os arbustos. A história de Abraão 
  é pois um símbolo à moda antiga e contém uma elevada 
  revelação dos destinos da alma humana. Tomada ao pé da 
  letra, é um relato absurdo e revoltante. Santo Agostinho não tomava 
  ao pé da letra o Asno de Ouro de Apuleu! Pobres grandes homens!
  A história de Isaac é uma outra lenda. Rebeca é o tipo 
  de mulher oriental, laboriosa, hospitaleira,
  parcial em suas afeições, astuta e ardilosa em suas manobras. 
  Jacó e Esaú são ainda os dois tipos
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  19
  reproduzidos de Caim e Abel; mas aqui Abel se vinga; a inteligência emancipada 
  triunfa pela astúcia. Todo o gênio israelita está no caráter 
  de Jacó, o paciente laborioso suplantador que cede à cólera 
  de Esaú, torna-se rico e compra o perdão de seu irmão. 
  Quando os antigos queriam filosofar, contavam, nunca se deve esquecer.
  A história ou lenda de José contém em germe todo o gênio 
  do Evangelho, e Cristo, desconhecido por seu povo, teve de chorar mais de uma 
  vez ao reler esta cena em que o governador do Egito lança-se ao pescoço 
  de Benjamim dando um grito e dizendo: "Eu sou José!" Israel 
  torna-se o povo de Deus, isto é, o conservador da idéia e o depositário 
  do Verbo. Essa idéia é a da independência humana e a da 
  realeza pelo trabalho, mas é ocultada com cuidado, como um germe precioso. 
  Um signo doloroso e indelével é imprimido nos iniciados, toda 
  imagem da verdade é proibida, e os filhos de Israel velam, segurando 
  o sabre em torno da unidade do tabernáculo. Hermor e Siquém querem 
  introduzir-se pela força na família sagrada e perecem com seu 
  povo em conseqüência de uma falsa iniciação. Para dominar 
  os povos, é preciso que o santuário já esteja cercado de 
  sacrifícios e terror.
  A servidão dos filhos de Jacó prepara sua libertação: 
  eles têm uma idéia, e não se acorrenta uma idéia; 
  têm uma religião, e não se violenta uma religião; 
  são por fim um povo, e não se acorrenta um verdadeiro povo. A 
  perseguição suscita vingadores, a idéia encarna-se num 
  homem, Moisés levanta, o Faraó cai e a coluna de nuvens e chamas 
  que precede um povo livre avança majestosamente no deserto.
  O Cristo é o pai e o rei pela inteligência e pelo amor.
  Recebeu a unção santa, a unção do gênio, a 
  unção da fé, a unção da virtude que é 
  a força. Ele vem quando o sacerdote está esgotado, quando os velhos 
  símbolos não têm mais virtudes, quando a pátria da 
  inteligência está extinta.
  Vem para fazer Israel voltar à vida e, se não puder galvanizar 
  Israel, morto pelos fariseus, ressuscitará o mundo abandonado ao culto 
  morto dos ídolos. Cristo é o direito do dever!
  O homem tem o direito de cumprir o seu dever e não tem outro.
  Homem, tens o direito de resistir até a morte a quem quer que te impeça 
  de cumprir o teu dever! Mãe! teu filho afoga-se; um homem impede-te de 
  socorrê-lo; feres esse homem e corres a salvar teu filho!... Quem ousará 
  condenar-te?...
  Cristo veio para opor o direito do dever ao dever do direito.
  O direito para os judeus era a doutrina dos fariseus. E, com efeito, pareciam 
  ter adquirido o privilégio de dogmatizar; não eram eles os legítimos 
  herdeiros da sinagoga? Tinham o direito de condenar o Salvador, e o Salvador 
  sabia que seu direito era o de resistir-lhes.
  O Cristo é a protestação viva.
  Mas protestação de quê? Da carne contra a inteligência? 
  Não!
  Do direito contra o dever? Não!
  Da atração física contra a atração moral? 
  Não! não!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  20
  Da imaginação contra a razão universal? Da loucura contra 
  a sabedoria? Não, mil vezes não, ainda uma vez!
  O Cristo é o dever real que protesta eternamente contra o direito imaginário.
  É a emancipação do espírito que quebra a servidão 
  da carne.
  É a devoção revoltada contra o egoísmo.
  É a modéstia sublime que responde ao orgulho: Eu não te 
  obedecerei!
  O Cristo é viúvo, o Cristo é só, o Cristo é 
  triste: por quê? É que a mulher prostituiu-se.
  É que a sociedade é acusada de roubo.
  É que a felicidade egoísta é ímpia.
  Cristo é julgado, condenado, executado, e nós o adoramos!
  Isso se passou num mundo talvez tão sério quanto o nosso.
  Juizes do mundo em que vivemos, sede atentos e pensai naquele que julgará 
  vossos julgamentos.
  Mas, antes de morrer, o Salvador legou a seus filhos o símbolo imortal 
  da salvação: a comunhão.
  Comunhão! União comum! Última palavra do Salvador do mundo.
  O pão e o vinho repartidos entre todos, disse ele, é minha carne 
  e meu sangue!
  Ele deu sua carne aos carrascos, seu sangue à terra que quis bebê-lo: 
  e por quê? Para que todos repartam o pão da inteligência 
  e o vinho do amor. Ó signo da união dos homens! Ó mesa 
  comum! Ó banquete da fraternidade e da igualdade! quando enfim serás 
  melhor compreendido?
  Mártires da humanidade, vós que destes a vida para que todos tivessem 
  o pão que alimenta e o vinho que fortifica, também não 
  dizeis ao impor a mão sobre esses símbolos da comunhão 
  universal: Isso é nossa carne e nosso sangue!
  E vós, homens do mundo inteiro, vós a quem o Mestre chama irmãos: 
  oh, não sentis que o pão universal é Deus!
  Devedores do crucificado.
  Vós todos que não estais prontos para dar à humanidade 
  vosso sangue, vossa carne e vossa vida não sois dignos da comunhão 
  do Filho de Deus! Não o façais derramar seu sangue sobre vós, 
  pois faria nódoas sobre vossa fronte!
  Não aproximeis vossos lábios do coração de Deus, 
  ele sentiria vossa mordedura. Não bebais o sangue do Cristo, queimaria 
  vossas entranhas; já é suficiente que ele o tenha derramado inutilmente 
  por vós!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  21
  VIII - O Número Oito
  O octonário é o número da reação e da justiça 
  equilibrante.
  Toda ação produz uma reação.
  É a lei universal do mundo.
  O cristianismo devia produzir o anticristianismo.
  O anticristo é a sombra, é o contraste e a prova do Cristo.
  O anticristo já se produzia na Igreja na época dos apóstolos: 
  Aquele que resiste agora resiste até a morte, dizia São Paulo, 
  e o filho da iniqüidade manifestar-se-á. Os protestantes disseram: 
  O anticristo é o papa.
  O papa respondeu: Todo herege é um anticristo.
  O anticristo não é mais o papa do que Lutero: o anticristo é 
  o espírito oposto ao do Cristo.
  É a usurpação do direito pelo direito; é o orgulho 
  da dominação e o despotismo do pensamento. É o egoísmo 
  pretensamente religioso dos protestantes da mesmíssima maneira que a 
  ignorância crédula e imperiosa dos maus católicos.
  O anticristo é o que divide os homens ao invés de os unir; é 
  o espírito de disputa, é a teimosia dos doutores e dos sectários, 
  o desejo ímpio de se apropriar da verdade e dela excluir os outros, o 
  de forçar todo o mundo a sofrer a estreiteza de nossos julgamentos. O 
  anticristo é o pai que amaldiçoa ao invés de abençoar, 
  que afasta ao invés de aproximar, que escandaliza ao invés de 
  edificar, que condena ao invés de salvar. É o fanatismo odioso 
  que desencoraja a boa vontade.
  É o culto da morte, da tristeza e da fealdade.
  Que futuro daremos a nosso filho? disseram os pais insensatos; ele é 
  fraco de espírito e de corpo e seu coração não dá 
  ainda sinal de vida: faremos dele um padre, a fim de que viva do altar. E não 
  compreenderam que o altar não é uma manjedoura para os animais 
  preguiçosos. Por isso, olhai os padres indignos, contemplei esses pretensos 
  servidores do altar. O que é que dizem a vossos corações 
  esses homens gordos ou cadavéricos, de olhos inexpressivos, de lábios 
  cerrados ou escancarados?
  Escutai-os falarem: o que vos ensina esse ruído desagradável e 
  monótono?
  Rezam como dormem e sacrificam como comem.
  São máquinas de pão, de carne, de vinho e de palavras vazias 
  de sentido. E, quando se regozijam, como ostras ao sol, por estarem sem pensamento 
  e sem amor, diz-se que têm paz de espírito.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  22
  Têm a paz da besta e, para o homem, a do túmulo é melhor; 
  são os padres da tolice e da ignorância, são os ministros 
  do anticristo.
  O verdadeiro padre do Cristo é um homem que vive, que sofre, que ama 
  e que combate pela justiça.
  Não briga, não reprova, difunde o perdão, a inteligência 
  e o amor. O verdadeiro cristão é estranho ao espírito de 
  seita; ele é tudo para todos e vê todos os homens como filhos de 
  um pai comum que quer salvar a todos; o símbolo inteiro tem para ele 
  somente um sentido de doçura e amor: deixa para Deus os segredos da justiça 
  e só compreende a caridade. Vê os maus como doentes de quem é 
  preciso ter pena e cuidar; o mundo com seus erros e seus vícios é, 
  para ele, o hospital de Deus, e ele quer ser seu enfermeiro. Não se acha 
  melhor que ninguém, apenas diz: Enquanto eu for melhor, sirvamos os outros, 
  quando for preciso cair e morrer, outros talvez tomarão meu lugar e nos 
  servirão.
  IX - O Número Nove
  Eis o eremita do tarô; eis o número dos iniciados e dos profetas.
  Os profetas são solitários, pois seu destino é nunca serem 
  ouvidos. Vêem muito mais que os outros; pressentem as desgraças 
  por vir. Assim, são aprisionados, mortos ou vilipendiados, são 
  rejeitados como leprosos, ou deixam-nos morrer de fome. Depois, quando os eventos 
  ocorrem, dizemos: Foram essas pessoas que nos trouxeram desgraça.
  Agora, como sempre, na véspera dos grandes desastres, nossas ruas estão 
  plenas de profetas.
  Encontrei alguns nas prisões; vi outros que morriam esquecidos em pardieiros. 
  Toda grande cidade viu algum cuja profecia silenciosa era girar incessantemente 
  e andar sempre coberto de andrajos no palácio do luxo e da riqueza.
  Vi um cujo rosto resplandecia como o do Cristo: tinha as mãos calejadas 
  e a roupa do trabalhador e moldava epopéias como argila. Torcia juntos 
  o gládio do direito e o cetro do dever e, sobre esta coluna de ouro e 
  aço, inaugurava o símbolo criador do amor. Um dia, numa grande 
  assembléia do povo, desceu a rua, segurando um pão que partia 
  e distribuía, dizendo: Pão de Deus, faze-te pão para todos!
  Conheço outro que gritou: Não quero mais adorar o Deus do diabo; 
  não quero um carrasco como Deus! E acreditou-se que ele blasfemava.
  Não; mas a energia de sua fé transbordava em palavras inexatas 
  e imprudentes. Dizia ainda, na loucura de sua caridade ferida: Todos os homens 
  são solidários e expiam uns pelos outros, da mesma forma que se 
  merecem uns aos outros.
  O castigo para o pecado é a morte.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  23
  O próprio pecado é, aliás, um castigo, e o maior dos castigos. 
  Um grande crime é apenas uma grande desgraça.
  O pior dos homens é o que se acredita melhor do que os outros. Os homens 
  apaixonados são escusáveis, uma vez que são passivos. Paixão 
  significa sofrimento e redenção pela dor.
  O que chamamos de liberdade é somente a onipotência da atração 
  divina. Os mártires diziam: Mais vale obedecer a Deus que aos homens.
  O menos perfeito ato de amor vale mais ao que a melhor palavra de piedade.
  Não julgueis, falai pouco, amai e agi.
  Um outro que veio disse: Protestai contra as más doutrinas por boas obras, 
  mas não vos separeis de ninguém.
  Restabelecei todos os altares, purificai todos os templos e estai prontos para 
  a visita do espírito do amor.
  Que cada um reze seguindo seu rito e comungue com os seus, mas não condeneis 
  os outros.
  Uma prática de religião nunca é desprezível, pois 
  é o símbolo de um grande e santo pensamento.
  Rezar em conjunto é comungar na mesma esperança, na mesma fé, 
  na mesma caridade.
  O signo não é nada para si próprio: é a fé 
  que o santifica.
  A religião é o laço mais sagrado e mais forte da associação 
  humana, e fazer um ato de religião é fazer um ato de humanidade.
  Quando os homens compreenderem, enfim, que não se deve discutir sobre 
  coisas que se ignora;
  Quando sentirem que um pouco de caridade vale mais que muita influência 
  e dominação;
  Quando todos respeitarem o que o próprio Deus respeita na menor de suas 
  criaturas: a espontaneidade da obediência e a liberdade do dever;
  Então, só haverá uma religião no mundo, a religião 
  cristã e universal, a verdadeira religião católica que 
  não renegará mais a si própria por restrição 
  de lugares ou de pessoas. Mulher, dizia o Salvador à samaritana, em verdade 
  te digo que virá o tempo em que os homens não adorarão 
  mais a Deus nem em Jerusalém nem sobre esta montanha, pois Deus é 
  espírito, e seus verdadeiros adoradores devem servi-lo em espírito 
  e em verdade.
  X - Número Absoluto da Cabala
  A chave das sefirotes (ver Dogma e Ritual da Alta Magia).
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  24
  XI - O Número Onze
  Onze é o número da força; é o da luta e do martírio.
  Todo homem que morre por uma idéia é um mártir, pois nele 
  as aspirações do espírito triunfaram sobre os temores dos 
  animais.
  Todo homem que morre na guerra é um mártir, pois morre pelos outros.
  Todo homem que morre miserável é um mártir, pois é 
  como um soldado vencido na batalha da vida. Aqueles que morrem pelo direito 
  são tão santos em seu sacrifício quanto as vítimas 
  do dever e, nas grandes lutas da revolução contra o poder, os 
  mártires caem dos dois lados. Sendo o direito a raiz do dever, nosso 
  dever é defender nossos direitos. O que é um crime? É o 
  exagero do direito. O assassínio e o roubo são negações 
  da sociedade; é o despotismo isolado de um indivíduo que usurpa 
  a realeza e faz guerra por sua conta e risco. O crime deve ser sem dúvida 
  reprimido, e a sociedade deve defender-se; mas quem poderia ser justo o suficiente, 
  grande o suficiente e puro o suficiente para ter a pretensão de punir? 
  Paz a todos os que tombam na guerra, mesmo na guerra ilegítima, pois 
  arriscaram a cabeça e perderam-na, e, tendo pago, o que podemos ainda 
  reclamar? Honra a todos os que combatem bravamente e lealmente! Vergonha somente 
  aos traidores e aos covardes!
  O Cristo morreu entre dois ladrões e levou consigo um deles ao céu.
  O reino dos céus é dos lutadores e se ganha à força.
  Deus dá sua onipotência ao amor. Gosta de triunfar sobre o ódio, 
  mas vomita a tibieza.
  O dever é viver, nem que seja por um instante!
  É belo ter reinado por um dia, mesmo por uma hora! Mesmo que seja sob 
  a espada de Dâmocles ou na fogueira de Sardanapalo.
  Mas é mais belo ter visto a seus pés todas as coisas do mundo 
  e ter dito: Serei o rei dos pobres e meu trono será sobre o calvário.
  Existe um homem mais forte do que aquele que mata, é o que morre para 
  salvar.
  Não existem crimes isolados nem expiações solitárias.
  Não existem virtudes pessoais nem devotamentos perdidos.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  25
  Quem não for irrepreensível é cúmplice de todo mal, 
  e quem não for absolutamente perverso pode participar de todo bem.
  É por isso que um suplício é sempre uma expiação 
  humanitária, e toda cabeça que é recolhida de um cadafalso 
  pode ser saudada e honrada como a cabeça de um mártir. É 
  por isso também que o mais nobre e o mais santo dos mártires podia, 
  ao entrar em sua consciência, achar-se digno da pena que iria suportar 
  e dizer, saudando o gládio pronto a feri-lo: Justiça seja feita!
  Puras vítimas das catacumbas de Roma, judeus e protestantes massacrados 
  por indignos cristãos. Padres da Abbaye e dos Carmes, guilhotinados do 
  terror, realistas degolados, revolucionários sacrificados, soldados de 
  nossos grandes exércitos que semeasses as ossadas pelo mundo, vós 
  todos que morresses com sofrimento, ousados de toda sorte, bravos filhos de 
  Prometeu que não tendes medo nem do raio nem do abutre, honra a vossas 
  cinzas, paz e veneração a vossas memórias! Sois os heróis 
  do progresso, os mártires da humanidade!
  XII - O Número Doze
  O doze é o número cíclico; é o do símbolo 
  universal.
  Eis uma tradução dos versos feitos para o símbolo mágico 
  e católico sem restrição:
  Creio num só Deus onipotente, nosso pai,
  Eterno criador do céu e da terra.
  Creio no Rei salvador, chefe da humanidade.
  Da divindade, filho, palavra e esplendor.
  Concepção viva do eterno amor,
  Divindade visível e luz atuante.
  Desejado pelo mundo sempre e em todos os lugares.
  Mas que não é um Deus separável de Deus.
  Descido entre nós para libertar a terra,
  Santificou a mulher em sua mãe.
  Era o homem celeste, sábio e doce homem.
  Nasceu para sofrer e morrer como nós.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  26
  Proscrito pela ignorância, acusado pela inveja,
  Morreu na cruz para nos dar a vida.
  Todos os que o tomarem por guia e apoio
  Podem, por sua doutrina, ser Deus como ele.
  Ressuscitou para reinar sobre os tempos;
  Deve, da ignorância, as nuvens dissipar.
  Seus preceitos, um dia mais fortes e mais conhecidos,
  Serão o julgamento dos vivos e dos mortos.
  Creio no Espírito Santo cujos únicos intérpretes
  São o espírito e o coração dos santos e dos profetas.
  É um sopro de vida e fecundidade
  Que provém da humanidade e do Pai.
  Creio na família única e sempre santa
  Dos justos que o céu reuniu em seu temor.
  Creio na unidade do símbolo, do lugar,
  Do pontífice e do culto na honra de um só Deus.
  Creio que, em nos transformando, a morte nos renove,
  E que em nós, como em Deus, a vida é eterna.
  XIII - O Número Treze
  O treze é o número da morte e o do nascimento; é o da propriedade 
  e da herança, da sociedade e da família, da guerra e dos tratados.
  A sociedade tem por bases as trocas do direito, do dever e da fé mútua.
  O direito é a propriedade; a troca, a necessidade; a boa fé, o 
  dever.
  Aquele que quer receber mais do que dá ou que quer receber sem dar é 
  um ladrão. A propriedade é o direito de dispor de uma parte da 
  fortuna comum; não é nem o direito de destruição 
  nem o direito de seqüestro.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  27
  Destruir ou seqüestrar o bem público não é possuir, 
  é roubar. Digo bem público, porque o verdadeiro proprietário 
  de todas as coisas é Deus, que quer que tudo seja de todos. O que quer 
  que façais, não levareis convosco ao morrer nenhum dos bens deste 
  mundo. Ora, o que vos deve ser tomado um dia não vos pertence realmente. 
  Foi apenas um empréstimo. Quanto ao usufruto, é o resultado do 
  trabalho; mas o próprio trabalho não é uma garantia segura 
  de posse, e a guerra pode vir, pela devastação ou pelo incêndio, 
  deslocar a propriedade. Fazei, pois, um bom uso das coisas que perecem, vós 
  que perecereis antes delas! Levai em consideração que o egoísmo 
  provoca o egoísmo e que a imoralidade do rico corresponderá a 
  crimes dos pobres.
  O que quer o pobre, se é honesto?
  Quer trabalho. Usai vossos direitos, mais fazei vosso dever: o dever do rico 
  é expandir a riqueza; o bem que não circula está morto, 
  não entesoureis a morte.
  Um sofista disse: A propriedade é o roubo. E queria sem dúvida 
  falar da propriedade absorvida, subtraída à troca, desviada da 
  utilidade COMUM.
  Se esse era seu pensamento, ele poderia ir mais longe e dizer que tal supressão 
  da vida pública é um verdadeiro assassínio.
  É o crime do açambarcamento, que o instinto público sempre 
  viu como um crime de lesa-majestade humana.
  A família é uma associação natural que resulta do 
  casamento. O casamento é a união de dois seres que o amor uniu 
  e que se prometem um devotamento mútuo no interesse dos filhos que podem 
  nascer.
  Dois esposos que têm um filho e se separam são ímpios. Será 
  que querem executar o julgamento de Salomão e separar também o 
  filho?
  Prometer-se um amor eterno é puerilidade: o amor sexual é uma 
  emoção sem dúvida divina, mas acidental, involuntária 
  e transitória; mas a promessa do devotamente recíproco é 
  a essência do casamento e o princípio da família.
  A sanção e a garantia dessa promessa devem ser uma confiança 
  absoluta.
  Todo ciúme é uma suspeita, e toda suspeita é um ultraje.
  O verdadeiro adultério é o da confiança: a mulher que se 
  queixa de seu marido perto de outro homem; o homem que confia a outra mulher, 
  que não a sua, as aflições ou as esperanças de seu 
  coração, esses traem verdadeiramente a fé conjugal.
  As surpresas dos sentidos só são infidelidades por causa dos arrebatamentos 
  do coração que se abandona mais ou menos ao reconhecimento do 
  prazer. Afora isso, são faltas humanas, de que é preciso envergonhar-se 
  e que se deve esconder: são indecências que é preciso evitar 
  afastando as ocasiões, mas que nunca se deve procurar surpreender; os 
  bons costumes são a proscrição do escândalo.
  Todo escândalo é uma torpeza. Não se é indecente 
  porque tem-se órgãos que o pudor não nomeia; mas se é 
  obsceno quando são mostrados.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  28
  Maridos, escondei as chagas de vossa vida a dois; não desnudeis vossas 
  mulheres perante o escárnio público!
  Mulheres, não exibais as misérias do leito conjugal: seria vos 
  ínscreverdes na opinião pública como prostituídas.
  É preciso uma elevada dignidade de coração para conservar 
  a fé conjugal: é um pacto de heroismo que somente as grandes almas 
  podem compreender em toda a extensão. Os casamentos que são rompidos 
  não são casamentos, são acasalamentos. No que se pode transformar 
  uma mulher que abandona o marido? Não é mais esposa, não 
  é viúva; o que é então? É uma apóstata 
  da honra, que é forçada a ser licenciosa, porque não é 
  nem virgem nem livre.
  Um marido que abandona a mulher a prostitui e merece o nome infame que é 
  dado aos amantes das jovens perdidas.
  O casamento é sagrado, indissolúvel, quando existe realmente.
  Mas só pode existir para seres de elevada inteligência e nobre 
  coração. Os animais não se casam, e os homens que vivem 
  como animais sofrem as fatalidades de sua natureza.
  Fazem sem cessar tentativas para agir racionalmente. Suas promessas são 
  tentativas e simulacros de promessas; seus casamentos, tentativas e simulacros 
  de casamento; seus amores, tentativas e simulacros de amor. Quereriam sempre 
  e não querem nunca; começam sempre e não terminam nunca. 
  Para tais pessoas, as leis só se aplicam pela repressão. Tais 
  seres podem ter uma ninhada, mas nunca têm uma família: o casamento, 
  a família são direitos do homem perfeito, do homem emancipado, 
  do homem inteligente e livre. Por isso, consultar os anais dos tribunais e lede 
  a história dos parricidas. Erguei o véu negro de todas estas cabeças 
  cortadas e perguntai-lhes o que pensaram do casamento e da família, que 
  leite sugaram, que carinhos as enobreceram... Depois tremei, vós todos 
  que não dais a vossos filhos o pão da inteligência e do 
  amor, vós todos que não sancionais a autoridade paterna pela virtude 
  do bom exemplo...
  Esses miseráveis eram órfãos pelo espírito e pelo 
  coração e vingaram-se de seu nascimento!... Vivemos num século 
  em que mais do que nunca a família é desconhecida no que tem de 
  augusta e sagrada: o interesse material mata a inteligência e o amor; 
  as lições da experiência são desprezadas, regateia-se 
  as coisas de Deus. A carne insulta o espírito, a fraude ri na cara da 
  lealdade. Quanto mais ideal, mais justiça: a vida humana ficou órfã 
  dos dois lados.
  Coragem e paciência! Este século irá para onde devem ir 
  todos os culpados. Vede como é triste! O tédio é o véu 
  negro de sua cabeça... a carroça anda, e a multidão segue 
  estremecendo... Logo, mais um século será julgado pela história, 
  e será escrito num túmulo de ruínas: Aqui jaz o século 
  parricida! o século carrasco de Deus e de seu Cristo!
  Na guerra tem-se o direito de matar para não morrer: mas na batalha da 
  vida, o mais sublime dos direitos é o de morrer para não matar.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  29
  A inteligência e o amor devem resistir à opressão até 
  a morte, nunca até o assassínio. Homem de coração, 
  a vida daquele que te ofendeu está em tuas mãos, pois ele é 
  senhor da vida dos outros, o qual não faz questão da sua. Massacra-o 
  com tua grandeza: perdoa-o! - Mas será proibido matar o tigre que nos 
  ameaça?
  - Se for um tigre com rosto humano, é mais belo deixar-se devorar, no 
  entanto, aqui, a moral nada prescreve.
  - Mas e se o tigre ameaça meus filhos?
  - A própria natureza vos responderá.
  Harmódio e Aristogiston tinham festas e estátuas na Grécia 
  antiga. A Bíblia consagrou os nomes de Judite e Aud e uma das mais sublimes 
  figuras do livro santo, Sansão cego e acorrentado que sacode as colunas 
  do templo e grita: Que eu morra com os filisteus! Acreditai, entretanto, que, 
  se Jesus, antes de morrer, tivesse ido a Roma apunhalar Tibério, teria 
  salvado o mundo como fez ao perdoar seus carrascos e até mesmo ao morrer 
  por Tibério? Brutus, ao matar César, salvou a liberdade romana? 
  Ao matar Calígula, Quéreas apenas deu lugar a Cláudio e 
  a Nero. Protestar contra a violência com violência é justificá-la 
  e forçá-la a se reproduzir.
  Mas triunfar sobre o mal pelo bem, sobre o egoísmo pela abnegação, 
  sobre a ferocidade pelo perdão:
  é o segredo do cristianismo e da vitória eterna.
  Eu vi o lugar em que a terra sangrava ainda pelo assassínio de Abel e 
  nesse lugar passava um regato de pranto.
  E miríades de homens avançavam conduzidos pelos séculos, 
  deixando cair lágrimas no regato. E a eternidade, agachada e morna, contemplava 
  as lágrimas que caíam, contava-as uma a uma, e nunca havia o suficiente 
  para lavar uma mancha de sangue.
  Mas, entre duas multidões e duas épocas, veio o Cristo, pálida 
  e resplandecente figura. E, na terra do sangue e das lágrimas, plantou 
  a vinha da fraternidade, e as lágrimas e o sangue aspirados pelas raizes 
  da árvore divina tornaram-se a seiva deliciosa da uva que deve embriagar 
  de amor os filhos do futuro.
  XIV - O Número Catorze
  Catorze é o número da fusão, da associação 
  e da unidade universal, e é em nome do que representa que faremos aqui 
  um apelo às nações, a começar pela mais antiga e 
  mais santa. Filhos de Israel, por que, em meio ao movimento das nações, 
  continuais imóveis como se guardásseis os túmulos de vossos 
  pais?
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  30
  Vossos pais não estão mais aqui, ressuscitaram: pois o Deus de 
  Abraão, de Isaac e de Jacó não é o Deus dos mortos!
  Por que imprimis sempre a vossa geração a marca sangrenta do cutelo? 
  Deus não quer mais separar-vos dos outros homens; sede nossos irmãos, 
  e comei conosco hóstias pacíficas nos altares que o sangue nunca 
  conspurca.
  A lei de Moisés está cumprida: lede vossos livros e compreendei 
  que fostes um povo cego e duro, como dizem todos os vossos profetas.
  Mas fostes também um povo corajoso e perseverante na luta.
  Filhos de Israel, tornai-vos filhos de Deus: compreendei e amai! Deus apagou 
  de vossa fronte a marca de Caim, e os povos ao vos ver passar não dirão 
  mais: Aí estão os judeus! gritarão: Abram alas para nossos 
  irmãos, abram alas para os que nos precederam na fé. E iremos 
  todos os anos comemorar convosco a páscoa na nova Jerusalém. E 
  descansaremos debaixo de vossa videira e de vossa figueira; pois sereis ainda 
  amigos do viajante, em memória de Abraão, de Tobias e dos anjos 
  que os visitavam. E em memória daquele que disse: Quem ao menor dentre 
  vós recebe a mim me recebe. Pois doravante não recusareis mais 
  um asilo em vossa casa e em vosso coração a vosso irmão 
  José que vendesses às nações.
  Porque ele se tornou poderoso na terra do Egito onde procuráveis pão 
  durante os dias de esterilidade. E ele recordou-se de seu pai Jacó e 
  de Benjamim, seu jovem irmão; e perdoa vossa inveja e vos abraça 
  chorando.
  Filhos dos crentes, cantaremos convosco: não existe outro Deus senão 
  Deus e Maomé é seu profeta.
  Dizei com os filhos de Israel: Nenhum Deus existe senão Deus e Moisés 
  é seu profeta!
  Dizei com os cristãos: Não existe outro Deus senão Deus 
  e Jesus Cristo é seu profeta!
  Maomé é a sombra de Moisés. Moisés é o precursor 
  de Jesus. O que é um profeta? É um representante da humanidade 
  que procura Deus. Deus é Deus, o homem é o profeta de Deus quando 
  faz que acreditemos em Deus.
  A Bíblia, o Alcorão e o Evangelho são três traduções 
  diferentes do mesmo livro. Há somente uma lei como há somente 
  um Deus.
  Ó mulher idealizada, ó recompensa dos eleitos, és mais 
  bela do que Maria? Ó Maria, filha do Oriente, casta como o puro amor, 
  grande como as aspirações maternais, vem ensinar aos filhos do 
  Islã os mistérios do céu e os segredos da beleza. Convida-os 
  para o festim da nova aliança, lá, em três tronos resplandecentes 
  de pedrarias, três profetas estarão sentados.
  A árvore tuba fará de seus galhos recurvados um dossel para a 
  mesa celeste.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  31
  A esposa será branca como a lua e rubra como o sorriso da manhã. 
  Todos os povos acorrerão para vê-Ia e não temerão 
  mais passar Al Sirah, pois, sobre essa ponte cortante como uma lâmina 
  de barbear, o Salvador estenderá sua cruz e virá estender a mão 
  aos que vacilarem, e aos que caírem a esposa estenderá seu véu 
  perfumado e os trará em sua direção. Povos, batei palmas 
  e aplaudi o último triunfo do amor! Somente a morte ficará morta 
  e somente o inferno será queimado.
  Ó nações da Europa, a quem o Oriente estende as mãos, 
  uni-vos para expulsar os ursos do Norte! Que a última guerra faça 
  triunfar a inteligência e o amor, que o comércio entrelace os braços 
  do mundo e que uma civilização nova, saída do Evangelho 
  armado, reúna todos os rebanhos da terra sob o cajado do mesmo pastor!
  Tais serão as conquistas do progresso; tal é o objetivo para o 
  qual nos empurra todo o movimento do mundo.
  O progresso é o movimento; e o movimento é a vida.
  Negar o progresso é afirmar o nada e deificar a morte.
  O progresso é a única resposta que a razão pode opor às 
  objeções relativas à existência do mal.
  Nada está bem, mas tudo estará bem um dia. Deus inicia e acabará 
  sua obra.
  Sem o progresso, o mal seria imutável como Deus!
  O progresso explica as ruínas e consola Jeremias que chora.
  As nações sucedem-se como os homens e nada é estável 
  porque tudo caminha em direção da perfeição.
  O grande homem que morre lega a sua pátria o fruto de seu trabalho; a 
  grande nação que se extingue na terra transfigura-se numa estrela 
  para iluminar as obscuridades da história. O que ele escreveu por suas 
  ações fica gravado no livro eterno; acrescentou uma página 
  à bíblia do gênero humano.
  Não digais que a civilização é má; pois assemelha-se 
  ao calor úmido que amadurece as colheitas, desenvolve rapidamente os 
  princípios da vida e os princípios da morte, mata e vivifica. 
  É como o anjo do julgamento que separa os maus dos bons.
  A civilização transforma em anjos de luz os homens de boa vontade 
  e coloca o egoísta abaixo da besta; é a corrupção 
  dos corpos e a emancipação das almas. O mundo ímpio dos 
  gigantes elevou ao céu a alma de Henoch; acima das bacanais da Grécia 
  primitiva eleva-se o espírito harmonioso de Orfeu.
  Sócrates e Pitágoras, Platão e Aristóteles resumem, 
  ao explicá-las, todas as aspirações do mundo antigo; as 
  fábulas de Homero permanecem mais verdadeiras do que a história, 
  e só nos restam das grandezas de Roma os escritos imortais que elaborou 
  o século de Augusto. Assim, Roma talvez só tenha abalado o mundo 
  com suas guerreiras convulsões para gerar seu Virgílio.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  32
  O cristianismo é o fruto das meditações de todos os sábios 
  do Oriente que revivem em Jesus Cristo. Assim, a luz dos espíritos nasceu 
  onde nasce o sol do mundo; o Cristo conquistou o Ocidente, e os doces raios 
  do sol da Ásia tocaram os gelos do Norte.
  Movidos por esse calor desconhecido, formigueiros de homens novos espalharam-se 
  por um mundo exaurido; as almas dos povos mortos brilharam sobre os povos rejuvenescidos 
  e aumentaram neles o espírito de vida.
  Há no mundo uma nação que se chama franqueza e liberdade, 
  pois essas duas palavras são sinônimos do nome França.
  Essa nação sempre foi, de algum modo, mais católica do 
  que o papa e mais protestante do que Lutero.
  A França das cruzadas, a França dos trovadores e das canções, 
  a França de Rabelais e de Voltaire, a França de Bossuet e de Pascal, 
  ela é a síntese dos povos; ela consagra a aliança da razão 
  e da fé, da revolução e do poder, da crença mais 
  terna e da dignidade humana mais altiva. Por isso, vede como ela caminha, como 
  se agita, como luta, como cresce! Freqüentemente enganada e ferida, nunca 
  batida, entusiasta com seus triunfos, audaciosa em seus reveses, ela ri, canta, 
  morre e ensina ao mundo a fé na sua imortalidade. A velha guarda não 
  se rende, mas também não morre. Confiai no entusiasmo de nossos 
  filhos, que querem ser um dia, eles também, soldados da velha guarda! 
  Napoleão não é mais um homem, é o próprio 
  gênio da França, é o segundo salvador do mundo, e também 
  deu como símbolo a seus apóstolos a cruz!
  Santa Helena e o Gólgota são os marcos da nova civilização, 
  são os pilares de uma imensa arcada que o arco-íris do último 
  dilúvio forma e que lança uma ponte entre dois mundos. E pensaríeis 
  que a espora de um tártaro quebrará um dia o pacto de nossas glórias, 
  o testamento de nossa liberdade!
  Dizei antes que voltaremos a ser crianças e retornaremos ao seio de nossas 
  mães! Caminha!, caminha!, diz a voz divina a Aasveros. Avança! 
  avança! grita para a França o destino do mundo!... E para onde 
  vamos? Para o desconhecido, para o abismo talvez; não importa! Mas para 
  o passado, para os cemitérios do esquecimento, mas para os cueiros que 
  nossa própria infância rasgou, mas para a imbecilidade e a ignorância 
  das primeiras idades... nunca! nunca!
  XV - O Número Quinze
  Quinze é o número do antagonismo e da catolicidade.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  33
  O cristianismo divide-se agora em duas Igrejas: a Igreja civilizadora e a Igreja 
  bárbara, a Igreja progressista e a Igreja estacionária.
  Uma é ativa, a outra é passiva; uma sempre condenou as nações 
  e os governos, uma vez que os reis a temem; a outra submeteu-se a todos os despotismos 
  e só pode ser um instrumento de servidão. A Igreja ativa realiza 
  Deus pelos homens e só ela crê na divindade do Verbo humano, intérprete 
  do Verbo de Deus.
  O que é, afinal de contas, a infalibilidade do papa, senão a autocracia 
  da inteligência confirmada pelo sufrágio universal da fé?
  A esse respeito, dir-se-á, o papa deveria ser o primeiro gênio 
  de seu século. Por quê? É melhor, na realidade, que ele 
  seja um espírito comum. Sua supremacia não é mais divina, 
  porque é, de algum modo, mais humana.
  Os acontecimentos não falam mais alto do que os rancores e as ignorâncias 
  irreligiosas? Não vedes a França católica sustentar com 
  uma mão o papado desfalecido e com a outra segurar a espada para combater 
  na liderança do exército do progresso?
  Católicos, israelitas, turcos, protestantes já combateram sob 
  a mesma bandeira; o crescente uniu-se à cruz latina, e juntos lutamos 
  contra a invasão dos bárbaros e contra sua embrutecida ortodoxia. 
  É para sempre um fato consumado. Ao admitir dogmas novos, a cátedra 
  de São Pedro acaba de se pronunciar solenemente progressiva.
  A pátria do cristianismo católico é a da ciência 
  e das belas-artes, e o Verbo eterno do Evangelho vivo e encarnado numa autoridade 
  visível é ainda a luz do mundo. Silêncio pois aos fariseus 
  da nova sinagoga! Silêncio às tradições odiosas da 
  escola, ao presbiterianismo arrogante, ao jansenismo absurdo e a todas estas 
  vergonhosas e supersticiosas interpretações do dogma eterno, tão 
  justamente estigmatizadas pelo gênio impiedoso de Voltaire! Voltaire e 
  Napoleão morreram católicos. E será que sabeis o que deve 
  ser o catolicismo do futuro? Será o dogma evangélico posto à 
  prova como ouro pela crítica dissolvente de Voltaire, e realizado no 
  governo do mundo pelo gênio de um Napoleão cristão!
  Os que não quiserem caminhar, os acontecimentos os arrastarão 
  ou passarão sobre eles! Imensas calamidades podem ainda pesar sobre o 
  mundo. Os exércitos do Apocalipse um dia talvez desencadearão 
  os quatro flagelos. O santuário será depurado. A santa e severa 
  pobreza enviará seus apóstolos para sustentar todo aquele que 
  cambalear, reanimar aquele que estiver fatigado e espalhar o óleo santo 
  em todas as feridas!
  O despotismo e a anarquia, esses dois monstros ávidos de sangue, dilacerar-se-ão 
  e aniquilar-se-ão um ao outro depois de serem mutuamente sustentados, 
  por pouco tempo, pelo próprio entrelaçamento de sua luta.
  E o governo do futuro será aquele cujo modelo é mostrado na natureza 
  pela família, no ideal religioso pela hierarquia dos pastores. Os eleitos 
  devem reinar com Jesus Cristo durante mil anos, dizem as tradições 
  apostólicas: ou seja, durante uma seqüência de séculos, 
  a inteligência e o amor dos homens de elite dedicados aos encargos do 
  poder administrarão os interesses e os bens da família universal.
  Então, segundo a promessa do Evangelho só haverá um rebanho 
  e um pastor.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  34
  XVI - O Número Dezesseis
  Dezesseis é o número do templo.
  Digamos o que será o templo do futuro.
  Quando o espírito de inteligência e de amor tiver se revelado, 
  toda trindade manifestar-se-á em sua verdade e em sua glória.
  A humanidade transformada em rainha e, como que ressuscitada, terá a 
  graça da infância em sua poesia, o vigor da juventude em sua razao 
  e a sabedoria da idade madura em suas obras. Todas as formas que o pensamento 
  divino revestiu sucessivamente renascerão imortais e perfeitas. Todos 
  os traços que a arte sucessiva das nações tinha esboçado 
  reunir-se-ão e formarão a imagem completa de Deus.
  Jerusalém reconstruirá o templo de Jeová de acordo com 
  o modelo profetizado por Ezequiel; e o Cristo, novo e eterno Salomão, 
  nele cantará, debaixo de lambris de cedro e de ciprestes, suas núpcias 
  com a santa liberdade, a jovem esposa do cântico.
  Mas Jeová terá largado seu raio para abençoar com as duas 
  mãos o noivo e a noiva: aparecerá sorridente entre os dois esposos 
  e alegrar-se-á por ser chamado de pai. Entretanto, a poesia do Oriente, 
  em suas mágicas lembranças, ainda o chamará de Brama e 
  Júpiter. A índia ensinará a nossos climas encantados as 
  fábulas maravilhosas de Vishnu, e experimentaremos na fronte ainda ensangüentada 
  de nosso Cristo bem-amado a tripla coroa de pérolas da mística 
  trimurti. Vênus purificada sob o véu de Maria não mais chorará 
  seu Adônis. O esposo ressuscitou para não mais morrer, e o javali 
  infernal encontrou a morte em sua passageira vitória.
  Reerguei-vos, templos de Delfos e Éfeso! O deus da luz e das artes tornou-se 
  o Deus do mundo, e o verbo de Deus concorda em ser chamado de Apolo! Diana não 
  reinará mais como viúva nos campos solitários da noite; 
  seu crescente prateado está agora sob os pés da esposa. Mas Diana 
  não foi vencida por Vênus; seu Endimião acaba de despertar, 
  e a virgindade vai orgulhar-se de ser mãe!
  Sai da tumba, ó Fídias, e alegra-te com a destruição 
  de teu primeiro Júpiter: é agora que vais gerar um Deus!
  Ó Roma! Que teus templos reergam-se ao lado de tuas basílicas; 
  sê ainda a rainha do mundo e panteão das nações; 
  que Virgílio seja coroado no capitólio pelas mãos de São 
  Pedro; e que o Olimpo e o Carmelo unam suas divindades sob o pincel de Rafael!
  Transfigurai-vos, antigas catedrais de nossos pais; arremessei até as 
  nuvens vossas flechas cinzeladas e vivas, e que a pedra conte por figuras animadas 
  as sombrias lendas do Norte, alegradas pelos apólogos dourados e maravilhosos 
  do Alcorão!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  35
  Que o Oriente adore Jesus Cristo em suas mesquitas, e que nos minaretes de uma 
  nova Santa Sofia a cruz se eleve em meio ao crescente!
  Que Maomé liberte a mulher para dar ao verdadeiro crente as huris com 
  que tanto sonhou, e que os mártires do Salvador ensinem castas carícias 
  aos belos anjos de Maomé. Toda a terra revestida com os ricos ornamentos 
  que todas as artes lhe bordaram será então um templo magnífico, 
  cujo padre eterno será o homem!
  Tudo o que foi verdadeiro, tudo o que foi belo, tudo o que foi doce nos séculos 
  passados reviverá gloriosamente nessa transfiguração do 
  mundo.
  E a forma bela continuará inseparável da idéia verdadeira, 
  como o corpo será um dia inseparável da alma, quando a alma, tendo 
  alcançado todo o seu poder, terá feito para si um corpo à 
  sua imagem. Esse será o reino do céu sobre a terra, e os corpos 
  serão os templos da alma, da mesma forma que o universo regenerado será 
  o templo de Deus.
  E os corpos e as almas, e a forma e o pensamento, e o universo inteiro serão 
  a luz, o Verbo e a revelação permanente e visível de Deus. 
  Amém! Assim seja!
  XVII - O Número Dezessete
  Dezessete é o número da estrela; é o da inteligência 
  e do amor. Inteligência guerreira, audaciosa, cúmplice do divino 
  Prometeu, primogênita de Lúcifer, louvor a ti em tua audácia! 
  Quiseste saber para ter, desafiaste todos os trovões e afrontaste todos 
  os abismos! Inteligência, tu a quem os pobres pecadores amaram até 
  o delírio, até o escândalo, até a reprovação! 
  Direito divino do homem, essência e alma da liberdade, louvor a ti! Pois 
  perseguiram-te pisoteando, por ti, todos os sonhos mais caros de sua imaginação, 
  os fantasmas mais amados de seu coração! Por ti foram repelidos 
  e proscritos; por ti suportaram a prisão, o desenlace, a fome, a sede, 
  o abandono daqueles que amavam e as sombrias tentações do desespero! 
  Eras o direito deles, e eles conquistaram-te! Agora eles podem chorar e crer, 
  podem submeter-se e rezar! Caim arrependido teria sido maior do que Abel: é 
  o legítimo orgulho satisfeito que tem o direito de se fazer humilde!
  Creio porque sei por que e como é preciso crer; creio porque amo e porque 
  não temo mais nada. Amor! amor! redentor e reparador sublime; tu que 
  fazes tanta felicidade de tantas torturas, tu, o sacrificador do sangue e das 
  lágrimas, tu que és a própria virtude e o salário 
  da virtude; força da resignação, liberdade da obediência, 
  alegria das dores, vida da morte, louvor, louvor e glória a ti! Se a 
  inteligência é uma lâmpada, és a sua chama; se é 
  o direito, és o dever; se é a nobreza, és a felicidade! 
  Amor pleno de orgulho e pudor nos mistérios, amor divino, amor oculto, 
  amor insano e sublime, Titã que toma o céu com duas mãos 
  e que o força a descer, último e inefável segredo da viuvez 
  cristã, amor eterno, amor infinito e ideal que seria suficiente para 
  criar mundos, amor! amor! bênção e glória a ti! Glória 
  às inteligências que se encobrem para não ofender os olhos 
  doentes!
  Glória ao direito que se transforma inteiramente em dever e que se torna 
  a devoção! às almas viúvas
  que amam e consumam-se sem serem amadas! aos que sofrem e não fazem nada 
  sofrer, aos que
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  36
  perdoam os ingratos, aos que amam seus inimigos! Oh! felizes sempre, felizes 
  mais do que nunca os que se empobrecem e que se esgotam para se dar! Felizes 
  as almas que fazem sempre tua paz! Felizes os corações puros e 
  simples que não se acham melhor do que ninguém! Humanidade minha 
  mãe, humanidade filha e mãe de Deus, humanidade concebida sem 
  pecado, Igreja universal, Maria! Feliz de quem tudo ousou para te conhecer e 
  te entender, e de quem está pronto a tudo sofrer para te servir e te 
  amar!
  XVIII - O Número Dezoito
  Esse número é o do dogma religioso, que é toda poesia e 
  todo mistério. O Evangelho diz que, quando da morte do Salvador, o véu 
  do templo rasgou-se, porque essa morte manifestou o triunfo da devoção, 
  o milagre da caridade, o poder de Deus no homem, a humanidade divina e a divindade 
  humana, o último e o mais sublime dos arcanos, a última palavra 
  de todas as iniciações.
  Mas o Salvador sabia que não seria compreendido a princípio, e 
  disse: Não suportaríeis agora toda a luz de minha doutrina; mas, 
  quando se manifestar o espírito de verdade, ele vos ensinará toda 
  verdade e sugerirá o sentido do que eu vos disse.
  Ora, o espírito de verdade é o espírito de ciência 
  e de inteligência, o espírito de força e de conselho. Foi 
  esse espírito que se manifestou solenemente na Igreja romana, quando 
  ela declarou nos quatro artigos do decreto de 12 de dezembro de 1845:
  1º Que, se a fé for superior à razão, a razão 
  deve apoiar as inspirações da fé;
  2º Que a fé e a ciência tem cada uma seu domínio separado, 
  e que uma não deve usurpar as funções da outra;
  3º Que é próprio da fé e da graça não 
  enfraquecer, mas, ao contrário, afirmar e desenvolver a razão;
  4º Que o concurso da razão, que examina não as decisões 
  da fé mas as bases naturais e racionais da autoridade que decide, longe 
  de prejudicar a fé, não poderia senão ser-lhe útil; 
  em outras palavras, que a fé, perfeitamente racional em seus princípios, 
  não deve temer, mas deve, ao contrário, desejar o exame sincero 
  da razão.
  Semelhante decreto é toda uma revolução religiosa acabada, 
  e a inauguração do Espírito Santo na terra.
  XIX - O Número Dezenove
  É o número da luz.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  37
  É a existência de Deus provada pela própria idéia 
  de Deus.
  Ou é preciso dizer que o Ser imenso é um túmulo universal, 
  ou que se move automaticamente, uma forma sempre morta e cadavérica, 
  ou é preciso admitir o princípio absoluto da inteligência 
  e da vida. A luz universal está morta ou viva? Fatalmente dedicada à 
  obra da destruição ou providencialmente dirigida para a criação 
  universal?
  Se Deus não existe, a inteligência é apenas uma decepção 
  pois ela carece de absoluto e seu ideal é uma mentira.
  Sem Deus, o ser é um nada que se afirma, e a vida, uma morte que se disfarça.
  A luz é uma noite sempre enganada pela miragem dos sonhos.
  O primeiro e o mais essencial ato de fé é pois este.
  O Ser é, e o ser do ser, a verdade do ser é Deus.
  O Ser é vivo com inteligência, e a inteligência viva do Ser 
  absoluto é Deus.
  A luz é real e vivificante; ora, a realidade e a vida de toda luz é 
  Deus.
  O Verbo da razão universal é uma afirmação e não 
  uma negação.
  Cegos os que não vêem que a luz física é apenas o 
  instrumento do pensamento!
  Somente o pensamento vê a luz e a produz empregando-a em benefício 
  próprio.
  A afirmação do ateísmo é o dogma da noite eterna; 
  a afirmação de Deus é o dogma da luz! Vamos parar aqui, 
  no décimo nono número, embora o alfabeto sagrado tenha vinte e 
  duas letras; as dezenove primeiras são as chaves da teologia oculta. 
  As outras são as chaves da natureza; voltaremos a elas na terceira parte 
  desta obra.
  Resumamos o que dissemos de Deus citando uma bela evocação emprestada 
  da liturgia israelita. É uma página do Kether-Malkuth, poema cabalístico 
  do rabino Salomão, filho de Gabirol. "Sois um, o começo de 
  todos os números, o fundamento de todos os edifícios; sois um 
  e, no segredo de vossa unidade, os homens mais sábios perdem-se porque 
  não a conhecem. Sois um, e vossa unidade nunca diminui, nem aumenta, 
  nem sofre nenhuma alteração. Sois um, mas não como o um 
  em matéria de cálculo, pois vossa unidade não admite nem 
  multiplicação, nem mudança, nem fórmula. Sois um, 
  para quem nenhuma de minhas fantasias pode fixar definição: eis 
  por que vigiarei minha conduta, evitando cometer faltas com a língua. 
  Sois um enfim, cuja excelência é tão elevada que não 
  pode cair de maneira alguma, e não como em um que pode deixar de ser. 
  "Sois existente; entretanto, o entendimento e a vista dos mortais não 
  podem atingir vossa existência nem colocar em vós o onde, o como 
  e o porquê. Sois existente, mas em vós mesmo, uma vez que outro 
  não pode existir convosco. Sois existente desde antes do tempo e em lugar 
  algum. Sois enfim existente e vossa existência é tão oculta 
  e tão profunda que ninguém pode descobri-Ia ou penetrar seu segredo.
  "Sois vivo, mas não desde um tempo conhecido e fixo; sois vivo, 
  mas não por um espírito e uma alma; pois sois a alma de todas 
  as almas. Sois vivo, mas não como as vidas dos mortais, que são 
  comparadas a um sopro, e cujo fim será o alimento dos vermes. Sois vivo, 
  e aquele que puder atingir vossos mistérios desfrutará as delícias 
  eternas e viverá para sempre.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  38
  "Sois grande, e perto de vossa grandeza todas estas grandezas se curvam, 
  e tudo o que há de mais excelente torna-se defeituoso. Sois grande, acima 
  de qualquer imaginação, e elevai-vos acima de todas as hierarquias 
  celestes. Sois grande, acima de toda grandeza, e sois exaltado acima de qualquer 
  louvor. Sois forte, e nenhuma de vossas criaturas fará as obras que fazeis 
  e nem sua força poderá ser comparada à vossa. Sois forte, 
  e é a vós que pertence essa força invencível que 
  não muda nem se altera nunca. Sois forte, e por vossa magnanimidade perdoais 
  no momento de vossa mais ardente cólera, e mostrai-vos paciente para 
  com os pecadores. Sois forte, e vossas misericórdias que sempre existiram 
  estendem-se para todas as vossas criaturas. Sois a luz eterna que as almas puras 
  verão e que a nuvem dos pecados ocultará aos olhos dos pecadores. 
  Sois a luz que é oculta neste mundo e visível no outro, onde a 
  glória do Senhor se mostra. Sois soberano, e os olhos do entendimento 
  que desejam ver-vos estão inteiramente espantados por só poderem 
  atingir de vós uma parte e nunca o todo. Sois o Deus dos deuses, testemunham-no 
  todas vossas criaturas; e em honra desse grande nome todas devem render-vos 
  culto. Sois Deus, e todas as criaturas são vossas servidoras e vossas 
  adoradoras; vossa glória não é embaçada mesmo que 
  outros sejam adorados, porque a intenção deles é a de se 
  dirigir a vós; são como cegos, cujo objetivo é seguir o 
  grande caminho, e perdem-se. Um afoga-se num poço e o outro cai numa 
  fossa; todos, em geral, acreditam ter alcançado seus desejos e, no entanto, 
  cansaram-se em vão. Mas vossos servidores são como clarividentes 
  que andam num caminho seguro, e que dele nunca se afastam, nem à direita, 
  nem à esquerda, até que entrem no adro do palácio do rei. 
  Sois Deus que sustentais por vossa deidade todos os seres e que socorreis por 
  vossa unidade todas as criaturas. Sois Deus, e não há diferença 
  entre vossa deidade, vossa unidade, vossa eternidade e vossa existência; 
  pois tudo é um mesmo mistério; e, embora os nomes variem, tudo 
  retorna ao mesmo. Sois sábio, e essa ciência, que é a fonte 
  da vida, emana de vós mesmo; e em comparação com vossa 
  ciência os homens mais sábios são estúpidos. Sois 
  sábio e o antigo dos antigos, e a ciência sempre alimentou-se convosco. 
  Sois sábio, e não aprendesses a ciência com ninguém, 
  e tampouco a adquirisses de outro senão de vós. Sois sábio 
  e, como um operário e um arquiteto, reservasses de vossa ciência 
  uma divina vontade, num tempo marcado para atrair o ser do nada; do mesmo modo 
  que a luz que sai dos olhos é atraída de seu próprio centro 
  sem nenhum instrumento ou ferramenta. Essa divina vontade cavou, traçou, 
  purificou e fundiu; ordenou ao nada abrir-se, ao ser aprofundar-se e ao mundo 
  estender-se. Mediu os céus com o palmo, com seu poder reuniu o pavilhão 
  das esferas, com o laço de seu poder cerrou as cortinas das criaturas 
  do universo e, tocando com sua força a ponta da cortina da criação, 
  uniu a parte superior à inferior."
  Extraído das orações do Kippur
  Demos a essas ousadas especulações cabalísticas a única 
  forma que lhes convém, a da poesia ou da inspiração do 
  coração.
  As almas crentes não precisam das hipóteses racionais contidas 
  nessa explicação nova das figuras da Bíblia, mas os corações 
  sinceros e afligidos pela dúvida, e que a crítica do século 
  dezoito atormenta, compreenderão ao lê-la que a própria 
  razão sem a fé pode encontrar no livro sagrado outra coisa além 
  de escolhos; se os véus com que os textos divinos são cobertos 
  projetam uma grande sombra, essa sombra é tão maravilhosamente 
  desenhada pelas oposições da luz que se torna a única imagem 
  inteligível de um ideal divino.
  Ideal incompreensível como o infinito e indispensável como a própria 
  essência do mistério.
  ARTIGO II
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  39
  Solução do segundo problema
  A Verdadeiro Religião
  A religião existe na humanidade como no amor.
  É única como ele.
  Como ele, existe ou não existe nesta ou naquela alma; mas, seja aceita 
  ou negada, está na humanidade, está, portanto, na vida, está 
  na natureza, é incontestável diante da ciência e mesmo diante 
  da razão.
  A verdadeira religião é a que sempre existiu, que existe e que 
  sempre existirá. Podem-nos dizer que a religião é isto 
  ou aquilo; a religião é o que é. A religião é 
  ela, e as falsas religiões são superstições dela 
  copiadas, dela emprestadas, sombras mentirosas dela própria. Pode-se 
  dizer da religião o que se diz da arte verdadeira. As tentativas bárbaras 
  de pintura ou escultura são tentativas da ignorância para se chegar 
  à verdade. A arte prova-se por si, brilha com seu próprio esplendor, 
  é única e eterna como a beleza.
  A verdadeira religião é bela, e é por esse caráter 
  divino que se impõe aos respeitos da ciência e ao assentimento 
  da razão.
  A ciência não poderia, sem temeridade, afirmar ou negar as hipóteses 
  do dogma que são verdades para a fé; mas pode reconhecer, em certos 
  aspectos, a única religião verdadeira, ou seja, a única 
  que merece o nome de religião, reunindo todos os aspectos que convêm 
  a essa grande e universal aspiração da alma humana.
  Uma só coisa evidentemente divina manifestou-se para todos no mundo.
  É a caridade.
  A obra da verdadeira religião deve ser a de produzir, conservar e difundir 
  o espírito de caridade. Para alcançar esse objetivo, é 
  preciso que ela própria tenha todas as características da caridade, 
  de modo que se possa bem defini-la, nomeando-a de caridade organizada. Ora, 
  quais são as características da caridade?
  É São Paulo quem vai nos ensinar.
  A caridade é paciente.
  Paciente como Deus, porque ela é eterna como ele. Sofre as perseguições 
  e nunca persegue ninguém.
  É benevolente e indulgente, chamando para si os pequenos e não 
  rechaçando os grandes.
  Não é invejosa. A quem e a que invejaria, não tem a melhor 
  parte que nunca lhe será tirada?
  Não é nem inquieta e nem intrigante.
  Não tem orgulho, ambição, egoísmo, ira.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  40
  Nunca supõe o mal e nunca triunfa pela injustiça, pois põe 
  toda sua alegria na verdade.
  Suporta tudo sem jamais tolerar o mal.
  Crê em tudo, sua fé é simples, submissa, hierárquica 
  e universal.
  Sustenta tudo, e nunca impõe fardos que não carregasse antes.
  A religião é paciente, é a religião dos grandes 
  trabalhadores do pensamento: é a religião dos mártires.
  É benevolente como o Cristo e os apóstolos, como os Vicentes de 
  Paulo e os Fenelons. Não deseja nem as dignidades nem os bens da terra. 
  É a religião dos pais do deserto, de São Francisco de Assis 
  e de São Bruno, das irmãs de caridade e dos irmão de São 
  João de Deus. Não é nem inquieta nem intrigante, ela reza, 
  faz o bem e espera. É humilde, é doce, só inspira a devoção 
  e o sacrifício. Tem, enfim, todas as características da caridade, 
  porque é a própria caridade. Os homens, ao contrário, são 
  impacientes, perseguidores, invejosos, cruéis, ambiciosos, injustos e 
  mostram-se como tais em nome dessa religião que puderam caluniar, mas 
  que nunca obrigarão a mentir. Os homens passam, e a verdade é 
  eterna.
  Filha da caridade e criando por sua vez a caridade, a verdadeira religião 
  é essencialmente realizadora; acredita nos milagres da fé, porque 
  os cumpre todos os dias quando faz a caridade. Uma religião que faz a 
  caridade pode vangloriar-se de realizar todos os sonhos do amor divino. Assim, 
  a fé da Igreja hierárquica transforma o mistério em realismo 
  pela eficácia de seus sacramentos. Não mais signos, não 
  mais figuras que não tenham sua força na graça e que não 
  dêem realmente o que prometem. A fé anima tudo, torna tudo de algum 
  modo visível e palpável; as próprias parábolas de 
  Jesus Cristo tomam um corpo e uma alma. Mostra-se em Jerusalém a casa 
  do mau rico. Os simbolismos esparsos das religiões primitivas, abandonados 
  pela ciência e privados da vida da fé, assemelhavam-se a essas 
  ossadas embranquecidas que cobriam o campo de Ezequiel. O espírito do 
  Salvador, o espírito de fé, o espírito de caridade sopraram 
  esse pó, e tudo o que estava morto recuperou uma vida tão real 
  que não se reconhece mais nesses vivos de hoje os cadáveres de 
  ontem. E por que seriam reconhecidos, uma vez que o mundo renovou-se, uma vez 
  que São Paulo queimou no Éfeso os livros dos hierofantes. São 
  Paulo era pois um bárbaro, e não estava cometendo um atentado 
  contra a ciência? Não, mas ele queimava os sudários dos 
  ressuscitados para fazê-los esquecer a morte. Por que então lembramos 
  hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que então lembramos 
  hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que relacionamos as figuras 
  da Bíblia com as alegorias de Hermes? Será para condenar São 
  Paulo, para trazer a dúvida aos crentes? Certamente não, pois 
  os crentes não necessitam de nosso livro, não o lerão, 
  não o quererão compreender. Mas queremos mostrar à multidão 
  inumerável dos que duvidam que a fé relaciona-se à razão 
  de todos os séculos, à ciência de todos os sábios. 
  Queremos forçar a liberdade humana e respeitar a autoridade divina, a 
  razão a reconhecer as bases da fé, para que a fé e a autoridade, 
  por sua vez, nunca mais proscrevam nem a liberdade nem a razão.
  ARTIGO III
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  41
  Solução do terceiro problema
  Razão dos Mistérios
  Sendo a fé a aspiração ao desconhecido, o objeto da fé 
  é absoluta e necessariamente o mistério.
  Para formular suas aspirações, a fé é forçada 
  a emprestar do conhecido aspirações e imagens. Mas ela especializa 
  o emprego dessas formas ao reuni-las de uma maneira impossível na ordem 
  conhecida. Tal é a profunda razão do aparente absurdo do simbolismo.
  Demos um exemplo:
  Se a fé dizia que Deus é impessoal, poder-se-ia concluir daí 
  que Deus é apenas uma palavra ou, no máximo, uma coisa.
  Se ela dizia que Deus é uma pessoa, o infinito inteligente seria representado 
  sob a forma necessariamente limitada de um indivíduo.
  Ela diz Deus é um em três pessoas para exprimir que se concebe 
  em Deus a unidade e o número. A fórmula do mistério exclui 
  necessariamente a própria inteligência dessa fórmula, na 
  medida em que empresta do Verbo coisas conhecidas, pois se fosse compreendida 
  exprimiria o conhecido e não o desconhecido.
  Pertenceria, então, à ciência e não mais à 
  religião, isto é, à fé.
  O objeto da fé é um problema de matemática onde o x escapa 
  aos procedimentos de nossa álgebra. As matemáticas absolutas provam 
  somente a necessidade e, por conseguinte, a existência desse conhecido 
  representado pelo x intraduzível.
  Ora, por mais que a ciência avance em seu progresso indefinido, mas sempre 
  relativamente finito, nunca encontrará na língua do finito a expressão 
  completa do infinito. O mistério é, portanto, eterno. Fazer entrar 
  na lógica do conhecido os termos de uma profissão de fé 
  é fazê-los sair da fé que tem por bases positivas o ilogismo, 
  isto é, a impossibilidade de explicar logicamente o desconhecido. Para 
  os israelitas, Deus está separado da humanidade, não vive nas 
  criaturas, é um egoísmo infinito.
  Para os muçulmanos, Deus é uma palavra diante da qual nos prosternamos 
  sobre a fé de Maomé. Para os cristãos, Deus revelou-se 
  na humanidade, prova-se pela caridade, reina pela ordem que constitui a hierarquia.
  A hierarquia é guardiã do dogma, cuja letra e cujo espírito 
  quer que respeitemos. Os sectários que, em nome de sua razão, 
  ou melhor, de sua desrazão individual, tocaram o dogma, perderam, por 
  esse mesmo fato, o espírito de caridade, excomungaram a si próprios.
  O dogma católico, isto é, universal, merece esse belo nome resumindo 
  todas as aspirações religiosas
  do mundo; ele afirma a unidade de Deus com Moisés e Maomé, reconhece 
  em si a trindade infinita
  da geração eterna com Zoroastro, Hermes e Platão, concilia 
  com o Verbo único de São João os
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  42
  números vivos de Pitágoras, eis o que a ciência e a razão 
  podem constatar. É portanto diante da própria razão e diante 
  da ciência o dogma mais perfeito, isto é, o mais perfeito que alguma 
  vez se produziu no mundo. Que a ciência e a razão nos concedam 
  isso, não lhes pediremos mais nada. Substituir o despotismo legítimo 
  da lei pelo arbitrário humano, pôr, em outras palavras, a tirania 
  no lugar da autoridade é obra de todos os protestantismos e de todas 
  as democracias. O que os homens chamam de liberdade é a sanção 
  da autoridade ilegítima ou, antes, a ficção do poder não 
  sancionado pela autoridade.
  João Calvino protestava contra as fogueiras de Roma para se dar o direito 
  de queimar Miguel Servet. Todo povo que se libertou de um Carlos I ou de um 
  Luís XVI submeteu-se a um Robespierre ou a um Cromwel, e existe um antipapa 
  mais ou menos absurdo por trás de todos os protestos contra o papado 
  legítimo.
  A divindade de Jesus Cristo só existe na Igreja católica, para 
  a qual ele transmite hierarquicamente sua vida e seus poderes divinos. Essa 
  divindade é sacerdotal e real por comunhão, mas fora dessa comunhão 
  toda afirmação da divindade de Jesus Cristo é idolátrica, 
  porque Jesus Cristo não poderia ser um Deus separado.
  Pouco importa à verdade católica o número dos protestantes.
  Se todos homens fossem cegos, essa seria uma razão para negar a existência 
  do sol? A razão, protestando contra o dogma, prova suficientemente que 
  não o inventou, mas é forçada a admirar a moral que resulta 
  desse dogma. Ora, se a moral é uma luz, é preciso que o dogma 
  seja um sol, a claridade não vem das trevas.
  Entre os abismos do politeísmo e do deísmo absurdo e limitado, 
  só há um meio possível: o mistério da santíssima 
  trindade.
  Entre o ateísmo especulativo e o antropomorfismo só há 
  um meio possível: o mistério da encarnação. Entre 
  a fatalidade imoral e a responsabilidade draconiana que decidiria pela danação 
  de todos os seres, só há um meio possível: o mistério 
  da redenção.
  A trindade é a fé.
  A encarnação é a esperança.
  A redenção é a caridade.
  A trindade é a hierarquia.
  A encarnação é a autoridade divina da Igreja.
  A redenção é o sacerdócio único, infalível, 
  indefectível e católico. Somente a Igreja católica possui 
  um dogma invariável e encontra-se por sua própria constituição 
  na impossibilidade de corromper a moral; ela não inova, explica. Assim, 
  por exemplo, o dogma da imaculada concepção não é 
  novo, estava inteiramente contido no Théotokon do concílio de 
  Éfeso, e o Théotokon é uma conseqüência rigorosa 
  do dogma católico da encarnação.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  43
  Da mesma forma, a Igreja católica não faz excomunhões, 
  ela as declara e só ela as pode declarar, porque é a única 
  guardiã da unidade.
  Fora da barca de Pedro, só há o abismo. Os protestantes assemelham-se 
  às pessoas que, cansadas da arfagem, jogar-se-iam na água para 
  evitar o enjôo.
  E da catolicidade, tal qual é constituída na Igreja católica, 
  que é preciso dizer o que Voltaire disse de Deus com tanta ousadia.
  Se não existisse, seria preciso inventá-la. Mas, se um homem fosse 
  capaz de inventar o espírito de caridade, teria também inventado 
  Deus. A caridade não se inventa, revela-se por suas obras, e é 
  então que se pode gritar com o Salvador do mundo: Felizes os que têm 
  o coração puro, pois verão a Deus!
  Entender o espírito de caridade é ter a inteligência de 
  todos os mistérios.
  ARTIGO IV
  Solução do quarto problema
  A Religião Provada pelas objeções que lhe são opostas
  As objeções que se pode fazer contra a religião podem ser 
  feitas seja em nome da razão, seja em nome da fé.
  A ciência não pode negar os fatos da existência da religião, 
  de seu estabelecimento e de sua influência sobre os acontecimentos da 
  história. É proibido a ela tocar no dogma, o dogma pertence inteiramente 
  à fé.
  A ciência arma-se comumente contra a religião com uma série 
  de fatos que tem o direito de apreciar, que de fato aprecia com severidade, 
  mas que a religião condena mais energicamente ainda do que a ciência.
  Assim fazendo, a ciência dá razão à religião 
  e censura a si própria; carece de lógica, acusa a desordem que 
  toda paixão rancorosa introduz no espírito dos homens e a necessidade 
  incessante que ele tem de ser reerguido e dirigido pelo espírito de caridade.
  A razão, por sua vez, examina o dogma e considera-o absurdo. Mas, se 
  não o fosse, a razão compreendê-lo-ia; se ela o compreendesse, 
  não seria mais a fórmula do desconhecido.
  Seria uma demonstração matemática do infinito.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  44
  Seria o infinito finito, o desconhecido conhecido, o incomensurável medido, 
  o indizível nomeado. Isso quer dizer que o dogma só deixaria de 
  ser absurdo diante da razão, para se tornar, diante da fé, da 
  ciência, da razão e do bom senso reunidos, o mais monstruoso e 
  o mais impossível de todos os absurdos.
  Restam as objeções da fé dissidente.
  Os israelitas, nossos pais em religião, censuram-nos por termos atentado 
  contra a unidade de Deus, por termos mudado uma lei imutável e eterna, 
  por adorarmos a criatura no lugar do criador. Essas censuras são fundamentadas 
  numa noção perfeitamente falsa do cristianismo.
  Nosso Deus é o Deus de Moisés, Deus único, imaterial, infinito, 
  o só adorável e sempre o mesmo. Como os judeus, acreditamo-lo 
  presente em todos os lugares, mas, como eles deveriam fazer, acredítamo-lo 
  vivo, pensante e amante na humanidade e adoramo-lo em suas obras. Não 
  mudamos sua lei, pois o decálogo dos israelitas é também 
  a lei dos cristãos. A lei é imutável, porque está 
  fundamentada em princípios eternos da natureza; mas o culto exigido pelas 
  necessidades do homem pode variar e modificar-se com os homens. O que o culto 
  significa é imutável, mas o culto modifica-se como as línguas. 
  O culto é um ensinamento, é uma língua, é preciso 
  traduzi-lo quando as nações não o compreendem mais.
  Traduzimos e não destruímos o culto de Moisés e dos profetas.
  Adorando Deus na criação, não estamos adorando a própria 
  criação.
  Adorando Deus em Jesus Cristo, é somente Deus que adoramos, mas Deus 
  unido à humanidade.
  Tornando a humanidade divina, o cristianismo revelou a divindade humana.
  O Deus dos judeus era inumano, porque eles não o compreendiam em suas 
  obras. Somos, portanto, mais israelitas que os próprios israelitas. No 
  que acreditam, acreditamos com eles e melhor que eles. Acusam-nos de estarmos 
  separados dele e são eles, ao contrário, que querem estar separados 
  de nós.
  Esperamo-los de coração e braços abertos.
  Somos, como eles, discípulos de Moisés.
  Como eles, viemos do Egito e detestamos sua servidão. Mas nós 
  estamos na terra prometida, e eles obstinam-se em permanecer e morrer no deserto.
  Os muçulmanos são os bastardos de Israel, ou melhor, são 
  seus filhos deserdados, como Esaú.
  Sua crença é ilógica, pois admitem que Jesus é um 
  grande profeta, e tratam os cristãos como infiéis.
  Reconhecem a inspiração divina de Moisés e não vêem 
  os judeus como irmãos.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  45
  Acreditam cegamente em seu cego profeta, o fatalista Maomé, o inimigo 
  do progresso e da liberdade.
  Não tiremos, no entanto, de Maomé a glória de ter proclamado 
  a unidade de Deus entre os árabes idólatras.
  Encontram-se no Alcorão páginas puras e sublimes.
  É lendo essas páginas que se pode dizer com os filhos de Ismael: 
  Não existe outro Deus senão Deus, e Maomé é seu 
  profeta.
  Há três tronos no céu para os três profetas das nações; 
  mas, no fim dos tempos, Maomé será substituído por Elias.
  Os muçulmanos nada censuram nos cristãos, eles injuriam-nos.
  Chamam-nos de infiéis e de giaurs, isto é, cães. Não 
  temos nada a lhes responder.
  Não se deve refutar os turcos e os árabes, é preciso instruí-los 
  e civilizá-los. Restam os cristãos dissidentes, isto é, 
  aqueles que, tendo rompido o laço de união, declaram-se estrangeiros 
  à caridade da Igreja.
  A ortodoxia grega, irmã gêmea da Igreja romana, que não 
  cresceu desde sua separação, que não tem mais importância 
  nos faustos religiosos, que, desde Fócio, não inspirou uma única 
  eloqüência; Igreja que se tornou inteiramente temporal e cujo sacerdócio 
  não é mais que uma função regulada pela política 
  imperial do czar de todas as Rússias; múmia curiosa da Igreja 
  primitiva, colorida e dourada com todas as suas lendas e com todos os seus ritos 
  que os popes não compreendem mais; sombra de uma Igreja viva, mas que 
  quis parar quando essa Igreja avançava e que não é mais 
  que uma silhueta apagada e sem cabeça.
  Depois, os protestantes, esses eternos reguladores da anarquia, que romperam 
  o dogma e tentam sempre preenchê-lo com raciocínios, como o tonel 
  das Danaides; esses fantasistas religiosos cujas inovações em 
  sua totalidade são negativas, que formularam para uso próprio 
  um desconhecido pretensamente mais conhecido, mistérios mais explicados, 
  um infinito mais definido, uma imensidão mais restrita, uma fé 
  mais duvidosa, que quintessenciaram o absurdo, cindiram a caridade e tomaram 
  atos de anarquia pelos princípios de uma hierarquia para sempre impossível; 
  esses homens que querem realizar a salvação somente pela fé, 
  porque a caridade lhes escapa e que nada mais podem realizar, mesmo sobre a 
  terra, pois seus pretensos sacramentos não são mais que farsas 
  alegóricas, não dão mais a graça, não fazem 
  mais ver a Deus nem tocar em Deus, não são mais, em uma palavra, 
  os signos da onipotência da fé, mas as testemunhas forçadas 
  da impotência eterna da dúvida. Foi, portanto, contra a própria 
  fé que a reforma protestou. Os protestantes tiveram razão contra 
  o zelo inconsiderado e perseguidor que queria forçar as consciências. 
  Exigiram o direito de duvidar, o direito de ter menos religião ou de 
  não a ter absolutamente; derramaram seu sangue por esse triste privilégio; 
  conquistaram-no, possuem-no, mas não nos tirarão o de lastimá-los 
  e de amá-los. Quando sentirem novamente a necessidade de acreditar, quando 
  seu coração revoltar-se por sua vez contra a tirania de uma razão 
  falseada, quando se cansarem das frias abstrações de seu dogma 
  arbitrário, das vãs observâncias de seu culto sem efeito, 
  quando sua comunhão sem presença real, suas igrejas sem divindade 
  e sua moral sem perdão os aterrorizarem enfim, assim que ficarem doentes 
  da nostalgia de Deus, não se levantarão como o filho pródigo 
  e não virão jogar-se aos pés do sucessor de Pedro dizendo-lhe: 
  Pai, pecamos contra o céu e contra vós, já não somos 
  dignos de ser chamados vossos filhos, mas incluí-nos ao menos entre vossos 
  mais humildes servidores. Não falaremos da crítica de Voltaire. 
  Esse grande espírito estava dominado por um ardente amor pela verdade 
  e pela justiça, mas faltava-lhe esta retidão do coração 
  que dá a inteligência da fé.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  46
  Voltaire não podia admitir a fé, porque não sabia amar. 
  O espírito de caridade não se revelou a essa alma sem ternura, 
  e ele criticou amargamente um fogo cujo calor não sentia e uma lâmpada 
  cuja luz não via. Se a religião fosse tal qual viu, teria tido 
  mil vezes razão em atacá-la e seria preciso ajoelhar-se diante 
  do heroismo de sua coragem. Voltaire seria o messias do bom senso, o hércules 
  destruidor do fanatismo. Mas este homem ria demais para compreender aquele que 
  disse: Felizes dos que choram, e a filosofia do riso nunca terá nada 
  em comum com a religião das lágrimas. Voltaire parodiou a Bíblia, 
  o dogma, o culto, depois ridicularizou, achincalhou, vilipendiou sua paródia.
  Apenas aqueles que vêem a religião na paródia de Voltaire 
  podem se ofender com isso. Os voltairianos assemelham-se às rãs 
  da fábula que saltam sobre as vigas e, em seguida, zombam da majestade 
  real. São livres para tomar a viga por um rei, são livres para 
  refazer esta caricatura romana de que, outrora, Tertuliano ria, e que representava 
  o Deus dos cristãos na figura de um homem com cabeça de asno. 
  Os cristãos darão de ombros ao ver essa brejeirice e pedirão 
  a Deus pelos pobres ignorantes que pretendiam insultá-los.
  O senhor conde Joseph de Maistre, depois de ter representado, num de seus mais 
  eloqüentes paradoxos, o carrasco como um ser sagrado e como uma encarnação 
  permanente de justiça divina na terra, queria que se erguesse para o 
  ancião de Ferney uma estátua pela mão do carrasco. Existe 
  profundidade nesse pensamento. Voltaire, com efeito, foi também, no mundo, 
  um ser ao mesmo tempo providencial e fatal, dotado de insensibilidade para a 
  realização de suas terríveis funções. Foi, 
  no domínio da inteligência, um executor das grandes obras, um executor 
  armado com a própria justiça de Deus.
  Deus enviou Voltaire entre o século de Bossuet e o de Napoleão 
  para aniquilar tudo o que separa esses dois gênios e reuni-los num só.
  Era o Sansão do espírito, sempre pronto a sacudir as colunas do 
  templo; mas, para fazê-lo girar, a contragosto, a pedra do moinho do progresso 
  religioso, a Providência parecia ter cegado seu coração.
  ARTIGO V
  Solução do último problema
  Separar a religião da superstição e do fanatismo
  A superstição, da palavra latina superstes, sobrevivente, é 
  o símbolo que sobreviveu à idéia, é a forma preferida 
  à coisa, é o rito sem razão, é a fé tornada 
  insensata, porque se isola. E, por conseguinte, o cadáver da religião, 
  a morte da vida, é a inspiração substituída pelo 
  embrutecimento.
  O fanatismo é a superstição apaixonada, seu nome vem da 
  palavra fanum, que significa templo, é o
  templo colocado no lugar de Deus, é a honra do sacerdote substituída 
  pelo interesse humano e
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  47
  temporal do padre, é a paixão miserável do homem explorando 
  a fé do crente. Na fábula do asno carregado de relíquias, 
  La Fontaine diz-nos que o animal acreditou ser adorado, não nos diz que 
  algumas pessoas acreditaram de fato adorar o animal. Essas pessoas eram os supersticiosos.
  Se alguém tivesse rido de suas tolices, teriam-no talvez assassinado, 
  pois da superstição ao fanatismo há um só passo.
  A superstição é a religião interpretada pela tolice; 
  o fanatismo é a religião servindo de pretexto à fúria.
  Os que confundem proposital e preconceituosamente a própria religião 
  com a superstição e o fanatismo emprestam à tolice suas 
  prevenções cegas e talvez emprestassem ao fanatismo suas injustiças 
  e seus ódios.
  Inquisidores ou participantes dos Massacres de Setembro, que importam os nomes? 
  A religião de Jesus Cristo condena e sempre condenou os assassinos.
  RESUMO DA PRIMEIRA PARTE EM FORMA DE DIÁLOGO
  A Fé, A Ciência, A Razão
  A CIÊNCIA - Nunca me fareis acreditar na existência de Deus.
  A FÉ - Não tendes o privilégio de acreditar, mas nunca 
  me provareis que Deus não existe.
  A CIÊNCIA - Para vo-lo provar, é preciso que, em primeiro lugar, 
  eu saiba o que é Deus. A FÉ - Não o sabereis nunca. Se 
  soubésseis, poderíeis ensinarmo, e, quando eu o soubesse, não 
  mais acreditaria nele.
  A CIÊNCIA - Acreditais, então, sem saber em que estais acreditando? 
  A FÉ - Ali! não joguemos com as palavras. Sois vós quem 
  não sabeis em que eu acredito, precisamente porque vós não 
  o sabeis. Tendes a pretensão de ser infinita? Não sois interrompida 
  a cada instante pelo mistério? O mistério é para vós 
  uma ignorância que reduziria ao nada o finito de vosso saber, se eu não 
  o iluminasse com minhas ardentes inspirações, e quando dizeis: 
  Eu não sei mais, eu gritaria: Quanto a mim, começo a acreditar.
  A CIÊNCIA - Mas vossas aspirações e seu objeto são 
  e só podem ser hipóteses para mim. A FÉ - Sem dúvida, 
  mas são certezas para mim, uma vez que sem essas hipóteses eu 
  duvidaria até mesmo de vossas certezas.
  A CIÊNCIA - Mas, se começais onde eu paro, começais temerariamente 
  muito cedo. Meus progressos atestam que eu ando sempre.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  48
  A FÉ - Que importam os vossos progressos, se ando sempre na vossa frente? 
  A CIÊNCIA - Tu, andar! sonhadora da eternidade, desdenhaste demais a terra, 
  teus pés estão dormentes.
  A FÉ - Sou carregada por meus filhos!
  A CIÊNCIA - São cegos que carregam um outro, cuidado com os precipícios! 
  A FÉ - Não, meus filhos não são cegos, muito pelo 
  contrário, desfrutam de dupla visão, vêem por teus olhos 
  o que tu podes demonstrar para eles na terra e contemplam, pelos meus, o que 
  lhes mostro no céu.
  A CIÊNCIA - O que a razão pensa disso?
  A RAZÃO - Penso, ó caras mestras, que poderíeis realizar 
  um apólogo tocante, o do paralítico e o do cego. A ciência 
  censura a fé por não saber andar na terra, e a fé diz que 
  a ciência não vê nada no céu das aspirações 
  e da eternidade. Ao invés de brigarem, ciência e fé deveriam 
  unir-se: que a ciência carregue a fé e a fé console a ciência, 
  ensinando-lhe esperar e amar. A CIÊNCIA - Essa idéia é bela, 
  mas é uma utopia. A fé dir-me-á absurdos, e eu quero andar 
  sem ela.
  A FÉ - O que é que chamais de absurdos?
  A CIÊNCIA - Chamo de absurdos as proposições contrárias 
  às minhas demonstrações, como, por exemplo, que três 
  são um, que um Deus fez-se homem, isto é, que o infinito fez-se 
  finito. Que o Eterno morreu, que Deus puniu seu filho inocente pelo pecado dos 
  homens culpados... A FÉ - Não digas mais nada. Externadas por 
  ti, essas proposições são, de fato, absurdos. Por acaso 
  sabes o que é o número em Deus, tu que não conheces Deus? 
  És capaz de raciocinar sobre as operações do desconhecido? 
  És capaz de entender os mistérios da caridade? Devo ser sempre 
  absurda para ti, pois se entendesses minhas afirmações, elas seriam 
  absorvidas por teus teoremas; eu seria tu, e tu serias eu, para dizer melhor, 
  eu não existiria mais, e a razão, em presença do infinito, 
  deter-se-ia sempre cegada por tuas dúvidas tão infinitas quanto 
  o espaço. A CIÊNCIA - Pelo menos, nunca usurpes minha autoridade, 
  não me desmintas em meus domínios.
  A FÉ - Nunca o fiz, e não posso nunca o fazer.
  A CIÊNCIA - Assim, nunca acreditaste, por exemplo, que uma virgem possa 
  ser mãe sem deixar de ser virgem, e isso na ordem física, natural 
  e positiva, a despeito de todas as leis da natureza; não afirmas que 
  um pedaço de pão é não somente um Deus mas um corpo 
  humano verdadeiro, com ossos e veias, órgãos, sangue, de maneira 
  que fazes de teus filhos que comem esse pão um povinho antropófago.
  A FÉ - Não é cristão quem não se revolte 
  com o que acabaste de dizer. Isso prova o suficiente que eles não entendem 
  meus ensinamentos dessa maneira positiva e grosseira. O sobrenatural que afirmo 
  está acima da natureza e não poderia, por conseguinte, opor-se 
  a ela, as palavras de fé só são compreendidas pela fé; 
  nada que, em as repetindo, a ciência desnature. Sirvo-me de tuas palavras, 
  porque não tenho outras; mas uma vez que achas meus discursos absurdos, 
  deves concluir que dou a essas mesmas palavras um significado que te escapa. 
  O Salvador, ao revelar o dogma da presença real, não disse: A 
  carne aqui não tem nenhuma serventia, minhas palavras são espírito 
  e vida? Não te apresento o mistério da encarnação 
  como um fenômeno de anatomia nem o da transubstanciação 
  como uma manifestação química. Com que direito gritarias 
  ao absurdo? Eu não raciocino sobre nada do que conheceis; com que direito 
  dirias que eu disparato?
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  49
  A CIÊNCIA - Começo a te compreender, ou melhor, vejo que nunca 
  te compreenderei. Nesse caso, continuemos separadas, nunca precisarei de ti.
  A FÉ - Sou menos orgulhosa e reconheço que me podes ser útil. 
  Talvez também sem mim estarias bem triste e bem desesperada, e não 
  quero separar-me de ti, a menos que a razão o consinta. A RAZÃO 
  - Não façais isso. Sou necessária a ambas. E eu, que faria 
  sem vós? Preciso saber e crer para ser justa. Mas nunca devo confundir 
  o que sei com o que acredito. Saber não é mais acreditar, acreditar 
  não é saber ainda. O objeto da ciência é o conhecido, 
  a fé não se ocupa dele e deixa-o inteiramente à ciência. 
  O objeto da fé é o desconhecido, a ciência pode buscá-lo, 
  mas não defini-lo; é portanto forçada, pelo menos provisoriamente, 
  a aceitar as definições da fé que lhe é até 
  mesmo impossível de criticar. Somente se a ciência renuncia à 
  fé, renuncia à esperança e ao amor, cuja existência 
  e necessidade são, no entanto, tão evidentes para a ciência 
  quanto para a fé. A fé, como fato psicológico, pertence 
  ao domínio da ciência, e a ciência, como manifestação 
  da luz de Deus na inteligência humana, pertence ao domínio da fé. 
  A ciência e a fé devem, portanto, aceitar-se, respeitar-se mutuamente, 
  até mesmo sustentar-se e socorrer-se nas necessidades, mas sem nunca 
  usurpar uma à outra. O meio de as unir é nunca as confundir. Mas 
  não deve haver contradição entre elas, pois servindo-se 
  das mesmas palavras não falam a mesma língua. A FÉ - Pois 
  bem! irmã ciência, o que dizeis disso?
  A CIÊNCIA - Digo que estávamos separadas por um deplorável 
  mal-entendido e que, doravante, podemos andar juntas. Mas a qual de seus símbolos 
  vais-me associar? Serei judia, católica, muçulmana ou protestante?
  A FÉ - Continuarás sendo a ciência e serás universal.
  A CIÊNCIA - Ou seja, católica, se bem compreendo. Mas o que devo 
  pensar das diferentes religiões?
  A FÉ - Julga-as por suas obras. Procure a caridade verdadeira e, quando 
  a tiver encontrado, pergunta-lhe a que culto pertence.
  A CIÊNCIA - Não será certamente ao dos inquisidores e dos 
  carrascos da Noite de São Bartolomeu. A FÉ - É ao de São 
  João, o Esmoler, de São Francisco de Sales, de São Vicente 
  de Paulo, de Fenelon e de tantos outros.
  A CIÊNCIA - Reconheceis que, se a religião produziu algum bem, 
  fez também muito mal. A FÉ - Quando se mata em nome do Deus que 
  disse: Não matarás, quando se persegue em nome daquele que quer 
  que se perdoe os inimigos, quando se propaga trevas em nome daquele que não 
  quer que se oculte a luz, será justo atribuir o crime à própria 
  lei que o condena? Dize, se quereis ser justa, que, apesar da religião, 
  muito mal foi feito na terra. Mas, também, quantas virtudes ela fez nascer, 
  quantos devotamentos e sacrifícios ignorados? Contaste estes nobres corações 
  de ambos os sexos que renunciaram a todas as alegrias para se pôr ao serviço 
  de todas as dores? Essas obras devotadas ao trabalho e à oração 
  que passaram fazendo o bem? Quem pois fundou asilos para os órfãos 
  e os idosos, hospícios para os doentes, retiros para o arrependimento? 
  Essas instituições tão gloriosas quanto modestas são 
  obras reais de que os anais da Igreja estão cheios; as guerras de religião 
  e os suplícios dos sectários pertencem à política 
  dos séculos bárbaros. Os sectários, aliás, eram 
  eles próprios assassinos. Esquecestes a fogueira de Miguel Servet e o 
  massacre de nossos padres renovado ainda em nome da humanidade e da razão 
  pelos revolucionários inimigos da inquisição e da Noite 
  de São Bartolomeu? Os homens são sempre cruéis, quando 
  esquecem a religião que os abençoa e perdoa.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  50
  A CIÊNCIA - Ó fé, perdoa-me então se não posso 
  acreditar, mas sei agora por que és crente. Respeito tuas esperanças 
  e partilho de teus desejos. Mas é pesquisando que eu encontro e é 
  preciso que eu duvide para pesquisar.
  A RAZÃO - Trabalha e procura, então, ó ciência, mas 
  respeita os oráculos da fé. Quando tua dúvida deixar uma 
  lacuna no ensinamento universal, permite à fé preenchê-la. 
  Andai distintas uma da outra, mas apoiadas uma na outra, e nunca vos separeis.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  51
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  52
  SEGUNDA PARTE
  MISTÉRIOS FILOSÓFICOS
  Considerações preliminares
  Diz-se que o belo é o esplendor do verdadeiro.
  Ora, a beleza moral é a bondade. É belo ser bom.
  Para ser bom com inteligência, é preciso ser justo.
  Para ser justo, é preciso agir com razão.
  Para agir com razão, é preciso ter a ciência da realidade.
  Para ter a ciência da realidade, é preciso ter consciência 
  da verdade.
  Para ter consciência da verdade, é preciso ter uma noção 
  exata do ser. O ser, a verdade, a razão e a justiça são 
  os objetos comuns das buscas da ciência e das aspirações 
  da fé. A concepção de um poder supremo, real ou hipotético, 
  transforma a justiça em Providência, e a noção divina, 
  por esse ponto de vista, torna-se acessível à própria ciência. 
  A ciência estuda o ser em suas manifestações parciais, a 
  fé o supõe, ou melhor, o admite a priori em sua generalidade.
  A ciência busca a verdade em todas as coisas, a fé relaciona todas 
  as coisas a uma verdade universal e absoluta.
  A ciência verifica realidades no detalhe, a fé explica-as por uma 
  realidade de conjunto que a ciência não pode verificar, mas que 
  a própria existência dos detalhes parece forçá-la 
  a reconhecer e a admitir.
  A ciência submete as razões das pessoas e das coisas à razão 
  matemática e universal; a fé procura, ou melhor, supõe 
  nas próprias matemáticas e acima das matemáticas uma razão 
  inteligente e absoluta. A ciência demonstra a justiça pela justiça; 
  a fé dá justeza absoluta à justiça, subordinando-a 
  à Providência.
  Vê-se aqui tudo o que a fé empresta à ciência e tudo 
  o que a ciência, por sua vez, deve à fé. Sem a fé, 
  a ciência está circunscrita por uma dúvida absoluta e encontra-se 
  eternamente estacionada no empirismo arriscado a um ceticismo raciocinador; 
  sem a ciência, a fé constrói suas hipóteses ao acaso 
  e só pode prejulgar cegamente as causas dos efeitos que ignora. A grande 
  corrente que reúne ciência e fé é a analogia.
  53
  A ciência está forçada a respeitar uma crença cujas 
  hipóteses são análogas às verdades demonstradas. 
  A fé, que atribui tudo a Deus, está forçada a admitir a 
  ciência como uma revelação natural que, pela manifestação 
  parcial das leis da razão eterna, dá uma escala de proporções 
  a todas as aspirações e a todos os ímpetos da alma no domínio 
  do desconhecido.
  É somente a fé, portanto, que pode dar uma solução 
  aos mistérios da ciência e é, em contrapartida, somente 
  a ciência que demonstra a razão de ser dos mistérios da 
  fé. Fora da união e do concurso dessas duas forças vivas 
  da inteligência, não há para a ciência senão 
  ceticismo e desespero, para a fé, temeridade e fanatismo.
  Se a fé insulta a ciência, blasfema; se a ciência desconhece 
  a fé, abdica.
  Agora, escutemo-las falar de comum acordo.
  - O Ser está em todos os lugares, diz a ciência. É múltiplo 
  e variável em suas formas, único em sua essência e imutável 
  em suas leis. O relativo demonstra a existência do absoluto. A inteligência 
  existe no ser. A inteligência anima e modifica a matéria.
  - A inteligência está em todos os lugares, diz a fé. Em 
  nenhum lugar a vida é fatal, uma vez que está regulada. A regra 
  é a expressão de uma sabedoria suprema. O absoluto em inteligência, 
  o regulador supremo das formas, o ideal vivo dos espíritos é Deus.
  - Em sua identidade com a idéia, o ser é a verdade, diz a ciência.
  - Em sua identidade com o ideal, a verdade é Deus, retorque a fé.
  - Em sua identidade com minhas demonstrações, o ser é a 
  realidade, diz a ciência.
  - Em sua identidade com minhas legítimas aspirações, a 
  realidade é meu dogma, diz a fé.
  - Na sua identidade com o verbo, o ser é a razão, diz a ciência. 
  - Na sua identidade com o espírito de caridade, a mais elevada razão 
  é minha obediência, diz a fé - Em sua identidade com o motivo 
  dos atos racionais, o ser é a justiça, diz a ciência. - 
  Em sua identidade com o princípio de caridade, a justiça é 
  a Providência, responde a fé. Acordo sublime de todas as certezas 
  com todas as esperanças, do absoluto em inteligência e do absoluto 
  em amor. O Espírito Santo, o espírito de caridade deve assim tudo 
  conciliar e tudo transformar em sua própria luz. Não é 
  ele o espírito de inteligência, o espírito de ciência, 
  o espírito de conselho, o espírito de força? Ele deve vir, 
  diz a liturgia católica, e isso será como uma criação 
  nova, e ele mudará a face da terra.
  "Rir da filosofia já é filosofar", disse Pascal ao fazer 
  alusão a esta filosofia cética e duvidosa que não reconhece 
  a fé. E, se existisse uma fé que pisoteasse a ciência, não 
  diríamos que rir de semelhante fé seria dar provas de verdadeira 
  religião, que é toda caridade, que não tolera o riso, mas 
  ter-se-ia razão em censurar esse amor pela ignorância e em dizer 
  a essa fé temerária: Já que desconheces tua irmã, 
  não és a filha de Deus!
  Verdade, realidade, razão, justiça, providência, tais são 
  os cinco raios da estrela flamejante no centro da qual a ciência escreverá 
  a palavra Ser, a que a fé acrescentará o nome inefável 
  de Deus.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  54
  Solução dos Problemas Filosóficos
  Primeira Série
  Pergunta - O que é a verdade?
  Resposta - É a idéia idêntica ao ser.
  P - O que é a realidade?
  R - É a ciência idêntica ao ser.
  P - O que é a razão?
  R - É o verbo idêntico ao ser.
  P - O que é a justiça?
  R - É o motivo dos atos idênticos ao ser.
  P - O que é o absoluto?
  R - É o ser.
  P - Concebe-se algo acima do ser?
  R - Não, mas concebe-se no próprio ser algo de supereminente e 
  de transcendental.
  P - O que é?
  R - A razão suprema do ser.
  P - Conheceis e podeis defini-la?
  R - Somente a fé afirma-a e nomeia-a Deus.
  P - Existe algo acima da verdade?
  R - Acima da verdade conhecida existe a verdade desconhecida.
  P - Como se pode racionalmente supor essa verdade?
  R - Pela analogia e pela proporção.
  P - Como se pode defini-la?
  R - Pelos símbolos da fé.
  P - Pode-se dizer da realidade a mesma coisa que da verdade?
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  55
  R - Exatamente a mesma coisa.
  P - Existe algo acima da razão?
  R - Acima da razão finita existe a razão infinita.
  P - O que é a razão infinita?
  R - É esta razão suprema do ser a que a fé chama de Deus.
  P - Existe algo acima da justiça?
  R - Sim, de acordo com a fé, existe a providência em Deus e, no 
  homem, o sacrifício.
  P - O que é o sacrifício?
  R - É o abandono benévolo e espontâneo do direito.
  P - O sacrifício é racional?
  R - Não, é uma espécie de loucura maior que a razão, 
  pois a razão é forçada a admirá-lo.
  P - Como chamar um homem que age de acordo com a verdade, a realidade, a razão 
  e a justiça?
  R - É um homem moral.
  P - E se pela justiça ele sacrifica seus atrativos?
  R - É um homem de honra.
  P - E se, para imitar a grandeza e a bondade da Providência, ele faz mais 
  do que seu dever e sacrifica seu direito pelo bem dos outros?
  R - É um herói.
  P - Qual é o princípio verdadeiro do heroísmo?
  R - É a fé.
  P - Qual é o seu sustento?
  R - A esperança.
  P - E sua regra?
  R - A caridade.
  P - O que é o bem?
  R - É a ordem.
  P - O que é o mal?
  R - É a desordem.
  P - Que prazer é permitido?
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  56
  R - O gozo da ordem.
  P - Que prazer é proibido?
  R - O gozo da desordem.
  P - Quais são as conseqüências de um e de outro?
  R - A vida e a morte na ordem moral.
  P - O inferno, com todos os seus horrores, tem, pois, razão de ser no 
  dogma religioso?
  R - Sim, é a conseqüência rigorosa de um princípio.
  P - E que princípio é esse?
  R - A liberdade.
  P - O que é a liberdade?
  R - É o direito de fazer o dever com a possibilidade de não o 
  fazer.
  P - O que é faltar com o dever?
  R - É perder o direito. Ora, sendo o direito eterno, perdê-lo significa 
  perda eterna.
  P - Não se pode reparar uma falta?
  R - Sim, pela expiação.
  P - O que é a expiação?
  R - É uma sobrecarga de trabalho. Assim, porque fui preguiçoso 
  ontem, devo realizar, hoje, uma dupla tarefa.
  P - Que pensar dos que se impõem sofrimentos voluntários?
  R - Se é para remediar a atração brutal do prazer, são 
  sábios; se é para sofrer no lugar dos outros, são generosos; 
  mas, se o fazem sem conselho e sem medida, são imprudentes. P - Assim, 
  diante da verdadeira filosofia, a religião é sábia em tudo 
  o que ordena?
  R - Vós o vedes.
  P - Mas se enfim estivermos errados em nossas esperanças eternas? R - 
  A fé não admite essa dúvida. Mas a própria filosofia 
  deve responder que todos os prazeres da terra não valem um dia de sabedoria, 
  e que todos os triunfos da ambição não valem um só 
  instante de heroísmo e de caridade.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  57
  Segunda Série
  P - O que é o homem?
  R - O homem é um ser inteligente e corporal feito à imagem de 
  Deus e do mundo, uno em essência, triplo em substância, imortal 
  e mortal.
  P - Dizeis triplo em substância. Teria o homem duas almas ou dois corpos?
  R - Não. Tem em si uma alma espiritual, um corpo material e um mediador 
  plástico.
  P - Qual é a substância desse mediador?
  R - É a luz em parte volátil e em parte fixada.
  P - O que é a parte volátil dessa luz?
  R - É o fluido magnético.
  P - E a parte fixada?
  R - É o corpo fluídico ou arornal.
  P - A existência desse corpo é demonstrada?
  R - Sim, pelas experiências mais curiosas e mais conclusivas. Falaremos 
  disso na terceira parte deste livro.
  P - Essas experiências são artigos de fé?
  R - Não, pertencem à ciência.
  P - Mas a ciência preocupar-se-ia com isso?
  R - Ela já se preocupa, uma vez que escrevemos este livro e uma vez que 
  o ledes.
  P - Dai-nos algumas noções sobre esse mediador plástico.
  R - Ele é formado por uma luz astral ou terrestre e transmite ao corpo 
  humano a dupla imantação. Ao agir sobre essa luz, a alma, por 
  suas volições, pode dissolvê-la ou coagulá-la, projetá-la 
  ou atraí-la. Ela é o espelho da imaginação e dos 
  sonhos. Reage sobre o sistema nervoso e produz, assim, os movimentos do corpo. 
  Essa luz pode dilatar-se indefinidamente e comunicar suas imagens a distâncias 
  consideráveis, ela imanta os corpos submetidos à ação 
  do homem e pode, fechando-se, atraí-los para si. Pode assumir todas as 
  formas evocadas pelo pensamento e, nas coagulações passageiras 
  de sua parte resplandecente, aparecer aos olhos e até mesmo oferecer 
  uma espécie de resistência ao contato. Se essas manifestações 
  e esses usos do mediador plástico são anormais, o instrumento 
  luminoso não pode produzi-las sem ser falseado e causam necessariamente 
  ou alucinação ou loucura.
  P - O que é o magnetismo animal?
  R - É a ação de um mediador plástico sobre um outro 
  para dissolver ou coagular. Aumentando a
  elasticidade da luz vital e sua força de projeção, ela 
  é enviada tão longe quanto se deseje e é retirada
  totalmente carregada de imagens, mas é preciso que essa operação 
  seja favorecida pelo sono do
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  58
  sujeito, que se produz com maior coagulação da parte fixa de seu 
  mediador.
  P - O magnetismo é contrário à moral e à religião?
  R - Sim, quando dele se abusa.
  P - O que é abusar dele?
  R - É servir-se dele de maneira desordenada ou para um fim desordenado.
  P - O que é um magnetismo desordenado?
  R - É uma emissão fluídica malsã e feita com más 
  intenções, por exemplo, para saber os segredos dos outros ou para 
  chegar a fins injustos.
  P - Qual é, então, seu resultado?
  R - Falseia no magnetizador e no magnetizado o instrumento fluídico de 
  precisão. E é a essa causa que se devem atribuir as imoralidades 
  e as loucuras reprovadas num grande número de pessoas que lidam com o 
  magnetismo.
  P - Quais as condições necessárias para se magnetizar convenientemente?
  R - A saúde do espírito e do corpo; a intenção reta 
  e a prática discreta.
  P - Que vantagens pode-se obter pelo magnetismo bem dirigido? R - A cura das 
  doenças nervosas, a análise dos pressentimentos, o restabelecimento 
  das harmonias fluídicas, a descoberta de alguns segredos da natureza.
  P - Explicai-nos tudo isso de uma maneira mais completa.
  R - Nós o faremos na terceira parte desta obra que tratará especialmente 
  dos mistérios da natureza.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  59
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  60
  TERCEIRA PARTE
  OS MISTÉRIOS DA NATUREZA
  O Grande Agente Mágico
  Falamos de uma substância propagada no infinito
  A substância una que é céu e terra, isto é, conforme 
  seus graus de polarização, sutil ou fixa. Essa substância 
  é o que Hermes Trismegisto chama de grande Telesma. Quando produz o esplendor, 
  ela denomina-se luz.
  É essa substância que Deus cria antes de todas as coisas, quando 
  diz: Que seja a luz.
  Ela é ao mesmo tempo substância e movimento. É um fluido 
  e uma vibração perpétua.
  A força que a põe em movimento e que lhe é inerente denomina-se 
  magnetismo.
  No infinito, essa substância única é o éter ou a 
  luz etérea.
  Nos astros que magnetiza, torna-se luz astral.
  Nos seres organizados, luz ou fluido magnético.
  No homem, forma o corpo astral ou o mediador plástico.
  A vontade dos seres inteligentes age diretamente sobre essa luz e, por meio 
  dela, sobre toda a natureza submetida às modificações da 
  inteligência.
  Essa luz é o espelho comum de todos os pensamentos e de todas as formas; 
  guarda as imagens de tudo o que foi, os reflexos dos mundos passados e, por 
  analogia, os esboços dos mundos futuros. E o instrumento da taumaturgia 
  e da adivinhação, como nos resta explicar na terceira e última 
  parte desta obra.
  LIVRO I
  OS Mistérios Magnéticos
  61
  CAPÍTULO I
  A Chave do Mesmerismo
  Mesmer encontrou a ciência secreta da natureza, ele não a inventou. 
  A substância primeira, única e elementar, cuja existência 
  ele proclama em seus aforismos, era conhecida por Hermes e por Pitágoras.
  Sinésio, que a canta em seus hinos, encontrara sua revelação 
  em meio às lembranças platônicas da escola de Alexandria:
  Mia paga, mic riza
  Trifahj elcmfe morfc
  . . . . . . . . . . . . . . . . . .
  Peri gan spareisc pnoic
  Cqonoj' ezwwse moifcj
  Polndaidcloisi morcij
  "Uma única fonte, uma única raiz de luz jorra e abre-se em 
  três ramos de esplendor. Um sopro circula em volta da terra e vivifica, 
  sob inumeráveis formas, todas as partes da substância animada."
  Hinos de Sinésio, hino 11
  Mesmer viu na matéria elementar uma substância indiferente tanto 
  ao movimento quanto ao repouso. Submetida ao movimento é volátil, 
  de volta ao repouso é fixa, e ele não compreendeu que o movimento 
  é inerente à substância primeira, que resulta não 
  de, sua indiferença, mas de sua aptidão combinada a um movimento 
  e a um repouso equilibrados um pelo outro: que o repouso não está 
  em nenhuma parte na matéria uníversalmente viva, mas que o fixo 
  atrai o volátil para fixá~lo, enquanto o volátil corrói 
  o fixo para volatilizá-lo. Que o pretenso repouso das partículas 
  aparentemente fixadas é somente uma luta mais encarniçada e uma 
  tensão maior de suas forças fluídicas que se imobilizam 
  neutralizando-se. É assim que, segundo Hermes, o que está no alto 
  é como o que está embaixo, a mesma força que dilata o vapor 
  contrai e endurece o gelo; tudo obedece às leis da vida inerentes à 
  substância primeira; essa substância atrai e repele e coagula-se 
  e dissolve-se numa constante harmonia; é dupla; é andrógina; 
  abraça-se e fecunda-se; luta, triunfa, destrui, renova, mas nunca se 
  abandona à inércia, pois a inércia seria a morte para ela. 
  É essa substância primeira que se designa na narrativa hierática 
  do Gênesis, quando o verbo dos Eloim faz a luz ordenando-lhe que seja.
  Eloim diz: Que seja a luz, e a luz foi.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  62
  Essa luz,cujo nome hebreu é r u t, or, é o ouro fluido e vivo 
  da filosofia hermética. Seu princípio positivo é o enxofre 
  deles; seu princípio negativo, o mercúrio, e seus princípios 
  equilibrados formam o que eles denominaram seu sal.
  Seria preciso, pois, em vez do sexto aforismo de Mesmer assim concebido:
  "A matéria é indiferente a estar em movimento ou a estar 
  em repouso."
  Estabelecer este:
  A matéria universal é necessária ao movimento por sua dupla 
  magnetização e procura fatalmente o equilíbrio.
  E deste deduzir os seguintes:
  A regularidade e a variedade no movimento resultam das combinações 
  diversas do equilíbrio. Um ponto equilibrado por todos os lados permanece 
  imóvel pelo próprio fato de ser dotado de movimento.
  O fluido é uma matéria em grande movimento e sempre agitada pela 
  variação dos equilíbrios. O sólido é a mesma 
  matéria em pequeno movimento ou em repouso aparente, porque está 
  mais ou menos equilibrada.
  Não há corpo sólido que não possa ser imediatamente 
  pulverizado, esvair-se em fumaça e tornar-se invisível, se o equilíbrio 
  de suas moléculas viesse a cessar de repente. Não há corpo 
  fluido que não possa tornar-se num segundo mais duro que o diamante, 
  sim se pudesse equilibrar imediatamente suas moléculas constitutivas.
  Dirigir os ímãs, portanto, é destruir ou criar as formas, 
  é produzir em aparência ou anular os corpos, é exercer a 
  onipotência da natureza.
  Nosso mediador plástico é um ímã que atrai ou repele 
  a luz astral sob a pressão da vontade. É um corpo luminoso que 
  reproduz com a maior facilidade as formas correspondentes às idéias. 
  É o espelho da imaginação. Esse corpo alimenta-se de luz 
  astral, exatamente como o corpo orgânico alimenta-se dos produtos da terra. 
  Durante o sono ele absorve a luz por imersão e, durante a vigília, 
  por uma espécie de respiração mais ou menos lenta. Quando 
  se produzem os fenômenos do sonambulismo natural, o mediador plástico 
  está sobrecarregado por uma alimentação que digere mal. 
  A vontade, então, embora ligada pelo torpor do sono, impele instintivamente 
  o mediador em direção aos órgãos para liberá-lo, 
  e produz-se uma reação, de certa forma mecânica, que equilibra 
  pelo movimento do corpo a luz do mediador. É por isso que é tão 
  perigoso acordar os sonâmbulos com um sobressalto, pois o mediador ingurgitado 
  pode, então, retirar-se subitamente para o reservatório comum 
  e abandonar inteiramente os órgãos que se encontram, nesse momento, 
  separados da alma, o que ocasiona a morte.
  O estado de sonambulismo, seja natural, seja factício, é, pois, 
  extremamente perigoso, porque, ao reunir os fenômenos da vigília 
  aos do sono, constitui uma espécie de grande lacuna entre dois mundos. 
  Ao movimentar as moias da vida particular, a alma, banhando-se na vida universal, 
  experimenta um bem-estar indizível e abandonaria de bom grado as ramificações 
  nervosas que a mantêm suspensa acima da corrente. Nos êxtases de 
  todos os tipos a situação é a mesma. Se a vontade aí 
  mergulha num esforço apaixonado ou mesmo se a isso se abandona inteiramente, 
  o sujeito pode ficar idiota, paralisado ou morrer.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  63
  As alucinações e as visões resultam de ferimentos causados 
  ao mediador plástico e de sua paralisia local. Ora ele cessa de irradiar 
  e substitui as realidades mostradas pela luz por imagens de algum modo condensadas, 
  ora irradia com muita força e condensa-se fora, em torno de alguma morada 
  fortuita e desregulada, como o sangue nas excrescências da carne, então 
  as quimeras do nosso cérebro tomam um corpo e parecem tomar uma alma, 
  parecemos a nós mesmos radiosos ou disformes como o ideal de nossos desejos 
  ou de nossos temores. Sendo as alucinações sonhos de pessoas acordadas, 
  supõem sempre um estado análogo ao sonambulismo, porém 
  em sentido contrário; o sonambulismo é o sono tomando emprestado 
  ao despertar seus fenômenos; a alucinação é a vigília 
  sujeita ainda em parte à embriaguez astral do sono.
  Nossos corpos fluídicos atraem-se e repelem-se uns aos outros, segundo 
  leis consoantes às da eletricidade. É o que produz as simpatias 
  e as antipatias instintivas. Equilibram-se, assim, uns aos outros, e é 
  por isso que as alucinações são frequentemente contagiosas; 
  as projeções anormais mudam as correntes luminosas; a perturbação 
  de um doente ganha as naturezas mais sensitivas, um círculo de ilusões 
  estabelece-se e toda uma multidão é facilmente arrastada para 
  ele. É a história das aparições estranhas e dos 
  prodígios populares. Assim explicam-se os milagres dos médiuns 
  da América e as vertigens dos giradores de mesa, que reproduzem em nossos 
  dias os êxtases dos dervixes giradores. Os bruxos lapões com seus 
  tambores mágicos e os malabaristas curandeiros chegam a resultados parecidos 
  por procedimentos semelhantes; seus deuses ou seus diabos em nada contribuem.
  Os loucos e os idiotas são mais sensíveis ao magnetismo do que 
  as pessoas sãs de espírito; deve-se compreender a razão 
  disso; é preciso pouco para virar completamente a cabeça de um 
  homem embriagado, e contrai-se mais facilmente uma doença quando todos 
  os órgãos estão predispostos a sofrerem suas impressões 
  e a manifestarem suas desordens. As doenças fluídicas têm 
  suas crises fatais. Toda tensão anormal do aparelho nervoso termina em 
  tensão contrária segundo as leis necessárias do equilíbrio. 
  Um amor exagerado transforma-se em aversão, e todo ódio exaltado 
  está bem próximo do amor; a reação dá-se 
  frequentemente com o estrondo e a violência do raio. A ignorância, 
  então, desola-se e indigna-se; a ciência resigna-se e cala-se.
  Há dois amores, o do coração e o da mente, o amor do coração 
  nunca se exalta, recolhe-se e cresce lentamente pelas provações 
  e pelos sacrifícios; o amor da mente, puramente nervoso e apaixonado, 
  vive apenas de entusiasmo, vai contra todos os deveres, trata o objeto amado 
  como coisa conquistada, é egoísta, exigente, inquieto, tirânico 
  e traz fatalmente consigo o suicídio por catástrofe final ou o 
  adultério por remédio. Esses fenômenos são constantes 
  como a natureza, inexoráveis como a fatalidade.
  Uma jovem artista cheia de futuro e de coragem tinha por marido um homem de 
  bem, um pesquisador científico, um poeta a quem não podia reprovar 
  senão um excesso de amor por ela, abandonou-o ultrajandoo e, desde então, 
  continua a odiá-lo. No entanto, ela também é uma boa mulher, 
  mas o mundo impiedoso a julga e condena. Todavia, não é agora 
  que ela é culpada. Sua culpa, se é permitido lhe imputar alguma, 
  foi em primeiro lugar ter amado louca e apaixonadamente seu marido.
  Mas, dir-se-á, a alma humana então não é livre?
  " Não, ela não o é mais desde que se abandona à 
  vertigem das paixões. Apenas a sabedoria é livre, as paixões 
  desordenadas são o domínio da loucura, e a loucura é a 
  fatalidade. O que dissemos do amor pode-se dizer também da religião, 
  que é o mais poderoso mas também o mais inebriante dos amores. 
  A paixão religiosa tem também seus excessos e suas reações 
  fatais.
  Pode-se ter êxtases e estigmas, como São Francisco de Assis, e 
  cair em seguida em abismos de
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  64
  devassidão e impiedade.
  As naturezas apaixonadas são ímãs exaltados, atraem ou 
  repelem com força. Podemos magnetizar de duas maneiras: primeiramente, 
  agindo pela vontade sobre o mediador plástico de outra pessoa, cuja vontade 
  e atos encontram-se, por conseguinte, subordinados a essa ação.
  Em segundo lugar, agindo pela vontade de uma pessoa, seja por intimidação, 
  seja por persuasão, para que a vontade impressionada modifique, segundo 
  nosso desejo, o mediador plástico e os atos dessa pessoa.
  Magnetiza-se pela irradiação, pelo contato, pelo olhar e pela 
  palavra. As vibrações da voz modificam o movimento da luz astral 
  e são um veículo poderoso do magnetismo.
  O sopro quente magnetiza positivamente, e o sopro frio magnetiza negativamente. 
  Uma insuflação quente e prolongada na coluna vertebral, abaixo 
  do cerebelo, pode ocasionar fenômenos eróticos.
  Se for colocada a mão direita sobre a cabeça e a mão esquerda 
  sob os pés de uma pessoa envolta em lã ou em seda, ela será 
  inteiramente atravessada por uma fagulha magnética, e pode-se ocasionar 
  uma revolução nervosa em seu organismo com a rapidez de um raio. 
  Os passes magnéticos servem apenas para dirigir a vontade do magnetizador, 
  confirmando-a através de atos. São sinais e nada além disso. 
  O ato da vontade é expresso, e não operado, por esses sinais. 
  O carvão em pó absorve e retém a luz astral. É o 
  que explica o espelho mágico de Dupotet. Figuras desenhadas a carvão 
  aparecem luminosas para uma pessoa magnetizada e tomam para ela, segundo a direção 
  dada pela vontade do magnetizador, as mais graciosas ou as mais aterrorizantes 
  formas.
  A luz astral, ou melhor, vital do mediador plástico, absorvida pelo carvão, 
  torna-se totalmente negativa; é por isso que os animais que a eletricidade 
  atormenta, como por exemplo os gatos, gostam de rolar-se no carvão. A 
  medicina, um dia, utilizará essa propriedade, e as pessoas nervosas encontrarão 
  aí um grande alívio.
  Capítulo II
  A vida e a morte. A vigília e o sono
  O sono é uma morte incompleta; a morte é um sono perfeito. A natureza 
  submete-nos ao sono para habituar-nos à idéia da morte, e adverte-nos 
  por meio dos sonhos sobre a persistência de uma outra vida.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  65
  A luz astral em que o sono nos mergulha é como um oceano onde flutuam 
  inumeráveis imagens, restos das existências naufragadas, miragens 
  e reflexos daquelas que passam, pressentimentos daquelas que vão nascer.
  Nossa disposição nervosa atrai-nos para aquelas imagens que correspondem 
  à nossa agitação, à nossa fadiga especial, como 
  um ímã colocado em meio a detritos metálicos atrairia e 
  escolheria, sobretudo, a limalha de ferro.
  Os sonhos revelam-nos a doença ou a saúde, a calma ou a agitação 
  de nosso mediador plástico e, por conseguinte, também de nosso 
  aparelho nervoso.
  Formulam nossos presentimentos por meio da analogia das imagens.
  Pois todas as idéias têm um duplo signo para nós, relativo 
  à nossa dupla vida. Existe uma língua do sono, de que é 
  impossível, no estado de vigília, compreender e até mesmo 
  reunir as palavras.
  A língua do sono é a da natureza, hieroglífica em seus 
  caracteres e ritmada apenas em seus sons.
  O sono pode ser vertiginoso ou lúcido.
  A loucura é um estado permanente de sonambulismo vertiginoso.
  Uma comoção violenta pode despertar os loucos, assim como pode 
  matá-los.
  As alucinações, quando trazem consigo a adesão da inteligência, 
  são acessos passageiros de loucura. Toda fadiga do espírito provoca 
  o sono; mas, se a fadiga é acompanhada de irritação nervosa, 
  o sono pode ser incompleto e tomar os caracteres do sonambulismo. Adormece-se 
  por vezes sem disso se aperceber em meio à vida real, e então, 
  em vez de pensar, sonha-se.
  Por que temos reminiscências de coisas que nunca nos aconteceram? É 
  que as sonhamos acordados. Esse fenômeno do sono involuntário e 
  não sentido, que atravessa de repente a vida real, produz-se freqüentemente 
  em todos aqueles que superexcitam seu organismo nervoso com excessos, quer de 
  trabalho, quer de vigílias, quer de bebida, quer de um eretismo qualquer. 
  Os monomaníacos dormem quando se entregam a atos insensatos, e não 
  têm mais consciência de nada ao acordarem.
  Quando Papavoine foi preso pelos soldados, disse-lhes tranqüilamente estas 
  palavras notáveis:
  " Vós tomais o outro por mim.
  Era ainda o sonâmbulo que falava.
  Edgar Poe, esse gênio infeliz que se embriagava, descreveu de um modo 
  terrível o sonambulismo dos monomaníacos. Ora é um assassino 
  que ouve, e acredita que todo o mundo ouve, o coração de sua vítima 
  bater através das lajes do túmulo, ora é um envenenador 
  que, por força de dizer a si mesmo: Estou em segurança, contanto 
  que não vá denunciar a mim mesmo, termina por sonhar em voz alta 
  que se denuncia e denuncia-se de fato.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  66
  Edgar Poe não inventou ele próprio nem os personagens nem os fatos 
  de seus estranhos contos, sonhou-os acordado, e é por isso que tão 
  bem lhes dá as cores de uma horrível realidade. O doutor Brière 
  de Boismont, em sua notável obra sobre as Alucinações, 
  conta a história de um inglês, aliás muito sensato, que 
  acreditava ter encontrado um homem com quem travara conhecimento; este o conduzira 
  a almoçar em sua taberna, depois, tendo-o convidado a visitar a Igreja 
  de São Paulo, tentara precipitá-lo do alto da torre onde haviam 
  subido juntos. Desde esse momento, o inglês estava obcecado por esse desconhecido, 
  que apenas ele podia ver, e que reencontrava sempre quando estava só 
  e acabava de jantar bem. Os abismos atraem; a embriaguez chama a embriaguez; 
  a loucura possui irresistíveis atrativos para a loucura. Quando um homem 
  sucumbe ao sono, abomina tudo o que poderia acordá-lo. Acontece o mesmo 
  com os alucinados, os sonâmbulos extáticos, os maníacos, 
  os epiléticos e todos aqueles que se abandonam ao delírio de uma 
  paixão. Eles ouviram a música fatal, entraram na dança 
  macabra e sentem-se arrastados no turbilhão da vertigem. Vós lhes 
  falais, não vos ouvem mais, vós os advertis, não vos compreendem 
  mais, mas vossa voz os importuna; têm sono do sono da morte. A morte é 
  uma corrente que arrasta, um precipício que absorve, mas de cujas profundezas 
  o menor movimento vos pode trazer de volta. Sendo a força de repulsão 
  igual à de atração, freqüentemente, no instante mesmo 
  de expirar, fica-se violentamente preso à vida, freqüentemente também, 
  pela mesma lei de equilíbrio, passa-se do sono à morte; por complacência 
  para com o sono. Um bote balança-se próximo às margens 
  do lago. A criança nele entra, a água brilhante de mil reflexos 
  dança à sua volta chamando-a, a corrente que retém o barco 
  estira-se e parece querer romper-se; um pássaro maravilhoso lança-se, 
  então, da margem e plana cantando sobre as ondas alegres; a criança 
  quer segui-lo, leva a mão à corrente, solta o elo. A Antigüidade 
  adivinhara o mistério da morte atraente e representara-o na fábula 
  de Hilas. Cansado após uma longa navegação, Hilas chega 
  a uma ilha florida, aproxima-se de uma fonte para retirar água, uma miragem 
  graciosa lhe sorri; ele vê uma ninfa estender-lhe os braços, os 
  seus enfraquecem e não podem retirar o cântaro pesado; o frescor 
  da fonte adormece-o, os perfumes da margem embriagam-no, ei-lo debruçado 
  sobre a água como um narciso cuja haste fosse quebrada por uma criança 
  a brincar; o cântaro cheio cai ao fundo e Hilas segue-o, morre sonhando 
  com ninfas que o acariciam, e não ouve mais a voz de Hércules 
  que o chama de volta aos trabalhos da vida, e que percorre todas as margens 
  gritando mil vezes: Hilas, Hilas!
  Outra fábula, não menos comovente, que sai das sombras da iniciação 
  órfica, é a de Eurídice chamada de volta à vida 
  pelos milagres da harmonia e do amor, Eurídice, esta sensitiva rompida 
  no próprio dia de seu casamento e que se refugiou na tumba ainda trêmula 
  de pudor! Logo, ela ouve a lira de Orfeu, e lentamente sobe em direção 
  à luz; as terríveis divindades do Érebo não ousam 
  fechar-lhe a passagem. Ela segue o poeta, ou antes, a poesia que ela adora... 
  Mas ai do amante se mudar a corrente magnética e se seguir, com um único 
  olhar, aquela que ele deve somente atrair! O amor sagrado, o amor virginal, 
  o amor mais forte que o túmulo busca apenas a dedicação 
  e foge desvairado diante do egoísmo do desejo. Orfeu sabe disso, mas 
  por um instante esquece. Eurídice, em suas brancas vestes de noiva, está 
  deitada no leito nupcial, ele, sob as vestimentas de grande hierofante, está 
  em pé, a lira nas mãos, a cabeça coroada com os louros 
  sagrados, os olhos voltados para o Oriente, e canta. Canta as flechas luminosas 
  do amor que atravessam as sombras do antigo caos, as ondas da doce claridade 
  escorrendo da teta negra da mãe dos deuses, Eros e Ânteros. Adônis 
  que volta à vida para escutar os lamentos de Vênus e que se reanima 
  como uma flor sob o orvalho brilhante de suas lágrimas; Castor e Pólux 
  que a morte não pôde desunir e que se amam ora no inferno, ora 
  na terra... Depois ele chama suavemente Eurídice, sua querida Eurídice, 
  sua Eurídice tão amada:
  Ah! miseram Eurydicen animâ fugiente vocabat,
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  67
  Eurydicen! toto referebant flumine ripae.
  Enquanto ele canta, aquela pálida estátua que a morte fez colore-se 
  com as primeiras nuanças da vida, seus lábios brancos começam 
  a avermelhar-se como a aurora da manhã... Orfeu a vê, treme, balbucia, 
  o hino vai expirar em sua boca, mas ela empalidece novamente; então o 
  grande hierofante tira de sua lira cantos dilacerantes e sublimes, não 
  olha mais senão para o céu, chora, implora, e Eurídice 
  abre os olhos... Infeliz! não olhes para ela, canta ainda, não 
  afugentes a borboleta de Psiquê, que quer pousar nesta flor!... Mas o 
  insensato viu o olhar da ressuscitada, o grande hierofante cede à embriaguez 
  do amante, a lira cai de suas mãos, olha Eurídice, corre em sua 
  direção... Aperta-a em seus braços e a encontra ainda gelada, 
  seus olhos tornaram a fechar-se, seus lábios estão mais pálidos 
  e mais frios do que nunca, a sensitiva estremeceu, e o vínculo delicado 
  da alma rompeu-se novamente e para sempre... Eurídice está morta 
  e os hinos de Orfeu não mais a trarão de volta à vida. 
  Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, ousamos dizer que a ressurreição 
  dos mortos não é um fenômeno impossível na própria 
  ordem da natureza, e nisso não negamos nem contradissemos de nenhum modo 
  a fé fatal da morte. Uma morte que pode cessar é apenas uma letargia 
  e um sono, mas é sempre pela letargia e pelo sono que a morte começa. 
  O estado de quietude profunda que se sucede, nesse momento, às agitações 
  da vida leva então a alma distendida e dormente, não se pode fazê-la 
  voltar, forçá-la a novamente mergulhar, senão excitando 
  violentamente todas as suas feições e todos os seus desejos. Quando 
  Jesus, o Salvador do mundo, estava na terra, a terra era mais bela e mais desejável 
  do que o céu, e no entanto, para acordar a filha de Jairo, Jesus precisou 
  gritar e sacudi-la. Foi a poder de frémitos e de lágrimas que 
  chamou de volta do túmulo o amigo Lázaro, tão difícil 
  é interromper uma alma cansada que dorme o seu primeiro sono! Todavia, 
  o rosto da morte não tem a mesma serenidade para todas as almas que o 
  contemplam; quando se teve frustrado o objetivo da vida, quando se levam consigo 
  cobiças desenfreadas ou ódios insaciados, a eternidade aparece 
  para a alma ignorante ou culpada com tão formidáveis proporções 
  de dores que ela tenta algumas vezes lançar-se novamente na vida mortal. 
  Quantas almas assim agitadas pelo pesadelo do inferno refugiaram-se em seus 
  corpos gelados e já cobertos pelo mármore da tumba! Foram encontrados 
  esqueletos revirados, convulsos, retorcidos, e foi dito: Aí estão 
  homens que foram enterrados vivos. Enganavam-se frequentemente, e bem podiam 
  ser retomados da morte, ressuscitados da sepultura que, por se terem abandonado 
  completamente às angústias do limiar da eternidade, com ela foram 
  ter por duas vezes.
  Um magrietista célebre, o barão Dupotet, ensina no seu livro secreto 
  sobre a Magia que se pode matar pelo magnetismo como pela eletricidade. Essa 
  revelação nada tem de estranho para quem conhece bem as analogias 
  da natureza. É certo que, dilatando-se além dos limites-ou coagulando-se 
  repentinamente o mediador plástico de um sujeito, pode-se separar sua 
  alma de seu corpo. Basta algumas vezes provocar numa pessoa uma violenta cólera 
  ou um enorme susto para matá-la subitamente.
  O uso habitual do magnetismo geralmente coloca o sujeito que a ele se abandona 
  à mercê do magnetizador. Quando a comunicação é 
  bem estabelecida, quando o magnetizador pode produzir à vontade o sono, 
  a insensibilidade, a catalepsia, etc., só lhe custaria um esforço 
  a mais trazer também a morte.
  Contaram-nos, como verdadeira, uma história de que todavia não 
  garantimos a autenticidade.
  Vamos contá-la porque pode ser verdadeira.
  Pessoas que duvidavam ao mesmo tempo da religião e do magnetismo, desses 
  incrédulos que se prestam a todas as superstições e a todos 
  os fanatismos, haviam convencido, a peso de ouro, uma pobre moça a submeter-se 
  às suas experiências. Era uma natureza impressionável e 
  nervosa, cansada além disso pelos excessos de uma vida mais do que irregular, 
  e já enojada da existência. Adormecem-na; ordenam-lhe que veja; 
  ela chora e debate-se. Falam-lhe de Deus.... tremem-lhe todos os membros.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  68
  " Não - diz ela -, ele me dá medo; não quero olhar 
  para ele.
  " Olhe para ele, eu quero.
  Ela abre então os olhos; suas pupilas dilatam-se; fica apavorante.
  " O que você está vendo?
  " Não consigo dizer... Oh! por misericórdia, por misericórdia, 
  acordem-me!
  " Não, olhe e diga o que está vendo.
  " Vejo uma noite negra em que turbilhonam fagulhas de todas as cores em 
  volta de dois grandes olhos que se movem sem parar. Desses olhos saem raios 
  que se enrolam em serpentinas e ocupam todo o espaço... Oh! isso me dói! 
  acordem-me!
  " Não, olhe.
  " Para onde mais querem que eu olhe?
  " Olhe dentro do paraíso.
  " Não, não posso subir até lá; a grande noite 
  me rechaça e volto sempre a cair.
  " Então olhe dentro do inferno.
  Aí, a sonâmbula agita-se convulsivamente.
  " Não! Não! - grita soluçando -, não quero; 
  me daria vertigem; cairia. Oh! segurem-me! detenham-me!
  " Não, desça.
  " Aonde querem que eu desça?
  " Ao inferno.
  " É horrível! Não, não, não quero ir!
  " Vá.
  " Misericórdia!
  " Vá, eu quero.
  As feições da sonâmbula ficam terríveis de se ver; 
  os cabelos em pé; os olhos esbugalhados só mostram o branco; o 
  peito arfa e deixa escapar um som rouco.
  " Vá até lá, eu quero - repete o magnetizador.
  " Estou aqui - diz entre dentes a infeliz, caindo esgotada. Depois, não 
  responde mais; a cabeça inerte tomba sobre os ombros; os braços 
  pendem ao longo do corpo. Aproximam-se dela; tocam-na. Querem, já tarde 
  demais, acordá-la; o crime estava consumado; a mulher estava morta e 
  os autores dessa experiência sacrílega, graças à 
  incredulidade pública em matéria de magnetismo, não foram 
  perseguidos. Coube à autoridade atestar um óbito, e a morte foi 
  atribuída à ruptura de um aneurisma. O corpo, aliás, não 
  tinha nenhuma marca de violência; mandaram-no enterrar e encerrou-se o 
  caso.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  69
  Eis um outro caso que nos foi contado por companheiros da Volta à França. 
  Dois companheiros hospedavarn-se no mesmo albergue e dividiam o mesmo quarto. 
  Um dos dois tinha o hábito de falar dormindo, quando então respondia 
  às perguntas que seu colega lhe fazia. Uma noite, ele começa, 
  de repente, a soltar gritos sufocados, o outro companheiro acorda e pergunta-lhe 
  o que está havendo.
  " Mas então você não está vendo - diz o que 
  está dormindo não está vendo esta pedra enorme... está 
  se soltando da montanha... está caindo sobre mim, vai me esmagar.
  " Pois então fuja!
  " Impossível, meus pés estão enroscados num espinheiro 
  que se aperta cada vez mais... Ai! Socorro! lá... lá está 
  a grande pedra que vem para cima de mim.
  " Toma, aqui está ela! - diz rindo o outro, que lhe atira na cabeça 
  o travesseiro para acordá-lo.
  Um grito terrível, subitamente sufocado na garganta, uma convulsão, 
  um suspiro, depois mais nada. O desastrado brincalhão levanta-se, puxa 
  o colega pelo braço, chama-o, assusta-se por sua vez, grita, alguém 
  traz uma luz... o infeliz sonâmbulo estava morto.
  Capítulo III
  Mistérios das alucinações e da evocação dos 
  espíritos
  Uma alucinação é um ilusão produzida por um movimento 
  irregular da luz astral.
  É, como dissemos antes, a mistura dos fenômenos do sono aos da 
  vigília. Nosso mediador plástico aspira e respira a luz astral 
  ou a alma vital da terra, como nosso corpo aspira e respira a atmosfera terrestre. 
  Ora, do mesmo modo que em alguns lugares o ar é impuro e irrespirável, 
  também algumas circunstâncias fenomenais podem tornar a luz astral 
  malsã e não assimilável.
  Tal ar também pode ser muito vivo para algumas pessoas e convir perfeitamente 
  a outras, sendo assim também com a luz magnética.
  O mediador plástico assemelha-se a uma estátua metálica 
  permanentemente em fusão. Se o molde está defeituoso, ela torna-se 
  disforme; se o molde se quebra, ela foge. O molde do mediador plástico 
  é a força vital equilibrada e polarizada. Nosso corpo, por meio 
  do sistema nervoso, atrai e retém essa forma fugidia de luz especificada; 
  mas a fadiga local ou a superexcitação parcial do aparelho pode 
  ocasionar disformidades fluídicas. Essas disformidades alteram parcialmente 
  o espelho da imaginação e ocasionam alucinações 
  habituais próprias aos visionários extáticos.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  70
  O mediador plástico, feito à imagem e semelhança de nosso 
  corpo, cujos órgãos reproduz luminosamente, tem visão, 
  tato, audição, olfato e paladar que lhe são próprios; 
  pode, quando está superexcitado, comunicá-los por vibrações 
  ao aparelho nervoso, de tal modo que a alucinação seja completa. 
  A imaginação parece, então, triunfar sobre a própria 
  natureza e produz fenômenos verdadeiramente estranhos. O corpo material 
  inundado de fluido parece participar das qualidades fluídicas, escapa 
  às leis da gravidade, torna-se momentaneamente invulnerável e 
  mesmo invisível num círculo de alucinados por contágio. 
  Sabe-se que os convulsionários de São Medardo deixavam-se atenazar, 
  espancar, triturar, crucificar, sem que sentissem nenhuma dor, que se erguiam 
  do chão, andavam de cabeça para baixo, comiam alfinetes e os digeriam. 
  Achamos oportuno relatar aqui o que publicamos no jornal O Estafeta sobre os 
  prodígios do médium americano Home e sobre vários fenômenos 
  da mesma ordem. Nunca fomos, nós mesmos, testemunhas dos milagres do 
  senhor Home, mas nossas informações vêm das melhores fontes, 
  recolhemo-nas numa casa onde o médium americano foi acolhido com benevolência 
  quando estava infeliz, e com indulgência quando chegou a tomar sua doença 
  por uma felicidade e uma ventura. É a casa de uma senhora nascida na 
  Polônia, mas três vezes francesa pela nobreza de seu coração, 
  pelos encantos inefáveis de seu espírito e pela celebridade européia 
  de seu nome.
  A publicação dessas informações no Estafeta atraiu-nos, 
  sem que saibamos bem por quê, as injúrias de um senhor De Pène, 
  conhecido, desde então, por seu duelo infeliz. Lembramo-nos, na ocasião, 
  da fábula de La Fontaine sobre o louco que atirava pedras num sábio. 
  O senhor De Pène tratava-nos de "padre que abandonou a batina" 
  e de mau católico. Mostramo-nos pelo menos bom cristão compadecendo-nos 
  dele e perdoando-o, e, como é impossível ser "padre que abandonou 
  a batina" sem nunca ter sido padre, deixamos cair por terra uma injúria 
  que não nos atingia. Na semana passada, o senhor Home queria mais uma 
  vez deixar Paris, essa Paris onde, se os próprios anjos e demônios 
  aparecessem sob uma forma qualquer, não passariam muito tempo por seres 
  maravilhosos, e nada melhor teriam a fazer senão retornar logo ao céu 
  ou ao inferno, para escapar ao esquecimento e ao abandono dos humanos.
  O sr. Home, com ar triste e desiludido, despedia-se, então, de uma nobre 
  dama, cuja benevolente acolhida fora uma de suas primeiras alegrias na França. 
  Naquele dia, como sempre, a sra. B... foi gentil com ele, e quis retê-lo 
  para jantar; o misterioso personagem ia aceitar, quando alguém disse 
  que era esperado um cabalista conhecido no mundo das ciências ocultas 
  pela publicação de um livro intitulado Dogma e Ritual da Alta 
  Magia; as feições do sr. Home alteraram-se de repente, e ele declarou 
  balbuciando e com uma visível perturbação que não 
  podia ficar e que a aproximação daquele professor de magia causava-lhe 
  um insuperável terror. Tudo o que lhe disseram para tranqüilizá-lo 
  foi inútil. - Não julgo esse homem - dizia ele -, nem afirmo que 
  ele seja bom ou mau, nada sei sobre isso, mas sua atmosfera me faz mal, perto 
  dele me sentiria sem forças e como que sem vida.
  E, depois dessa explicação, o sr. Home apressou-se a despedir-se 
  e a sair.
  Esse terror dos homens de prestígio em presença dos verdadeiros 
  iniciados à ciência não é um fato
  novo nos anais do ocultismo. Pode-se ler em Filóstrato a história 
  da estrige que treme ao ouvir
  chegar Apolônio de Tiana. Nosso admirável escritor Alexandre Dumas 
  dramatizou essa lenda
  mágica no belo resumo de todas as lendas que serviria de prólogo 
  à sua grande epopéia romanesca
  do Judeu Errante. A cena passa-se em Corinto; é uma cerimônia de 
  casamento antiga com belas
  crianças coroadas de flores que carregam archotes nupciais e cantam epitalâmios 
  graciosos e ornados
  de voluptuosas imagens como as poesias de Catulo. A noiva está linda, 
  em suas castas vestes, como
  a Polímnia antiga; está amorosa e deliciosamente provocante em 
  seu pudor, como uma Vênus de
  Corrégio ou uma Graça de Cânova. Aquele que ela desposa 
  é Clínias, um discípulo do célebre
  Apolônio de Tiana. O mestre prometeu vir às núpcias de seu 
  discípulo, mas não vem, e a bela noiva
  respira mais aliviada, pois teme Apolônio. No entanto, o dia não 
  acabou. É chegada a hora do leito
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  71
  nupcial, e de repente Méroe treme, empalidece, olha fixamente em direção 
  à porta, estende a mão aterrorizada e diz numa voz sufocada: "Ei-lo! 
  é ele!" É Apolônio de fato. Eis o mago, eis o mestre: 
  a hora dos encantamentos passou, os prestígios caem diante da verdadeira 
  ciência. Procura-se a bela noiva, a branca Méroe, e vê-se 
  apenas uma velha mulher, a bruxa Canídie, a devoradora de criancinhas. 
  Clínias está desiludido, agradece seu mestre; está salvo. 
  O vulgo sempre se enganou sobre a magia, e confunde os adeptos com os encantadores. 
  A verdadeira magia, isto é, a ciência tradicional, dos magos, é 
  inimiga mortal dos encantamentos; ela impede ou faz cessar os falsos milagres, 
  hostis à luz e fascinadores de um pequeno número de testemunhas 
  preparadas ou crédulos. A desordem aparente nas leis da natureza é 
  uma mentira; não é, pois, uma maravilha. A maravilha verdadeira, 
  o verdadeiro prodígio sempre resplandecente aos olhos de todos é 
  a harmonia sempre constante dos efeitos e das causas; são os esplendores 
  da ordem eterna! Não saberíamos dizer se Cagliostro teria feito 
  milagres diante de Swedenborg, mas teria certamente temido a presença 
  de Paracelso e de Henri Khunrath, se esses dois grandes homens tivessem sido 
  seus contemporâneos.
  Longe de nós, no entanto, a idéia de denunciar o sr. Home como 
  um bruxo de baixa categoria, isto é, um charlatão. O célebre 
  médium americano é doce e ingênuo como uma criança. 
  É um pobre ser muito sensitivo, sem intriga e sem defesa; é o 
  joguete de uma força terrível que ele ignora, e ele próprio 
  é certamente a primeira de suas vítimas.
  O estudo dos estranhos fenômenos que se produzem em torno desse moço 
  é da maior importância. Trata-se de rever seriamente as denegações 
  demasiado levianas do século XVIII, e de abrir diante da ciência 
  e da razão horizontes menos estreitos que os da crítica burguesa, 
  que nega tudo o que ainda não pode explicar. Os fatos são inexoráveis, 
  e a verdadeira boa fé nunca deve recear examiná-los. A explicação 
  desses fatos que todas as tradições obstinam-se em afirmar e que 
  se reproduzem diante de nós com uma incômoda publicidade, essa 
  explicação, antiga como os próprios fatos, rigorosa como 
  a matemática, mas pela primeira vez tirada das sombras onde a escondiam 
  os hierofantes de todas as idades, seria um grande evento científico, 
  se pudesse obter bastante luz e publicidade. Vamos talvez preparar esse evento, 
  pois não nos seria permitido a esperança audaciosa de concluí-lo.
  Em primeiro lugar, eis os fatos em toda sua singularidade. Comprovamo-os e vamos 
  restabelecê-los com uma rigorosa exatidão abstendo-nos, inicialmente, 
  de qualquer explicação ou comentário. O sr. Home está 
  sujeito a êxtases que o põem, segundo ele, em contato diretamente 
  com a alma de sua mãe, e, pela intermediação desta, com 
  todo o mundo dos espíritos. Descreve, como os sonâmbulos de Cahagnet, 
  pessoas que nunca viu e que são reconhecidas pelos que as evocam; vos 
  dirá mesmo seus nomes e responderá de sua parte a perguntas que 
  só podem ser compreendidas por elas e por vós mesmos.
  Quando ele está num apartamento, ruídos inexplicáveis fazem-se 
  ouvir. Batidas violentas ecoam nos móveis e nas paredes; algumas vezes 
  as portas e as janelas abrem-se como se fossem impelidas por uma tempestade; 
  fora, chega-se a ouvir o vento e a chuva; ao sair, o céu está 
  sem nuvens, e não se sente nem o mais leve sopro de vento.
  Os móveis são erguidos e deslocados sem que ninguém os 
  toque.
  Lápis escrevem sozinhos. A caligrafia é a do sr. Home, e cometem 
  os mesmos erros que ele. As pessoas presentes sentem-se tocar e agarrar por 
  mãos invisíveis. Esses contatos, que parecem escolher as damas, 
  carecem de seriedade, e por vezes mesmo de conveniência, em sua aplicação. 
  Pensamos que nos compreendem o suficiente.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  72
  Mãos visíveis e tangíveis saem ou parecem sair das mesas, 
  mas para isso é preciso que as mesas estejam cobertas. São necessários 
  alguns preparativos ao agente invisível, assim como aos mais hábeis 
  sucessores de Robert Houdin.
  Essas mãos mostram-se sobretudo na escuridão; são quentes 
  e fosforescentes ou frias e negras. Escrevem tolices ou tocam piano; e quando 
  tocam piano é preciso vir o afinador, pois seu contado é sempre 
  fatal à afinação do instrumento.
  Um dos mais recomendáveis personagens da Inglaterra, sir Edward Bulwer 
  Lytton, viu e tocou essas mãos; lemos a declaração escrita 
  e assinada por ele. Declara mesmo tê-las apertado e puxado para si com 
  toda a força, para fazer saírem do seu esconderijo os braços 
  a que naturalmente elas deviam estar ligadas. Mas a coisa invisível foi 
  mais forte do que o romancista inglês, e as mãos escaparam-lhe.
  Um fidalgo russo, que foi o protetor do senhor Home e cujo caráter e 
  boa fé não poderiam ser alvo de nenhuma dúvida, o conde 
  A.B... também viu e apertou vigorosamente as mãos misteriosas. 
  Eram, disse ele, formas perfeitas de mãos humanas, quentes e vivas; só 
  que não se sentiam os ossos. Cerradas num aperto inevitável, as 
  mãos não lutaram para escapar, mas diminuíram, fundiram-se 
  de algum modo, e o conde acabou por nada mais segurar.
  Outras pessoas que viram e tocaram essas mãos dizem que os dedos são 
  inchados e rígidos, e comparam-nos a luvas de borracha cheias de um ar 
  fosforescente e quente. Por vezes, no lugar de mãos, são pés 
  que se exibem, todavia, nunca a descoberto. O espírito, a quem provavelmente 
  faltam sapatos, respeita ao menos nisso a delicadeza das damas, e nunca mostra 
  seu pé a não ser sob um cortinado ou uma toalha.
  A aparição desses pés cansa e assusta muito o senhor Home. 
  Ele procura então aproximar-se de alguma pessoa saudável, agarra-a 
  como se temesse afogar-se; e a pessoa assim agarrada pelo médium sente-se 
  de repente num estado singular de esgotamento e debilidade. Um fidalgo polonês, 
  que assistia a uma das sessões do senhor Home, colocara no chão 
  entre seus pés um lápis sobre um papel, e pedira um sinal da presença 
  do espírito. Durante alguns instantes nada se moveu. De repente, o lápis 
  foi lançado ao outro extremo do apartamento. O fidalgo abaixou-se, pegou 
  o papel e viu aí três signos cabalísticos que ninguém 
  compreendia. Só o senhor Home, ao vê-los, pareceu experimentar 
  uma grande contrariedade e manifestou um certo temor; porém recusou-se 
  a explicar a natureza e a significação desses caracteres. Guardaram-nos, 
  então, e trouxeram-nos para este professor de magia, cuja aproximação 
  o médium tanto receara. Examinamo-os e aqui está sua minuciosa 
  descrição.
  Estavam desenhados com força e o lápis quase rasgara o papel.
  Estavam espalhados na folha sem ordem e sem alinhamento. O primeiro era o signo 
  que os iniciados egípcios geralmente colocavam na mão de Tífon. 
  Um tau com duplo traço vertical aberto em forma de compasso, uma cruz 
  com alça tendo no alto um círculo, abaixo do círculo um 
  duplo traço horizontal, sob o duplo traço horizontal um duplo 
  traço oblíquo em forma de V invertido.
  O segundo caráter representava uma cruz de grande hierofante com as três 
  travessas hierárquicas. Esse símbolo, que remonta à mais 
  alta Antigüidade, é ainda o atributo de nossos soberanos pontífices 
  e arremata a extremidade superior de seu bastão pastoral. Mas o signo 
  traçado pelo lápis tinha de particular que o ramo superior, a 
  cabeça da cruz, era duplo e formava ainda o terrível V tifoniano, 
  o signo do antagonismo e da separação, o símbolo do ódio 
  e do combate eterno.
  O terceiro caráter era o que os maçons denominam cruz filosófica, 
  uma cruz de quatro ramos iguais
  com um ponto em cada um dos ângulos. Porém, em vez de quatro pontos, 
  havia somente dois,
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  73
  colocados nos dois ângulos da direita, ainda um signo de luta, de separação 
  e de negação. O professor, que nos será permitido distinguir 
  aqui do narrador e nomear na terceira pessoa, para não cansar nossos 
  leitores parecendo falar-lhes de nós, o professor, pois, mestre Eliphas 
  Levi, deu às pessoas reunidas na sala da senhora B... a explicação 
  científica das três assinaturas, e eis o que ele disse:
  "Estes três signos pertencem à série dos hieróglifos 
  sagrados e primitivos conhecidos somente pelos iniciados da primeira ordem, 
  o primeiro é a assinatura de Tífon. Ele exprime a blasfêmia 
  desse espírito do mal estabelecendo o dualismo no princípio criador. 
  Pois a cruz com alça de Osíris é um linga invertido, e 
  representa a força paterna e ativa de Deus (a linha vertical saindo do 
  círculo) fecundando a natureza passiva (a linha horizontal). Dobrar a 
  linha vertical é afirmar que a natureza tem dois pais; é colocar 
  o adultério no lugar da maternidade divina, é afirmar, ao invés 
  do primeiro princípio inteligente, a fatalidade cega que tem por resultado 
  o conflito eterno das aparências no nada; é, pois, o mais antigo, 
  o mais autêntico e o mais terrível de todos os estigmas do inferno. 
  Significa o deus ateu, é a assinatura de Satã.
  "Essa primeira assinatura é hierática e refere-se aos caracteres 
  ocultos do mundo divino. "A segunda pertence aos hieróglifos filosóficos, 
  representa a medida ascensional da idéia e a extensão progressiva 
  da forma.
  "É um triplo tau invertido, é o pensamento humano afirmando 
  alternativamente o absoluto nos três mundos, e esse absoluto termina aqui 
  por um forcado, ou seja, pelo signo da dúvida e do antagonismo. De tal 
  modo que, se o primeiro caráter queria dizer: Não existe Deus, 
  este tem por significação rigorosa: A verdade hierárquica 
  não existe.
  "O terceiro, ou a cruz filosófica, foi em todas as iniciações 
  o símbolo da natureza e de suas quatro formas elementares, os quatro 
  pontos representam as quatro letras indizíveis e incomunicáveis 
  do tetragrama oculto, esta fórmula eterna do grande arcano G.'. A.'. 
  "Os dois pontos da direita representam a força, os da esquerda figuram 
  o amor, e as quatro letras devem ser lidas da direita para a esquerda começando 
  pelo alto à direita, e indo daí para a letra embaixo à 
  esquerda, e assim para as outras fazendo a cruz de Santo André. "A 
  supressão dos dois pontos da esquerda exprime, pois, a negação 
  da cruz, a negação da misericórdia e do amor.
  "A afirmação do reino absoluto da força, e de seu 
  antagonismo eterno, de alto a baixo e de baixo ao alto.
  "A glorificação da tirania e da revolta.
  "O signo hieroglífico do vício imundo, que se teve ou não 
  razão de reprovar aos Templários, é o signo da desordem 
  e do desespero eternos."
  Tais são, portanto, as primeiras revelações da ciência 
  oculta dos magos sobre esses fenômenos de manifestações 
  sobrenaturais. Agora, seja-nos permitido relacionar essas assinaturas estranhas 
  a outras aparições contemporâneas de escrituras fenomenais, 
  pois é um verdadeiro processo que a ciência deve instruir antes 
  de levá-lo ao tribunal da razão pública. É preciso, 
  pois, não desprezar nenhuma averiguação e nenhum indício.
  Nas proximidades de Caen, em Tilly-sur-Seulles, uma série de fatos inexplicáveis 
  produziam-se, havia alguns anos, sob a influência de um médium 
  ou de um extático chamado Eugène Vintras.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  74
  Algumas circunstâncias ridículas e um processo fraudulento logo 
  fizeram cair no esquecimento e mesmo no desprezo esse taumaturgo, atacado aliás 
  com violência em panfletos cujos autores eram antigos admiradores de sua 
  doutrina, pois o médium Vintras também dogmatiza. No entanto, 
  uma coisa é notável nas invectivas de que ele é alvo: é 
  que seus adversários, mesmo esforçando-se em condená-lo, 
  reconhecem a verdade de seus milagres e contentam-se em atribuí-los ao 
  demônio. Quais são, pois, os milagres tão autênticos 
  de Vintras?
  Sobre esse assunto estamos melhor informados do que ninguém, como logo 
  se notará. Autos assinados por testemunhas honradas, artistas, médicos, 
  padres, aliás irrepreensíveis, foram-nos comunicados; interrogamos 
  testemunhas oculares, e, melhor do que isto, vimos. As coisas merecem ser contadas 
  com alguns detalhes.
  Existe em Paris um escritor, no mínimo excêntrico, que se chama 
  Madrolle. É um ancião cuja família e relações 
  são honradas. Escreveu primeiramente no sentido católico mais 
  exaltado, recebeu os estímulos mais lisonjeiros das autoridades eclesiásticas 
  e até mesmo breves emanações da Santa Sé, depois 
  conheceu Vintras; e, arrastado pelo prestígio de seus milagres, tornou-se 
  um sectário determinado e um inimigo irreconciliável da hierarquia 
  e do clero. Na época em que Eliphas Levi publicava seu Dogma e Ritual 
  da Alta Magia, recebeu uma brochura de Madrolle que o surpreendeu. O autor sustentava 
  abertamente os paradoxos mais inauditos no estilo desordenado dos extáticos. 
  Para ele, a vida bastava para a expiação dos grandes crimes, uma 
  vez que ela era a conseqüência de uma sentença de morte. Os 
  piores homens, por serem os mais infelizes de todos, pareciam-lhe oferecer a 
  Deus uma expiação mais sublime. Enfurecia-se contra toda repressão 
  e toda danação. "Uma religião que condena", exclamava 
  ele, "é uma religião condenada!" Depois pregava a licença 
  mais absoluta sob o pretexto de caridade, e chegava até a dizer que o 
  ato de amor mais imperfeito e aparentemente mais repreensível valia mais 
  que a melhor das preces. Era o Marquês de Sade tornado pregador. Depois 
  negava o diabo com um entusiasmo por vezes pleno de eloqüência.
  "Podeis conceber", dizia ele, "um diabo que Deus tolera, que 
  Deus autoriza! Conceber além disso um Deus que fez o diabo e que o deixa 
  atormentar criaturas já tão fracas e tão prontas a se enganarem! 
  Um Deus do diabo enfim, secundado, preconceituoso e mal superado em suas vinganças 
  por um diabo de Deus!..." O restante da brochura tinha a mesma força. 
  O professor de magia esteve a ponto de aterrorizar-se e tratou de conseguir 
  o endereço de Madrolle. Não foi sem alguma dificuldade que ele 
  chegou até esse singular panfletário, e eis a seguir mais ou menos 
  o que foi a conversa:
  Eliphas Levi: - Senhor, recebi sua brochura. Venho agradecer-lhe e testemunhar-lhe 
  ao mesmo tempo meu espanto e meu pesar.
  Madrolle: - Seu pesar, senhor! Queira explicar-se, não estou entendendo.
  " Lamento profundamente, senhor, vê-lo cometer erros que outrora 
  eu mesmo cometi. Mas eu tinha, então, pelo menos a desculpa da inexperiência 
  e da juventude. Falta alcance à sua brochura porque falta-lhe medida. 
  Por certo sua intenção era protestar contra erros na crença, 
  contra abusos na moral; e acontece serem a própria crença e a 
  moral que o senhor ataca. A exaltação que transborda em seu pequeno 
  escrito deve mesmo causar-lhe muito transtorno, e alguns de seus melhores amigos 
  devem ter-se preocupado com seu estado de saúde...
  " Sem dúvida! Já se disse e ainda se diz que sou louco. Mas 
  não é de hoje que os crentes devem suportar a loucura da cruz. 
  Estou exaltado porque, no meu lugar, o senhor também estaria, pois é 
  impossível permanecer frio na presença dos prodígios.
  " Oh! Oh! o senhor está falando de prodígios, isso me interessa. 
  Vejamos, cá entre nós e de boa fé,
  de que prodígios se trata?
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  75
  " Ora! de que prodígios senão daqueles do grande profeta 
  Elias, que voltou à terra sob o nome de Pierre Michel.
  " Estou ouvindo; o senhor quer dizer Eugène Vintras. Ouvi falar 
  de suas obras. Mas ele realmente faz milagres?
  (Nesse momento, Madrolle dá um salto da cadeira, ergue os olhos e as 
  mãos para o céu, e termina por sorrir com uma condescendência 
  que se assemelha a uma profunda piedade.)
  " Se ele faz milagres, meu senhor! E os maiores!... Os mais surpreendentes!... 
  Os mais incontestáveis!... Os mais verdadeiros milagres que se tenham 
  feito na terra desde Jesus Cristo!... Como! milhares de hóstias aparecem 
  sobre altares onde não havia nenhuma, o vinho brota em cálices 
  vazios, e não é uma ilusão, é vinho, um vinho delicioso... 
  ouvem-se músicas celestes, exalam-se aromas do outro mundo... e finalmente 
  sangue... um verdadeiro sangue humano (foi examinado por médicos!), um 
  sangue de verdade, estou dizendo, goteja e por vezes jorra das hóstias 
  deixando nelas caracteres misteriosos! Estou lhe dizendo o que vi, ouvi, toquei, 
  provei! E o senhor quer que eu permaneça frio diante de uma autoridade 
  eclesiástica que acha mais cômodo negar tudo do que examinar qualquer 
  coisa...!
  " Com licença, meu senhor; é sobretudo em matéria 
  de religião que a autoridade nunca pode errar...
  Em religião, o bem é a hierarquia, e o mal é a anarquia; 
  a que se reduziria, com efeito, a influência do sacerdócio, se 
  o senhor coloca como princípio que é preciso acreditar no testemunho 
  dos sentidos mais do que nas decisões da Igreja? A Igreja não 
  é mais visível do que todos os seus milagres? Os que vêem 
  milagres e não vêem a Igreja são bem mais dignos de compaixão 
  do que os cegos, pois não lhes resta nem mesmo o recurso de se deixarem 
  conduzir...
  " Meu senhor, sei tanto quanto o senhor essas coisas. Mas Deus não 
  pode estar em desacordo consigo próprio. Não pode permitir que 
  a boa fé seja ludibriada, e a própria Igreja não poderia 
  decidir que sou cego quando tenho dois olhos... Ouça, eis o que se lê 
  nas cartas de Jan Hus, quadragésima terceira carta, no final:
  "Um doutor disse-me: "Em todas as coisas submeter-me-ia ao concílio, 
  tudo então seria bom e legítimo para mim." Acrescentou: "Se 
  o concílio dissesse que tendes apenas um olho, embora tenhais dois, ainda 
  assim seria preciso dizer que o concílio tem razão." Quando 
  o mundo inteiro, respondi, afirmasse tal coisa, enquanto tivesse o uso da razão, 
  não poderia concordar sem ferir minha consciência." Eu lhe 
  direi como Jan Hus: Antes de haver uma Igreja e concílios, há 
  uma verdade e uma razão.
  " Um momento, meu caro senhor. Antigamente o senhor era católico, 
  não é mais; as consciências são livres. Observarei 
  apenas que a instituição da infalibilidade hierárquica 
  em matéria de dogma é de modo bem diverso racional e bem mais 
  incontestavelmente verdadeira que todos os milagres do mundo. Aliás, 
  o que não se deve fazer para conservar a paz! Acredita o senhor que Jan 
  Hus não teria sido um homem bastante superior, se tivesse sacrificado 
  um de seus olhos à concórdia universal, ao invés de inundar 
  a Europa de sangue! Oh! Senhor, que a Igreja decida quando lhe aprouver que 
  sou caolho; só lhe peço uma graça, a de me dizer de qual 
  olho, para que eu possa fechá-lo e olhar através do outro, com 
  uma ortodoxia irrepreensível!
  " Confesso que não sou ortodoxo ao seu modo.
  " Estou percebendo. Mas voltemos aos prodígios! O senhor os viu, 
  tocou, sentiu, provou; mas, vejamos, exaltações à parte, 
  queira me contar um bem detalhado, bem circunstanciado, e que sobretudo seja 
  evidentemente um milagre. Estou sendo indiscreto ao lhe pedir isso?
  " De modo nenhum; mas qual escolherei? Há tantos! Ouça - 
  acrescentou Madrofle após um instante de reflexão e com um leve 
  tremor de emoção na voz -, o profeta está em Londres e 
  nós estamos aqui. Pois bem! se o senhor lhe pedisse, apenas em pensamento, 
  que lhe enviasse imediatamente a A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas 
  Levi 76
  comunhão e se, num lugar designado pelo senhor, em sua casa, numa peça 
  de roupa, num livro, o senhor encontrasse, ao voltar, uma hóstia, o que 
  diria?
  " Declararia esse fato inexplicável pelos meios usuais da crítica. 
  - Pois bem, senhor! - exclama então Madrolle triunfante - no entanto, 
  é isso que muitas vezes me acontece; quando quero, isto é, quando 
  estou preparado e quando espero ser digno! Sim, senhor, encontro a hóstia 
  quando a peço; eu a encontro real, palpável, mas freqüentemente 
  decorada com pequenos corações milagrosos que se acreditaria pintados 
  por Rafael.
  Eliphas Levi, que se sentia pouco à vontade para discutir fatos a que 
  se misturava uma espécie de profanação das coisas mais 
  veneradas, despediu-se do antigo escritor católico e saiu meditando sobre 
  a estranha influência desse Vintras, que modificara assim esta velha crença 
  e esta velha mente de sábio.
  Alguns dias depois, o cabalista Eliphas foi acordado muito cedo por um visitante 
  desconhecido. Era um homem de cabelos brancos, todo vestido de preto, a fisionomia 
  de um padre extremamente devoto, de aspecto, em suma, inteiramente respeitável.
  Esse eclesiástico estava munido de uma carta de recomendação 
  assim escrita:
  "Caro Mestre,
  Envio-lhe um velho sábio que deseja "arranhar" com o senhor 
  o hebraico da bruxaria. Receba-o como eu mesmo (quero dizer como eu mesmo o 
  recebi), desembaraçando-se dele da melhor maneira possível.
  Todo seu na sacrossanta Cabala.
  Ad. Desbarolles."
  " Senhor Abade - diz Eliphas sorrindo após haver lido -, estou à 
  sua inteira disposição e nada posso recusar ao amigo que me escreve, 
  então o senhor esteve com meu excelente discípulo Desbarolles?
  " Sim, senhor, e encontrei nele um homem muito amável e muito sábio. 
  O senhor e ele, acredito serem dignos da verdade que recentemente se manifestou 
  através de surpreendentes milagres e das revelações positivas 
  do arcanjo São Miguel.
  " O senhor nos deixa honrados. O prezado Desbarolles surpreendeu-o, então, 
  por sua ciência?
  " Oh! com certeza ele possui os segredos da quiromancia num grau bastante 
  notável; apenas com a leitura de minha mão contou-me quase toda 
  minha vida.
  " Ele é bem capaz disso. Mas entrou em detalhes?
  " O suficiente, senhor, para convencer-me de seus conhecimentos extraordinários.
  " Disse-lhe que o senhor é o antigo pároco de Mont-Louis, 
  na diocese de Tours? Que é o discípulo mais zeloso do extático 
  Eugène Vintras? E que se chama Charvoz? Tamanha reviravolta causou-lhe 
  um choque: o velho padre, a cada uma dessas três frases, dera um salto 
  na cadeira. Quando ouviu seu nome empalideceu e levantou-se como se fosse impulsionado 
  por uma mola.
  " O senhor é realmente um mágico? - exclamou ele. - Charvoz 
  é de fato meu nome, mas não é o
  que uso; faço-me chamar La Paraz...
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  77
  " Eu sei. La Paraz é o sobrenome de sua mãe. O senhor deixou 
  uma posição bastante invejável: a de pároco de um 
  cantão e de um encantador presbitério, para compartilhar da existência 
  agitada de um sectário...
  " Diga de um grande profeta!
  " Senhor, acredito inteiramente em sua boa fé. Mas vai me permitir 
  examinar um pouco a missão e o caráter de seu profeta.
  " Pois não, senhor, o exame, o grande dia, a luz da ciência, 
  eis o que pedimos. Venha a Londres e verá! Os milagres são permanentes.
  " Pode me dar, antes, alguns detalhes exatos e conscienciosos sobre os 
  milagres?
  " Oh! quantos quiser.
  E o velho padre começou imediatamente a contar coisas que todo o mundo 
  teria considerado impossíveis, mas que não fizeram o professor 
  de alta magia sequer franzir as sobrancelhas.
  Coisas como por exemplo:
  " Um dia, Vintras, num acesso de entusiasmo, pregava diante de seu altar 
  heterodoxo; vinte e cinco pessoas assistiam a esse sermão. Um cálice 
  vazio estava sobre o altar, cálice bem conhecido pelo abade Charvoz; 
  trouxera-o ele próprio de sua igreja de Mont-Louis, e tinha absoluta 
  certeza de que esse cálice sagrado não tinha nem conduto misterioso 
  nem fundo duplo. "Para vos provar", diz Vintras, "que é 
  o próprio Deus quem me inspira, ele me faz saber que o cálice 
  vai se encher com as gotas de seu sangue sob a aparência de vinho, e todos 
  vós podereis saborear o produto das vinhas do porvir, o vinho que devemos 
  beber com o Salvador no reino de seu pai..."
  " Tomado de espanto e medo - continua o abade Charvoz subo ao altar, pego 
  o cálice, olho no fundo: estava inteiramente vazio. Viro-o diante de 
  todos, depois volto a me ajoelhar ao pé do altar, segurando o cálice 
  entre as mãos... De repente ouve-se um leve ruído, como se tivesse 
  caído do teto uma gota de água no cálice, e uma gota de 
  vinho aparece no fundo. Todos os olhares voltam-se para mim, olha-se para o 
  teto, pois nossa simples capela estava armada num quarto pobre; no teto não 
  havia buraco nem fenda, nada se via cair, e no entanto o barulho da queda das 
  gotas multiplicava-se mais rápido e mais apressado... e o vinho brotava 
  do fundo do cálice para a borda. Quando o cálice ficou cheio, 
  passei-o lentamente sob os olhares da assembléia, depois o profeta molhou 
  aí seus lábios, e todos, um após o outro, provaram o vinho 
  milagroso. Qualquer lembrança de um sabor delicioso não poderia 
  dar a idéia de seu gosto. E o que lhe direi - acrescentou o abade Charvoz 
  - dos prodígios de sangue que nos surpreendem todos os dias. Milhares 
  de hóstias feridas e sangrentas refugiam-se em nossos altares. Os estigmas 
  sagrados aparecem diante de todos aqueles que os querem ver. As hóstias, 
  inicialmente brancas, marmorizam-se lentamente de caracteres e de corações 
  ensangüentados... Deve-se acreditar que Deus abandona aos prestígios 
  do demônio as coisas mais santas? ou antes de mais nada é preciso 
  adorar e crer que é chegada a hora da suprema e última revelação?
  O abade Charvoz, ao falar assim, tinha na voz aquela espécie de tremor 
  nervoso que Eliphas Levi já observara em Mandrolle. O mágico balançava 
  a cabeça com um ar pensativo; depois, de repente:
  " Senhor - diz ao abade -, o senhor traz consigo uma ou várias dessas 
  hóstias. Seja gentil deixando-me vê-Ias.
  " Senhor...
  " Eu sei que o senhor as tem; por que tentar negar?
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  78
  " Não o nego - diz o abade Charvoz -, mas o senhor me permitirá 
  não expor às investigações da incredulidade os objetos 
  da mais sincera e devotada crença.
  " Senhor Abade - diz gravemente Eliphas -, a incredulidade é a desconfiança 
  de uma ignorância quase certa de estar enganada. A ciência não 
  é incrédula. A princípio creio em sua convicção, 
  uma vez que o senhor aceitou uma vida de privações e mesmo de 
  reprovações por essa infeliz crença. Mostre-me, pois, suas 
  hóstias milagrosas e creia em todo o meu respeito pelos objetos de uma 
  sincera adoração.
  " Pois bem! - diz o abade Charvoz após ter ainda hesitado um pouco 
  -, vou mostrar-lhe.
  Então ele desabotoou o alto de seu colete negro e tirou um pequeno relicário 
  de prata, diante do qual pôs-se de joelhos com lágrimas nos olhos 
  e preces nos lábios; Eliphas ajoelhou-se perto dele, e o abade abriu 
  o relicário.
  Havia no relicário três hóstias, uma inteira, as duas outras 
  quase em pasta e como que amassadas com sangue.
  A hóstia inteira tinha no centro um coração em relevo dos 
  dois lados; um grumo de sangue moldado na forma de coração, e 
  que parecia ter-se formado na própria hóstia de modo inexplicável. 
  O sangue não poderia ter sido aplicado por fora, pois a coloração 
  por embebição deixara brancas as partes aderentes à superfície 
  exterior. A aparência do fenômeno era a mesma dos dois lados. O 
  mestre de magia foi tomado por um tremor involuntário.
  Essa emoção não escapou ao velho pároco que, tendo 
  adorado mais uma vez e fechado seu relicário, tirou do bolso um álbum 
  e entregou-o a Eliphas sem nada dizer. Eram cópias de todos os caracteres 
  sangrentos observados nas hóstias desde o começo dos êxtases 
  e dos milagres de Vintras. Havia corações de todos os tipos, emblemas 
  de todos os gêneros. Mas três sobretudo excitaram ao máximo 
  a curiosidade de Eliphas...
  " Senhor Abade - diz ele a Charvoz -, conhece estes três signos?
  " Não - disse ingenuamente o abade -, mas o profeta garante que 
  são da mais alta importãncia e que sua significação 
  oculta deverá ser conhecida logo, isto é, no final dos tempos.
  " Pois bem, senhor - diz solenemente o professor de magia - antes mesmo 
  do fim dos tempos vou explicar-lhe: estes três signos cabalísticos 
  são a assinatura do diabo!
  " É impossível! - exclama o velho padre.
  " É isso mesmo - continuou com firmeza Eliphas.
  Ora, eis que signos eram esses:
  1º - A estrela do microcosmo, ou o pentagrama mágico. É a 
  estrela de cinco pontas da maçonaria oculta, a estrela em que Agripa 
  desenhou a figura humana, a cabeça na ponta superior, os quatro membros 
  nas quatro outras. A estrela flamejante que, invertida, é o signo hieroglífico 
  do bode da magia negra, cuja cabeça pode, então, estar desenhada 
  na estrela, os dois chifres no alto, à direita e à esquerda as 
  orelhas, a barba embaixo. É o signo do antagonismo e da fatalidade. É 
  o bode da luxúria atacando o céu com seus chifres. É um 
  signo execrado mesmo no sabbat pelos iniciados de uma ordem superior.
  2º - As duas serpentes herméticas, porém as cabeças 
  e as caudas, ao invés de se juntarem em dois semicírculos paralelos, 
  estavam de fora, e não havia linha intermediária representando 
  o caduceu.
  Acima da cabeça das serpentes via-se o V fatal, o forcado tifoniano, 
  o caráter do inferno. À direita e
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  79
  à esquerda, os números sagrados III e VII relegados sobre a linha 
  horizontal que representa as coisas passivas e secundárias. O sentido 
  do caráter, portanto, era este:
  O antagonismo é eterno.
  Deus é a luta das forças fatais que criam sempre destruindo.
  As coisas religiosas são passivas e passageiras.
  A audácia delas se serve, a guerra delas se aproveita, e é através 
  delas que a discórdia se perpetua. 3º - Finalmente, o monograma 
  cabalístico de Jehova, o Iod e o He, porém invertidos, o que forma, 
  segundo os doutores da ciência oculta, a mais terrível de todas 
  as blasfêmias e significa, de qualquer modo que se leia:
  "Só a fatalidade existe: Deus e o espírito não são. 
  A matéria é tudo, e o espírito é apenas uma ficção 
  dessa mesma matéria em demência. A forma é mais que a idéia, 
  a mulher mais que o homem, o prazer mais que o pensamento, o vício mais 
  que a virtude, a multidão mais que seus chefes, os filhos mais que seus 
  pais, a loucura mais que a razão!"
  Eis o que estava escrito em caracteres de sangue nas hóstias supostamente 
  milagrosas de Vintras! Damos nossa palavra de honra de que todos os fatos acima 
  enunciados são tais como os relatamos e de que nós mesmos vimos 
  e explicamos os caracteres, segundo a verdadeira ciência mágica 
  e as verdadeiras chaves da Cabala.
  O discípulo de Vintras comunicou-nos também a descrição 
  e o desenho das vestes pontificais dadas, dizia ele, pelo próprio Jesus 
  Cristo ao pretenso profeta durante um de seus sonos extáticos. Vintras 
  mandou confeccionar essas vestes e enfeita-se com elas para fazer seus milagres. 
  São vermelhas. Ele deve trazer na fronte uma cruz em forma de linga, 
  ter um bastão pastoral encimado por uma mão, cujos dedos estão 
  todos fechados, à exceção do polegar e do auricular. Ora, 
  tudo isso é diabólico por excelência, e não é 
  uma coisa verdadeiramente maravilhosa essa intuição dos signos 
  de uma ciência perdida? Pois foi a alta magia que, apoiando o universo 
  sobre as duas colunas de Hermes e de Salomão, dividiu o mundo metafísico 
  em duas zonas intelectuais, uma branca e luminosa encerrando as idéias 
  positivas, a outra negra e obscura contendo as idéias negativas, e que 
  deu à noção sintética da primeira o nome de Deus, 
  à síntese da outra o nome do diabo, ou de Satã.
  O signo do linga trazido na fronte é, na Índia, a marca distintiva 
  dos adoradores de Shiva, o destruidor; sendo esse signo o do grande arcano mágico 
  que detém o mistério da geração universal, trazê-lo 
  sobre a fronte é fazer profissão de impudor dogmático. 
  Ora, dizem os orientais, no dia em que não houver mais pudor no mundo, 
  e este estiver abandonado à devassidão, que é estéril, 
  logo acabará por falta de mães. O pudor é a aceitação 
  da maternidade. A mão com os três grandes dedos fechados expressa 
  a negação do ternário e a afirmação das únicas 
  forças naturais.
  Os antigos hierofantes, como vai explicar nosso sábio e espirituoso amigo 
  Desbarolles num belo
  livro, haviam feito da mão humana o resumo da ciência mágica. 
  O indicador, para eles, representava
  Júpiter; o grande dedo ou dedo médio, Saturno; o anular, Apolo 
  ou o Sol. Para os egípcios, o dedo
  médio era Ops, o indicador, Osíris e o anular, Hórus; o 
  polegar representava a força geradora, e o
  auricular, a habilidade insinuante. A mão mostrando apenas o polegar 
  e o auricular equivale, em
  língua hieroglífica sagrada, à afirmação 
  exclusiva da paixão e da habilidade. É a tradução 
  abusiva e
  material desta grande fala de Santo Agostinho: "Amai e fazei o que quiserdes." 
  Comparai agora esse
  signo à doutrina de Madrolle: o ato de amor mais imperfeito e aparentemente 
  mais condenável vale
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  80
  mais do que a melhor das preces. E vós vos perguntareis qual força 
  é essa que, independentemente da vontade e da maior ou menor ciência 
  dos homens (pois Vintras é um homem sem letras e sem instrução), 
  formula seus dogmas com signos enterrados nos destroços do antigo mundo, 
  reencontra os mistérios de Tebas e de Elêusis, e escreve-nos os 
  mais doutos devaneios da Índia com os alfabetos ocultos de Hermes.
  Que força é essa? Eu vos direi. Mas tenho ainda muitos outros 
  prodígios a vos contar, e este trabalho é, digamos, como uma instrução 
  jurídica. Devemos antes de mais nada completá-la. No entanto, 
  ser-nos-á permitido, antes de passar a outros relatos, transcrever aqui 
  uma página de um iluminado alemão, Ludwig Tieck.
  "Se, por exemplo, como narra uma antiga tradição, uma parte 
  dos anjos criados não tardou em decair, e se foram precisamente, como 
  é dito ainda, os mais brilhantes, pode-se depreender dessa queda apenas 
  que eles buscavam um caminho novo, uma outra atividade, outras ocupações 
  e uma outra vida, ao contrário daqueles espíritos ortodoxos, ou 
  mais passivos, que permaneceram na região que lhes era destinada e não 
  fizeram nenhum uso da liberdade, seu apanágio comum. Sua queda foi essa 
  gravidade da forma que agora chamamos realidade, e que é a reabsorção 
  do espírito universal nos abismos. É assim que a morte conserva 
  e reproduz a vida, é assim que a vida é noiva da morte... Compreendeis 
  agora o que é Lúcifer? Não é o gênio mesmo 
  do antigo Prometeu, essa força que impulsiona o mundo, a vida, o próprio 
  movimento, e que regula o curso das forças sucessivas? Essa força, 
  por sua resistência, equilibrou o princípio criador. Foi assim 
  que os Eloim criaram o mundo. Quando em seguida os homens foram colocados na 
  terra, pelo Senhor, como espíritos intermediários, em seu entusiasmo 
  que os levava a investigar a natureza e suas profundezas, abandonaram-se à 
  influência daquele soberbo e poderoso gênio, e quando num doce enlevo 
  precipitaram-se na morte, para aí encontrar a vida, começaram 
  então a existir de modo verdadeiro, natural e como convém às 
  criaturas."
  Esta página não necessita de comentário e explica o suficiente 
  as tendências do que se denomina espiritualismo, ou a doutrina espírita.
  Há muito tempo já essa doutrina, ou essa antidoutrina, trabalha 
  o mundo para precipitá-lo numa anarquia universal. Porém a lei 
  de equilíbrio nos salvará, e o grande movimento de reação 
  já começou.
  Retomemos o relato dos fenômenos.
  Um operário apresentou-se um dia na casa de Eliphas Levi. Era um homem 
  de uns cinqüenta anos, alto, de olhar direto e que falava de modo bastante 
  sensato. Perguntado sobre o motivo de sua visita, respondeu:
  " O senhor deve saber, venho pedir-lhe e suplicar-lhe que me devolva o 
  que perdi.
  Devemos dizer, para sermos sinceros, que Eliphas nada sabia sobre esse visitante 
  nem sobre o que ele pudesse ter perdido. Assim, respondeu-lhe:
  " Acredita-me muito mais bruxo do que na realidade sou; não sei 
  quem é nem o que procura, portanto, se acredita que lhe possa ser útil 
  em alguma coisa, é necessário que se explique e esclareça 
  o seu pedido.
  " Pois bem! uma vez que não quer me compreender, reconhecerá 
  pelo menos isso - disse então o desconhecido, tirando do bolso um pequeno 
  livro negro e roto. Era o grimório do papa Honório.
  Uma palavra sobre esse pequeno livro tão desacreditado.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  81
  O grimório de Honório compõe-se de uma constituição 
  apócrifa de Honório II para a evocação e o governo 
  dos espíritos; e mais, de algumas receitas supersticiosas... Era o manual 
  dos maus padres que exerciam a magia negra durante os mais tristes períodos 
  da Idade Média. Encontram-se aí ritos sangrentos misturados a 
  profanações da missa e das espécies consagradas, fórmulas 
  de bruxaria e de malefícios, e também práticas que só 
  a estupidez pode admitir e a perfídia aconselhar. Enfim, é um 
  livro completo em seu gênero; assim, tornou-se muito raro nas livrarias, 
  e os apreciadores fazem seu preço subir muito nos leilões.
  " Meu caro senhor - disse o operário suspirando -, desde a idade 
  de seis anos, não deixei uma única vez de fazer meu serviço. 
  Este livro não me deixa, e sigo rigorosamente todas as prescrições 
  que ele contém. Por que então os que me visitavam abandonaram-me? 
  Eli, Eli, Lamma...
  " Pare - disse Eliphas -, não parodie as mais formidáveis 
  palavras que uma agonia já fez o mundo ouvir! Quais são os seres 
  que o visitavam pelo poder deste livro horrível? Conhece-os? Prometeu-lhes 
  alguma coisa? Assinou um pacto?
  " Não - interrompeu o proprietário do grimório -, 
  não os conheço e não assumi com eles nenhum compromisso. 
  Sei apenas que entre eles os chefes são bons, os intermediários 
  alternativamente bons e maus; os inferiores maus, mas não cegamente e 
  sem que lhes seja possível fazer melhor. Aquele a quem evoquei e que 
  freqüentemente me apareceu pertence à hierarquia mais elevada, pois 
  tinha boa aparência, era bem vestido e sempre me dava respostas favoráveis. 
  Mas perdi uma página do meu grimório, a primeira, a mais importante, 
  a que trazia a assinatura do espírito, e, desde então, não 
  aparece mais quando o chamo. Sou um homem perdido. Estou nu como Jó, 
  não tenho mais força nem coragem. Oh! mestre, eu lhe suplico, 
  o senhor a quem a uma única palavra, a um único sinal os espíritos 
  obedecerão, tenha piedade de mim e devolva-me o que perdi!
  " Dê-me seu grimório - disse Eliphas. - Que nome dava ao espírito 
  que lhe aparecia?
  " Chamava-o Adonai.
  " Em que língua era sua assinatura?
  " Ignoro, mas suponho que fosse hebraico.
  " Tome - disse o professor de alta magia após haver traçado 
  duas palavras hebraicas no começo e no final do livro. - Eis duas assinaturas 
  que os espíritos das trevas nunca falsificarão. Vá em paz, 
  durma bem e não evoque mais os fantasmas.
  O operário retirou-se.
  Oito dias depois voltou a procurar o homem de ciência.
  " O senhor devolveu-me a esperança e a vida, minha força 
  voltou em parte, posso, com as assinaturas que me deu, aliviar a dor dos que 
  sofrem e livrar os obcecados, mas ele não posso mais ver, e, enquanto 
  não o vir de novo, estarei triste até a morte. Antigamente, ele 
  estava sempre perto de mim, tocava-me por vezes e acordava-me à noite 
  para me dizer tudo o que eu precisava saber. Mestre, eu lhe suplico, faça 
  com que o veja de novo.
  " Quem?
  " Adonai.
  " Sabe quem é Adonai?
  " Não, mas gostaria de revê-lo.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  82
  " Adonai é invisível.
  " Eu o vi.
  " Ele não tem forma.
  " Eu o toquei.
  " Ele é infinito.
  " É mais ou menos do meu tamanho.
  " Os profetas dizem que a orla de sua roupa, do Oriente ao Ocidente, varre 
  as estrelas da manhã.
  " Tinha um sobretudo muito limpo e a roupa muito branca.
  " A Sagrada Escritura diz ainda que não se pode vê-lo sem 
  morrer.
  " Tinha um rosto bom e jovial.
  " Mas como o senhor procedia para obter essas aparições?
  " Ora! Fazia tudo o que está indicado no grande grimório.
  " O quê! mesmo o sacrifício de sangue?
  " Sem dúvida.
  " Infeliz! mas quem era a vítima?
  A essa pergunta, o operário teve um leve tremor, empalideceu, seu olhar 
  perturbou-se.
  " Mestre, o senhor sabe melhor do que eu - disse humildemente e em voz 
  baixa. - Oh! custou-me muito; sobretudo a primeira vez, num único golpe 
  com a faca mágica cortar a garganta dessa criatura inocente! Uma noite, 
  tinha acabado de cumprir os ritos fúnebres, estava sentado dentro do 
  círculo, na soleira interna da minha porta, e a vítima acabava 
  de se consumir num grande fogo feito com álamos e ciprestes... De repente, 
  perto de mim... vi, ou antes senti, que ele passava... Ouvi um lamento dilacerante... 
  parecia chorar, e a partir desse momento tinha a impressão de ouvi-lo 
  sempre. Eliphas levantara-se e olhava fixamente seu interlocutor. Teria diante 
  de si um louco perigoso capaz de repetir as atrocidades do Senhor de Retz? No 
  entanto, a aparência desse homem era suave e honesta. Não, isso 
  não era possível.
  " Mas enfim, essa vítima... diga-me claramente o que era. O senhor 
  supõe que eu já saiba, e talvez saiba mesmo, mas tenho razões 
  para querer que me diga.
  " Era, de acordo com o ritual mágico, um cabritinho de um ano, virgem 
  e sem defeitos.
  " Um cabrito de verdade?
  " Sem dúvida. Acredite, não era nem um brinquedo de criança 
  nem um animal empalhado.
  Eliphas respirou.
  "Ainda bem!" pensou, "este homem não é um bruxo 
  digno da fogueira. Não sabe que os abomináveis autores dos grimórios, 
  quando falavam do cabrito virgem, queriam dizer uma criancinha."
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  83
  " Pois bem! - disse então àquele que o consultava -, dê-me 
  detalhes sobre essas visões. O que me conta interessa-me muitíssimo.
  O bruxo, pois é preciso chamá-lo pelo seu nome, o bruxo contou-lhe 
  então uma série de fatos estranhos de que duas famílias 
  haviam sido testemunhas, e esses fatos eram precisamente idênticos aos 
  fenômenos do senhor Home: mãos que saíam das paredes, agitações 
  de móveis, aparições fosforescentes. Um dia, o temerário 
  aprendiz de mágico ousara chamar Astaroth, e vira aparecer um monstro 
  gigantesco que tinha o corpo de um porco e a cabeça tirada de um colossal 
  esqueleto de boi. Mas tudo isso era contado num tom de verdade, com uma certeza 
  de ter visto, que excluía qualquer dúvida sobre a boa fé 
  e a inteira convicção do narrador. Eliphas, que é artista 
  em magia, encantou-se com esse achado. No século XIX, um verdadeiro bruxo 
  da Idade Média, um bruxo ingênuo e convicto! Um bruxo que viu Satã 
  sob o nome de Adonai, Satã vestido como um burguês e Astaroth sob 
  sua verdadeira forma diabólica! que obra de arte! que tesouro de arqueologia!
  " Meu amigo - disse a seu novo discípulo -, quero ajudá-lo 
  a encontrar o que diz ter perdido. Pegue meu livro, observe as prescrições 
  do ritual e venha ver-me daqui a oito dias. Oito dias depois, nova conferência, 
  e então o operário declarou que inventou uma máquina de 
  salvamento da maior importância para a marinha. A máquina está 
  perfeitamente montada; falta apenas uma coisa... não funciona: um defeito 
  imperceptível está no mecanismo. Que defeito é esse? Só 
  o espírito de malícia poderia dizer. É, pois, absolutamente 
  necessário evocá-lo!...
  " Cuidado - disse Eliphas -; antes, diga durante nove dias esta invocação 
  cabalística (e entregou-lhe uma folha manuscrita). Comece esta noite, 
  e volte amanhã para me dizer o que viu, pois esta noite o senhor terá 
  uma manifestação.
  No dia seguinte, nosso homem não faltou ao encontro.
  " Acordei de repente, mais ou menos à uma hora da manhã. 
  Vi diante de minha cama uma grande luz, e dentro dessa luz um braço de 
  sombra que passava e repassava diante de mim como para magnetizar-me. Então, 
  tornei a dormir, e, alguns instantes depois, tendo novamente acordado, revi 
  a mesma luz, mas ela mudara de lugar. Passara da esquerda para a direita, e 
  sobre o fundo luminoso distingui a silhueta de um homem que cruzava os braços 
  e me olhava.
  " Como era esse homem?
  " Aproximadamente da sua estatura e do seu peso.
  " Está bem. Vá e continue a fazer o que eu lhe disse.
  Passaram-se os nove dias; ao final desse tempo, nova visita do adepto; mas dessa 
  vez muito feliz e agradecido. Ao ver ao longe Eliphas:
  " Obrigado, mestre! - exclamou -, a máquina funciona, pessoas que 
  eu não conhecia vieram colocar à minha disposição 
  o capital de que necessitava para terminar meu empreendimento, reencontrei a 
  paz do sono, e tudo isso graças ao seu poder.
  " Diga antes graças à sua fé e à sua docilidade, 
  e agora adeus, preciso trabalhar... E então? por que este ar suplicante, 
  o que ainda quer de mim?
  " Oh! se o senhor quisesse!...
  " Se quisesse o quê? Não obteve tudo o que pediu, e até 
  mais do que pediu, pois o senhor não havia falado em dinheiro.
  " Sim, certamente, disse o outro suspirando, mas gostaria muito de revê-lo!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  84
  " Incorrigível!
  Algumas semanas depois, o professor de alta magia foi acordado mais ou menos 
  às duas horas da manhã por uma dor de cabeça aguda. Durante 
  alguns instantes, receou uma congestão cerebral, levantou-se, acendeu 
  a lâmpada, abriu a janela, passeou pelo seu gabinete de estudos, depois, 
  acalmado pelo ar fresco da manhã, voltou a deitar-se e adormeceu profundamente; 
  teve, então, um pesadelo; viu, com uma aparência terrível 
  de realidade, o gigante de cabeça de boi descarnada de que lhe falara 
  o mecânico. Esse monstro perseguia-o e lutava com ele. Quando acordou 
  já era dia e alguém batia à sua porta. Eliphas levantou-se, 
  jogou uma roupa sobre o corpo e foi abrir: era o operário.
  " Mestre - disse entrando apressadamente e com um ar alarmado -, como o 
  senhor está se sentindo?
  " Muito bem - respondeu Eliphas.
  " Mas essa noite, às duas horas da manhã, o senhor não 
  correu perigo?
  Eliphas não sabia do que se tratava e já não se lembrava 
  de sua indisposição da noite.
  " Um perigo? não, nenhum que eu saiba.
  " O senhor não foi atacado por um fantasma monstruoso que tentava 
  estrangulá-lo? O senhor não sofreu? Eliphas lembrou-se.
  " Sim, certamente tive um começo de apoplexia e um sonho horrível. 
  Mas como sabe disso?
  Na mesma hora, uma mão invisível bateu-me com força no 
  ombro e acordou-me em sobressalto.
  Sonhava, então, que o via lutando com Astaroth. Sentei-me na cama e uma 
  voz disse-me ao ouvido:
  "Levante-se e vá em socorro de seu mestre; ele está em perigo." 
  Levantei-me precipitadamente. Mas, em primeiro lugar, para onde era preciso 
  correr? Que perigo o ameaçava? Era em sua casa ou em outra parte? A voz 
  nada dissera sobre isso. Tomei a decisão de esperar o nascer do sol, 
  e, desde que o dia clareou, vim em seu auxílio, e aqui estou.
  " Obrigado, meu amigo - disse-lhe o mágico estendendo-lhe a mão, 
  Astaroth é um bufão desagradável, e essa noite um pouco 
  de sangue subiu-me à cabeça, apenas isto. Agora estou perfeitamente 
  bem. Pode, portanto, ficar tranqüilo e voltar ao trabalho. Por mais estranhos 
  que sejam os fatos que acabamos de contar, resta-nos revelar um drama fúnebre 
  ainda bem mais extraordinário.
  Trata-se do fato cruento, que no início deste ano, mergulhou no luto 
  e no estupor Paris e toda a cristandade; fato a que ninguém suspeitou 
  que a magia negra não fosse estranha.
  Eis o que aconteceu:
  Durante o inverno, no início do ano passado, um livreiro informou ao 
  autor de Dogma e Ritual da Alta Magia que um eclesiástico procurava seu 
  endereço e demonstrava o maior desejo de vê-lo. Eliphas Levi não 
  se sentiu, de início, tomado de confiança por esse desconhecido 
  a ponto de expor-se sem precauções à sua visita; indicou 
  uma casa amiga, onde deveria estar com seu fiel amigo Desbarolles. Na hora combinada 
  e no dia marcado, eles foram à casa da senha A..., e encontraram o eclesiástico 
  que já há alguns instantes os esperava.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  85
  Era um moço bastante magro, de nariz pontiagudo e arqueado, de olhos 
  azuis e ternos. Sua testa ossuda e saliente era mais larga do que alta: a cabeça 
  era alongada atrás, os cabelos lisos e curtos, repartidos de lado, eram 
  de um loiro acinzentado, pendendo para o castanho claro, mas com uma nuança 
  particular e desagradável. A boca era sensual e batalhadora; seus modos, 
  aliás, eram afáveis, a voz doce e a fala algumas vezes um pouco 
  embaraçada. Perguntado por Eliphas Levi sobre o objetivo sua visita, 
  respondeu que estava à procura do grimório de Honório e 
  que vinha informar-se com o professor de ciências ocultas sobre o modo 
  de se obter esse pequeno livro negro, que se tornara praticamente impossível 
  de encontrar.
  " Eu daria cem francos por um exemplar desse grimório - dizia ele.
  " A obra em si nada vale - disse Eliphas. - É uma constituição, 
  que se supõe ser de Honório II, que o senhor talvez encontre citada 
  por algum colecionador de constituições apócrifas; o senhor 
  poderia procurar na biblioteca.
  " Farei isso, pois em Paris passo quase todo o meu tempo na bibliotecas 
  públicas.
  " Não está ocupado no ministério de Paris.
  " Não, no momento não. Estive trabalhando durante algum tempo 
  na paróquia São Germano de Auxerre.
  " E, pelo que vejo, ocupa-se agora com pesquisas curiosas sobre as ciências 
  ocultas.
  " Não exatamente; mas persigo a realização de uma 
  idéia... Tenho alguma coisa a fazer.
  " Suponho que essa alguma coisa não seja uma operação 
  de magia negra; sabe, como eu, senhor abade, que a Igreja sempre condenou e 
  ainda condena severamente tudo o que se relaciona com essas práticas 
  proibidas.
  Um pálido sorriso, marcado por uma espécie de ironia sarcástica, 
  foi toda a resposta do abade, e a conversa interrompeu-se.
  No entanto, o quiromante Desbarolles observava atentamente a mão do padre; 
  este percebeu e seguiu-se, naturalmente, uma explicação, o abade 
  então ofereceu de bom grado sua mão ao experimentador. Desbarolles 
  franziu as sobrancelhas e pareceu embaraçado. A mão era úmida 
  e fria, os dedos lisos e espatulados; o monte de Vênus, ou a parte da 
  palma da mão que corresponde ao polegar, de um desenvolvimento bastante 
  notável, a linha da vida curta e interrompida, cruzes no centro da mão, 
  estrelas no monte da Lua.
  " Senhor abade - disse Desbarolles -, se o senhor não tivesse uma 
  sólida instrução religiosa, tornar-se-ia um perigoso sectário, 
  pois, por um lado, é inclinado ao misticismo mais exaltado e, pelo outro, 
  à obstinação mais concentrada e menos comunicativa que 
  possa existir no mundo. O senhor procura muito, mas imagina mais ainda, e como 
  não confia a ninguém suas imaginações elas poderiam 
  atingir proporções que as transformariam em suas verdadeiras inimigas. 
  Seus hábitos são contemplativos e um pouco indolentes, mas é 
  uma sonolência cujos despertares podem ser dignos de temor. É levado 
  a uma paixão que seu estado... Mas, perdoe-me, senhor abade, receio ter 
  ultrapassado os limites da discrição.
  " Diga tudo, senhor, posso ouvir tudo e desejo tudo saber.
  " Pois bem! se, como não duvido, o senhor dedica à caridade 
  toda a atividade inquieta que as paixões do coração lhe 
  dariam, deve ser muitas vezes bendito por suas boas obras. Mais uma vez o abade 
  deu aquele sorriso duvidoso e fatal que dava ao seu pálido rosto tão 
  singular expressão.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  86
  Levantou-se e despediu-se sem ter dito seu nome e sem que ninguém se 
  tivesse lembrado de perguntá-lo.
  Eliphas e Desbarolles reconduziram-no até a escada em respeito à 
  sua dignidade de padre. Perto da escada, voltou-se e disse lentamente:
  " Em breve os senhores ouvirão dizer algo... Ouvirão falar 
  de mim, acrescentou sublinhando cada palavra. Depois saudou-os com um gesto 
  de cabeça e com a mão, virou-se sem acrescentar uma só 
  palavra e desceu a escada.
  Os dois amigos retomaram à casa da senhora A...
  " Eis aí um singular personagem - disse Eliphas. - Pareceu-me ver 
  Pierrot des Furnambules no papel de um traidor. O que nos disse ao partir parece-se 
  bastante com uma ameaça.
  " O senhor intimidou-o - disse a senhora A... - Antes de sua chegada, ele 
  começava a expor todo seu pensamento, mas o senhor falou-lhe de consciência 
  e das leis da Igreja, ele não ousou confessar o que queria.
  " Ora essa! o que ele queria então?
  " Ver o diabo.
  " Pensaria, por acaso, que o trago no bolso?
  " Não, mas sabe que o senhor dá aulas de cabala e de magia, 
  esperava que o ajudasse em seus empreendimentos. Contou-nos, à minha 
  filha e a mim, que em seu presbitério, no campo, já fizera uma 
  noite uma evocação com o auxílio de um grimório 
  vulgar. Então, disse ele, um redemoinho pareceu abalar o presbitério, 
  as vigas rangeram, a madeira do forro estalou, as portas balançaram-se, 
  as janelas abriram-se com estrondo, e ouviram-se assovios em todos os cantos 
  da casa. Esperava, então, a visão formidável, mas nada 
  viu, nenhum monstro se apresentou; numa palavra, o diabo não quis aparecer. 
  É por isso que ele procura o grimório de Honório, pois 
  espera encontrar aí conjurações mais fortes e ritos mais 
  eficazes.
  " Realmente! esse homem então é um monstro... ou um louco.
  " Deve estar apenas ingenuamente apaixonado - disse Desbarolles. - Está 
  tormentado por alguma paixão absurda e não espera absolutamente 
  nada, a menos que o diabo se intrometa.
  " Mas como, então, ouviremos falar dele?
  " Quem sabe? Talvez tencione seqüestar a rainha da Inglaterra ou a 
  mãe do sultão.
  A conversa parou por aí, e um ano inteiro se passou sem que nem a senhora 
  A.... nem Desbarolles, nem Eliphas ouvissem falar do jovem padre desconhecido.
  Na noite do primeiro para o segundo dia de janeiro do ano de 1857, Eliphas Levi 
  acordou sobressaltado com as emoções de um sonho estranho e fúnebre. 
  Parecia-lhe estar num quarto gótico em ruínas muito semelhante 
  à capela abandonada de um velho castelo. Uma porta oculta por um pano 
  negro dava para esse quarto, atrás do pano adivinhava-se a luz tênue 
  e avermelhada dos círios, e parecia a Eliphas que, levado por uma curiosidade 
  cheia de terror, aproximava-se do pano negro... Então o pano entreabriu-se, 
  uma mão estendeu-se e agarrou o braço de Eliphas. Ele não 
  viu ninguém, mas ouviu uma voz baixa que dizia em seu ouvido:
  " Venha ver seu pai que vai morrer!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  87
  O magista acordou com o coração palpitante e a testa banhada de 
  suor. "O que quer dizer esse sonho?", pensou. "Meu pai morreu 
  há muito tempo; por que me dizem que ele vai morrer, e por que essa advertência 
  perturbou meu coração?" Na noite seguinte, o mesmo sonho 
  voltou com as mesmas circunstâncias, e Eliphas Levi acordou mais uma vez 
  ouvindo repetir ao seu ouvido:
  " Venha ver seu pai que vai morrer!
  Essa repetição de pesadelos impressionou Eliphas penosamente: 
  ele aceitara para 3 de janeiro um convite para jantar em companhia alegre, escreveu 
  para desculpar-se, achando-se pouco disposto para a alegria de um banquete de 
  artistas. Permaneceu, então, em seu gabinete de estudos; o tempo estava 
  carregado; ao meio-dia, recebeu a visita de um de seus discípulos de 
  magia, o visconde de M... A chuva caiu, então, com tal abundância 
  que Eliphas ofereceu seu guarda-chuva ao visconde, que recusou-se a aceitá-lo. 
  Seguiu-se uma discussão de polidez, cujo resultado foi que Eliphas saiu 
  para reconduzir o visconde. Enquanto estavam fora, a chuva cessou, o visconde 
  encontrou um carro, e Eliphas, ao invés de voltar para casa, atravessou 
  maquinalmente o Luxemburgo, saiu pelo portão que dá para a Rua 
  do Inferno, e encontrou-se diante do Panteão. Uma dupla fileira de barracas 
  improvisadas para a novena de Santa Genoveva indicava aos peregrinos o caminho 
  de Santo Estêvão do Monte. Eliphas, cujo coração 
  estava triste e, por conseguinte, disposto às orações, 
  seguiu essa via e entrou na Igreja. Podiam ser, nesse momento, quatro horas 
  da tarde.
  A igreja estava cheia de fiéis, e o ofício realizava-se com um 
  grande recolhimento e uma solenidade extraordinária. Os estandartes das 
  paróquias da cidade e do subúrbio atestavam a veneração 
  pública por essa virgem que salvou Paris da fome e das invasões. 
  No fundo da igreja, o túmulo de Santa Genoveva resplandecia de luz. Cantavam-se 
  as ladainhas e a procissão saía do coro. Após a cruz, acompanhada 
  de seus acólitos e seguida pelos meninos do coro, vinha o estandarte 
  de Santa Genoveva; depois caminhavam em duas filas as senhoras genovevinas, 
  vestidas de preto com um véu branco na cabeça, uma fita azul ao 
  pescoço e a medalha da legenda, um círio na mão encimado 
  por uma pequena lanterna gótica, como as que a tradição 
  atribui às imagens da santa. Pois, nos antigos legendários, Santa 
  Genoveva é sempre representada com uma medalha ao pescoço, a que 
  lhe deu São Germano de Auxerre, e segurando um círio que o demônio 
  esforça-se em apagar, mas que é preservado do sopro do espírito 
  imundo por um pequeno tabernáculo milagroso. Após as senhoras 
  genovevinas vinha o clero, depois, finalmente, aparecia o venerável arcebispo 
  de Paris, mitrado de branco, portando uma capa levantada de cada lado por dois 
  grandes vigários; o prelado, apoiando-se em seu báculo, caminhava 
  lentamente e abençoava à direita e à esquerda a multidão 
  que se ajoelhava à sua passagem. Eliphas via o arcebispo pela primeira 
  vez e observou os traços de seu rosto. Expressavam a bonomia e a doçura; 
  mas podia-se notar aí a expressão de um grande cansaço 
  e mesmo de um sofrimento nervoso penosamente dissimulado. A procissão 
  desceu até o ádrio da igreja atravessando a nave, subiu pela nave 
  à esquerda da porta de entrada e chegou ao túmulo de Santa Genoveva; 
  depois voltou pela nave da direita continuando a cantar ladainhas.
  Um grupo de fiéis seguia a procissão e caminhava logo atrás 
  do arcebispo. Eliphas misturou-se a esse grupo para atravessar mais facilmente 
  a multidão que ia se formar novamente e para alcançar a porta 
  da igreja, pensativo e enternecido com essa piedosa solenidade.
  A frente da procissão já tornava a entrar no coro, o arcebispo 
  chegava à grade da nave: aí o vão era
  muito estreito para que três pessoas pudessem passar de frente; o arcebispo, 
  portanto, estava adiante
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  88
  e os dois grandes vigários atrás sempre segurando as extremidades 
  de sua capa, que encontrava-se, assim, jogada e puxada para trás, de 
  modo que o prelado apresentava seu peito descoberto e protegido apenas pelos 
  bordados cruzados da estola.
  Então, os que estavam atrás do arcebispo viram-no estremecer, 
  e ouviu-se uma interpelação feita em voz alta, todavia sem clamor. 
  O que fora dito? Parecia ter sido: Abaixo as deusas! mas acreditava-se ter ouvido 
  mal, tão deslocada e sem sentido parecia essa frase. No entanto, a exclamação 
  repetiu-se duas ou três vezes, alguém gritou: "Salvem o arcebispo!" 
  outras vozes responderam: "Às armas!" A multidão dispersou-se, 
  então, revirando as cadeiras e as barreiras, precipitou-se para as portas 
  gritando. Eram choros de criança, gritos de mulheres, e Eliphas, arrastado 
  pela multidão, foi de certo modo carregado para fora da igreja; mas os 
  últimos olhares que pôde lançar aí dentro depararam-se 
  com um terrível e indelével quadro. No meio de um círculo 
  alargado pelo terror dos que o rodeavam, o prelado estava em pé, só, 
  sempre apoiado em seu báculo e sustentado pela rigidez de sua capa, que 
  os grandes vigários haviam soltado, e que pendia agora até o chão.
  A cabeça do arcebispo estava um pouco inclinada, os olhos e a mão 
  que não segurava o báculo estavam erguidos para o céu. 
  Sua atitude era a que Eugênio Delacroix deu ao Bispo de Liège assassinado 
  por bandidos do Javali das Ardenas; havia no seu gesto toda a epopéia 
  do martírio, era uma aceitação e uma oferenda, uma prece 
  por seu povo e um perdão para o seu algoz. A tarde caía, e a igreja 
  começava a escurecer. O arcebispo, com os braços erguidos para 
  o céu e iluminado por um último raio de luz vindo dos caixilhos 
  da nave, destacava-se contra um fundo sombrio, onde se distinguia apenas um 
  pedestal sem estátua em que estavam escritas estas duas palavras da paixão 
  de Cristo: ECCE HOMO, e mais adiante, no fundo, uma pintura apocalíptica 
  representando os quatro flagelos prontos a lançarem-se sobre o mundo, 
  e os turbilhões do inferno seguindo os rastros poeirentos do cavalo pálido 
  da morte.
  Diante do arcebispo, um braço erguido, que se desenhava na sombra como 
  uma silhueta infernal, segurava e brandia uma faca: soldados avançavam 
  com a espada em punho. E enquanto todo esse tumulto acontecia no ádrio 
  da igreja, o canto das ladainhas continuava no coro como a harmonia das esferas 
  celestes perpetua-se, atenta às nossas revoluções e às 
  nossas angústias. Eliphas Levi fora arrastado para fora pela multidão. 
  Saíra pela porta da direita. Quase no mesmo instante, a porta da esquerda 
  abria-se com violência, e um grupo furioso precipitava-se para fora da 
  igreja.
  Esse grupo girava em volta de um homem que cinqüenta braços pareciam 
  segurar, que cem punhos estendidos queriam socar.
  Esse homem, mais tarde, queixou-se de ter sido maltratado pelos soldados; mas, 
  tanto quanto se podia observar nesse tumulto, os soldados protegiam-no contra 
  a exasperada multidão. Mulheres corriam em seu encalço gritando: 
  Matem-no! - Mas o que ele fez? - diziam outras vozes.
  " O miserável! deu um soco no arcebispo, diziam as mulheres. Depois 
  outras pessoas saíram da igreja, e as versões contraditórias 
  entrecruzavam-se.
  " O arcebispo teve medo e passou mal - diziam alguns.
  " Ele morreu - respondiam outros.
  " Viram a faca? - acrescentava um novo interlocutor.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  89
  " Era longa como um sabre, e o sangue escorria na lâmina.
  Esse pobre monsenhor perdeu um de seus sapatos - observava uma velha senhora 
  juntando as mãos.
  " Não foi nada! Não foi nada! - veio anunciar, então, 
  uma locadora de cadeiras.
  " Podem voltar para a igreja: monsenhor não está ferido, 
  acabam de declará-lo no púlpito.
  A multidão, então, fez um movimento para retornar à igreja.
  " Saiam! Saiam! - disse nesse mesmo instante a voz grave e desolada de 
  um padre.
  " O ofício não pode prosseguir. A igreja será fechada; 
  está profanada.
  " Como está o arcebispo? - disse então um homem.
  " Senhor - respondeu o padre -, o arcebispo está morrendo, e talvez 
  nesse momento mesmo em que falamos ele esteja morto!
  A multidão dispersou-se consternada, para ir divulgar essa funesta notícia 
  em toda Paris. Uma circunstância estranha envolveu Eliphas, e de certo 
  modo desviou o seu espírito da profunda dor pelo que acabava de acontecer.
  Na hora do tumulto, uma mulher idosa e de aparência muito respeitável 
  tomara-lhe o braço solicitando sua proteção.
  Ele achou-se no dever de responder a esse apelo, e, quando saiu da multidão 
  com essa senhora:
  " Como estou feliz - disse-lhe - por ter encontrado um homem que se aflige 
  com esse grande crime com o qual alegram-se, nesse momento, tantos miseráveis!
  " O que diz, senhora, e como é possível existirem seres tão 
  depravados para alegrarem-se com tamanha infelicidade?
  " Silêncio! - disse a velha senhora - talvez nos ouçam... 
  Sim - acrescentou, abaixando a voz -, há pessoas que estão encantadas 
  com o que aconteceu, e olhe, ali, há poucos minutos, havia um homem de 
  aparência sinistra, que dizia para a multidão inquieta, quando 
  interrogado sobre o que acabava de acontecer... Oh! não foi nada! foi 
  uma aranha que tombou!
  " Não, a senhora deve ter ouvido mal. A multidão não 
  teria permitido esse abominável propósito, e o homem teria sido 
  imediatamente preso.
  " Quisera Deus que todo o mundo pensasse como o senhor - disse a dama.
  Depois acrescentou:
  " Recomendo-me às suas orações, pois vejo que é 
  um homem de Deus.
  " Talvez não seja a opinião de todo o mundo - respondeu Eliphas.
  " E o que nos importa o mundo? - continuou a senhora com vivacidade - ele 
  é mentiroso, caluniador, ímpio! talvez fale mal do senhor. Não 
  me espanto com isso, e se o senhor pudesse saber o que ele diz de mim, compreenderia 
  por que desprezo sua opinião.
  " O mundo fala mal da senhora!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  90
  " Certamente, e o pior mal que se possa dizer.
  " Como assim?
  " Acusa-me de sacrilégio.
  " A senhora está me assustando. E de qual sacrilégio, por 
  favor?
  " De uma indigna comédia que teria representado para enganar duas 
  crianças na montanha da Salette.
  " Quê! seria...
  " Sou a senhorita Merlière.
  " Ouvi falar de seu processo, senhorita, e do escândalo que provocou, 
  mas parece-me que sua idade e sua responsabilidade deveriam protegê-la 
  de semelhante acusação.
  " Venha ver-me, senhor, e o apresentarei a meu advogado, senhor Farre, 
  é um homem talentoso que eu gostaria de ganhar para Deus.
  Conversando assim os dois interlocutores haviam chegado à Rua do Velho 
  Pombal. A dama agradeceu ao seu cavalheiro improvisado e renovou o convite para 
  que fosse vê-Ia.
  " Vou tentar - disse Eliphas. - Mas, se for, perguntarei ao porteiro pela 
  senhorita Merlière?
  " Cuidado! não me conhecem por esse nome; pergunte pela senhora 
  Dutruck.
  " Dutruck, está bem, senhora, queira aceitar meus humildes cumprimentos.
  E separaram-se.
  O julgamento do assassino começou, e Eliphas, ao ler nos jornais que 
  esse homem era padre, que fizera parte do clero de São Germano de Auxerre, 
  que fora pároco no interior, que parecia furioso, lembrou-se do padre 
  pálido que um ano antes procurava o grimório de Honório. 
  Mas a descrição que as páginas públicas davam desse 
  criminoso contrariava as lembranças do professor de magia. Com efeito, 
  a maioria dos jornais atribuíam-lhe cabelos negros... Portanto, não 
  é ele, pensava Eliphas. No entanto, tenho ainda no ouvido e na memória 
  as palavras que para mim estariam agora explicadas por esse grande crime:
  " Não tardarão a saber algo. Em breve ouvirão falar 
  de mim.
  O julgamento teve lugar com todas as horríveis peripécias que 
  todos conhecem, e o acusado foi condenado à morte.
  No dia seguinte, Eliphas leu numa folha judiciária o relato dessa cena 
  inaudita nos anais da justiça; e sentiu a vista turvar-se quando leu 
  o trecho em que se descrevia o acusado: "Ele é loiro".
  " Deve ser ele - disse o professor de magia.
  Alguns dias depois, uma pessoa que na audiência pudera traçar um 
  esboço do perfil do condenado mostrou-o a Eliphas.
  " Deixe-me copiar este desenho - disse, tremendo de espanto.
  Fez a cópia e levou-a ao seu amigo Desbarolles a quem perguntou sem maiores 
  explicações:
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  91
  " Conhece este rosto?
  " Sim - assentiu vivamente Desbarolles -; espere, é o padre misterioso 
  que vimos na casa da senhora A.... e que queria fazer evocações 
  mágicas.
  " Pois bem, meu amigo! o senhor confirma minha triste convicção. 
  O homem que vimos, não tornaremos mais a ver, a mão que o senhor 
  examinou tornou-se sanguinária. Ouvimos falar dele, como nos anunciara, 
  pois este padre pálido, sabe qual era seu nome?
  " Oh! meu Deus! - disse Desbarolles mudando de cor - receio saber.
  " Pois o senhor sabe, era o infeliz Louis Verger!
  Algumas semanas depois do que acabamos de contar, Eliphas Levi conversava com 
  um livreiro que tem por especialidade colecionar velhos livros de ciências 
  ocultas sobre o grimório de Honório.
  " É agora um artigo impossível de ser encontrado, dizia o 
  comerciante. O último que tive nas mãos cedi-o a um padre que 
  ofereceu cem francos por ele.
  " Um jovem padre! e lembra-se qual era sua fisionomia?
  " Oh! perfeitamente. Mas o senhor deve conhecê-lo, pois ele contou-me 
  tê-lo visto, e fui eu quem o indicou.
  Assim, não havia mais dúvida, o infeliz padre encontrara o fatal 
  grimório, fizera a evocação e preparara-se para o crime 
  através de uma série de sacrilégios, pois eis no que consiste 
  a evocação infernal, segundo o grimório de Honório:
  "Escolher um galo preto e dar-lhe o nome do espírito das trevas 
  que se quer evocar."
  "Matar o galo, reservar sua língua, o coração e a 
  primeira pena da asa esquerda."
  "Deixar secarem a língua e o coração e reduzi-los 
  a pó."
  "Não comer carne e não beber vinho nesse dia."
  "Na terça-feira, ao nascer do dia, dizer uma missa dos anjos." 
  "Traçar sobre o altar com a pena do galo molhada em vinho consagrado 
  assinaturas diabólicas (aquelas do lápis do senhor Home e das 
  hóstias ensangüentadas de Vintras)." "Na quarta-feira, 
  preparar uma vela de cera amarela; levantar-se à meia-noite, e, sozinho 
  numa igreja, começar o ofício dos mortos."
  "Misturar a esse ofício evocações infernais."
  "Terminar o ofício à luz de uma única vela, que será 
  em seguida apagada, e permanecer sem luz na igreja assim profanada até 
  o nascer do sol."
  "Na quinta-feira, misturar à água benta o pó da língua 
  e do coração do galo preto, e fazer um cordeiro macho de nove 
  dias engolir a mistura..."
  A mão recusa-se a escrever o resto. É um misto de práticas 
  brutais e atentados revoltantes apropriados a matar o discernimento e a consciência.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  92
  Mas para comunicar-se com o fantasma do mal absoluto, para realizar o fantasma 
  a ponto de vê-lo e tocá-lo, não é preciso estar, 
  necessariamente, sem consciência e sem discernimento? Aí está 
  certamente o segredo dessa inacreditável perversidade, dessas fúrias 
  assassinas, desse ódio doentio contra toda ordem, toda magistratura, 
  toda hierarquia, dessa fúria sobretudo contra o dogma que santifica a 
  paz, a obediência, a doçura sob o símbolo tão comovente 
  de uma mãe. Esse infeliz estava certo de que não morreria. O imperador, 
  acreditava ele, seria forçado a perdoá-lo, um exílio honroso 
  esperava-o, seu crime lhe daria uma enorme celebridade, seus devaneios seriam 
  comprados a peso de ouro pelos livreiros. Tornar-se-ia imensamente rico, atrairia 
  a atenção de uma grande dama e se casaria do outro lado do mar. 
  Era com promessas semelhantes que outrora o fantasma do demônio também 
  tentava e fazia saltar de um crime a outro Gilles de Laval, senhor de Retz. 
  Um homem capaz de evocar o diabo, segundo os ritos do grimório de Honório, 
  engajou-se de tal maneira na trilha do mal que está disposto a todas 
  as alucinações e a todas as mentiras. Assim Verger adormecia no 
  sangue para acordar em não sei que abominável Panteão; 
  e acordou no cadafalso.
  Mas as aberrações da perversidade não constituem uma loucura; 
  a execução desse miserável provou-o.
  Sabe-se que resistência desesperada ele opôs aos executores. "É 
  uma traição", dizia, "não posso morrer assim! 
  Uma hora apenas, uma hora para escrever ao Imperador! O Imperador deve salvar-me."
  Quem, pois, o traía?
  Quem, pois, prometera-lhe a vida?
  Quem, pois, assegurara-lhe de antemão uma clemência impossível, 
  visto que ela teria revoltado a consciência pública?
  Perguntai tudo isso ao grimório de Honório!
  Duas coisas nessa história tão trágica relacionam-se com 
  os fenômenos do senhor Home: o ruído de tempestade ouvido pelo 
  mau padre quando de suas primeiras evocações e a perturbação 
  que o impediu de expor todo seu pensamento na presença de Eliphas Levi. 
  Pode-se observar também a aparição de um homem sinistro 
  regozijando-se com o luto público e sustentando um propósito verdadeiramente 
  infernal em meio à multidão consternada, aparição 
  observada apenas pela extática da Salette, a tão célebre 
  senhorita Merlière, que, não obstante ter a aparência de 
  uma pessoa boa e respeitável, é muito exaltada e capaz talvez 
  de agir e de falar, sem se aperceber, sob a influência de um sonambulismo 
  ascético.
  Esta palavra sonambulismo traz-nos de volta ao senhor Home, e nossos relatos 
  não nos fizeram esquecer do que o título deste trabalho prometia 
  a nossos leitores. Devemos dizer-lhes o que é o senhor Home.
  Vamos manter nossa promessa.
  O senhor Home é um doente afetado por um sonambulismo contagioso.
  Isso é uma asserção.
  Restou-nos uma explicação e uma demonstração a dar.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  93
  Essa explicação e essa demonstração, para serem 
  completas, pediam um trabalho capaz de encher um livro.
  Esse livro está pronto e publicá-lo-emos brevemente.
  Eis seu título: A Razão dos Prodígios, ou o Diabo diante 
  da Ciência. Por que o diabo? Porque demonstramos através de fatos 
  o que antes de nós o senhor Mirville incompletamente pressentira.
  Dizemos incompletamente porque o diabo é, para o senhor Mirville, uma 
  personagem fantástica, enquanto para nós é o uso abusivo 
  de uma força natural.
  Um médium disse: O inferno não é um lugar, é um 
  Estado.
  Poderíamos acrescentar: O diabo não é nem uma pessoa nem 
  uma força; é um vício e, por conseguinte, uma fraqueza.
  Voltemos por um momento ao estudo dos fenômenos.
  Os médiuns geralmente são seres doentes e limitados.
  Nada de extraordinário podem fazer diante das pessoas calmas e instruídas.
  É preciso estar habituado a seu contato para ver e sentir algo. Os fenômenos 
  não são os mesmos para todos os espectadores. Assim, onde um verá 
  uma mão, o outro notará apenas um vapor esbranquiçado.
  As pessoas impressionáveis pelo magnetismo do senhor Home experimentam 
  uma espécie de mal-estar; parece-lhes que a sala gira, e têm a 
  sensação de que a temperatura abaixa-se rapidamente.
  Os prodígios ou os prestígios realizam-se melhor diante de um 
  pequeno número de testemunhas escolhidas pelo próprio médium.
  Numa reunião de pessoas que verão os prestígios, pode encontrar-se 
  uma que não verá absolutamente nada.
  Dentre as pessoas que vêem, não vêem todas a mesma coisa.
  Assim, por exemplo:
  Numa noite, na casa da senhora B... I o médium fez aparecer o filho que 
  essa senhora perdeu. Apenas a senhora B... via a criança, o conde de 
  M... via um pequeno vapor esbranquiçado em forma de pirâmide, as 
  outras pessoas nada viam.
  Todo mundo sabe que certas substâncias, o haxixe, por exemplo, entorpecem 
  sem privar do uso da razão, e fazem ver, com uma surpreendente impressão 
  de realidade, coisas que não existem. Grande parte dos fenômenos 
  do senhor Home pertencem a uma influência natural semelhante à 
  do haxixe.
  Eis por que o médium quer operar apenas diante de um pequeno número 
  de pessoas escolhidas por ele.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  94
  O restante desses fenômenos deve ser atribuído ao poder magnético.
  Ver algo com o senhor Home não é um indício tranqüilizador 
  para a saúde de quem vê. Aliás, mesmo que a saúde 
  fosse excelente, essa visão revela uma perturbação passageira 
  do aparelho nervoso em suas relações com a imaginação 
  e com a luz.
  Se essa perturbação fosse frequentemente repetida, a pessoa se 
  tornaria seriamente doente. Quem sabe quantas catalepsias, tétanos, loucuras 
  e mortes violentas a mania das mesas girantes já produziu?
  Esses fenômenos tornam-se particularmente terríveis quando deles 
  a perversidade se apodera.
  É então que se pode realmente afirmar a intervenção 
  e a presença do espírito do mal.
  Perversidade ou fatalidade, os pretensos milagres obedecem a um desses dois 
  poderes. Quanto às escrituras cabalísticas e às assinaturas 
  misteriosas, diremos que se reproduzem pela intuição magnética 
  das imagens do pensamento no fluido vital universal. Esses reflexos instintivos 
  podem produzir-se se o Verbo mágico nada tiver de arbitrário e 
  se os signos do santuário oculto forem a expressão natural das 
  idéias absolutas. É o que demonstramos em nosso livro.
  Mas, para não remetermos nossos leitores do desconhecido ao futuro, vamos 
  antecipar dois capítulos dessa obra inédita, um sobre o Verbo 
  cabalístico, o outro sobre os segredos da cabala, e deles tiraremos conclusões 
  que completarão de modo satisfatório para todos a explicação 
  que prometemos para os fenômenos do senhor Home.
  Existe um poder gerador das formas; este poder é a luz.
  A luz cria as formas segundo as leis das matemáticas eternas, pelo equilíbrio 
  universal do dia e da sombra.
  Os signos primitivos do pensamento delineiam-se por si sós na luz, que 
  é o instrumento material do pensamento.
  Deus é a alma da luz. A luz universal e infinita é para nós 
  como o corpo de Deus.
  A cabala ou a alta magia é a ciência da luz.
  A luz corresponde-se com a vida.
  O reino das trevas é a morte.
  Todos os dogmas da verdadeira religião estão escritos na cabala 
  em caracteres de luz numa página de sombra.
  A página de sombra são as crenças cegas.
  A luz é o grande mediador plástico.
  A aliança da alma com o corpo é um casamento de luz e de sombra.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  95
  A luz é o instrumento do Verbo, é a escritura branca de Deus no 
  grande livro da noite.
  A luz é a fonte dos pensamentos, e é nela que se deve buscar a 
  origem de todos os dogmas religiosos.
  Mas só há um verdadeiro dogma, como só há uma pura 
  luz; apenas a sombra é infinitamente variada. A luz, a sombra e sua união 
  que é a visão dos seres, tal é o princípio analógico 
  dos grandes dogmas da Trindade, da Encarnação e da Redenção.
  Tal é também o mistério da cruz.
  Eis o que nos será fácil provar pelos monumentos religiosos, pelos 
  signos do Verbo primitivo, pelos livros iniciados na cabala, pela explicação 
  racional, enfim, de todos os mistérios por meio das chaves da magia cabalística.
  Com efeito, em todos os simbolismos encontramos as idéias de antagonismo 
  e de harmonia produzindo uma noção trinitária na concepção 
  divina, depois a personificação mitológica dos quatro pontos 
  cardeais do céu completa o setenário sagrado, base de todos os 
  dogmas e de todos os ritos. Para convencermo-nos disto, bastará relermos 
  e meditarmos sobre a sábia obra de Dupuis, que seria um grande cabalista 
  se tivesse visto uma harmonia de verdades onde suas preocupações 
  negativas apenas o deixaram ver um concerto de erros.
  Não devemos refazer aqui o seu trabalho, que todos conhecem; mas o que 
  importa provar é que a reforma religiosa de Moisés era inteiramente 
  cabalística, e que o cristianismo, ao instituir um dogma novo, simplesmente 
  reaproximou-se das fontes primitivas do mosaísmo, e que o Evangelho não 
  é mais do que um véu transparente lançado sobre os mistérios 
  universais e naturais da iniciação oriental.
  Um sábio notável, mas muito pouco conhecido, M. P. Lacour, em 
  seu livro sobre os Eloim ou deuses de Moisés, lançou nova luz 
  sobre essa questão e encontrou nos símbolos do Egito todas as 
  figuras alegóricas do Gênesis. Mais recentemente, um bravo pesquisador, 
  de vasta erudição, M. Vincent (de Yonne), publicou um tratado 
  sobre a idolatria entre os antigos e os modernos, onde ergue o véu da 
  mitologia universal.
  Convidamos os homens de estudos conscienciosos a lerem essas diferentes obras 
  e nós nos concentraremos no estudo especial da cabala entre os hebreus. 
  Sendo o Verbo, ou a palavra, segundo os iniciados nessa ciência, toda 
  a revelação, os princípios da alta cabala devem se encontrar 
  reunidos nos próprios sinais que compõem o alfabeto primitivo. 
  Ora, eis o que encontramos em todas as gramáticas hebraicas.
  Há uma letra principiante e universal geradora de todas as outras. É 
  o Iod h . Há duas outras letras mães opostas e análogas 
  entre si; o Aleph t e o Mem n , seguindo-se a outras o Schin a .
  Há sete letras duplas, o Beth c , o Ghimel d , o Daleth s , o Caph f 
  , o Phé p , o Resch r e o Tau , .
  Finalmente há doze simples que são as outras letras; ao todo, 
  vinte e duas. A unidade é representada de modo relativo pelo aleph, o 
  ternário é figurado ou por iod, mem, schin, ou por aleph, mem, 
  schin.
  O setenário por beth, ghimel, daleth, caph, phé, resch, tau.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  96
  O duodenário pelas outras letras. O duodenário é o ternário 
  multiplicado por quatro; e entra também no simbolismo do setenário.
  Cada letra representa um número:
  Cada conjunto de letras uma série de números.
  Os números representam idéias filosóficas absolutas.
  As letras são hieróglifos abreviados.
  Vejamos agora as significações hieroglíficas e filosóficas 
  de cada uma das vinte e duas letras. (Ver Belarmino, Reuchlin, São Jerônimo, 
  Kabbala denudata, o Sepher Yétsírah, Technica curiosa do padre 
  Schott, Pico delia Mirandola e os outros autores, especialmente os da coleção 
  de Pistorius.)
  As Mães
  O iod - o princípio absoluto, o ser produtor;
  O mem - o espírito, ou o Jaquim de Salomão;
  O schin - a matéria, ou a coluna Boaz.
  As Duplas
  Beth - o reflexo, o pensamento, a lua, o anjo Gabriel, príncipe dos mistérios;
  Ghimel - o amor, a vontade, Vênus, o anjo Anael, príncipe da vida 
  e da morte;
  Daleth - a força, o poder, Júpiter, Sachiel Melech, rei dos reis;
  Caph - a violência, a luta, o trabalho, Mars Samaël Zébaoth, 
  príncipe das falanges;
  Phé - a eloqüência, a inteligência, Mercúrio, 
  Rafael, príncipe das ciências;
  Resch - a destruição e a regeneração, o Tempo, Saturno, 
  Cassiel, rei dos túmulos e das solidões;
  Tau - a verdade, a luz, o Sol, Micael, rei dos Eloim.
  As Simples
  As simples dividem-se em quatro ternários trazendo por títulos 
  as quatro letras do tetragrama divino v u v h .
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  97
  No tetragrama divino, o iod, como acabamos de dizer, figura o princípio 
  produtor ativo. O he v representa o princípio produtor passivo, o ctëiss. 
  O vau , figura a união dos dois ou o linga, e o he final é a imagem 
  do princípio produtor secundário, isto é, da reprodução 
  passiva no mundo dos efeitos e das formas.
  As doze letras simples v u z y j h k b o g m e , divididas em grupos de três, 
  reproduzem a noção do triângulo primitivo, com a interpretação 
  e sob a influência de cada uma das letras do tetragrama. Vê-se que 
  a filosofia e o dogma religioso da cabala estão indicados aí de 
  modo completo mas velado.
  Interroguemos agora as alegorias do Gênesis.
  "No princípio (iod, a unidade do ser), Eloim, as forças equilibradas 
  (Jaquin e Boaz) fizeram o céu (o espírito) e a terra (a matéria), 
  em outras palavras, o bem e o mal, a afirmação e a negação." 
  Assim começa o relato de Moisés.
  Depois, quando se trata de dar um lugar ao homem e um primeiro santuário 
  à sua aliança com a divindade, Moisés fala de um jardim 
  no meio do qual uma fonte única dividia-se em quatro rios (o Jod e o 
  Tetragrama), depois de duas árvores, uma da vida, outra da morte, plantadas 
  perto do rio. Aí são colocados o homem e a mulher, o ativo e o 
  passivo, a mulher simpatiza com a morte e arrasta consigo em sua ruína 
  Adão, eles são, pois, expulsos do santuário da verdade 
  e um chérub (uma esfinge com cabeça de touro, ver os hieróglifos 
  da Assíria, da Índia e do Egito) é colocado à porta 
  do jardim da verdade para impedir os profanadores de destruírem a árvore 
  da vida. Aí está, portanto, o dogma misterioso com todas as suas 
  alegorias e seus horrores que sucede à simples verdade. O ídolo 
  substituiu Deus, e a humanidade decadente não tardará a dedicar-se 
  ao culto do novilho de ouro. O mistério das reações necessárias 
  e sucessivas dos dois princípios um sobre o outro é, em seguida, 
  indicado pela alegoria de Caim e Abel. A força vinga-se, por opressão, 
  das seduções da fraqueza; a fraqueza mártir expia e intercede 
  pela força condenada em conseqüência do crime à vergonha 
  e ao remorso. Assim revela-se o equilíbrio do mundo moral, assim assenta-se 
  a base de todas as profecias e o ponto de apoio de toda política inteligente. 
  Abandonar uma força a seus próprios excessos é condená-la 
  ao suicídio.
  O que faltou a Dupuis para compreender o dogma religioso universal da cabala 
  foi a ciência desta bela hipótese demonstrada em parte e realizada 
  a cada dia mais pelas descobertas da ciência: a analogia universal.
  Privado dessa chave do dogma transcendental, não pôde ver em todos 
  os deuses senão o sol, os sete planetas e os doze signos do zodíaco, 
  mas não viu no sol a imagem do logos de Platão, nos sete planetas 
  as sete notas da gama celeste, e no zodíaco a quadratura do ciclo ternário 
  de todas as iniciações.
  O imperador Juliano, esse espiritualista incompreendido, esse iniciado cujo 
  paganismo era menos idólatra do que a fé de certos cristãos, 
  o imperador Juliano, dizemos, compreendia melhor que Dupuis e Volnay o culto 
  simbólico ao sol. Em seu hino ao rei Hélio reconhece que o astro 
  do dia é apenas o reflexo e a sombra material daquele sol de verdade 
  que ilumina o mundo da inteligência e que é ele próprio 
  apenas um clarão tomado emprestado ao absoluto. Coisa notável, 
  Juliano tem o Deus supremo que os cristãos pensavam serem os únicos 
  a adorar, idéias bem maiores e bem mais justas do que as de vários 
  pais da Igreja, adversários e contemporâneos desse imperador.
  Eis como ele expressa-se em sua defesa do helenismo:
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  98
  "Não basta escrever num livro: Deus disse, e as coisas foram feitas. 
  É preciso ver se as coisas que atribuem a Deus não são 
  contrárias às próprias leis do Ser. Pois, se assim for, 
  Deus não as pode ter feito, ele que não pode dar desmentidos à 
  natureza sem negar-se a si próprio... Sendo Deus eterno, é absolutamente 
  necessário que suas ordens sejam imutáveis como ele." Eis 
  como falava esse apóstata e esse ímpio, e mais tarde um doutor 
  cristão, que se tornou o oráculo das escolas de teologia, devia, 
  inspirando-se talvez nas belas palavras do descrente, colocar um freio em todas 
  as superstições ao escrever esta bela e corajosa máxima 
  que tão bem resume o pensamento do grande imperador:
  "Uma coisa não é justa porque Deus a quer; mas Deus a quer 
  porque ela é justa." A idéia de uma ordem perfeita e imutável 
  na natureza, a noção de uma hierarquia ascendente e de uma influência 
  descendente em todos os seres fornecerá aos antigos hierofantes a primeira 
  classificação de toda a história natural. Os minerais, 
  os vegetais, os animais foram estudados analogicamente, e atribuíram-se 
  sua origem e suas propriedades ao princípio passivo ou ao princípio 
  ativo, às trevas ou à luz. O signo de sua eleição 
  ou de sua reprovação, desenhado na sua forma, tornou-se o caráter 
  hieroglífico de um vício ou de uma virtude; depois, de tanto tomar 
  o signo pela coisa, e exprimir a coisa pelo signo, acabou-se por confundi-los, 
  e tal é a origem da história natural fabulosa em que leões 
  deixam-se abater por galos, em que delfins morrem de dores após haverem 
  feito ingratos entre os homens, em que mandrágoras falam e estrelas cantam. 
  Esse mundo encantado é verdadeiramente o domínio poético 
  da magia; mas tem como realidade apenas a significação dos hieróglifos 
  que lhe deram origem. Para o sábio que compreende as analogias da alta 
  cabala e a relação exata das idéias com os signos, esse 
  país fabuloso das fadas é uma região ainda fértil 
  em descobertas, pois as verdades muito belas ou muito simples para agradar aos 
  homens sem véus foram todas ocultadas sob essas sombras engenhosas.
  Sim, o galo pode intimidar o leão e tornar-se seu mestre, porque a vigilância 
  freqüentemente substitui a força e consegue domar a cólera. 
  As outras fábulas da pretensa história natural dos antigos explicam-se 
  do mesmo modo, e, nesse uso alegórico das analogias, já se pode 
  compreender os abusos possíveis e pressentir os erros que se devem ter 
  originado na cabala. A lei das analogias foi, de fato, para os cabalistas da 
  segunda ordem, o objeto de uma fé cega e fanática. É a 
  essa crença que devem ser relacionadas todas as superstições 
  reprovadas aos adeptos das ciências ocultas. Eis como raciocinavam:
  O signo exprime a coisa.
  A coisa é a virtude do signo.
  Há correspondência analógica entre o signo e a coisa significada.
  Quanto mais perfeito é o signo, mais a correspondência é 
  total. Dizer uma palavra é evocar um pensamento e torná-lo presente. 
  Dizer Deus, por exemplo, é manifestar Deus.
  A palavra age sobre as almas e as almas reagem sobre os corpos; pode-se, portanto, 
  assustar, consolar, fazer adoecer, curar, matar e ressuscitar por palavras. 
  Proferir um nome é criar ou chamar um ser.
  No nome está contida a doutrina verbal ou espiritual do próprio 
  ser.
  Quando a alma evoca um pensamento, o signo desse pensamento escreve-se por si 
  só na luz. Invocar
  é adjurar, isto é, jurar por um nome: é fazer ato de fé 
  nesse nome e comungar na virtude que ele
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  99
  representa.
  As palavras, portanto, são por si próprias boas ou más, 
  venenosas ou salutares. As palavras mais perigosas são as palavras vãs 
  e proferidas levianamente, porque são abortos voluntários do pensamento.
  Uma palavra inútil é um crime contra o espírito de inteligência. 
  É um infanticídio intelectual. As coisas são para cada 
  pessoa o que ela as faz ao denominá-las. O verbo de cada pessoa é 
  uma impressão ou uma prece habitual.
  Falar bem é viver bem.
  Um belo estilo é uma auréola de santidade.
  Desses princípios, uns verdadeiros, outros hipotéticos, e das 
  conseqüências mais ou menos exageradas que deles tiravam, resultava 
  para os cabalistas supersticiosos uma confiança absoluta nos encantamentos, 
  evocações, conjurações e orações misteriosas. 
  Ora, como a fé sempre realiza prodígios, nunca lhe faltaram as 
  aparições, os oráculos, as curas maravilhosas, as doenças 
  súbitas e estranhas.
  Foi assim que uma simples e sublime filosofia tornou-se a ciência secreta 
  da magia negra. É sobretudo desse ponto de vista que a cabala pode ainda 
  excitar a curiosidade da maioria em nosso século tão desconfiado 
  e tão crédulo. No entanto, como acabamos de expor, a verdadeira 
  ciência não está aí.
  Os homens raramente procuram a verdade por ela mesma; têm sempre por motivo 
  secreto em seus esforços alguma paixão a satisfazer ou alguma 
  cupidez a saciar. Dentre os segredos da cabala, há um que sempre atormentou 
  os pesquisadores: o segredo da transmutação dos metais e a conversão 
  de todas as substâncias terrestres em ouro.
  De fato, a alquimia tomou emprestado à cabala todos os seus signos, e 
  era na lei das analogias, resultantes da harmonia dos contrários, que 
  baseava suas operações. Um segredo físico imenso estava, 
  aliás, oculto sob parábolas cabalísticas dos antigos. Conseguimos 
  decifrá-lo e vamos confiá-lo às investigações 
  dos fazedores de ouro. Ei-lo:
  1º - Os quatro fluidos imponderáveis são apenas as manifestações 
  diversas de um mesmo agente universal que é a luz.
  2º - A luz é o fogo que serve à grande obra sob forma de 
  eletricidade. 3º - A vontade humana dirige a luz vital por meio do aparelho 
  nervoso. Em nossos dias isso denomina-se magnetizar.
  4º - O agente secreto da pedra filosofal, o azote dos sábios, o 
  ouro vivo e vivificante dos filósofos, o agente produtor metálico 
  universal é a ELETRICIDADE MAGNETIZADA. A aliança dessas duas 
  palavras ainda não nos diz muito e, no entanto, elas talvez encerrem 
  uma força capaz de revolucionar o mundo. Dizemos talvez por conveniência 
  filosófica, pois, de nossa parte, não duvidamos da alta importância 
  desse grande arcano hermético.
  Acabamos de dizer que a alquimia é filha da cabala; e, para convencer-se 
  disso, basta interrogar os
  símbolos de Flamel, de Basílio Valentim, as páginas do 
  judeu Abraão e os oráculos mais ou menos
  apócrifos da mesa de esmeralda de Hermez. Em toda a parte encontram-se 
  os traços dessa década de
  Pitágoras tão brilhantemente aplicada, no Sepher Yétsirah, 
  à noção completa e absoluta das coisas
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  100
  divinas, essa década composta da unidade e de um tríplice ternário 
  que os rabinos denominaram o Bereschit e a Mercabah, a árvore luminosa 
  das Sefirotes e a chave dos Schemamphorasch. Falamos, com certa extensão, 
  em nosso livro intitulado Dogma e Ritual da Alta Magia, de um monumento hieroglífico 
  conservado até os nossos dias sob um pretexto fútil, e que sozinho 
  explica todas as escrituras misteriosas da alta iniciação. Esse 
  monumento é o tarô dos Boêmios que deu origem a nossos jogos 
  de cartas. Compõe-se de vinte e duas letras alegóricas e de quatro 
  séries, cada uma de dez hieróglifos relativos às quatro 
  letras do nome de Jehovah. As diversas combinações desses signos 
  e dos números que lhes correspondem formam a mesma quantidade de oráculos 
  cabalísticos, de modo que a ciência inteira está contida 
  nesse livro misterioso. Essa máquina filosófica perfeitamente 
  simples surpreende pela profundidade e exatidão de seus resultados. O 
  abade Trithème, um de nossos maiores mestres em magia, compôs sobre 
  o alfabeto cabalístico um trabalho muito engenhoso a que ele denomina 
  poligrafia. É uma série combinada de alfabetos progressivos em 
  que cada letra representa uma palavra, as palavras correspondem-se e completam-se 
  de um alfabeto ao outro, e não há dúvida de que Trithème 
  teve conhecimento do tarô e dele se utilizou para dispor numa ordem lógica 
  suas sábias combinações. Jerônimo Cardano conhecia 
  o alfabeto simbólico dos iniciados como se pode reconhecer pelo número 
  e pela disposição dos capítulos de sua obra sobre a sutileza. 
  Essa obra, com efeito, é composta de vinte e dois capítulos, e 
  o tema de cada capítulo é análogo ao número e à 
  alegoria da carta correspondente no tarô. Fizemos a mesma observação 
  sobre um livro de São Martinho intitulado Quadro Natural das Relações 
  que existem entre Deus, o Homem e o Universo. A tradição desse 
  segredo não foi, pois, interrompida desde os primórdios da cabala 
  até os nossos dias. Os giradores de mesa e os que fazem falar os espíritos 
  através de quadrantes alfabéticos estão, pois, muitos séculos 
  atrasados e não sabem que existe um instrumento de oráculo claro 
  e de um sentido exato por meio do qual se pode comunicar com os sete gênios 
  dos planetas e fazer falar à vontade as setenta e duas rodas de Aziah, 
  Jezirah e Briah. Para isso basta conhecer o sistema de analogias universais, 
  tal como expôs Swedenborg na chave hieroglífica dos arcanos, depois 
  embaralhar as cartas e tirar ao acaso, dispondo-as sempre pelos números 
  correspondentes às idéias cujos esclarecimentos se deseja, depois 
  ler os oráculos como devem ser lidas as escrituras cabalísticas, 
  isto é, começando no meio indo da direita para a esquerda para 
  os números ímpares, começando à direita para os 
  pares e interpretando sucessivamente o número pela letra que lhe corresponde, 
  o conjunto das cartas pela adição de seus números e todos 
  os oráculos sucessivos por sua ordem numeral e suas relações 
  hieroglíficas.
  Essa operação dos sábios cabalistas para encontrar o desenvolvimento 
  rigoroso das idéias absolutas degenerou em superstições 
  em meio aos padres ignorantes e aos nômades ancestrais dos Boêmios 
  que possuíam o tarô da Idade Média, sem conhecer seu verdadeiro 
  emprego e que dele se serviam unicamente para ler a sorte.
  O jogo de xadrez, atribuído a Palamedes, não tem outra origem 
  senão o tarô, e nele encontram-se as mesmas combinações 
  e os mesmos símbolos, o rei, a rainha, o cavaleiro, o soldado, o louco, 
  a torre, depois casas representando os números. Os antigos jogadores 
  de xadrez procuravam em seu tabuleiro a solução dos problemas 
  filosóficos e religiosos, e argumentavam um contra o outro em silêncio 
  manobrando os caracteres hieroglíficos através dos números. 
  Nosso vulgar jogo do ganso, copiado dos gregos e igualmente atribuído 
  a Palamedes, é apenas um tabuleiro de figuras imóveis e números 
  móveis por meio dos dados. É um tarô disposto em roda destinado 
  ao uso dos aspirantes à iniciação. Ora, a palavra tarô, 
  em que se encontram rota e tora, exprime ela própria, como demonstrou-o 
  Guilherme Postel, essa disposição primitiva em forma de roda. 
  Os hieróglifos do jogo do ganso são mais simples que os do tarô, 
  mas encontram-se aí os mesmos símbolos: o bobo, o rei, a rainha, 
  a torre, o diabo ou tífon, a morte, etc. As probabilidades aleatórias 
  desse jogo representam as da vida e escondem um sentido filosófico bastante 
  profundo para fazer meditar os sábios e bastante simples para ser compreendido 
  pelas crianças.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  101
  A personagem alegórica de Palamedes é aliás idêntica 
  às de Henoc, de Hermes e de Cádmo, aos quais atribui-se a invenção 
  das letras nas diversas mitologias. Mas, no pensamento de Homero, Palamedes, 
  o revelador e a vítima de Ulisses, representa o iniciador ou o gênio 
  cujo destino eterno é ser morto por aqueles que inicia. O discípulo 
  torna-se a realização viva dos pensamentos do mestre apenas depois 
  de ter tomado seu sangue e comido sua carne, segundo a enérgica e alegórica 
  expressão do iniciador tão mal compreendido pelos cristãos.
  A concepção do alfabeto primitivo era, como se pode ver, a idéia 
  de uma língua universal, encerrando em suas combinações 
  e em seus próprios signos o resumo e a lei da evolução 
  de todas as ciências divinas e humanas. Acreditamos que, desde então, 
  nada mais bonito nem maior foi sonhado pelo gênio dos homens e confessamos 
  que a descoberta desse segredo do mundo antigo compensou-nos plenamente por 
  tantos anos de pesquisas estéreis e trabalhos ingratos nas criptas das 
  ciências perdidas e nas necrópoles do passado.
  Um dos primeiros resultados dessa descoberta seria uma nova direção 
  dada ao estudo das escrituras hieroglíficas ainda tão imperfeitamente 
  decifradas pelos êmulos e pelos sucessores de Champollion. Sendo o sistema 
  de escritura dos discípulos de Hermes analógico e sintético 
  como todos os signos da cabala, para a leitura das páginas gravadas nas 
  pedras dos antigos templos não importaria recolocar essas pedras em seu 
  lugar e contar o número de suas letras comparando-as com os números 
  das outras pedras?
  O obelisco de Lúxor, por exemplo, não era uma das duas colunas 
  da entrada de um templo? ficava à direita ou à esquerda? Se ficava 
  à direita, seus sinais referem-se ao princípio ativo; se ficava 
  à esquerda, é pelo princípio passivo que se devem interpretar 
  seus caracteres. Mas deve haver uma correspondência exata de um obelisco 
  ao outro, e cada signo deve receber seu sentido completo da analogia dos contrários; 
  Champollion encontrou traços do copta nos hieróglifos, um outro 
  sábio talvez encontrasse mais facilmente e mais felizmente o hebraico, 
  mas o que diriam se não fosse nem hebraico nem copta? Se fosse, por exemplo, 
  a língua universal primitiva? Ora, essa língua, que é a 
  da alta cabala, existiu certamente, existe na base do próprio hebraico 
  e de todas as línguas orientais que dele derivam, essa língua 
  é a do santuário, e as colunas da entrada dos templos geralmente 
  resumiam todos os seus símbolos. A intuição dos extáticos 
  aproxima-se mais da verdade sobre esses signos primitivos do que a própria 
  ciência dos sábios. Isso porque, como dissemos, o fluido vital, 
  universal, a luz astral, sendo princípio mediador entre as idéias 
  e as formas, obedece aos impulsos extraordinários da alma que procura 
  o desconhecido e fornece-lhe naturalmente os signos já encontrados, mas 
  esquecidos, das grandes revelações do ocultismo. Assim formaram-se 
  as pretensas assinaturas dos espíritos, assim produziram-se as escrituras 
  misteriosas de Gablidone que visitava o doutor Laváter, dos fantasmas 
  de Schroepfer, do São Miguel de Vintras e dos espíritos do senhor 
  Home.
  Se a eletricidade pode mover um corpo leve ou mesmo pesado sem que seja tocado, 
  seria impossível, pelo magnetismo, dar à eletricidade uma direção 
  e assim produzir naturalmente sinais e escrituras? É certamente possível, 
  uma vez que isso é feito.
  Assim, portanto, aos que nos perguntarem qual é o maior agente dos prodígios, 
  responderemos:
  " É a matéria-prima da pedra filosofal.
  " É a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.
  Tudo foi criado pela luz.
  É na luz que a forma conserva-se.
  É pela luz que a forma reproduz-se.
  As vibrações da luz são o princípio do movimento 
  universal.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  102
  Pela luz os sóis ligam-se uns aos outros e entrelaçam seus raios 
  como cadeias de eletricidade. Os homens e as coisas são imantados de 
  luz como os sóis e podem, por meio de cadeias eletromagnéticas 
  estendidas pelas simpatias e afinidades, comunicar-se uns com os outros de uma 
  à outra extremidade do mundo, acariciar-se ou bater-se, curar-se ou ferir-se 
  de modo natural certamente, mas prodigioso e invisível.
  Aí está o segredo da magia.
  A magia, a ciência que nos vem dos magos. A magia, a primeira das ciências.
  A mais santa de todas, uma vez que estabelece de modo mais sublime as grandes 
  verdades religiosas. A mais caluniada de todas, porque o vulgo obstina-se em 
  confundir a magia com a bruxaria supersticiosa cujas práticas abomináveis 
  denunciamos.
  É somente pela magia que pode, diante das questões enigmáticas 
  da Esfinge de Tebas e das obscuridades por vezes escandalosas difundidas nos 
  relatos da Bíblia, responder a tais perguntas e encontrar a solução 
  desses problemas da história judaica.
  Os próprios historiadores sagrados reconhecem a existência e o 
  poder da magia que concorria abertamente com o de Moisés.
  A Bíblia conta-nos que Janes e Mambres, os mágicos do Faraó, 
  fizeram em primeiro lugar os mesmos milagres que Moisés, e que declararam 
  impossíveis à ciência humana os que não puderam imitar. 
  Com efeito, é mais lisonjeiro para o amor-próprio de um charlatão 
  confessar o milagre do que declarar-se vencido pela ciência ou pela destreza 
  de um colega, sobretudo quando esse colega é um inimigo político 
  ou um adversário religioso.
  Onde começa e onde termina o possível na ordem dos milagres mágicos? 
  Eis uma grave e importante questão. É certa a existência 
  dos fatos habitualmente classificados como milagres. Os magnetizadores e os 
  sonâmbulos fazem-nos todos os dias; a irmã Rose Tamisier os fez, 
  o iluminado Vintras ainda os faz; mais de quinze mil testemunhas atestavam ultimamente 
  os dos médiuns da América, dez mil camponeses do Berry e da Sologne 
  atestariam, se necessário, os do deus Cheneau (um antigo comerciante 
  de botões retirado dos negócios e que se acredita inspirado por 
  Deus). Todas essas pessoas são alucinadas ou espertalhonas? Alucinadas, 
  talvez, mas o próprio fato de ser sua alucinação idêntica, 
  seja separadamente, seja coletivamente, não é um milagre bastante 
  grande da parte de quem o produz sempre que deseja e no momento oportuno? Fazer 
  milagres ou persuadir a multidão de que os faz é quase a mesma 
  coisa, sobretudo num século tão leviano e tão zombeteiro 
  quanto o nosso. Ora, o mundo está cheio de taumaturgos, e a ciência 
  é freqüentemente obrigada a negar suas obras ou a recusar-se a vê-las 
  para não ser obrigada a examiná-las e atribuir-lhes uma causa.
  No século passado, repercutiram em toda a Europa os prodígios 
  de Cagliostro. Quem não sabe de todo o poder que se atribuía a 
  seu vinho do Egito e a seu elixir? Que poderíamos acrescentar a tudo 
  o que se conta daquelas ceias do outro mundo, em que ele fazia aparecer em carne 
  e osso os personagens ilustres do passado? No entanto, Cagliostro estava longe 
  de ser um iniciado da primeira ordem, já que a grande associação 
  dos adeptos abandonou-o à inquisiçao romana, diante da qual, se 
  se deve acreditar nas peças de seu processo, deu uma ridícula 
  e odiosa explicação do trigrama maçônico L.'.P.'.D.'.
  Mas os milagres não são um quinhão exclusivo dos iniciados 
  da primeira ordem e freqüentemente
  são realizados por seres sem instrução e sem virtude. As 
  leis naturais encontram num organismo,
  cujas qualidades excepcionais nos escapam, uma ocasião para exercerem-se, 
  e fazem sua obra, como
  sempre, com precisão e calma. Os gourmets mais delicados apreciam as 
  trufas e consomem-nas, mas
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  103
  são os porcos que as desenterram: analogicamente, ocorre o mesmo com 
  muitas coisas menos materiais e menos gastronômicas: os instintos procuram 
  e pressentem, mas apenas a ciência verdadeiramente encontra.
  O progresso atual do conhecimento humano diminuiu muito as chances dos prodígios, 
  mas resta ainda um grande número deles, uma vez que não se conhece 
  nem a força da imaginação nem a razão de ser e o 
  poder do magnetismo. A observação das analogias universais foi 
  negligenciada e é por isso que não se crê mais na adivinhação.
  Um sábio cabalista ainda pode, portanto, assustar a multidão e 
  confundir até mesmo as pessoas instruídas:
  1º - Adivinhando as coisas ocultas;
  2º predizendo muitas coisas futuras;
  3º dominando a vontade dos outros de modo a impedi-los de fazer o que desejam 
  e a forçá-los a fazer o que não desejam;
  4º excitando à vontade aparições e sonhos;
  5º curando um grande número de doenças;
  6º devolvendo a vida a sujeitos em que se manifestam todos os sintomas 
  da morte;
  7º finalmente, demonstrando, com exemplos, se necessário, a realidade 
  da pedra filosofal e da transmutação dos metais, segundo os segredos 
  de Abraão, o Judeu, de Flamel e de Raimundo Lúlio. Todos esses 
  prodígios operam-se por meio de um único agente que os hebreus 
  chamavam OD, como o cavaleiro de Reichenbach; que chamamos luz astral, com a 
  escola de Pasqualis Martinez; que Mirville chama diabo; que os antigos alquimistas 
  denominavam azote. É o elemento vital que se manifesta pelos fenômenos 
  de calor, de luz, de eletricidade e de magnetismo, que imanta todos os globos 
  terrestres e todos os seres vivos. Nesse agente manifestam-se as provas da doutrina 
  cabalística sobre o equilíbrio e o movimento pela dupla polaridade, 
  em que uma atrai enquanto a outra repele, em que uma produz o quente, a outra 
  o frio, enfim em que uma dá uma luz azul e esverdeada, a outra uma luz 
  amarela e avermelhada.
  Esse agente, por seus diferentes modos de imantação, atrai-nos 
  uns para os outros ou distancia-nos uns dos outros, submete um às vontades 
  do outro fazendo-o entrar em seu círculo de atração, restabelece 
  ou perturba o equilíbrio na economia animal por suas transmutações 
  e seus eflúvios alternativos, recebe e transmite as impressões 
  da força imaginária, que é no homem a imagem e a semelhança 
  do verbo criador, produz, assim, os pressentimentos e determina os sonhos. A 
  ciência dos milagres é, pois, o conhecimento dessa força 
  maravilhosa, e a arte de fazer milagres é tão simplesmente a arte 
  de imantar ou de iluminar os seres segundo as leis invariáveis do magnetismo 
  ou da luz astral.
  Preferimos a palavra luz a magnetismo, porque ela é mais tradicional 
  no ocultismo e expressa de modo mais completo e perfeito a natureza do agente 
  secreto. Encontra-se aí, verdadeiramente, o ouro fluido e potável 
  dos mestres da alquimia, a palavra ouro vem do hebraico or, que significa luz. 
  "O que quereis?", perguntava-se aos recipiendários de todas 
  as iniciações. "Ver a luz", devia-se responder. O nome 
  iluminados, que comumente se dá aos adeptos, foi, pois, muito mal interpretado 
  quando lhe deram um sentido místico, como se significasse homens cuja 
  inteligência teria se tornado iluminada num dia miraculoso. Iluminados 
  quer dizer simplesmente conhecedores e possuidores da luz, seja pela ciência 
  do grande agente mágico, seja pela noção racional e ontológica 
  do absoluto.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  104
  O agente universal é a força vital e subordinada à inteligência. 
  Abandonado a si próprio, devora rapidamente, como Moloch, tudo o que 
  gera, e transforma em vasta destruição a superabundância 
  da vida. É, então, a serpente infernal dos antigos mitos, o Tífon 
  dos egípcios e o Moloch da Fenícia; mas, se a sabedoria, mãe 
  dos Eloim, coloca-lhe o pé sobre a cabeça, extingue todas as chamas 
  vomitadas por ele e derrama sobre a terra, a mãos cheias, uma luz vivificante. 
  Do mesmo modo está dito no Zohar que no início de nosso período 
  terrestre, quando os elementos disputavam entre si a superfície do mundo, 
  o fogo, semelhante a uma serpente imensa, envolvera tudo em suas espirais e 
  ia consumir todos os seres, quando a clemência divina, erguendo à 
  sua volta as ondas do mar como uma vestimenta de nuvens, colocou o pé 
  sobre a cabeça da serpente e fê-la retornar ao abismo. Quem não 
  vê nessa alegoria o primeiro dado e a explicação mais razoável 
  de uma das imagens mais caras ao simbolismo católico, o triunfo da mãe 
  de Deus?
  Os cabalistas dizem que o nome oculto do diabo, seu verdadeiro nome, é 
  o mesmo de Jehovah escrito às avessas. Isso é toda uma revelação 
  para o iniciado aos mistérios do tetragrama. De fato, a ordem das letras 
  desse grande nome indica a predominância da idéia sobre a forma, 
  do ativo sobre o passivo, da causa sobre o efeito. Invertendo-se essa ordem 
  obtém-se o contrário. Jehovah é aquele que doma a natureza 
  como a um cavalo bravio e a faz ir onde ele quer, chevajoh (o demônio) 
  é o cavalo sem freio que, semelhante aos dos egípcios no cântico 
  de Moisés, derruba seu cavaleiro arrastando-o consigo para o abismo.
  O diabo, pois, existe de modo muito real para os cabalistas, mas não 
  é nem uma pessoa, nem um poder distinto das próprias forças 
  da natureza. O diabo é a divagação ou o sono da inteligência. 
  É a loucura e a mentira.
  Assim explicam-se todos os pesadelos da Idade Média, assim explicam-se 
  também os estranhos símbolos de alguns iniciados, como os dos 
  Templários, por exemplo, bem menos culpados por terem prestado culto 
  a Baphomet do que por terem revelado sua imagem a profanos. O Baphomet, figura 
  panteística do agente universal, não é outra coisa senão 
  o demônio barbudo dos alquimistas. Sabe-se que os mais graduados na antiga 
  maçonaria hermética atribuíam a um demônio barbudo 
  dar conclusão à pedra filosofal, cabendo ao não iniciado 
  nesta palavra persignar-se e tapar a vista, mas os iniciados ao culto de Hermès-Panthée 
  compreendiam a alegoria e cuidavam em não explicá-la aos profanos.
  Mirville, num livro atualmente quase esquecido, mas que teve certa repercussão 
  há alguns meses, deu-se muito trabalho para reunir algumas bruxarias 
  no gênero das que enchem as compilações dos Delancre, dos 
  Delrio e dos Bodin. Teria encontrado melhor do que isso na história. 
  E sem falar dos milagres tão averiguados dos jansenistas de PortRoyal 
  e do diácono Páris, que pode haver de mais maravilhoso do que 
  a grande monomania do marítimo que fez as crianças e as próprias 
  mulheres acorrerem ao suplício como a uma festa durante trezentos anos? 
  Que pode haver de mais magnífico do que essa fé entusiasta atribuída 
  durante tantos séculos aos mais incompreensíveis e, humanamente 
  falando, mais revoltantes dos mistérios? Nessa ocasião, direis, 
  os milagres vinham de Deus, e servimo-nos deles até como uma prova para 
  estabelecer a verdade da religião. Ora essa! Os heréticos também 
  deixavam-se matar por dogmas francamente bastante absurdos; sacrificavam, pois, 
  também a razão e a vida ao seu credo? Oh! com relação 
  aos heréticos é evidente que o diabo estava em jogo. Pobres-coitados 
  que tomavam o diabo por Deus e Deus pelo diabo! Como desiludiram-se quando os 
  fizeram reconhecer o verdadeiro Deus na caridade, na ciência, na justiça 
  e sobretudo na misericórdia de seus ministros!
  Os necromantes, que fazem aparecer o diabo após uma série fatigante 
  e quase impossível das mais revoltantes evocações, são 
  apenas crianças ao pé do Santo Antônio da lenda que os tirava 
  aos milhares do inferno e os arrastava sempre consigo, como de Orfeu se conta 
  que atraía para si os carvalhos, as rochas e os animais mais selvagens.
  Somente Callot, iniciado pelos boêmios nômades durante a infância 
  aos mistérios da bruxaria negra,
  pôde compreender e reproduzir as evocações do primeiro eremita. 
  E credes que ao descreverem os
  sonhos assustadores da maceração e do jejum, os legendários 
  tenham inventado? Não; ficaram muito
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  105
  aquém da realidade. Os claustros, com efeito, sempre foram povoados por 
  espectros sem nome, cujas sombras e larvas infernais pulsam em suas paredes. 
  Certa vez, Santa Catarina de Sena passou oito dias em meio a uma orgia obscena 
  que teria desencorajado a veia poética de Aretino; Santa Teresa sentiu-se 
  transportada viva ao inferno e aí sofreu, entre muralhas que se juntavam, 
  angústias que apenas as mulheres histéricas poderão compreender... 
  Tudo isso, dir-se-á, passava-se na imaginação dos pacientes. 
  Mas onde, pois, quereis que se possam passar fatos de ordem sobrenatural? O 
  certo é que todos esses visionários viram, tocaram, tiveram o 
  sentimento lancinante de uma realidade aterradora. Falamos baseados em nossa 
  própria experiência, e há visões de nossa primeira 
  juventude passada num recolhimento e num ascetismo cuja lembrança ainda 
  nos faz estremecer.
  Deus e o diabo são o ideal do bem e do mal absolutos. Mas o homem nunca 
  concebe o mal absoluto senão como uma falsa idéia do bem. Só 
  o bem pode ser absoluto, e o mal é relativo unicamente a nossas ignorâncias 
  e a nossos erros. Todo homem para ser deus faz-se primeiro diabo; mas, como 
  a lei da solidariedade é universal, a hierarquia existe no inferno como 
  no céu. Um ser malévolo sempre encontrará um pior do que 
  ele para fazer-lhe mal; e quando o mal atinge seu ápice é preciso 
  que cesse, pois só poderia continuar pelo aniquilamento do ser, o que 
  é impossível. Então os homens-diabo, esgotados seu recursos, 
  recaem no domínio dos homens-Deus e são salvos por aqueles que 
  inicialmente pareciam ser suas vítimas; mas o homem que se esmera em 
  viver fazendo o mal presta homenagem ao bem por toda a inteligência e 
  energia que desenvolve em si próprio. É por isso que o grande 
  iniciador dizia em sua linguagem figurada: Sede frios ou quentes, porque se 
  sois mornos fazeis-me vomitar.
  O grande mestre, numa de suas parábolas, condena unicamente o preguiçoso 
  que enterrou seu depósito por medo de perdê-lo nas operações 
  arriscadas desse banco que se chama vida. Nada pensar, nada amar, nada querer, 
  nada fazer, eis o verdadeiro pecado. A natureza reconhece e recompensa apenas 
  os trabalhadores.
  A vontade humana desenvolve-se e aumenta pela atividade. Para querer realmente, 
  é preciso agir. A ação domina e sempre arrasta a inércia. 
  Tal é o segredo da influência dos pretensos celerados sobre as 
  pessoas supostamente honestas. Quantos poltrões e covardes crêem-se 
  virtuosos porque têm medo! Quantas mulheres honradas olham com inveja 
  para as prostitutas! Não faz ainda muito tempo os galerianos estavam 
  na moda. Por quê? Pensais que a opinião pública nunca possa 
  render homenagem ao vício? Não, mas ela faz justiça à 
  atividade e à audácia, e está na ordem que os covardes 
  infames estimem os bandidos audaciosos.
  A audácia unida à inteligência é a mãe de 
  todos os sucessos neste mundo. Para empreender, é preciso saber; para 
  realizar, é preciso querer; para querer verdadeiramente, é preciso 
  ousar; e, para recolher em paz os frutos da própria audácia, é 
  preciso calar-se.
  SABER, OUSAR, QUERER, CALAR-SE são, como dissemos antes, os quatro verbos 
  cabalísticos que correspondem às quatro letras do tetragrama e 
  às quatro formas hieroglíficas da Esfinge. Saber é a cabeça 
  humana; ousar são as garras do leão; querer são as ilhargas 
  laboriosas do touro; calar-se são as asas místicas da águia. 
  Apenas mantém-se acima dos outros homens quem não prostitui os 
  segredos de sua inteligência aos comentários e ao escárnio 
  daqueles. Todos os homens verdadeiramente fortes são magnetizadores e 
  o agente universal obedece à sua vontade. É assim que eles operam 
  maravilhas. Fazem-se acreditar, fazem-se seguir e quando dizem:
  Isto é assim, a natureza de certa forma muda aos olhos do vulgo e torna-se 
  o que o grande homem quis. Isto é minha carne e isto é meu sangue, 
  disse um homem que se fez Deus por suas virtudes e, em presença de um 
  pedaço de pão e de um pouco de vinho, dezoito séculos viram, 
  tocaram, provaram, adoraram a carne e o sangue divinizados pelo martírio! 
  Dizei-nos agora que a vontade humana nunca realiza milagres!
  Não nos faleis aqui de Voltaire, Voltaire não foi um taumaturgo, 
  foi o espiritual e eloqüente
  intérprete daqueles sobre os quais os milagres não agiam mais. 
  Tudo em sua obra é negativo; ao
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  106
  contrário, tudo era afirmativo na de Galileu, como o chamava um ilustre 
  e muito infeliz imperador. Do mesmo modo, Juliano tentara em sua época 
  mais do que Voltaire pôde realizar, queria opor o prestígio aos 
  prestígios, a austeridade do poder à do protesto, as virtudes 
  às virtudes, os milagres aos milagres; os cristãos jamais tiveram 
  inimigos tão perigosos, e sentiram-no bem, pois Juliano foi assassinado, 
  e a lenda dourada ainda atesta que um santo mártir, acordado na tumba 
  pelos clamores da Igreja, pegou das armas e feriu o apóstata no ombro 
  em meio a seu exército e a suas vitórias. Tristes mártires 
  que ressuscitam para serem algozes! Crédulo imperador que se fiava em 
  seus deuses e nas virtudes dos tempos antigos.
  Quando os reis da França viviam cercados pela adoração 
  de seu povo, quando eram vistos como os ungidos do Senhor e os primogênitos 
  da Igreja, curavam escrófulas. Um homem em voga fará milagres 
  quando quiser. Cagliostro podia ser apenas um charlatão, mas, desde que 
  a opinião pública fizera dele o divino Cagliostro, ele devia operar 
  prodígios, e foi também o que aconteceu. Quando Céphas 
  Barjona era apenas um judeu, proscrito por Nero e que vendia às mulheres 
  dos escravos um específico para a vida eterna, não passava de 
  um charlatão para todas as pessoas instruídas de Roma; mas a opinião 
  pública fez do empírico espiritualista um apóstolo; e os 
  sucessores de Pedro, sejam eles Alexandre VI ou mesmo João XXII, são 
  infalíveis para todo homem bem-educado e que não deseje ser inutilmente 
  banido da sociedade. Assim segue o mundo. O charlatanismo, quando bem-sucedido, 
  é, pois, em magia como em todas as coisas, um grande instrumento de poder. 
  Fascinar habilmente o vulgo não é já dominá-lo? 
  Vê-se que os pobres-diabos dos bruxos que, na Idade Média, tolamente 
  faziam-se queimar vivos não tinham um grande domínio sobre os 
  outros. Joana d'Arc era mágica à frente dos exércitos, 
  e em Rouen a pobre moça não foi bruxa. Sabia apenas orar e combater, 
  e o prestígio que a rodeava cessou assim que lhe colocaram os grilhões. 
  Consta de sua história que o rei da França a tenha reclamado? 
  Que a nobreza francesa, que o povo, que o exército tenham protestado 
  contra sua condenação? O papa, de quem o rei da França 
  era o primogênito, excomungou os algozes da Virgem? Não, nada disso. 
  Joana d'Arc foi bruxa para todos assim que deixou de ser mágica, e certamente 
  não foram os ingleses os únicos a queimá-la. Quando se 
  exerce um poder aparentemente sobre-humano, é preciso exercê-lo 
  sempre ou resignar-se a perecer. O mundo vinga-se sempre covardemente por ter 
  acreditado muito, admirado muito e sobretudo obedecido muito.
  Só compreendemos o poder mágico em sua aplicação 
  às grandes coisas, se um verdadeiro mágico prático não 
  se torna mestre do mundo é porque o desdenha; e para que desejaria diminuir 
  seu soberano poder? "Eu te darei todos os reinos do mundo se tu caíres 
  a meus pés e me adorares", diz a Jesus o satã da parábola. 
  "Retira-te", diz-lhe o Salvador, "pois está escrito: Tu 
  adorarás somente a Deus..." Eli, Eli lammah Sabbachtani! devia gritar 
  mais tarde esse sublime e divino adorador de Deus. Se tivesse respondido a satã: 
  Não te adorarei e és tu que vais cair a meus pés, pois 
  ordeno-te em nome da inteligência e da eterna razão!, não 
  teria devotado sua santa e nobre vida ao mais atroz de todos os suplícios. 
  O satã da montanha foi bem cruelmente vingado. Os antigos chamavam a 
  magia prática de arte sacerdotal e arte real; e lembramos que os magos 
  foram os mestres da civilização primitiva, porque foram os mestres 
  de toda a ciência de seu tempo. Saber é poder quando se ousa querer.
  A primeira ciência do cabalista prático ou do mago é o conhecimento 
  dos homens. A frenologia, a psicologia, a quiromancia, a observação 
  dos gostos e dos movimentos, do som da voz e das impressões, sejam simpáticas, 
  sejam antipáticas, são ramos dessa arte, e os antigos não 
  os ignoravam. Gall e Spurzëim reencontraram em nossos dias a frenologia, 
  Laváter depois de Porta.
  Cardano, Taisnier, Jean Belot e alguns outros novamente adivinharam mais do 
  que reencontraram a
  ciência da psicologia; a quiromancia está ainda oculta e é 
  com dificuldade que se encontram alguns
  traços seus na obra bastante recente e muito interessante, aliás, 
  do cavalheiro d'Arpentigny. Para se
  ter noções suficientes dessa ciência é preciso remontar 
  às próprias fontes cabalísticas em que se
  inspirou o sábio Cornélius Agrippa. É oportuno, pois, dizer 
  algumas palavras a esse respeito,
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  107
  enquanto aguardamos a obra de nosso amigo Desbarolles.
  A mão é no homem o instrumento da ação; é, 
  como o rosto, uma espécie de síntese nervosa, e também 
  deve ter seus traços e sua fisionomia. O caráter dos indivíduos 
  está traçado aí em signos irrefutáveis. Assim, dentre 
  as mãos, umas são laboriosas, outras preguiçosas; umas 
  pesadas e quadradas, outras insinuantes e leves. As mãos duras e secas 
  são feitas para a luta e o trabalho, as mãos macias e úmidas 
  aspiram somente à volúpia. Os dedos pontudos são escrutadores 
  e místicos, os dedos quadrados, matemáticos, os dedos espatulados, 
  pertinazes e ambiciosos. O polegar, pollex, o dedo da força e do poder, 
  corresponde no simbolismo cabalístico à primeira letra do nome 
  de Jehovah. Esse dedo, pois, é por si só como a síntese 
  da mão: se ele é forte, o homem é forte moralmente; se 
  é fraco, o homem é frágil. Ele possui três falanges, 
  das quais a primeira está oculta na palma da mão, como o eixo 
  imaginário do mundo atravessa a espessura da terra. Essa primeira falange 
  corresponde à vida física, a segunda à inteligência, 
  a última à vontade. As palmas da mão gordas e espessas 
  denotam gostos sensuais e uma, grande força física; um polegar 
  longo, sobretudo em sua última falange, revela uma vontade forte que 
  pode chegar ao despotismo; polegares curtos, ao contrário, são 
  caracteres dóceis e fáceis de dominar. As pregas naturais da mão 
  determinam suas linhas. Essa linhas, portanto, são o traço dos 
  hábitos, e o observador paciente saberá reconhecê-las e 
  julgá-las. O homem cuja mão fecha-se mal é desastrado ou 
  infeliz. A mão tem três funções principais: pegar, 
  segurar e apalpar. As mãos mais macias pegam e apalpam melhor; as mãos 
  duras e fortes retêm mais tempo. Mesmo as mais leves rugas atestam as 
  sensações habituais desse órgão. Cada dedo, aliás, 
  tem uma função especial que lhe ocasionou o nome. Já falamos 
  do polegar; o indicador é o dedo que aponta, é o do verbo e da 
  profecia; o médio domina toda a mão, é o do destino; o 
  anular é o das alianças e das honras: os quiromantes consagraram-no 
  ao sol; o auricular é insinuante e loquaz, ao menos no dizer dos simplórios 
  e das amas a quem seu dedinho conta tantas coisas: a mão tem sete protuberâncias 
  que os cabalistas, segundo as analogias naturais, atribuíram aos sete 
  planetas: a do polegar, a Vênus; do indicador, a Júpiter; do médio, 
  a Saturno; do anular, ao Sol; do auricular, a Mercúrio; dos dois outros, 
  a Marte e à Lua. De acordo com sua forma e sua predominância, eles 
  julgavam os atrativos, as aptidões e, por conseguinte, os prováveis 
  destinos dos indivíduos submetidos à sua apreciação. 
  Não existe vício que não deixe marca, nem uma virtude que 
  não tenha seu sinal. Além disso, para os olhos exercitados do 
  observador, não há hipocrisia possível. Compreender-se-á 
  que tal ciência já é um poder verdadeiramente sacerdotal 
  e real.
  A predição dos principais acontecimentos da vida já é 
  possível pelas numerosas probabilidades analógicas dessa observação, 
  contudo existe uma faculdade que se designa pressentimentos ou sensitivismo. 
  As coisas eventuais freqüentemente existem em sua causa antes de realizarem-se 
  em ações, os sensitivos vêem antecipadamente os efeitos 
  nas causas, e existiram antes de todos os grandes acontecimentos surpreendentes 
  predições. Durante o reinado de Luís Filipe, ouvimos sonâmbulos 
  e extáticos anunciarem a volta do Império e precisarem a data 
  de seu advento. A República de 1848 estava claramente anunciada na profecia 
  de Orval, que datava no mínimo de 1830 e de que suspeitamos, bem como 
  daquelas atribuídas aos Olivarius, ter sido obra pseudônima de 
  Mlle. Lenormand. Mas isso pouco importa para nossa tese.
  Essa luz magnética que faz prever o futuro também faz adivinhar 
  as coisas presentes e ocultas; como
  é a vida universal, ela é também o agente da sensibilidade 
  humana, transmitindo a uns os males ou a
  saúde dos outros, segundo a influência fatal dos contatos ou as 
  leis da vontade. É o que explica o
  poder das bênçãos e dos feitiços tão claramente 
  reconhecido pelos grandes adeptos e sobretudo pelo
  maravilhoso Paracelso. Um crítico judicioso e sagaz, M. Ch. Fauvety, 
  num artigo publicado pela
  Revista Filosófica e Religiosa, aprecia de modo notável os trabalhos 
  avançados de Paracelso,
  Pomponace, Goglenius, Crollius e Robert Flud sobre o magnetismo. Mas o que nosso 
  sábio amigo e
  colaborador estuda somente como uma curiosidade filosófica, Paracelso 
  e os seus praticavam sem
  preocuparem-se muito em torná-lo compreensível para o mundo, pois 
  era segundo eles, um desses
  segredos tradicionais para os quais o ocultismo é de rigor, e que basta 
  indicar aos que sabem,
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  108
  deixando sempre um véu sobre a verdade para desorientar os ignorantes. 
  Ora, eis o que Paracelso reservava somente para os iniciados, e que compreendemos 
  ao definir os caracteres cabalísticos e as alegorias de que ele faz uso 
  na coleção de suas obras:
  A alma humana é material, o mens divino lhe é oferecido para imortalizá-la 
  e fazê-la viver espiritual e individualmente, mas sua substância 
  natural é fluídica e coletiva. Há no homem, pois, duas 
  vidas, a individual ou racional, e a vida comum ou instintiva. É por 
  esta última que se pode viver uns nos outros, uma vez que a alma universal, 
  como todo organismo nervoso com uma consciência separada, é a mesma 
  para todos. Vivemos da vida comum e universal no embrionato, no êxtase 
  e no sono. De fato, no sono a razão não age, e a lógica, 
  quando é encontrada em nossos sonhos, ocorre apenas fortuitamente e segundo 
  os acasos das reminiscências puramente físicas.
  Nos sonhos, temos a consciência da vida universal; misturamo-nos à 
  água, ao fogo, ao ar e à terra; voamos como os pássaros; 
  escalamos como os esquilos; rastejamos como as serpentes; estamos embriagados 
  de luz astral; tornamos a mergulhar na morada comum, como acontece de modo mais 
  completo na morte; mas então (e é assim que Paracelso explica 
  os mistérios da outra vida) os maus, isto é, aqueles que se deixaram 
  dominar pelos instintos da besta em prejuízo da razão humana, 
  afogam-se no oceano da vida comum com todas as angústias de uma morte 
  eterna; os outros flutuam e gozam para sempre das riquezas daquele ouro fluido 
  que conseguiram dominar. Essa identidade da vida física permite às 
  vontades mais fortes apoderarem-se da existência das outras e tornarem-se 
  suas auxiliares, explica as correntes simpáticas que ocorrem em proximidade 
  ou à distância, e dá todo o segredo da medicina oculta, 
  porque essa medicina tem por princípio a grande hipótese das analogias 
  universais e, atribuindo todos os fenômenos da vida física ao agente 
  universal, ensina que é preciso agir sobre o corpo astral para reagir 
  sobre o corpo materialmente visível; ensina também que a essência 
  da luz astral é um duplo movimento de atração e de projeção; 
  assim como os corpos humanos atraem-se e repelem-se uns aos outros, podem também 
  absorver-se, propagar-se uns nos outros e realizar trocas; as idéias 
  ou as imaginações de um podem influenciar sobre a forma do outro 
  e reagir em seguida sobre o corpo exterior. Assim produzem-se os fenômenos 
  tão estranhos da influência dos olhares na gravidez, assim a proximidade 
  de pessoas doentes causa maus sonhos, assim a alma respira algo de insalubre 
  na companhia dos loucos e dos maus.
  Pode-se observar que nos pensionatos as crianças adquirem um pouco a 
  fisionomia umas das outras; cada casa de educação tem, por assim 
  dizer, um ar de família que lhe é próprio. Nos escolas 
  de órfãs dirigidas por religiosas, todas as garotas parecem-se 
  e adquirem todas essa fisionomia obediente e apagada que caracteriza a educação 
  ascética. Os homens tornam-se belos na escola do entusiasmo, das artes 
  ou da glória; tornam-se feios na prisão, e de ar triste nos seminários 
  e nos conventos. Aqui se compreende que abandonamos Paracelso para entrar nas 
  conseqüências e nas aplicações de suas idéias, 
  que são simplesmente as dos antigos magos e os elementos dessa cabala 
  física que chamamos magia.
  Segundo os princípios cabalísticos formulados pela escola de Paracelso, 
  a morte seria apenas um
  sono cada vez mais profundo e definitivo, que seria possível interromper 
  em seu início exercendo
  uma poderosa ação de vontade sobre o corpo astral que se desprende 
  e chamando-o de volta à vida
  por algum interesse poderoso ou alguma afeição dominante. Jesus 
  exprimia o mesmo pensamento
  quando dizia da filha de Jairo: "Esta moça não está 
  morta, está dormindo"; e de Lázaro: "Nosso
  amigo adormeceu e vou acordá-lo." Para exprimir esse sistema ressurreicionista 
  de modo que não
  ofenda o senso comum, isto é, as opiniões geralmente adotadas, 
  digamos que a morte, quando não há
  destruição ou alteração essencial dos órgãos, 
  é sempre precedida de uma letargia mais ou menos
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  109
  longa. (A ressurreição de Lázaro, se tivesse de ser admitida 
  como fato científico, provaria que esse estado pode durar quatro dias).
  Voltemos agora ao segredo da pedra filosofal que demos somente em hebraico não 
  pontuado no Ritual da Alta Magia. Eis o texto completo em latim, tal como é 
  encontrado à página 144 do Sepher Yétsirah, comentado pelo 
  alquimista Abraão (Amsterdam, 1642):
  Semita XXXI
  Vocatur intelligentia perpetua; et quare vocatur ita? Eo quod ducit motum solis 
  et lunae juxta constitutionem eorum; utrumque in orbe sibi conveniente.
  Rabbi Abraham F.'. D.'. dicit:
  Semita trigésima prima vocatur intelligentia perpetua: et illa ducit 
  solem et lunam et reliquas stellas et figuras, unum quodque in orbe suo, et 
  impertit omnibus creatis juxta dispositionem ad signa et figuras.
  Eis a tradução do texto hebraico que transcrevemos em nosso ritual:
  "A trigésima primeira via chama-se inteligência perpétua 
  e rege o sol e a lua e as outras estrelas e figuras, cada qual em seu orbe respectivo. 
  E distribui o que convém a todas as coisas criadas segundo sua disposição 
  nos signos e nas figuras."
  Vê-se que esse texto é ainda totalmente obscuro para alguém 
  que não conhece o valor característico de cada uma das trinta 
  e duas vias. (As trinta e duas vias são os dez números e as vinte 
  e duas letras hieroglíficas da Cabala. A trigésima primeira refere-se 
  ao a , que representa a lâmpada mágica ou a luz entre os chifres 
  de Baphomet. É o signo cabalístico do od ou da luz astral com 
  seus dois pólos e seu centro equilibrado. Sabe-se que na linguagem dos 
  alquimistas o sol significa o olho, a lua, a prata, e que as outras estrelas 
  ou planetas referem-se aos outros metais. Deve-se compreender agora o pensamento 
  do judeu Abraão.
  O fogo secreto dos mestres em alquimia era, pois, a eletricidade, e aí 
  está a metade de seu grande arcano; mas eles sabiam equilibrar sua força 
  por uma influência magnética que concentravam em seu atanor. É 
  o que resulta dos dogmas obscuros de Basílio Valentim, Bernard Trévisan 
  e Henri Kunrath, que pretendem, todos, ter operado a transmutação 
  como Raimundo Lúlio, Arnaud de Villeneuve e Nicolas Flamel.
  A luz universal, quando imanta os mundos, chama-se luz astral; quando forma 
  os metais, denomina-se azote, ou mercúrio dos sábios; quando dá 
  vida aos animais, deve chamar-se magnetismo animal.
  O bruto sofre as fatalidades dessa luz; o homem pode dirigi-la. É a inteligência 
  que, ao adaptar o sinal ao pensamento, cria as formas e as imagens.
  A luz universal é como a imaginação divina, e esse mundo 
  que muda sem cessar, permanecendo sempre o mesmo quanto às suas leis 
  de configuração, é o sonho imenso de Deus.
  O homem formula a luz por sua imaginação; atrai para si luz suficiente 
  para dar as formas
  convenientes a seus pensamentos e mesmo a seus sonhos; se essa luz o invade, 
  se afoga seu
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  110
  entendimento nas formas que evoca, fica louco. Mas a atmosfera fluídica 
  dos loucos freqüentemente é um veneno para as razões vacilantes 
  e para as imaginações exaltadas. As formas que a imaginação 
  superexcitada produz para perturbar o entendimento são tão reais 
  quanto as impressões da fotografia. Não se pode ver o que não 
  existe. Os fantasmas dos sonhos, e os próprios sonhos das pessoas acordadas, 
  são, pois, imagens reais que existem na luz. Existem, aliás, alucinações 
  contagiosas. Mas afirmamos aqui algo mais do que alucinações comuns. 
  Se as imagens atraídas pelos cérebros doentes são algo 
  real, eles não podem projetá-las exteriormente, reais como as 
  recebem?
  Essas imagens, projetadas por todo o organismo nervoso do médium, não 
  podem afetar todo o organismo daqueles que, deliberadamente ou não, entram 
  em simpatia nervosa com o médium? Os feitos do senhor Home provam que 
  tudo isso é possível.
  Agora, respondamos aos que crêem ver nesses fenômenos manifestações 
  do outro mundo e fatos de necromancia.
  Tomamos nossa resposta emprestada ao livro sagrado dos cabalistas, e nisto nossa 
  doutrina é igual à dos rabinos compiladores do Zohar.
  Axioma
  O espírito reveste-se para descer e despoja-se para subir.
  De fato: Por que os espíritos criados são revestidos de corpos? 
  É que eles devem ser limitados para terem uma existência possível. 
  Despojados de corpo e, por conseguinte, tornados sem limites, os espíritos 
  criados se perderiam no infinito, e, por não poderem concentrar-se em 
  algum lugar, estariam mortos e impotentes em toda a parte, porque estariam precipitados 
  na imensidão de Deus.
  Todos os espíritos, portanto, têm corpos, uns mais delgados, outros 
  mais espessos, segundo os meios em que foram chamados a viver.
  A alma de um morto não poderia, pois, viver na atmosfera dos vivos, assim 
  como nós não poderíamos viver na terra ou na água.
  Seria necessário a um espírito aéreo, ou antes, etéreo, 
  um corpo factício semelhante aos aparelhos de mergulhadores, para que 
  pudesse chegar até nós.
  Tudo o que podemos ver dos mortos são os reflexos que deixaram na luz 
  atmosférica, luz cujas impressões evocamos pela simpatia de nossas 
  lembranças.
  As almas dos mortos estão acima de nossa atmosfera. Nosso ar respirável 
  torna-se terra para eles.
  Foi o que o Salvador declarou em seu Evangelho, quando fez a alma de um bem-aventurado 
  dizer:
  "Agora o grande caos firmou-se para nós, e os que estão no 
  alto não podem mais descer para os que estão embaixo."
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  111
  As mãos que o senhor Home faz aparecer são, pois, ar colorido 
  pelos reflexos que sua imaginação doente atrai e projeta.
  São tocadas como são vistas: metade ilusão, metade força 
  magnética e nervosa.
  A nosso ver aí estão explicações bastante claras 
  e precisas.
  Raciocinemos um pouco com os partidários de aparições do 
  outro mundo:
  Ou essas mãos são corpos reais.
  Ou são ilusões.
  Se são corpos, não são, portanto, espíritos.
  Se são ilusões produzidas por miragens, seja em nós, seja 
  fora de nós, então vós me dais ganho de causa.
  Agora, uma observação:
  Todos os doentes de congestão luminosa ou de sonambulismo contagioso 
  perecem de morte violenta, ou pelo menos de morte súbita.
  É por essa razão que antigamente se atribuía ao diabo o 
  poder de estrangular os bruxos.
  O bom e honesto Laváter evocava habitualmente o suposto espírito 
  de Gablidone.
  Foi assassinado.
  Um vendedor de limonadas de Leipsick, Scroepfer, evocava imagens animadas dos 
  mortos.
  Suicidou-se com um tiro de pistola.
  Sabe-se qual foi o final infeliz de Cagliostro.
  Apenas um mal maior que a própria morte pode salvar a vida desses experimentadores 
  imprudentes. Podem tornar-se idiotas ou loucos, e então só não 
  morrem se forem atentamente vigiados para impedir que se suicidem.
  As doenças magnéticas por si próprias são um encaminhamento 
  para a loucura, e sempre nascem da hipertrofia ou da atrofia do sistema nervoso.
  Assemelham-se ao histerismo, que é uma de suas variações, 
  e freqüentemente são produzidas ou por excessos de celibato, ou 
  por excessos de um gênero totalmente oposto. Sabe-se qual a relação 
  existente entre o cérebro e os órgãos encarregados pela 
  natureza da realização de suas obras mais nobres: as que têm 
  por finalidade a reprodução dos seres. Não se viola impunemente 
  o santuário da natureza.
  Ninguém ergue, sem arriscar a própria vida, o véu da grande 
  Ísis.
  A natureza é casta, e é à castidade que ela deve as chaves 
  da vida.
  Entregar-se aos amores impuros é desposar a morte.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  112
  A liberdade, que é a vida da alma, se conserva apenas na ordem da natureza. 
  Toda desordem voluntária a fere, um excesso prolongado a mata.
  Então, ao invés de sermos guiados e preservados pela razão, 
  somos abandonados às fatalidades do fluxo e do refluxo da luz magnética.
  Ora, a luz magnética devora sem cessar porque está sempre criando; 
  para produzir continuamente, é preciso eternamente absorver.
  Daí vêm as monomanias assassinas e as tentações de 
  suicídio. Daí vem esse espírito de perversidade que Edgar 
  Poe descreveu de forma tão impressionante e tão verdadeira, e 
  que Mirville teria razão em chamar diabo.
  O diabo é a vertigem da inteligência atordoada pelas oscilações 
  do coração. É a monomania do nada, é a atração 
  do abismo, independentemente do que isso possa ser segundo as decisões 
  da fé católica, apostólica e romana, em que não 
  receamos tocar. Quanto à reprodução dos signos e dos caracteres 
  por esse fluido universal a que chamamos luz astral, negar sua possibilidade 
  seria importar-se pouco com os fenômenos mais comuns da natureza. A miragem 
  nas estepes da Rússia, os palácios da fada Morgana, as figuras 
  impressas naturalmente no coração das pedras que Gaffarel denomina 
  gamahés, a configuração monstruosa de algumas crianças 
  proveniente dos olhares ou pesadelos das mães, todos esses fenômenos 
  e muitos outros provam que a luz está repleta de imagens e reflexos que 
  projeta e reproduz de acordo com as evocações da imaginação, 
  da lembrança ou do desejo. A alucinação não é 
  sempre um devaneio sem objeto: desde que todos vêem uma coisa, ela certamente 
  é visível; mas, se essa coisa é absurda, deve-se rigorosamente 
  concluir que todos estão enganados ou alucinados por uma aparência 
  real. Dizer, por exemplo, que nas sessões magnéticas do senhor 
  Home saem das mesas mãos reais e vivas, mãos verdadeiras, que 
  uns vêem, que outros tocam, e pelas quais outros ainda sentem-se tocados 
  sem vê-Ias, dizer que essas mãos verdadeiramente corporais são 
  mãos de espíritos é falar como crianças ou como 
  loucos, é implicar contradição nos termos. Mas reconhecer 
  que esta ou aquela aparência, esta ou aquela sensação se 
  produz é ser simplesmente sincero e zombar da zombaria dos homens probos 
  ainda quando esses homens fossem espirituosos como este ou aquele redator brincalhão 
  do jornal.
  Esses fenômenos de luzes que produzem aparições mostraram-se 
  sempre em épocas difíceis para a humanidade. São os fantasmas 
  da febre do mundo, é o histerismo de uma sociedade que se entedia. Virgílio 
  conta-nos em belos versos que, na época de César, Roma estava 
  repleta de espectros; sob Vespasiano, as portas do Templo de Jerusalém 
  abriam-se sozinhas, e ouvia-se gritar: "Os deuses se vão." 
  Ora, quando os deuses partem, os diabos retornam. O sentimento religioso transforma-se 
  em superstição quando a fé está perdida; pois as 
  almas têm necessidade de acreditar, porque têm sede de ter esperança. 
  Como a fé pode perder-se? Como a ciência pode duvidar do infinito 
  e da harmonia? Porque o santuário do absoluto está sempre fechado 
  para a maioria. Mas o reino da verdade, que é o de Deus, sofre violências 
  e deve ser conquistado pelos fortes. Existe um dogma, uma chave, uma tradição 
  sublime; e esse dogma, essa chave, essa tradição é a alta 
  magia. Apenas aí encontram-se o absoluto da ciência e a base eterna 
  da lei, o preservativo contra toda loucura, toda superstição e 
  todo erro, o Éden da inteligência, o repouso do coração 
  e a quietude da alma. Não dizemos isso na esperança de convencer 
  os que riem, mas somente para advertir os que procuram. Coragem e esperança 
  a estes; eles certamente encontrarão, uma vez que nós encontramos.
  O dogma mágico não é aquele dos médiuns. Os médiuns 
  que dogmatizam só podem ensinar a
  anarquia, uma vez que sua inspiração resulta de uma exaltação 
  desordenada. Eles sempre prevêem
  desastres, negam a autoridade hierárquica, assumem a postura de soberanos 
  pontífices, como
  Vintras. O iniciado, ao contrário, respeita antes de tudo a hierarquia, 
  ama e conserva a ordem,
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  113
  inclina-se diante das crenças sinceras, ama todos os signos da imortalidade 
  na fé e da redenção pela caridade, que é toda ela 
  disciplina e obediência.
  Acabamos de ler um livro publicado sob a influência da vertigem astral 
  e magnética e ficamos chocados com as tendências anárquicas 
  de que ele está repleto sob uma grande aparência de benevolência 
  e religião. Encabeçando a obra, vê-se o signo, ou, como 
  dizem os magistas, a assinatura das doutrinas que ela ensina. Em vez da cruz 
  cristã, símbolo de harmonia, aliança e regularidade, vê-se 
  aí a vara de videira tortuosa, com seus brotos em gavinhas, imagens da 
  alucinação e da embriaguez.
  As primeiras idéias formuladas nesse livro são o cúmulo 
  do absurdo. As almas dos mortos, diz ele, estão em toda a parte, e nada 
  mais as limita. Eis o infinito todo povoado de deuses que entram uns nos outros. 
  As almas podem e querem comunicar-se conosco por meio das mesas e dos chapéus. 
  Assim, nada mais de ensino regulamentado, de sacerdócio, de Igreja, o 
  delírio alçado à condição de verdade, oráculos 
  que escrevem para a salvação do gênero humano a palavra 
  atribuída a Cambronne, grandes homens que deixam a serenidade dos destinos 
  eternos para fazer dançarem nossos móveis e manter conosco conversas 
  semelhantes àquelas que lhes empresta Béroalde de Verville como 
  meio de ter sucesso. Tudo isso causa piedade; e no entanto, na América, 
  propaga-se como uma peste intelectual. A jovem América delira, tem febre, 
  talvez esteja em sua primeira dentição. Mas a França! A 
  França acolher semelhantes coisas! Não, isso não é 
  possível, e isso não é. Mas, ao renegarem as doutrinas, 
  os homens sérios devem observar os fenômenos, permanecer calmos 
  em meio às agitações de todos os fanatismos (pois a incredulidade 
  também tem o seu), julgar após haver examinado. Conservar a razão 
  em meio aos loucos, a fé em meio às superstições, 
  a dignidade em meio aos caracteres enfraquecidos e a independência em 
  meio aos carneiros de Panurgo é de todos os milagres o mais raro, o mais 
  belo e também o mais difícil de realizar.
  Capitulo IV
  Os fantasmas fluídicos e seus mistérios
  Os antigos davam-lhes diferentes nomes. Eram larvas, lêmures, empusas. 
  Gostavam do vapor do sangue derramado, e fugiam do gume do gládio.
  A teurgia evocava-os, e a cabala conhecia-os sob o nome de espíritos 
  elementares.
  No entanto, não eram espíritos, pois eram mortais.
  Eram coagulações fluídicas que se podiam destruir, dividindo-as. 
  Eram espécies de miragens animadas, emanações imperfeitas 
  da vida humana: as tradições da magia negra as fazem nascer do 
  celibato de Adão. Paracelso diz que os vapores do sangue das mulheres 
  histéricas povoam o ar de fantasmas; e essas idéias são 
  tão antigas que as encontramos em Hesíodo, que defende expressamente 
  fazer secar diante do fogo roupa branca manchada por uma poluição 
  qualquer.
  As pessoas obcecadas pelos fantasmas geralmente estão exaltadas por um 
  celibato muito rigoroso, ou enfraquecidas por excessos de devassidão.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  114
  Os fantasmas fluídicos têm os abortos da luz vital; são 
  mediadores plásticos sem corpo e sem espírito, nascidos dos excessos 
  do espírito e dos desregramentos do corpo. Esses mediadores errantes 
  podem ser atraídos por certos doentes que lhes são fatalmente 
  simpáticos, e que lhes emprestam, às suas expensas, uma existência 
  factícia mais ou menos durável. Servem, então, de instrumentos 
  suplementares para as vontades instintivas desses doentes: nunca, todavia, para 
  curá-los, sempre para desviá-los e aluciná-los mais.
  Se os embriões corporais têm a propriedade de tomar as formas que 
  lhes dá a imaginação das mães, os embriões 
  fluídicos errantes devem ser prodigiosamente variáveis e transformar-se 
  com uma surpreendente facilidade. Sua tendência a darem-se um corpo para 
  atrair uma alma faz com que condensem e assimilem, naturalmente, as moléculas 
  corporais que flutuam na atmosfera. Assim, ao coagularem o vapor do sangue, 
  refazem sangue, o mesmo sangue que os maníacos alucinados vêem 
  escorrer nos quadros e nas estátuas. Mas não são os únicos 
  a vê-lo. Vintras e Rose Tamisier não são impostores nem 
  vítimas de alguma ilusão; o sangue escorre realmente; médicos 
  examinam-no; analisam-no; é sangue, verdadeiro sangue humano: de onde 
  vem? Pode ter se formado espontaneamente na atmosfera? Pode sair naturalmente 
  de um mármore, unia tela pintada ou uma hóstia? Não, certamente; 
  esse sangue circulou em veias, depois propagou-se, evaporou-se, dessecou-se, 
  o soro tornou-se vapor, os glóbulos poeira intangível, o todo 
  flutuou e voltejou na atmosfera, depois foi atraído para a corrente de 
  um eletromagnetismo especificado. O soro voltou a ser líquido, retomou 
  e embebeu novamente os glóbulos que a luz astral coloriu, e o sangue 
  escorreu. A fotografia é prova suficiente de que as imagens são 
  modificações reais da luz. Ora, existe uma fotografia acidental 
  e fortuita que opera, segundo as miragens errantes na atmosfera, impressões 
  duráveis em folhas de árvores, na madeira e até no coração 
  das pedras: assim formam-se as figuras naturais a que Gaffarel consagrou várias 
  páginas em seu livro Curiosidades Inauditas, as pedras a que ele atribui 
  uma virtude oculta, e que denomina gamahés; assim traçam-se as 
  escrituras e os desenhos que tanto surpreendem os observadores dos fenômenos 
  fluídicos. São fotografias astrais feitas pela imaginação 
  dos médiuns com ou sem a ajuda das larvas fluídicas. A existência 
  dessas larvas nos foi demonstrada de modo peremptório por uma experiência 
  bastante curiosa. Várias pessoas, para testar o poder mágico do 
  americano Home, pediram-lhe que evocasse parentes que elas alegavam ter perdido, 
  mas que na realidade jamais existiram. Os espectros não faltaram a esse 
  apelo, e os fenômenos que habitualmente seguiam-se à evocação 
  do médium manifestaram-se plenamente.
  Essa experiência por si só bastaria para convencer de credulidade 
  deplorável e de erro formal os que crêem na intervenção 
  dos espíritos nesses fenômenos estranhos. Para que mortos retornem, 
  é preciso antes de mais nada que tenham existido, e demônios não 
  seriam tão facilmente enganados por nossas mistificações.
  Como todos os católicos, acreditamos na existência dos espíritos 
  das trevas; mas sabemos também que o poder divino lhes deu as trevas 
  por prisão eterna e que o Redentor viu Satã cair do céu 
  como um raio. Se os demônios nos tentam é pela cumplicidade voluntária 
  de nossas paixões más, e não lhes é permitido afrontar 
  o império de Deus e perturbar, por manifestações tolas 
  e inúteis, a ordem eterna da natureza.
  Os caracteres e assinaturas diabólicos, que se produzem à revelia 
  dos médiuns, evidentemente não são provas de um pacto tácito 
  ou formal entre esses doentes e as inteligências do abismo. Esses signos 
  serviram em todos os tempos para exprimir a vertigem astral e permaneceram no 
  estado de miragem nos reflexos da luz extraviada. A natureza também tem 
  suas reminiscências e envia-nos os mesmos signos com relação 
  às mesmas idéias. Não há nisso nada de sobrenatural 
  nem de infernal.
  "Como quer o senhor que eu admita", dizia-nos o pároco Charvoz, 
  primeiro vigário de Vintras, "que
  Satã ousa imprimir seus hediondos estigmas nas espécies consagradas 
  e tornadas o próprio corpo de
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  115
  Jesus Cristo?" Declaramos logo que nos era igualmente impossível 
  pronunciarmo-nos a favor de semelhante blasfêmia; no entanto, como demonstramos 
  em nossos folhetins do jornal O Estafeta, os signos impressos em caracteres 
  sangrentos nas hóstias de Vintras, regularmente consagradas por Charvoz, 
  eram os que, na magia negra, são absolutamente reconhecidos como as assinaturas 
  dos demônios.
  As escrituras astrais são freqüentemente ridículas ou obscenas. 
  Os pretensos espíritos, interrogados sobre os maiores mistérios 
  da natureza, respondem muitas vezes com uma expressão grosseira tornada 
  heróica, segundo dizem, nos lábios militares de Cambronne. Os 
  desenhos que os lápis traçam por si sós reproduzem com 
  freqüência essas figuras priápicas informes, que o pálido 
  vadio, para servirmo-nos da pitoresca expressão de Augusto Barbier, desenha 
  assoviando ao longo dos muros de Paris, prova recente do que adiantamos, isto 
  é, que o espírito não preside de nenhum modo a essas manifestações 
  e que seria soberbamente absurdo reconhecer aí sobretudo a intervenção 
  dos espíritos desligados da matéria.
  O jesuíta Paul Saufidius, que escreveu sobre os usos e costumes dos japoneses, 
  narra um caso muito interessante. Um grupo de peregrinos japoneses, atravessando 
  um dia um deserto, viu aproximar-se um bando de espectros em igual número 
  ao seu e que caminhava no mesmo passo. Esses espectros, no princípio 
  disformes e semelhantes a larvas, tomavam ao se aproximarem a aparência 
  do corpo humano. Logo, encontraram os peregrinos e misturaram-se a eles, deslizando 
  em silêncio por entre as fileiras, então os japoneses viram-se 
  duplos, tendo cada fantasma se tornado a imagem perfeita e como que a miragem 
  de cada peregrino. Os japoneses aterrorizados prosternaram-se, e o bonzo que 
  os conduzia pôs-se a orar por eles com grandes contorsões e em 
  altos brados. Quando os peregrinos se levantaram, os fantasmas haviam desaparecido 
  e o grupo devoto pôde continuar livremente seu caminho. Esse fenômeno, 
  que não colocamos em dúvida, apresenta as duplas características 
  de uma miragem e de uma projeção repentina de larvas astrais, 
  ocasionadas pelo calor da atmosfera e esgotamento fanático dos peregrinos.
  O doutor Brière de Boismont, em seu curioso Tratado das Alucinações, 
  conta que um homem perfeitamente sensato, e que jamais tivera visões, 
  foi atormentado uma manhã por um terrível pesadelo. Viu em seu 
  quarto um macaco enorme, horrendo, que rangia os dentes e fazia as mais hediondas 
  contorsões. Acordou sobressaltado, era dia claro; saltou da cama e ficou 
  apavorado ao ver realmente o medonho objeto de seu sonho. O macaco estava lá 
  perfeitamente idêntico àquele do pesadelo, igualmente absurdo, 
  igualmente assustador e fazendo as mesmas caretas. O personagem em questão 
  não podia acreditar em seus olhos; permaneceu cerca de meia hora imóvel, 
  observando esse singular fenômeno e perguntando-se se estava com febre 
  alta ou se estava ficando louco. Aproximou-se, enfim, do fantástico animal 
  para tocá-lo e a aparição dissipou-se. Cornelius Gemma, 
  em sua História Crítica Universal, conta que em 454, na ilha de 
  Creta, o fantasma de Moisés apareceu para alguns judeus na praia; trazia 
  na fronte seus chifres luminosos, na mão sua vara fulminante, e convidava-os 
  a segui-lo apontando-lhes o horizonte na direção da Terra Santa. 
  A notícia desse prodígio espalhou-se, e uma multidão de 
  israelitas precipitou-se em direção à margem. Todos viram, 
  ou imaginaram ter visto, a maravilhosa aparição: eram em número 
  de vinte mil, no dizer do cronista, que supomos ter exagerado um pouco. Logo 
  as cabeças esquentam-se, as imaginações exaltam-se; acredita-se 
  num milagre mais extraordinário do que foi outrora a travessia do mar 
  Vermelho. Os judeus formam-se em colunas cerradas e correm em direção 
  ao mar; os últimos empurravam os primeiros com frenesi: acreditavam ver 
  o suposto Moisés caminhando sobre as águas. Foi um terrível 
  desastre: essa multidão quase toda afogou-se, e a alucinação 
  só se extinguiu com a vida da maioria desses infelizes visionários.
  O pensamento humano cria o que imagina; os fantasmas da superstição 
  projetam sua disformidade
  real na luz astral e vivem dos próprios terrores que os conceberam. Esse 
  gigante negro que estende
  suas asas do oriente ao ocidente para ocultar ao mundo a luz, esse monstro que 
  devora as almas, essa
  aterrorizante divindade da ignorância e do medo, numa palavra, o diabo, 
  ainda é, para uma multidão
  de crianças de todas as idades, uma aterradora realidade. Em nosso Dogma 
  e Ritual da Alta Magia,
  representamo-lo como a sombra de Deus, e dizendo isso ocultamos ainda metade 
  de nosso
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  116
  pensamento; Deus é a luz sem sombra. O diabo é apenas a sombra 
  do fantasma de Deus! O fantasma de Deus! Esse último ídolo da 
  terra; esse espectro antropomórfico que se torna maliciosamente invisível; 
  essa personificação finita do infinito; esse invisível 
  que não se pode ver sem morrer, sem morrer ao menos em inteligência 
  e em razão, pois que para ver o invisível é preciso estar 
  louco; o fantasma do que não tem corpo; a forma confusa que é 
  sem formas e sem limites: eis o que adora sem saber a maioria dos crentes. Aquele 
  que é essencialmente, puramente, espiritualmente, não sendo nem 
  o ser absoluto, nem um ser abstrato, nem a coleção dos seres, 
  numa palavra, o infinito intelectual, é muito difícil de se imaginar! 
  Assim, toda imaginação a seu respeito é uma idolatria, 
  é preciso nele crer e adorá-lo. Nosso espírito deve calar-se 
  diante dele e apenas nosso coração tem direito a dar-lhe um nome: 
  Pai nosso!
  LIVRO II
  Os Mistérios Mágicos
  Capítulo I
  Teoria da vontade
  A vida humana e suas dificuldades incontáveis têm por finalidade, 
  na ordem da sabedoria eterna, a educação da vontade do homem.
  A dignidade do homem consiste em fazer o que quer e em querer o bem, em conformidade 
  com a ciência do verdadeiro.
  O bem conforme ao verdadeiro é o justo.
  A justiça é a prática da razão.
  A razão é o verbo da realidade.
  A realidade é a ciência da verdade.
  A verdade é a história idêntica ao ser.
  O homem chega à idéia absoluta do ser por duas vias, a experiência 
  e a hipótese. A hipótese é provável quando é 
  solicitada pelos ensinamentos da experiência; é improvável 
  ou absurda quando é rejeitada por esse ensinamento.
  A experiência é a ciência, e a hipótese é a 
  fé.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  117
  A verdadeira ciência admite necessariamente a fé; a verdadeira 
  fé conta necessariamente com a ciência.
  Pascal blasfemava contra a ciência quando disse que, pela razão, 
  o homem não pode chegar ao conhecimento de nenhuma verdade.
  Assim, Pascal morreu louco.
  Mas Voltaire não blasfemava menos contra a ciência, quando declarava 
  absurda toda hipótese da fé e admitia por regra da razão 
  apenas o testemunho dos sentidos.
  Assim, as últimas palavras de Voltaire foram esta fórmula contraditória:
  Deus e a Liberdade
  Deus, isto é, um mestre supremo: o que exclui toda idéia de liberdade, 
  como a entendia a escola de Voltaire.
  E a liberdade, isto é, uma independência absoluta de todo mestre; 
  o que exclui toda idéia de Deus. A palavra DEUS exprime a personificação 
  suprema da lei e, por conseguinte, do dever; e, se pela palavra LIBERDADE se 
  quiser entender conosco O DIREITO DE FAZER O DEVER, tomaremos, de nossa parte, 
  por divisa e repetiremos sem contradição e sem erro:
  Deus e a Liberdade
  Como só há liberdade para o homem na ordem que resulta do verdadeiro 
  e do bem, pode-se dizer que a conquista da liberdade é o grande trabalho 
  da alma humana. O homem, libertando-se das más paixões e de sua 
  servidão, de certo modo cria-se a si próprio uma segunda vez. 
  A natureza fizera-o vivo e sofredor, ele se faz feliz e imortal; torna-se, assim, 
  o representante da divindade na terra e exerce relativamente sua onipotência.
  AXIOMA I
  Nada resiste à vontade do homem quando ele sabe o verdadeiro e quer o 
  bem.
  AXIOMA II
  Querer o mal é querer a morte. Uma vontade perversa é um começo 
  de suicídio.
  AXIOMA III
  Querer o bem com violência é querer o mal; pois a violência 
  produz a desordem, e a desordem produz o mal.
  AXIOMA IV
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  118
  Pode-se e deve-se aceitar o mal como meio para o bem; mas é preciso nunca 
  querê-lo ou fazê-lo, do contrário destruir-se-ia com uma 
  mão o que se edificasse com a outra. A boa fé nunca justifica 
  os maus meios; corrige-os quando são suportados e condena-os quando deles 
  se lança mão.
  AXIOMA V
  Para se ter direito de possuir, sempre é preciso querer pacientemente 
  e por muito tempo.
  AXIOMA VI
  Passar a vida querendo o que é impossível possuir, sempre é 
  abdicar da vida e aceitar a eternidade da morte.
  AXIOMA VII
  Quanto mais a vontade supera obstáculos, mais se fortalece. É 
  por isso que Cristo glorificou a pobreza e a dor.
  AXIOMA VIII
  Quando a vontade é consagrada ao absurdo, é reprovada pela eterna 
  razão.
  AXIOMA IX
  A vontade do homem justo é a vontade do próprio Deus, e é 
  a lei da natureza.
  AXIOMA X
  É pela vontade que a inteligência vê. Se a, vontade é 
  sã, a visão é justa. Deus disse: Que seja a luz! e a luz 
  é; a vontade disse: Que o mundo seja como eu o quero ver! e a inteligência 
  o vê como a vontade quis. É o que significa a expressão 
  assim seja, que confirma os atos de fé.
  AXIOMA XI
  Quando alguém cria fantasmas, põe no mundo vampiros, e será 
  preciso alimentar esses filhos de um pesadelo voluntário com seu sangue, 
  sua vida, sua inteligência e sua razão, sem nunca saciá-los.
  AXIOMA XII
  Afirmar e querer o que deve ser é criar; afirmar e querer o que não 
  deve ser é destruir.
  AXIOMA XIII
  A luz é um fogo elétrico colocado pela natureza a serviço 
  da vontade: ilumina os que dela sabem servir-se, queima os que dela abusam.
  AXIOMA XIV
  O império do mundo é o império da luz.
  AXIOMA XV
  As grandes inteligências cuja vontade equilibra-se mal assemelham-se aos 
  cometas, que são sóis abortados.
  AXIOMA XVI
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  119
  Nada fazer é tão funesto quanto fazer o mal, mas é mais 
  covarde. O mais imperdoável dos pecados mortais é a inércia.
  AXIOMA XVII
  Sofrer é trabalhar. Uma grande dor sofrida é um progresso realizado. 
  Os que sofrem muito vivem mais do que os que não sofrem.
  AXIOMA XVIII
  A morte voluntária por abnegação não é um 
  suicídio; é a apoteose da vontade.
  AXIOMA XIX
  O medo é apenas uma preguiça da vontade, e é por isso que 
  a opinião desencoraja os covardes.
  AXIOMA XX
  Consegui não temer o leão, e o leão vos temerá. 
  Dizei à dor: Quero que tu sejas um prazer, e ela se tornará até 
  mais do que um prazer, uma felicidade.
  AXIOMA XXI
  Uma corrente de ferro é mais fácil de quebrar que uma corrente 
  de flores.
  AXIOMA XXII
  Antes de declarar um homem feliz ou infeliz, sabei como o fez a direção 
  de sua vontade: Tibério morria todos os dias em Capri, enquanto Jesus 
  provava sua imortalidade e sua divindade no Calvário e na cruz.
  Capítulo II
  O poder da palavra
  É o verbo que cria as formas, e as formas, por sua vez, reagem sobre 
  o verbo para modificá-lo e terminá-lo.
  Toda palavra de verdade é o começo de um ato de justiça.
  Pergunta-se se o homem algumas vezes pode ser necessariamente impelido para 
  o mal. Sim, quando ele tem o julgamento falso e, por conseguinte, o verbo injusto. 
  Mas alguém é tão responsável por um julgamento falso 
  como por uma má ação.
  O que falseia o julgamento são as vaidades injustas do egoísmo.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  120
  O verbo injusto, não podendo realizar-se pela criação, 
  realiza-se pela destruição. É preciso que mate ou morra.
  Se pudesse permanecer sem ação seria a maior de todas as desordens, 
  uma blasfêmia duradoura contra a verdade.
  Tal é a palavra ociosa da qual Cristo disse que se prestará conta 
  no juizo final. Um gracejo, uma tolice que recreia e que faz rir não 
  é uma palavra ociosa.
  A beleza da palavra é um esplendor de verdade. Uma palavra verdadeira 
  é sempre bela, uma bela palavra é sempre verdadeira.
  É por isso que as obras de arte são sempre santas quando são 
  belas. Que me importa que Anacreonte cante Batylle, se, em seus versos, ouço 
  as notas da divina harmonia que é o hino eterno da beleza? A poesia é 
  pura como o sol: ela estende seu véu de luz sobre os erros da humanidade. 
  Ai daquele que quisesse erguer o véu para perceber fealdades. O Concílio 
  de Trento disse que é permitido às pessoas sábias e prudentes 
  lerem os livros dos antigos, mesmo obscenos, por causa da beleza da forma.
  Uma estátua de Nero ou de Heliogábalo feita como as obras-primas 
  de Fídias não seria uma obra absolutamente bela e absolutamente 
  boa? E os que gostariam de vê-la destruída por representar um monstro 
  não mereceriam as vaias do mundo inteiro?
  As estátuas escandalosas são as estátuas malfeitas; e a 
  Vênus de Milo seria profanada se fosse exposta ao lado das Virgens que 
  ousam expor em algumas igrejas. Aprende-se o mal nos livros de moral tolamente 
  escritos, bem mais do que nas poesias de Catulo ou nas engenhosas alegorias 
  de Apuleio.
  Não há maus livros senão os livros malpensados ou malfeitos.
  Todo verbo de beleza é um verbo de verdade. É uma luz formulada 
  em palavra. Porém, é preciso uma sombra para que a mais brilhante 
  luz produza-se e torne-se visível; e a palavra criadora, para tornar-se 
  eficaz, necessita de contraditores. É preciso que suporte a prova da 
  negação, do sarcasmo, depois aquela ainda bem mais cruel da indiferença 
  e do esquecimento. "É preciso", dizia o Mestre, "que o 
  grão apodreça para germinar." O verbo que afirma e a palavra 
  que nega devem casar-se, e de sua união nascerá a verdade prática, 
  a palavra real e progressiva. É a necessidade que deve constranger os 
  trabalhadores a escolherem por pedra angular a que inicialmente fora desconhecida 
  e rejeitada. Que a contradição nunca desencoraje, pois, os homens 
  de iniciativa. O arado necessita de uma terra e a terra resiste porque trabalha. 
  Ela defende-se como todas as virgens, concebe e dá à luz lentamente 
  como todas as mães. Vós, pois, que quereis semear uma planta nova 
  no campo da inteligência, compreendei e respeitai as resistências 
  pudibundas da experiência limitada e da razão tardia.
  Quando uma palavra nova vem ao mundo, necessita de laços e cueiros; foi 
  o gênio que a concebeu, mas é a experiência que deve alimentá-la. 
  Não receeis que seja desamparada e morra; o esquecimento para ela é 
  um repouso favorável e as contradições são uma cultura. 
  Quando um sol desponta no espaço, cria ou atrai mundos. Uma única 
  fagulha de luz fixa promete ao espaço um universo.
  Toda a magia está numa palavra, e essa palavra, pronunciada cabalisticamente, 
  é mais forte que
  todos os poderes do céu, da terra e do inferno. Com o nome de Jod he 
  van he domina-se: os reinos
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  121
  são conquistados em nome de Adonai, e as forças ocultas que compõem 
  o império de Hermes são totalmente obedientes àquele que 
  sabe pronunciar segundo a ciência o nome incomunicável de Agla. 
  Para pronunciar segundo a ciência as grandes palavras da Cabala, é 
  preciso pronunciá-las com uma inteligência inteira, com uma vontade 
  que nada detenha, com uma atividade que nada rejeite. Em magia ter dito é 
  ter feito; o verbo começa com letras, termina com atos. Só se 
  quer realmente algo quando se quer com todo o coração, a ponto 
  de por isso ferir as mais caras afeições; com todas as forças 
  a ponto de expor a saúde, a fortuna e a vida.
  É pela devoção absoluta que a fé se prova e se constitui. 
  Mas o homem armado de semelhante fé poderá remover montanhas.
  O inimigo mais fatal de nossas almas é a preguiça. A inércia 
  possui uma embriaguez que nos adormece; mas o sono da inércia é 
  a corrupção e a morte. As faculdades da alma humana são 
  como as ondas do oceano: necessitam, para conservarem-se, do sal e do amargor 
  das lágrimas; necessitam das tormentas do céu e da agitação 
  das tempestades.
  Quando, ao invés de caminharmos na rota do progresso, queremos ser carregados, 
  estamos dormindo nos braços da morte; é para nós que é 
  dito, como ao paralítico do Evangelho: Carregai vossa cama e andai! Somos 
  nós que devemos carregar a morte para precipitá-la na vida. Segundo 
  a magnífica e terrível expressão de São João, 
  o inferno é um fogo que dorme. É uma vida sem atividade e sem 
  progresso; é enxofre em estagnação: stagnum ignis et sulphuris. 
  A vida que dorme é análoga à palavra ociosa e é 
  disso que os homens terão de prestar contas no dia do juízo final.
  A inteligência fala e a matéria agita-se; só descansará 
  depois de ter tomado a forma dada pela palavra. Vede o verbo cristão 
  há dezenove séculos trabalhando o mundo. Que combates de gigantes! 
  Quantos erros experimentados e rechaçados! Quanto cristianismo desiludido 
  e irritado no fundo do protesto, desde o século XVI até o século 
  XVIII! O egoísmo humano, desesperado com suas derrotas, amotinou sucessivamente 
  todas as suas estupidezes. Revestiram o Salvador do mundo com todos os andrajos 
  e todas as púrpuras derrisórias: depois de Jesus o Inquisidor, 
  fez-se o Jesus Revolucionário. Se fordes capaz, medi quantas lágrimas 
  e quanto sangue correram, ousai prever quanto ainda correrá antes que 
  se chegue ao reino messiânico do Homem-Deus, que subjuga ao mesmo tempo 
  todas as paixões aos poderes e todos os poderes à justiça! 
  ADVENIAT REGNUM TUUM! Eis o que setecentos milhões de vozes repetem noite 
  e dia em toda a superfície da terra, há quase mil e novecentos 
  anos, enquanto os israelitas continuam a esperar o Messias. Ele falou, e ele 
  voltará; veio para morrer, e prometeu retornar para viver. CÉU 
  É A HARMONIA DOS SENTIMENTOS GENEROSOS.
  INFERNO É O CONFLITO DOS INSTINTOS COVARDES.
  Quando a humanidade, a poder de experiências sangrentas e dolorosas, tiver 
  compreendido bem essa dupla verdade, abjurará do inferno do egoísmo 
  para entrar no céu da abnegação e da caridade cristã.
  A lira de Orfeu desbravou a Grécia selvagem, e a lira de Anfião 
  construiu a misteriosa Tebas. É que
  a harmonia é a verdade. A natureza inteira é harmonia, mas o Evangelho 
  não é uma lira: é o livro dos
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  122
  princípios eternos que devem regular e que regularão todas as 
  liras e todas as harmonias vivas do universo.
  Enquanto o mundo não compreender estas três palavras: verdade, 
  razão, justiça, e estas: dever, hierarquia, sociedade, a divisa 
  revolucionária, liberdade, igualdade, fraternidade, será apenas 
  uma tríplice mentira.
  Capítulo III
  As influências misteriosas
  Não há meio-termo possível. Todo homem é bom ou 
  mau. Os indiferentes, os mornos não são bons, são, pois, 
  maus, e os piores de todos os maus, pois são imbecis e covardes. O combate 
  da vida assemelha-se a uma guerra civil, os que permanecem neutros traem igualmente 
  os dois lados e renunciam ao direito de serem contados dentre os filhos da pátria. 
  Todos nós respiramos a vida dos outros e de algum modo insuflamo-lhes 
  uma parte de nossa existência. Os homens inteligentes e bons são, 
  sem saberem, os médicos da humanidade, os homens tolos e maus são 
  envenenadores públicos.
  Existem pessoas perto de quem sentimo-nos melhores. Vede esta jovem senhora 
  da alta sociedade, ela conversa, ri, adorna-se como todas as outras, por que, 
  então, tudo nela é melhor e mais perfeito? Nada mais natural que 
  sua distinção, nada mais franco e mais nobremente despretensioso 
  que sua conversa. Perto dela tudo deve achar-se à vontade, exceto os 
  maus sentimentos, mas eles são impossíveis perto dela. Ela não 
  encontra os corações, prende-os e os instrui, não embriaga, 
  encanta. O que toda sua pessoa prega parece ser uma perfeição 
  mais aprazível do que a própria virtude; é mais graciosa 
  que a graça, suas ações são fáceis e inimitáveis 
  como a bela música e os belos versos.
  Era dela que uma encantadora mundana, muito amiga para ser rival, dizia depois 
  de um baile:
  Pareceu-me ver a Sagrada Bíblia em movimento. Vede ao contrário 
  esta outra mulher, afeta a mais rígida devoção e se escandalizaria 
  ao ouvir os anjos cantarem, mas sua fala é malévola, seu olhar 
  é altivo e desdenhoso; quando fala sobre virtude poderia provocar o amor 
  ao vício. Para ela Deus é um marido ciumento que ela tem o grande 
  mérito de não enganar; suas máximas são desoladoras, 
  as ações mais vãs que caridosas e poder-se-ia dizer após 
  a ter encontrado na igreja: Vi o diabo orando a Deus.
  Ao deixar a primeira, senti-vos cheio de amor por tudo o que é belo, 
  por tudo o que é bom e generoso. Estais feliz por lhe terdes dito tudo 
  o que ela vos inspirou de bem e por terdes sido por ela aprovado; dizei-vos 
  que a vida é boa, uma vez que foi dada por Deus a semelhantes almas, 
  estais cheio de coragem e de esperança. A outra vos deixa enfraquecido, 
  rejeitado, ou talvez, o que é pior, estimulado a fazer o mal; vos faz 
  duvidar da honra, da piedade e do dever; perto dela só escapais ao tédio 
  pela porta dos maus desejos. Falastes mal de alguém para agradá-la, 
  diminuíste-vos para adular seu orgulho, ficais descontente com ela e 
  convosco mesmo. O sentimento vivo e certo dessas diversas influências 
  é próprio dos espíritos justos e das consciências 
  delicadas, e é precisamente o que os antigos escritores ascéticos 
  chamavam graça do discernimento dos espíritos.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  123
  Sois cruéis consoladores, dizia Jó a seus pretensos amigos. De 
  fato, os seres viciosos sempre afligem ao invés de consolarem. Têm 
  um tato prodigioso para encontrar e escolher as mais desesperadoras banalidades. 
  Chorais um afeto perdido, como sois ingênuo! Zombavam de vós, não 
  vos amavam. Com dor confessais que vosso filho é coxo, amigavelmente 
  vos fazem ver que ele é corcunda. Ele tosse e inquietai-vos, suplicam-vos 
  ternamente que tomeis cuidado, pois talvez esteja tuberculoso. Vossa mulher 
  está doente há muito tempo, consolai-vos, pois ela morrerá. 
  Espera e trabalha, eis o que o céu nos diz pela voz de todas as boas 
  almas; desespera e morre, eis o que o inferno nos grita em todas as palavras, 
  todos os movimentos, todas as amizades e todos os afagos dos seres imperfeitos 
  ou degradados.
  Qualquer que seja a reputação de uma pessoa e quaisquer que sejam 
  os testemunhos de amizade que ela vos dá, se, ao deixá-la, sentivos 
  menos amigo do bem e menos forte, ela é perniciosa para vós: evitai-a.
  Nossa dupla imantação produz em nós duas espécies 
  de simpatias. Temos necessidade de, alternadamente, absorver e irradiar. Nosso 
  coração gosta dos contrastes, e existem poucos exemplos de mulheres 
  que tenham amado sucessivamente dois gênios. Repousamo-nos pela proteção 
  dos cansaços da admiração, é a lei do equilíbrio; 
  mas por vezes também as naturezas sublimes surpreendem-se em caprichos 
  de vulgaridade. O homem, disse o abade Gerbet, é a sombra de um Deus 
  no corpo de um animal: existem os amigos do anjo e os complacentes para com 
  o animal. O anjo atrai-nos, mas, se não tomamos cuidado, é a besta 
  que nos leva: ela deve mesmo fatalmente levar-nos quando se trata de asneiras, 
  isto é, das satisfações desta vida nutriz da morte, que 
  na linguagem das bestas chama-se vida real. Em religião, o Evangelho 
  é um guia seguro, o mesmo não sendo em negócios, e muitas 
  pessoas, quando se tratasse de estabelecer a sucessão temporal de Jesus 
  Cristo, se entenderiam melhor com Judas Iscariotes do que com São Pedro.
  Admiram a probidade, disse Juvenal, e não lhe dão o que lhe cabe. 
  Se, por exemplo, tal homem célebre não tivesse escandalosamente 
  mendigado a riqueza, alguém teria pensado em recompensar sua velha musa? 
  Alguma herança lhe teria caído do céu? A virtude toma nossa 
  admiração, nossa bolsa, portanto, nada lhe deve, essa grande dama 
  é bastante rica sem nós. Preferimos dar ao vício, ele é 
  tão pobre!
  "Não gosto dos mendigos e dou apenas aos pobres vergonhosos", 
  dizia um homem inteligente. "Mas o que lhes dais, se não os conheceis?" 
  "Dou-lhes minha admiração e minha estima, e não preciso 
  conhecê-los para isso." "Como necessitais de tanto dinheiro", 
  foi perguntado a outro, "se não tendes filhos nem encargos?" 
  "Tenho meus pobres vergonhosos a quem não me posso impedir de dar 
  muito." "Apresente-os a mim, talvez dê-lhes também." 
  "Oh! certamente já conheceis alguns. Tenho sete deles, que comem 
  excessivamente, e um oitavo que come mais do que os outros sete: os sete são 
  os sete pecados capitais; o oitavo é o jogo."
  "Senhor, dai-me cinco francos, estou morrendo de fome." "Imbecil! 
  estás morrendo de fome e queres que te encoraje a prosseguir em tão 
  mau caminho! Morres de fome e tens a imprudência de confessá-lo! 
  Queres tornar-me cúmplice de tua incapacidade, nutriz de teu suicídio! 
  Queres um prêmio pela miséria? Por quem me tomas? Acaso sou um 
  traste da tua espécie..." "Meu amigo, preciso de um milhão 
  de escudos para seduzir uma mulher honesta." "Ah! isso é mau; 
  mas não sei recusar nada a um amigo. Toma, e quando tiveres conseguido 
  dá-me o endereço dessa pessoa." Eis o que se chama, na Inglaterra 
  e em outros lugares, agir como um perfeito cavalheiro. "O homem honrado 
  sem trabalho rouba, e não mendiga!", respondeu um dia Cartouche 
  a um transeunte que lhe pedia esmola. É enfático como a palavra 
  emprestada a Cambronne; e, na realidade, talvez o célebre ladrão 
  e o grande general tenham ambos respondido do mesmo modo.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  124
  Foi esse mesmo Cartouche quem de outra feita ofereceu, por iniciativa própria 
  e sem que lhe fosse pedido, vinte mil libras a alguém falido. Entre irmãos 
  é preciso saber viver. A assistência mútua é uma 
  lei da natureza. Ajudar nossos semelhantes é ajudar a nós mesmos. 
  Mas acima da assistência mútua eleva-se uma lei maior e mais santa: 
  é a assistência universal, é a caridade.
  Todos admiramos e amamos São Vicente de Paulo, mas quase todos temos 
  também um fraco secreto pela habilidade, pela presença de espírito 
  e, sobretudo, pela audácia de Cartouche. Os cúmplices confessos 
  de nossas paixões podem repugnar-nos humilhando-nos; saberemos, sujeitando-nos 
  aos perigos, resistir-lhes por orgulho. Mas que pode haver de mais perigoso 
  para nós que nossos cúmplices hipócritas e ocultos? Seguem-nos 
  como o desgosto, esperam-nos como o abismo, envolvem-nos como a vertigem. Nós 
  os desculpamos para desculparmo-nos, os defendemos para defendermo-nos, os justificamos 
  para justificarmo-nos e os suportamos em seguida porque é preciso, porque 
  não temos força para resistir a nossas inclinações, 
  porque não desejamos isso.
  Apossaram-se de nosso ascendente, como diz Paracelso, e onde quiserem conduzir-nos 
  iremos. São nossos maus anjos, sabemo-lo no fundo de nossa consciência; 
  mas os poupamos, pois fizemo-nos seus servidores, a fim de que eles também 
  nos sirvam. Nossas paixões, aduladas e poupadas, tornaram-se servas-senhoras; 
  e os complacentes para com nossas paixões são valetes que se tornaram 
  nossos mestres. Respiramos nossos pensamentos e aspiramos os dos outros impressos 
  na luz astral, tornada sua atmosfera eletromagnética: assim, a companhia 
  dos maus é menos funesta para as pessoas de bem do que a dos seres vulgares, 
  covardes e mornos. Uma forte antipatia adverte-nos facilmente e salva-nos do 
  contato com os vícios grosseiros; não é assim com os vícios 
  disfarçados, diminuídos de certo modo e tornados quase amáveis. 
  Uma mulher honesta sentirá apenas repulsa em companhia de uma moça 
  perdida; mas tem tudo a recear das seduções de uma doidivanas. 
  Sabemos que a loucura é contagiosa; mas os loucos são mais particularmente 
  perigosos quando são amáveis e simpáticos. Entramos pouco 
  a pouco em seu círculo de idéias, chegamos a compreender seus 
  exageros compartilhando seus entusiasmos, habituamo-nos à sua lógica 
  excepcional e transviada, chegamos a pensar que não são tão 
  loucos quanto acreditávamos no início. Daí a acreditar 
  que são os únicos a ter razão não há muita 
  distância. Nós os amamos, os aprovamos, estamos loucos como eles.
  As afeições são livres e podem ser racionalizadas; mas 
  as simpatias são fatais e muito freqüentemente desarrazoadas; dependem 
  das atrações mais ou menos equilibradas da luz magnética, 
  e agem sobre os homens do mesmo modo que sobre os animais. Divertiremo-nos tolamente 
  com uma pessoa que nada tem de amável porque estamos misteriosamente 
  atraídos e dominados por ela. Freqüentemente, essas simpatias estranhas 
  começaram por vivas antipatias; os fluidos repeliam-se no início, 
  equilibrando-se depois.
  A especialidade equilibrante do mediador plástico de cada pessoa é 
  o que Paracelso chama seu ascendente, e denomina flagum ao reflexo particular 
  das idéias habituais de cada um na luz universal.
  Chega-se ao conhecimento do ascendente de uma pessoa pela adivinhação 
  sensitiva do flagum, e por um direcionamento perseverante da vontade vira-se 
  o lado ativo do próprio ascendente para o lado passivo do ascendente 
  do outro, quando se quer apoderar-se do outro e dominá-lo. O ascendente 
  astral foi adivinhado por outros magistas, que o chamaram turbilhão.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  125
  É, dizem eles, uma corrente de luz especializada, reproduzindo sempre 
  um mesmo círculo de imagens, e, por conseguinte, de impressões 
  determinadas e determinantes. Esses turbilhões existem para os homens 
  como para as estrelas. "Os astros", diz Paracelso, "respiram 
  sua alma luminosa e atraem a irradiação uns dos outros. A alma 
  da terra, cativa das leis fatais da gravitação, desprende-se especializando-se 
  e passa pelo instinto dos animais para chegar à inteligência do 
  homem. A parte cativa dessa alma é muda, mas conserva por escrito os 
  segredos da natureza. A parte livre não pode mais ler essa escritura 
  fatal sem perder instantaneamente sua liberdade. Só se passa da contemplação 
  muda e vegetativa ao pensamento livre e vibrante mudando de meios e de órgãos. 
  Daí vem o esquecimento que acompanha o nascimento e as reminiscências 
  vagas de nossas intuições doentias, sempre análogas às 
  visões de nossos êxtases e de nossos sonhos." Essa revelação 
  do grande mestre da medicina oculta lança uma enorme luz sobre todos 
  os fenômenos do sonambulismo e da adivinhação. Aí 
  está, também, para quem souber encontrá-la, a verdadeira 
  chave das evocações e das comunicações com a alma 
  fluídica da terra. As pessoas cuja influência perigosa se faz sentir 
  num único contato são as que fazem parte de uma associação 
  fluídica; ou que dispõem, quer voluntariamente, quer sem saberem, 
  de uma corrente de luz astral desviada. Aquelas, por exemplo, que vivem no isolamento 
  e na privação de toda comunicação humana e que estão 
  diariamente em relação fluídica com animais reunidos em 
  grande número, como estão normalmente os pastores, esses estão 
  possuídos pelo demônio a que se denomina legião, e, por 
  sua vez, reinam despoticamente sobre as almas fluídicas dos rebanhos 
  confiados à sua guarda: desse modo sua benevolência ou sua malevolência 
  faz prosperar ou morrer o rebanho; podem exercer essa influência de simpatia 
  animal sobre mediadores plásticos humanos mal defendidos por uma vontade 
  fraca ou uma inteligência limitada. Assim explicam-se os encantamentos 
  operados habitualmente pelos pastores e os fenômenos ainda muito recentes 
  do presbitério de Cideville.
  Cideville é um pequeno vilarejo da Normandia onde, há alguns anos, 
  produziram-se fenômenos semelhantes aos que se produziram, depois, sob 
  a influência do senhor Home. Mirville estudou-os cuidadosamente e Gougenot 
  Desmousseaux repetiu todos seus detalhes num livro publicado em 1854 e intitulado: 
  Costumes e Práticas dos Demônios. O que há de notável 
  nesse último autor é que ele parece adivinhar a existência 
  do mediador plástico ou do corpo fluídico. "Com certeza não 
  temos duas almas", diz ele, "mas talvez tenhamos dois corpos." 
  Com efeito, tudo o que ele conta pareceria provar essa hipótese. Trata-se 
  de um pastor, cuja forma fluídica infestava um presbitério e que 
  foi ferido à distância pelos golpes desfechados à sua larva 
  astral. Aqui perguntaremos aos senhores Mirville e Gougenot Desmousseaux se 
  eles tomam esse pastor pelo diabo e se, de perto ou à distância, 
  o diabo, tal como o concebem, pode ser arranhado ou ferido. Na Normandia, até 
  então, quase não eram conhecidas as doenças magnéticas 
  dos médiuns e o infeliz sonâmbulo, que fora preciso tratar e curar, 
  foi rudemente maltratado e até agredido, segundo se diz, não em 
  aparência fluídica, mas em sua própria pessoa, pelo próprio 
  pároco. Aí está, convenhamos, um singular gênero 
  de exorcismo! Se realmente essas violências aconteceram, e se são 
  imputáveis a um eclesiástico que dizem, e que pode ser, credulidade 
  à parte, muito bom e respeitável, reconheçamos que escritores 
  como Mirville e Gougenot Desmousseaux tornam-se de certo modo seus cúmplices.
  As leis da vida física são inexoráveis e, em sua natureza 
  animal, o homem nasce escravo da fatalidade; e é à custa de lutas 
  contra os instintos que ele pode conquistar a liberdade moral. Duas existências 
  diferentes, portanto, nos são possíveis na terra: uma fatal, a 
  outra livre. O ser fatal é o joguete ou o instrumento de uma força 
  que ele não dirige: ora, quando os instrumentos da fatalidade se encontram 
  e se chocam, o mais forte destrói ou domina o mais fraco; os seres verdadeiramente 
  libertos não temem nem as bruxarias nem as influências misteriosas. 
  Dir-nos-ão que o encontro de Caim pode ser fatal para Abel. Sem dúvida; 
  mas semelhante fatalidade é uma felicidade para a santa e pura vítima, 
  é uma infelicidade apenas para o assassino.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  126
  Assim como entre os justos existe uma grande comunidade de virtudes e méritos, 
  existe entre os maus uma solidez absoluta de culpabilidade fatal e castigo necessário. 
  O crime está nas disposições do coração. 
  As circunstâncias quase sempre independentes da vontade fazem sozinhas 
  a gravidade dos atos. Se a fatalidade tivesse feito de Nero um escravo, ele 
  se teria tornado um histrião ou um gladiador e não teria incendiado 
  Roma: seria preciso agradecer-lhe por isso? Nero era cúmplice de todo 
  o povo romano e os únicos responsáveis pela fúria desse 
  monstro eram os que a deveriam ter impedido. Sêneca, Burro, Tráseas, 
  Corbulão, eis os verdadeiros culpados desse reino terrível: grandes 
  homens egoístas ou incapazes! Souberam apenas morrer. Se um dos ursos 
  do Jardim Zoológico escapasse e devorasse algumas pessoas, seria ele 
  ou seus vigias quem deveria prestar contas? Todo aquele que se liberta dos erros 
  comuns deve pagar um resgate proporcional à soma desses erros: Sócrates 
  responde por Anito, e Jesus teve que sofrer um suplício que se igualou 
  em horrores a toda a traição de Judas.
  É assim que, ao pagar as dívidas da fatalidade, a liberdade conquistada 
  compra o império do mundo; é a ela que compete ligar ou desligar: 
  Deus entregou-lhe as chaves do céu e do inferno. Homens que abandonais 
  as bestas a si mesmas, quereis que elas vos devorem. As multidões escravas 
  da fatalidade só podem gozar da liberdade pela obediência absoluta 
  à vontade dos homens livres; elas devem trabalhar para eles, porque eles 
  respondem por elas. Mas, quando a besta governa as bestas, quando o cego conduz 
  os cegos, quando o homem fatal governa as massas fatais, o que se deve esperar? 
  Terríveis catástrofes, e elas nunca faltarão. Ao admitir 
  os dogmas anárquicos de 89, Luís XVI lançara o Estado num 
  declive fatal. A partir desse momento todos os crimes da Revolução 
  pesaram unicamente sobre ele; apenas ele faltara a seu dever. Robespierre e 
  Marat haviam feito o que deviam fazer. Girondinos e Montanheses fatalmente mataram-se 
  uns aos outros e suas mortes violentas foram apenas catástrofes necessárias; 
  houve nessa época apenas um grande e legítimo suplício, 
  verdadeiramente sagrado, verdadeiramente expiatório: o do rei. O princípio 
  da realeza devia cair se esse príncipe demasiado fraco tivesse sido absoluto. 
  Mas era impossível uma transação entre a ordem e a desordem. 
  Não se herda dos que são assassinados, eles são poupados, 
  e a Revolução reabilitou Luís XVI ao assassiná-lo. 
  Após tantas concessões, fraquezas, indignas vilezas, esse homem 
  sagrado uma segunda vez pela desgraça pôde ao menos dizer, ao subir 
  ao cadafalso: a Revolução está julgada, e eu continuo sendo 
  o rei da França! Ser justo é sofrer por todos os que não 
  o são, mas é viver; ser mau é sofrer por si mesmo sem conquistar 
  a vida, é enganar-se, agir mal e morrer eternamente. Resumindo: as influências 
  fatais são as da morte, as influências salutares são as 
  da vida. Conforme sejamos mais fracos ou mais fortes na vida, atraímos 
  ou repelimos o malefício. Esse poder oculto não é senão 
  demasiado real; mas a inteligência e a virtude terão sempre os 
  meios de evitar suas obsessões e seus ataques.
  Capítulo IV
  Mistérios da perversidade
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  127
  O equilíbrio humano compõe-se de dois atrativos; um pela morte, 
  o outro pela vida. A fatalidade é a vertigem que nos atrai para o abismo; 
  a liberdade é o esforço racional que nos eleva acima das atuações 
  fatais da morte.
  O que é um pecado mortal? É uma apostasia de nossa liberdade; 
  é um abandono de nós mesmos às leis materiais da gravidade; 
  um ato injusto é um pacto com a injustiça: ora, toda injustiça 
  é uma abdicação da inteligência. Caímos, então, 
  sob o império da força, cujas reações sempre esmagam 
  tudo o que se afasta do equilíbrio.
  O amor pelo mal e a adesão formal da vontade à injustiça 
  são os últimos esforços da vontade expirante. O homem, 
  não importa o que faça, é mais forte que o bruto e não 
  pode, como este, abandonar-se à fatalidade. É necessário 
  que escolha e que ame. A alma desesperada que se acredita apaixonada pela morte 
  está ainda mais viva do que uma alma sem amor. A atividade para o mal 
  pode e deve reconduzir o homem ao bem por contragolpe e reação. 
  O verdadeiro mal sem remédio é a inércia.
  Aos abismos da perversidade correspondem os abismos da graça. Freqüentemente 
  Deus fez de celerados santos; nunca fez nada de mornos e de covardes.
  Sob pena de reprovação, é preciso trabalhar, é preciso 
  agir. A natureza, aliás, provê para isso, e se não queremos, 
  com toda nossa coragem, ir em direção à vida, ela nos precipita 
  com todas as suas forças para a morte. Os que não querem caminhar, 
  ela os arrasta. Um homem que poderia ser chamado o grande profeta dos ébrios, 
  Edgar Poe, esse alucinado sublime, esse gênio da extravagância lúcida, 
  descreveu com uma realidade assustadora os pesadelos da perversidade...
  "Matei este velho porque era estrábico. Fiz isso porque não 
  deveria ser feito."
  Eis a terrível contrapartida do Credo quia absurdum, de Tertuliano. Desafiar 
  Deus e injuriá-lo é um último ato de fé. "Os 
  mortos não te louvam, Senhor", diz o salmista; e poderíamos 
  acrescentar, se ousássemos: "Os mortos não te blasfemam." 
  "Oh! meu filho!", dizia um pai inclinado sobre o leito do filho, caído 
  em letargia após um violento acesso de delírio; "insulta-me; 
  batame, morda-me; sentirei que ainda vives... Mas não fiques para sempre 
  neste silêncio medonho da tumba!"
  Um grande crime sempre protesta contra uma grande tepidez. Cem mil padres honestos 
  teriam podido, através de uma caridade mais ativa, prevenir o atentado 
  daquele miserável Verger. A Igreja deve julgar, condenar, punir um eclesiástico 
  escandaloso; mas não tem o direito de abandoná-los aos frenesis 
  do desespero e às tentações da miséria e da fome.
  Nada é tão assustador quanto o nada; e se se pudesse jamais formular 
  sua concepção, se fosse possível admiti-lo, o inferno seria 
  uma esperança.
  Eis por que a própria natureza procura e impõe a expiação 
  como um remédio; eis por que o suplício suplica, como tão 
  bem o compreendeu esse grande católico chamado conde Joseph de Maistre; 
  eis por que a pena de morte é o direito natural e nunca desaparecerá 
  das leis humanas. A mácula do homicídio seria indelével 
  se Deus não absolvesse o cadafalso; o poder divino abdicado pela sociedade 
  e usurpado pelos celerados pertencer-lhes-ia sem contestação. 
  O assassinato, então, transformar-se-ia em virtude quando exercesse as 
  represálias da natureza ultrajada. As vinganças particulares protestariam 
  contra a ausência da expiação pública, e com os restos 
  do gládio quebrado da justiça a anarquia fabricaria punhais para 
  si.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  128
  "Se Deus suprimisse o inferno, os homens fariam outro para desafiá-lo", 
  dizia-nos um dia um bom padre. Tinha razão; e é por isso que o 
  inferno deseja tanto ser suprimido. Emancipação! tal é 
  o grito de todos os vícios. Emancipação do homicídio 
  pela abolição da pena de morte; emancipação da prostituição 
  e do infanticídio pela abolição do casamento; emancipação 
  da preguiça e do roubo pela abolição da propriedade... 
  Assim gira o turbilhão da perversidade até que chegue a esta fórmula 
  suprema e secreta: Emancipação da morte pela abolição 
  da vida! É pelas vitórias do trabalho que se escapa às 
  fatalidades da dor. O que chamamos morte é somente o parto eterno da 
  natureza. Ininterruptamente, ela reabsorve e retoma em seu seio tudo o que não 
  nasceu do espírito. A matéria inerte por si mesma só pode 
  existir pelo movimento perpétuo, e o espírito naturalmente volátil 
  só pode durar fixando-se. A emancipação das leis fatais 
  pela adesão livre do espírito ao verdadeiro e ao bem é 
  o que o Evangelho denomina nascimento espiritual; a reabsorção 
  na morada eterna da natureza é a segunda morte. Os seres não-emancipados 
  são atraídos para essa segunda morte por uma gravidade fatal, 
  arrastam-se uns aos outros, como o divino Michelangelo tão bem nos faz 
  ver em sua grande pintura sobre o juízo final; são invasores e 
  tenazes como pessoas que se afogam, e os espíritos livres devem lutar 
  energicamente contra eles para não serem por eles retidos em seu vôo 
  e rebaixados fatalmente ao inferno.
  Essa guerra é tão antiga quanto o mundo; os gregos representavam-na 
  sob os símbolos de Eros e Anteros, e os hebreus pelo antagonismo de Caim 
  e Abel. É a guerra dos titãs e dos deuses. Os dois exércitos 
  estão em toda a parte, invisíveis, mas disciplinados e sempre 
  prontos ao ataque ou à represália. As pessoas ingênuas dos 
  dois partidos, surpresas com as resistências súbitas e unânimes 
  que encontram, acreditam em vastos complôs, sabiamente organizados, das 
  sociedades ocultas e todo-poderosas. Eugène Sue inventa Rodin; pessoas 
  da Igreja falam de iluminados e de maçons;
  Wronski sonha com seus bandos místicos, e o que há de verdadeiro 
  e sério no fundo de tudo isso é apenas a luta necessária 
  entre a ordem e a desordem, os instintos e o pensamento; o resultado dessa luta 
  é o equilíbrio no progresso e o diabo contribui sempre, contra 
  a sua vontade, para a glória de São Miguel.
  O amor físico é a mais perversa de todas as paixões fatais. 
  É o anarquista por excelência; não conhece nem leis, nem 
  deveres, nem verdade, nem justiça. Faria a moça passar por cima 
  do cadáver de seus pais. É uma embriaguez irresistivel, uma loucura 
  furiosa, uma vertigem da fatalidade que procura novas vítimas; a embriaguez 
  de Saturno que quer ser pai para ter crianças a quem devorar. Vencer 
  o amor é triunfar sobre toda a natureza. Submetê-lo à justiça 
  é reabilitar a vida devotando-a à imortalidade; assim, as maiores 
  obras da revelação cristã são a criação 
  da virgindade voluntária e a santificação do matrimônio.
  Enquanto o amor é apenas um desejo e um gozo, ele é mortal. Para 
  eternizar-se é preciso que se torne um sacrifício, pois torna-se, 
  então, uma força e uma virtude. É a luta de Eros e Anteros 
  que faz o equilíbrio do mundo.
  Tudo o que superexcita a sensibilidade conduz à depravação 
  e ao crime. As lágrimas chamam o sangue. Existem grandes emoções 
  que são como licores fortes, usá-las habitualmente é abusar. 
  Ora, todo abuso das emoções perverte o sentido moral; buscamo-las 
  por elas mesmas, sacrificamos tudo para obtê-las. Uma mulher romanesca 
  se tornará facilmente uma heroína de Tribunal do Júri, 
  chegará talvez ao deplorável e irreparável absurdo de suicidar-se 
  para admirar-se e enternecer-se consigo mesma vendo-se morrer.
  Os hábitos romanescos levam as mulheres à histeria e os homens 
  à depressão. Manfred, Renê, Lélia são tipos 
  de perversidade muito mais profunda por racionalizarem seu orgulho doentio e 
  poetizarem sua demência. Perguntamo-nos aterrorizados que monstro poderia 
  nascer do casamento de Manfred e Lélia!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  129
  A perda do sentido moral é uma verdadeira alienação; um 
  homem que não obedece à justiça antes de tudo não 
  se pertence mais, caminha sem luz na noite de sua existência, agita-se 
  como num sonho vítima do pesadelo de suas paixões.
  As correntes impetuosas da vida instintiva e as fracas resistências da 
  vontade formam um antagonismo tão distinto que os cabalistas acreditaram 
  no embrionato das almas, isto é, a presença num mesmo corpo de 
  várias almas que o disputam entre si e freqüentemente tentam destruí-lo, 
  mais ou menos como os náufragos da Medusa, que no momento em que disputavam 
  a jangada muito estreita, tentavam fazê-la soçobrar.
  É certo que alguém ao se tornar servo de uma corrente qualquer 
  de instintos, ou mesmo de idéias, aliena sua personalidade e torna-se 
  escravo desse gênio das multidões que o Evangelho chama Legião.
  Os artistas sabem algo sobre isso. Suas freqüentes evocações 
  da luz universal enervam-nos. Tornam-se médiuns, isto é, doentes. 
  Quanto mais o sucesso os faz crescer junto à opinião pública, 
  mais sua personalidade enfraquece; tornam-se sujeitos a acessos, absurdos, invejosos, 
  coléricos; não admitem que outro mérito, mesmo de ordem 
  diferente, possa produzir-se ao lado do seu, e desde que se tornam injustos 
  eximem-se até de serem polidos. Para escapar a essa fatalidade os verdadeiros 
  grandes homens isolam-se de toda camaradagem liberticida e salvam-se dos atritos 
  da vil multidão por uma impopularidade orgulhosa: se Balzac, quando vivo, 
  tivesse sido um homem de conventículo ou de partido, não teria 
  permanecido, após sua morte, o grande universal de nossa época. 
  A luz não ilumina as coisas insensíveis nem os olhos fechados, 
  ou pelo menos só as ilumina em proveito dos que vêem. A palavra 
  do Gênesis, Que se faça a luz!, é o grito de vitória 
  da inteligência triunfante sobre as trevas. Essa palavra é sublime 
  porque exprime com simplicidade a maior e mais sublime coisa do mundo: a criação 
  da inteligência por si mesma quando, convocando seus poderes, equilibrando 
  suas faculdades, ela diz: Quero imortalizar-me vendo a verdade eterna, que seja 
  a luz! E a luz é. A luz eterna como Deus começa todos os dias 
  para os olhos que se abrem. A verdade será eternamente a invenção 
  e como que a criação do gênio: ele grita: Que seja a luz, 
  e ele próprio é porque ela é. Ele é imortal porque 
  compreendera eterna. Ele contempla a verdade como sua obra porque ela é 
  sua conquista, e a imortalidade como seu triunfo porque ela será sua 
  recompensa e sua coroa.
  Mas nem todos os espíritos vêem com justeza porque nem todos os 
  corações querem com justiça. Existem almas para as quais 
  a verdadeira luz parece nunca dever existir. Contentam-se com visões 
  fosforescentes, abortos de luz, alucinações do pensamento, e, 
  apaixonadas por esses fantasmas, temem o dia que os faria fugirem porque sentem 
  que, não sendo o dia feito para seus olhos, voltariam a cair numa profunda 
  escuridão. Assim é que os loucos, no início, temem, depois 
  caluniam, insultam, perseguem e condenam os sábios. É preciso 
  compadecer-se deles e perdoá-los, não sabem o que fazem.
  A verdadeira luz repousa e satisfaz a alma, a alucinação, ao contrário, 
  cansa-a e atormenta-a. As satisfações da loucura assemelham-se 
  aos sonhos gastronômicos das pessoas famintas que aguçam sua fome 
  sem nunca saciá-la. Daí nascem as irritações e as 
  perturbações, os desencorajamentos e os desesperos. "A vida 
  sempre nos mentiu", dizem os discípulos de Werther, "eis por 
  que queremos morrer!" Pobres crianças, não é a morte 
  que vos seria preciso, é a vida. Desde que estais no mundo morreis todos 
  os dias, é à cruel volúpia do nada que deveis pedir o remédio 
  do nada de vossas volúpias? Não, a vida nunca vos enganou, pois 
  não vivestes ainda. O que tomais por vida são as alucinações 
  e os sonhos do primeiro sono da morte!
  Todos os grandes criminosos são alucinados voluntários, e todos 
  os alucinados voluntários podem ser fatalmente levados a tornarem-se 
  grandes criminosos. Nossa luz pessoal especializada, concebida, determinada 
  por nossa afeição dominante é o germe de nosso paraíso 
  ou de nosso inferno.
  Cada um de nós de algum modo concebe, põe no mundo e alimenta 
  seu bom anjo ou seu mau
  demônio. A concepção da verdade faz nascer em nós 
  o bom gênio; a percepção desejada da mentira
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  130
  é uma incubadora e uma criadora de pesadelos e de vampiros. Cada um deve 
  alimentar seus filhos, e nossa vida consome-se em proveito de nossos pensamentos. 
  Felizes os que reencontram a imortalidade nas criações de sua 
  alma! Ai dos que se exaurem para alimentar a mentira e engordar a morte, pois 
  cada um gozará o fruto de suas obras.
  Existem alguns seres inquietos e atormentados cuja influência é 
  turbulenta e a conversa, fatal. Perto deles sentimo-nos irritados e ao deixá-los 
  sentimo-nos encolerizados; entretanto, por uma perversidade secreta, nós 
  os procuramos para afrontar a perturbação e gozar as emoções 
  malévolas que eles nos dão. São doentes contagiosos do 
  espírito de perversidade. O espírito de perversidade sempre tem 
  por móvel secreto a sede da destruição e por fim o suicídio. 
  O assassino Eliçabide, segundo suas próprias declarações, 
  não só experimentava uma necessidade selvagem de matar seus parentes 
  e amigos, como também gostaria, se isso fosse possível, e disse-o 
  com suas próprias palavras diante do tribunal, de fazer o globo saltar 
  como uma castanha cozida. Lacenaire, que passava seus dias combinando assassínios 
  para obter meios de passar as noites em ignóbeis orgias, ou nos frenesis 
  do jogo, vangloriava-se abertamente de ter vivido. Chamava a isso viver! E cantava 
  um hino à guilhotina, que chamava sua bela noiva! E o mundo estava repleto 
  de imbecis que admiravam esse celerado! Alfred de Musset, antes de aniquilar-se 
  na embriaguez, desperdiçou um dos primeiros talentos de seu século 
  em contos de fria ironia e desgosto universal; o infeliz fora enfeitiçado 
  pelo respir de uma mulher profundamente perversa, que, após tê-lo 
  morto, acocorou-se sobre seu cadáver como um vampiro e rasgou seu sudário. 
  Perguntávamos um dia a um jovem escritor dessa escola o que provava sua 
  literatura. "Prova", respondeu-nos franca e ingenuamente, "que 
  é preciso desesperar e morrer." Que apostolado e que doutrina! Mas 
  eis as conclusões necessárias e rigorosas do espírito de 
  perversidade. Aspirar incessantemente ao suicídio, caluniar a vida e 
  a natureza, invocar todos os dias a morte sem poder morrer, é o inferno 
  eterno, é o suplício de Satã, esse avatar mitológico 
  do espírito de perversidade; a verdadeira tradução da palavra 
  grega diabolos, ou diabo, é o perverso.
  Eis um mistério de que os pervertidos não desconfiam. É 
  que só se pode gozar os prazeres da vida, mesmo os materiais, pelo sentido 
  moral. O prazer é a música das harmonias interiores; os sentidos 
  são apenas seus instrumentos, instrumentos que desafinam ao contato com 
  uma alma degradada. Os maus nada podem sentir, porque nada podem amar: para 
  amar, é preciso ser bom. Para eles, portanto, tudo é vazio, e 
  parece-lhes que a natureza é impotente, porque eles próprios o 
  são, duvidam de tudo porque nada sabem, blasfemam contra tudo porque 
  de nada gostam; se afagam, é para emurchecer; se bebem, é para 
  embriagar-se; se dormem, é para esquecer; se acordam, é para entediar-se 
  mortalmente: assim viverá, ou antes, assim morrerá todos os dias 
  aquele que se liberta de toda lei e de todo dever para tornar-se escravo de 
  suas fantasias. O mundo e a própria eternidade tornam-se inúteis 
  para quem se torna inútil para o mundo e para a eternidade. Nossa vontade, 
  ao agir diretamente sobre nosso mediador plástico, isto é, sobre 
  a porção de luz astral que se especializou em nós e que 
  serve para a assimilação e configuração dos elementos 
  necessários à nossa existência; nossa vontade, justa ou 
  injusta, harmoniosa ou perversa, configura o mediador à sua imagem e 
  dá-lhe aptidões conforme os nossos atrativos. Assim, a monstruosidade 
  moral produz a fealdade física, pois o mediador astral, esse arquiteto 
  interior de nosso edifício corporal, modificado incessantemente segundo 
  nossas necessidades verdadeiras ou factícias. Ele faz crescer o ventre 
  e os maxilares do glutão, crispa os lábios do avarento, torna 
  impudentes os olhares da mulher impura e venenosos os do invejoso e do mau. 
  Quando o egoísmo prevaleceu numa alma, o olhar torna-se frio, os traços 
  duros; a harmonia das formas desaparece e, segundo a especialidade absorvente 
  ou irradiante desse egoísmo, os membros dessecam-se ou ficam comprometidos 
  por uma excessiva gordura. A natureza, ao fazer de nosso corpo o retrato de 
  nossa alma, garantiu tal semelhança para sempre, e retoca-o incansavelmente. 
  Lindas mulheres que não sois bondosas, estai certas de não permanecerdes 
  belas por muito tempo. A beleza é um adiantamento que a natureza faz 
  à virtude: se a virtude não está pronta para o acerto da 
  dívida, a emprestadora recuperará impiedosamente seu capital.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  131
  A perversidade, ao modificar o organismo cujo equilíbrio ela destrói, 
  cria ao mesmo tempo a fatalidade das necessidades que impele à destruição 
  do próprio organismo e à morte. Quanto menos o perverso desfruta, 
  mais sede de prazer tem. O vinho é como água para o ébrio, 
  o ouro derrete nas mãos do jogador; Messalina cansa-se sem ficar saciada. 
  A volúpia que lhes escapa transforma-se para eles num longo desejo irritado. 
  Quanto mais seus excessos são homicidas, mais parece-lhes que a suprema 
  felicidade se aproxima... Mais uma golada de licor forte, mais um espasmo, mais 
  uma violência contra a natureza... Ah! finalmente, o prazer! a vida... 
  e seu desejo, no paroxismo de sua insaciável fome, extingue-se para sempre 
  na morte!
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  132
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  133
  QUARTA PARTE
  OS GRANDES SEGREDOS PRÁTICOS OU AS
  REALIZAÇÕES DA CIÊNCIA
  Introdução
  As altas ciências da Cabala e da magia prometem ao homem um poder excepcional, 
  real, efetivo, realizador, e deve-se encará-las como vãs e mentirosas 
  se não o dão. Vós julgareis os doutores por suas obras, 
  dizia o mestre supremo, e essa regra de julgamento é infalível.
  Se quereis que eu acredite no que sabeis, mostrai-me o que fazeis. Deus, para 
  elevar o homem à emancipação moral, esconde-se dele e de 
  certo modo abandona-lhe o governo do mundo. Deixa-se adivinhar pelas grandezas 
  e harmonias da natureza, a fim de que o homem se aperfeiçoe progressivamente, 
  sempre ampliando a idéia que faz de seu autor. O homem conhece Deus apenas 
  pelos nomes que dá a esse Ser dos seres e só o distingue pelas 
  imagens que dele tenta traçar. Assim, ele é de certo modo o criador 
  daquele que o criou. Acredita-se o espelho de Deus e, ampliando indefinidamente 
  sua própria miragem, acredita poder esboçar no espaço infinito 
  a sombra daquele que é sem corpo, sem sombra e sem espaço. CRIAR 
  DEUS, CRIAR-SE A SI PRÓPRIO, TORNAR-SE INDEPENDENTE, IMPASSÍVEL 
  E IMORTAL: aí está com certeza um programa mais temerário 
  do que o sonho de Prometeu. Pois bem, esse programa é paradoxal apenas 
  na forma que empresta a uma falsa e sacrílega interpretação. 
  Num sentido ele é perfeitamente razoável, e a ciência dos 
  adeptos promete realizá-lo e dar-lhe uma perfeita execução.
  O homem, com efeito, cria um Deus conforme à sua própria inteligência 
  e à sua própria bondade, não pode elevar seu ideal mais 
  alto do que lhe permite seu desenvolvimento moral. O Deus que ele adora é 
  sempre seu próprio reflexo aumentado. Conceber o que seja o absoluto 
  em bondade e em justiça é ser ele próprio muito justo e 
  muito bom.
  As qualidades do espírito, as qualidades morais são riquezas, 
  e as maiores de todas as riquezas. É preciso adquiri-las pela luta e 
  pelo trabalho. Objetar-nos-ão a desigualdade das aptidões e as 
  crianças que nascem com uma organização mais perfeita. 
  Mas devemos crer que tais organizações são o resultado 
  de um trabalho mais avançado da natureza e que as crianças delas 
  dotadas adquiriram-nas, senão por seus próprios esforços, 
  ao menos pelas obras solidárias dos seres humanos a quem sua existência 
  está ligada. É um segredo da natureza, que nada faz ao acaso; 
  a propriedade das faculdades intelectuais mais desenvolvidas como a do dinheiro 
  e das terras constitui um direito imprescritível de transmissão 
  e de herança.
  Sim, o homem é chamado a terminar a obra de seu Criador, e cada um dos 
  instantes por ele empregados para tornar-se melhor ou perder-se é decisivo 
  para toda uma eternidade. É pela conquista de uma inteligência 
  para sempre reta e de uma vontade para sempre justa que ele se torna vivo para 
  a vida eterna, pois que nada sobrevive à injustiça e ao erro, 
  a não ser a pena por sua 134 desordem. Compreender o bem é querê-lo, 
  e, na ordem da justiça, querer é fazer. Eis por que o Evangelho 
  nos diz que os homens serão julgados segundo suas obras. Nossas obras 
  tanto nos fazem o que somos, que, como já dissemos, nosso corpo sofre 
  modificação com nossos hábitos e, algumas vezes, transformação 
  total de sua forma. Uma forma conquistada ou suportada torna-se para toda a 
  existência uma providência ou uma fatalidade. Essas figuras estranhas 
  que os egípcios davam aos símbolos humanos da divindade representam 
  as formas fatais. Tífon, por sua boca de crocodilo, está condenado 
  a devorar incessantemente para encher seu ventre de hipopótamo. Assim, 
  por sua voracidade e sua fealdade, é consagrado à destruição 
  eterna.
  O homem pode matar ou vivificar suas faculdades pela negligência ou pelo 
  abuso. Pode criar para si faculdades novas pelo bom uso das que recebeu da natureza. 
  Freqüentemente se diz que as afeições não podem ser 
  comandadas, que a fé não é possível a todos, que 
  não se refaz o caráter, e todas essas asserções 
  são verdadeiras apenas para os preguiçosos ou os perversos. Alguém 
  pode se tornar crente, piedoso, amante, devoto, quando sinceramente o quer. 
  Pode-se dar a calma da justeza ao espírito como a onipotência da 
  justiça à vontade. Pode-se reinar no céu pela fé, 
  e na terra pela ciência. O homem que sabe comandar a si próprio 
  é rei de toda a natureza. Vamos mostrar, neste último livro, por 
  que meios os verdadeiros iniciados tornaram-se mestres de vida comandando a 
  dor e a morte; como operam em si mesmos e nos outros as transformações 
  de Proteu; como exercem as adivinhações de Apolônio; como 
  fazem o ouro de Raimundo Lúlio e de Flamel; como possuem, para renovar 
  sua juventude, os segredos de Postel, o Ressuscitado, e do fabuloso Cagliostro. 
  Vamos dizer, enfim, a última palavra da magia.
  CAPÍTULO I
  Da transformação. A vara de Circe.
  O banho de Medéia. A magia vencida por suas próprias armas.
  O grande arcano dos jesuítas e o segredo de seu poder
  A Bíblia conta que o rei Nabucodonosor, no auge de seu poder e orgulho, 
  foi repentinamente transformado em besta.
  Fugiu para lugares selvagens, pôs-se a pastar a relva, deixou crescer 
  a barba, os cabelos e todo o pêlo do corpo, bem como as unhas, e permaneceu 
  nesse estado durante sete anos. Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, dissemos 
  o que pensamos dos mistérios da licantropia, ou seja, da metamorfose 
  dos homens em lobisomens.
  Todos conhecem a fábula de Circe e compreendem sua alegoria.
  O ascendente fatal de uma pessoa sobre outra é a verdadeira vara de Circe.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  135
  Sabe-se que quase todas as fisionomias humanas portam alguma semelhança 
  com um animal, isto é, a assinatura de um instinto especializado.
  Ora, os instintos são balanceados pelos instintos contrários e 
  dominados por instintos mais fortes.
  Para dominar os carneiros, o cão explora o medo do lobo.
  Se vós sois cão, e se quereis que uma linda gatinha vos ame, tendes 
  apenas uma medida a tomar:
  metamorfosear-vos em gato.
  Como? Pela observação, imitação e imaginação. 
  Pensamos que se compreende aqui nossa linguagem figurada, e recomendamos essa 
  revelação a todos os magnetistas; aí está o mais 
  profundo de todos os segredos de sua arte.
  Eis sua fórmula em termos técnicos:
  "Polarizar sua própria luz animal, em antagonismo equilibrado com 
  um pólo contrário."
  Ou então:
  Concentrar em si mesmo as especialidades absorventes para dirigir as irradiantes 
  para uma morada absorvente; e vice-versa.
  Esse governo de nossa polarização magnética pode ser feito 
  com o auxílio das formas animais de que falamos, e que servirão 
  para fixar a imaginação.
  Demos um exemplo:
  Quereis agir magneticamente sobre uma pessoa polarizada como vós, o que 
  sabereis no primeiro contato, se fordes magnetizador; porém, ela é 
  um pouco menos forte que vós: é um rato, sois uma ratazana. Fazei-vos 
  gato, e tomá-la-eis.
  Num dos admiráveis contos que não inventou, mas que narrou melhor 
  do que ninguém, Perrault põe em cena um mestre gato que, por seus 
  ardis, induz um ogro a metamorfosear-se em rato; mal ele acabara de fazê-lo, 
  foi devorado pelo gato. Os contos da Mamãe Gansa seriam, como o Asno 
  de Ouro, de Apuleio, verdadeiras lendas mágicas, e ocultariam, sob a 
  aparência pueril, os formidáveis segredos da ciência?
  Sabe-se que os magnetizadores dão à água pura, apenas com 
  a imposição das mãos, isto é, de sua vontade expressa 
  por um sinal, as propriedades e o sabor do vinho, dos licores e de todos os 
  medicamentos possíveis.
  Sabe-se também que os domadores de animais ferozes subjugam os leões 
  fazendo-se eles mesmos mental e magneticamente mais fortes e mais ferozes que 
  os leões. Jules Gérard, o intrépido matador de leões 
  da África, seria devorado se tivesse medo. Mas, para não ter medo 
  de um leão, é preciso, por um esforço de imaginação 
  e de vontade, fazer-se mais forte e mais selvagem que o próprio animal; 
  é preciso dizer a si mesmo: O leão sou eu, e este animal diante 
  de mim é apenas um cão que deve sentir medo.
  Fourier sonhara os antileões: Jules Gérard realizou essa quimera 
  do sonhador falansteriano.
  Mas, para não temer os leões, basta ser um homem corajoso e ter 
  armas, dirão.
  Não, isso não basta. É preciso, por assim dizer, conhecer 
  de cor seu leão, calcular as investidas do
  animal, adivinhar seus ardis, evitar suas garras, prever seus movimentos, numa 
  palavra, ser mestre na
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  136
  profissão de leão, como diria o bom La Fontaine.
  Os animais são os símbolos vivos dos instintos e das paixões 
  dos homens. Se tornais um homem temeroso, vós o transformais em lebre; 
  se, ao contrário, impeli-o à ferocidade, fazeis dele um tigre. 
  A vara de Circe é o poder fascinador da mulher; e os companheiros de 
  Ulisses transformados em porcos não são uma história apenas 
  daquele tempo.
  Mas nenhuma metamorfose se opera sem destruição. Para transformar 
  um gavião em pomba, é necessário primeiro matá-lo, 
  depois cortá-lo em pedaços, de modo a destruir até o menor 
  vestígio de sua primeira forma, depois fervê-lo no banho mágico 
  de Medéia. Vede como os hierofantes modernos procedem para realizar a 
  regeneração humana; como fazem, por exemplo, na religião 
  católica para transformarem um homem mais ou menos fraco e apaixonado 
  num estóico missionário da Companhia de Jesus.
  Aí está o grande segredo dessa ordem venerável e terrível, 
  sempre desconhecida, freqüentemente caluniada e sempre soberana.
  Lede atentamente o livro intitulado os Exercícios de Santo Inácio 
  e vede com que mágico poder esse gênio opera a realização 
  da fé.
  Ele ordena a seus discípulos que vejam, toquem, cheirem, degustem as 
  coisas invisíveis; quer que os sentidos sejam exaltados na oração 
  até a alucinação voluntária. Meditais sobre um mistério 
  da fé, Santo Inácio quer primeiramente que construais um lugar, 
  que o sonheis, vejais, toqueis. Se é o inferno, ele vos faz tatear rochas 
  ardentes, nadar em trevas espessas como o pez, coloca em vossa língua 
  enxofre líquido, enche vossas narinas de um abominável mau cheiro; 
  mostra-vos atrozes suplícios, vos faz ouvir gemidos sobre-humanos; diz 
  à vossa vontade para criar tudo isso através de exercícios 
  persistentes. Cada um o faz a seu modo, mas sempre da forma mais capaz de impressioná-lo. 
  Não é mais a embriaguez do haxixe servindo à fraude do 
  Velho da Montanha; é um sonho sem sono, uma alucinação 
  sem loucura, uma visão racional e intencional, uma criação 
  verdadeira da inteligência e da fé. Daí em diante, ao pregar, 
  o jesuíta poderá dizer: É o que vimos com nossos olhos, 
  o que ouvimos com nossos ouvidos, o que nossas mãos tocaram, é 
  isso o que vos anunciamos. O jesuíta assim formado comunga com um círculo 
  de vontades exercitadas como a sua: desse modo, cada um dos padres é 
  forte como a sociedade, e a sociedade é mais forte que o mundo.
  Capitulo II
  Como se pode conservar e renovar a juventude. Os segredos de Cagliostro. A possibilidade 
  da ressurreição. Exemplo de Guilherme Postel, dito o Ressuscitado. 
  De um operário taumaturgo, etc.
  Sabemos que uma vida sóbria, moderadamente laboriosa e perfeitamente 
  regular geralmente prolonga a existência. Mas é pouco, a nosso 
  ver, a prolongação da velhice; temos o direito de pedir à 
  ciência que professamos outros privilégios e outros segredos.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  137
  Ser por muito tempo jovem, ou mesmo voltar a sê-lo, eis o que pareceria, 
  com razão, desejável e precioso para a maioria dos homens. É 
  possível? É o que vamos examinar. O famoso conde de Saint-Germain 
  morreu, não duvidamos disso; mas nunca o viram envelhecer.
  Aparentava sempre quarenta anos, e no auge de sua celebridade afirmava ter mais 
  de oitenta.
  Ninon de l'Enclos, tendo atingido uma idade avançada, era ainda uma mulher 
  jovem, bela e sedutora.
  Morreu sem ter envelhecido.
  Desbarrolles, o célebre quiromante, há muito tempo é para 
  todo o mundo um homem de trinta e cinco anos. Sua certidão de nascimento 
  diria outra coisa, se ousasse mostrar-se; mas ninguém acreditaria.
  Cagliostro sempre foi visto com a mesma idade, e não apenas pretendia 
  possuir um elixir que devolvia aos idosos, por um instante, todo o vigor da 
  juventude, como também gabava-se de operar a regeneração 
  física por meios que detalhamos e analisamos em nossa História 
  da Magia. Cagliostro e o conde de Saint-Germain atribuíam a conservação 
  de sua juventude à existência e ao uso da medicina universal, inutilmente 
  procurada por tantos sopradores e alquimistas. Um iniciado do século 
  XVI, o bom e sábio Guilherme Postel, não afirmava possuir o grande 
  arcano da filosofia hermética; e no entanto, após o terem visto 
  velho e alquebrado, viram-no novamente com uma tez vermelha e sem rugas, barba 
  e cabelos negros, corpo ágil e vigoroso. Seus inimigos pretenderam que 
  ele se maquiava e que tingia os cabelos; pois os zombeteiros e os falsos sábios 
  necessitam de uma explicação qualquer para fenômenos que 
  não compreendem. O grande meio mágico para conservar a juventude 
  do corpo é impedir a alma de envelhecer, conservando-lhe preciosamente 
  o frescor original de sentimentos e pensamentos que o mundo corrompido denomina 
  ilusões, e a que chamaremos miragens primitivas da verdade eterna. Acreditar 
  na felicidade da terra, na amizade, no amor, numa Providência materna 
  que conta todos os nossos passos e recompensará todas as nossas lágrimas 
  é ser perfeitamente ingênuo, dirá o mundo corrompido; e 
  não vê que o ingênuo é ele, que se acredita forte 
  privando-se de todas as delícias da alma.
  Acreditar no bem da ordem moral é possuir o bem: e é por isso 
  que o Salvador do mundo prometia o reino do céu aos que se tornassem 
  semelhantes às criancinhas. O que é a infância? É 
  a idade da fé. A criança ainda nada sabe da vida; desse modo, 
  resplandece de imortalidade confiante. Como poderia duvidar da dedicação, 
  da ternura, da amizade, do amor, da Providência, quando está nos 
  braços de sua mãe?
  Fazei-vos crianças de coração e permanecereis jovens de 
  corpo. As realidades de Deus e da natureza superam infinitamente em beleza e 
  bondade toda a imaginação dos homens. Assim, os empedernidos são 
  pessoas que nunca souberam ser felizes; e os desiludidos provam, por seus dissabores, 
  que beberam apenas em fontes lamacentas. Para gozar os prazeres, mesmo sensuais, 
  da vida, é preciso ter o sentido moral; e os que caluniam a existência 
  certamente deles abusaram.
  A alta magia, como provamos, reconduz o homem às leis da mais pura moral. 
  Vel sanctum invenit, vel sanctum facit, disse um adepto; pois ela nos faz compreender 
  que, para ser feliz, mesmo neste mundo, é preciso ser santo.
  Ser santo! é fácil dizer; mas como dar-se a fé, quando 
  não se acredita mais? Como reencontrar o gosto da virtude num coração 
  tornado insípido pelo vício?
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  138
  Trata-se aqui de recorrer aos quatro verbos da ciência: saber, ousar, 
  querer e calar-se.
  É preciso impor silêncio aos dissabores, estudar o dever e começar 
  por praticá-lo como se o amasse.
  Vós sois incrédulo, por exemplo, e gostaríeis de tornar-vos 
  cristão. Fazei os exercícios de um cristão. Orai regularmente, 
  servindo-vos das fórmulas cristãs; aproximai-vos dos sacramentos 
  supondo a fé, e a fé virá. Aí está o segredo 
  dos jesuítas, contido nos exercícios espirituais de Santo Inácio.
  Por exercícios análogos, um tolo, se o quisesse com perseverança, 
  tornar-se-ia um homem inteligente.
  Mudando-se os hábitos da alma, mudam-se certamente os do corpo: já 
  o dissemos e explicamos como.
  O que contribui, sobretudo, para envelhecer-nos tornando-nos feios são 
  os pensamentos rancorosos e amargos, os julgamentos desfavoráveis que 
  fazemos dos outros, nossas raivas por orgulho ferido e paixões malsatisfeitas. 
  Uma filosofia benevolente e doce evitar-nos-ia todos esses males. Se fechássemos 
  os olhos aos defeitos do próximo, levando em conta apenas suas boas qualidades, 
  encontraríamos o bem e a benevolência em toda a parte. O homem 
  mais perverso tem seu lado bom e abranda-se quando se sabe abordá-lo. 
  Se nada tivésseis em comum com os vícios dos homens, nem mesmo 
  os perceberíeis. A amizade e as dedicações que ela inspira 
  encontram-se até nas penitenciárias e nas prisões de forçados. 
  O horrível Lacenaire devolvia fielmente o dinheiro que lhe haviam emprestado, 
  e várias vezes teve atos de generosidade e beneficência. Não 
  tenho dúvidas de que na vida criminosa de Cartouche e Mandrin tenha havido 
  lances de virtude capazes de tirar lágrimas dos olhos. Nunca houve ninguém 
  totalmente mau nem totalmente bom. "Ninguém é bom, a não 
  ser Deus", disse o melhor dos mestres.
  O que tomamos em nós por zelo da virtude é freqüentemente 
  apenas um secreto amor-próprio dominador, um ciúme dissimulado 
  e um instinto orgulhoso de contradição. "Quando vemos desordens 
  manifestas e pecadores escandalosos", dizem os autores da teologia mística, 
  "cremos que Deus os submete a maiores provas do que nós, que certamente, 
  ou pelo menos muito provavelmente, não as merecemos, e que faríamos 
  bem pior em seu lugar."
  A paz! a paz! Tal é o bem supremo da alma, e foi para nos dar esse bem 
  que Cristo veio ao mundo. Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos 
  homens que desejam o bem!, clamavam os espíritos do céu quando 
  o Salvador acabava de nascer.
  Os antigos pais do cristianismo contavam um oitavo pecado capital: a tristeza. 
  De fato, o próprio arrependimento para o verdadeiro cristão não 
  é uma tristeza, é um consolo, uma alegria e um triunfo. "Queria 
  o mal e não o quero mais, estava morto e estou vivo. O pai do filho pródigo 
  matou o novilho gordo porque seu filho voltou, que pode fazer o filho pródigo? 
  Chorar, um pouco de confusão, mas sobretudo de alegria!
  Existe apenas uma coisa triste no mundo, é a loucura e o pecado. Visto 
  que estamos livres, riamos e gritemos de alegria, pois estamos salvos e todos 
  os mortos que nos amam regozijam-se no céu! Todos trazemos em nós 
  um princípio de morte e um princípio de imortalidade. A morte 
  é a besta, e a besta sempre produz a tolice. Deus não ama os tolos, 
  pois seu espírito divino denomina-se espírito de inteligência. 
  A tolice expia pela dor e escravidão. O bastão é feito 
  para as bestas.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  139
  Um sofrimento é sempre uma advertência, tanto pior para o que não 
  sabe compreender. Quando a natureza puxa a corda é porque estamos andando 
  de lado, quando bate é porque o perigo urge. Ai, então, de quem 
  não reflete!
  Quando estamos maduros para a morte, deixamos a vida sem pesar e nada nos faria 
  retornar; mas quando a morte é prematura a alma lamenta a perda da vida, 
  e um taumaturgo hábil poderia chamá-la de volta ao corpo. Os livros 
  sagrados indicam-nos o procedimento que se deve, então, adotar. O profeta 
  Elias e o apóstolo São Paulo empregaram-nos com sucesso. Trata-se 
  de magnetizar o defunto colocando os pés sobre seus pés, as mãos 
  sobre suas mãos, a boca sobre sua boca, depois reunir toda a vontade 
  e chamar a si longamente a alma evadida com todas as benevolências e carinhos 
  mentais de que se é capaz. Se o operador inspira à alma defunta 
  muita afeição, ou um grande respeito, se no pensamento que lhe 
  comunica magneticamente o taumaturgo pode persuadi-la de que a vida lhe é 
  ainda necessária e que dias felizes lhe estão ainda prometidos 
  aqui embaixo, ela certamente retomará, e para os homens de ciência 
  vulgar a morte aparente terá sido apenas uma letargia.
  Foi após uma letargia semelhante que Guilherme Postel, chamado de volta 
  à vida pelos cuidados da mãe Joana, reapareceu com uma juventude 
  nova e passou a chamar-se Postel, o Ressuscitado, Postellus restitutus.
  No ano de 1799, havia no subúrbio de Santo Antônio, em Paris, um 
  ferrador que se fazia passar por adepto da ciência hermética, chamava-se 
  Leriche e passava por ter operado, pela medicina universal, curas milagrosas 
  e até mesmo ressurreições. Uma dançarina da ópera, 
  que acreditava nele, um dia foi procurá-lo em lágrimas e disse-lhe 
  que seu amante morrera. O senhor Leriche acompanhou-a à casa mortuária. 
  Quando entrava, uma pessoa que saía disse-lhe: "É inútil 
  o senhor subir, ele morreu há seis horas." "Não importa", 
  disse o ferrador, "já que eu vim, vou vê-lo." Subiu, 
  encontrou um cadáver com o corpo todo gelado, exceto na cavidade do estômago, 
  onde ele acreditou sentir ainda um pouco de calor. Mandou acender um grande 
  fogo, operou fricções em todo o corpo com toalhas quentes, esfregou-o 
  com medicina universal diluída em álcool (sua pretensa medicina 
  universal devia ser um pó mercurial análogo ao quermes das farmácias), 
  enquanto isso a amante do morto chorava e chamava-o à vida com as mais 
  ternas palavras. Após uma hora e meia de semelhantes cuidados, Leriche 
  pôs um espelho diante do rosto do paciente e achou-o levemente embaçado. 
  Os cuidados foram redobrados e logo houve um sinal de vida mais acentuado; colocaram-no, 
  então, num leito bem aquecido e poucas horas depois ele retomara inteiramente 
  à vida. Esse ressuscitado chamava-se Candy, viveu, desde então, 
  sem nunca adoecer. Em 1845, vivia ainda e morava na praça Chevalier-du-Guet, 
  n° 6. Contava sua ressurreição a quem quisesse ouvir, e provocava 
  o riso dos médicos e dos membros do conselho profissional de seu bairro. 
  O bom homem consolava-se à maneira de Galileu e respondia-lhes: "Oh! 
  riam o quanto quiserem. Tudo o que sei é que o médico-legista 
  tinha vindo, que a inumação estava permitida, que dezoito horas 
  mais tarde iam me enterrar e que aqui estou."
  Capítulo III
  O grande arcano da morte
  Entristecemo-nos com freqüência ao pensar que a mais bela vida deve 
  terminar, e a aproximação deste terrível desconhecido a 
  que se denomina morte faz com que nos enfastiemos com todas as alegrias da existência.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  140
  Por que nascer, se se deve viver tão pouco? Por que educar com tantos 
  cuidados crianças que morrerão? Eis o que pergunta a ignorância 
  humana em suas mais freqüentes e mais tristes dúvidas. Eis também 
  o que vagamente se pode perguntar o embrião humano ao aproximar-se o 
  nascimento que vai lançá-lo num mundo desconhecido, despojando-o 
  de seu invólucro protetor. Estudemos o mistério do nascimento 
  e teremos a chave do grande arcano da morte. Lançado pelas leis da natureza 
  no ventre de uma mulher, o espírito encarnado acorda aí lentamente, 
  e com esforço cria em si órgãos indispensáveis mais 
  tarde, mas que, à medida que crescem, aumentam seu mal-estar na situação 
  presente. O tempo mais feliz da vida do embrião é aquele em que, 
  sob a simples forma de uma crisálida, estende à sua volta a membrana 
  que lhe serve de abrigo e que nada com ele num fluido nutriente e conservador. 
  Ele é, então, livre e impassível, vive da vida universal 
  e recebe o cunho das lembranças da natureza que determinarão, 
  mais tarde, a configuração de seu corpo e a forma dos traços 
  de seu rosto. Essa idade feliz poderia chamar-se a infância do embrião. 
  A seguir vem a adolescência, a forma humana torna-se distinta e o sexo 
  determina-se, um movimento opera-se no ovo materno semelhante aos vagos devaneios 
  da idade que sucede à infância. A placenta, que é o corpo 
  externo e real do feto, sente germinar em si algo de desconhecido que já 
  tende a escapar-se, rompendo-a. A criança, então, entra mais distintamente 
  na vida dos sonhos, seu cérebro, invertido como um espelho de sua mãe, 
  reproduz com tanta força as imaginações desta, que comunica 
  sua forma aos próprios membros. Sua mãe, então, é 
  para ele o que Deus é para nós, é uma providência 
  desconhecida, invisível, a que ele aspira a ponto de identificar-se em 
  tudo com o que ela admira. Está preso a ela, vive através dela 
  e não a vê, nem mesmo pode compreendê-la, e se pudesse filosofar 
  talvez negasse a existência pessoal e a inteligência dessa mãe 
  que para ele ainda é apenas uma prisão fatal e um aparelho conservador. 
  Pouco a pouco, no entanto, essa sujeição incomoda-o, agita-se, 
  atormenta-se, sofre, sente que sua vida vai terminar. Chega uma hora de angústia 
  e convulsão, seus liames desprendem-se, sente que vai cair no abismo 
  do desconhecido. Está feito, ele cai, uma sensação dolorosa 
  oprime-o, um frio estranho invade-o, solta um último suspiro que se transforma 
  num primeiro grito; morreu para a vida embrionária, nasceu para a vida 
  humana!
  Na vida embrionária, parecia-lhe que a placenta era seu corpo, e de fato 
  era seu corpo especial embrionário, corpo inútil para uma outra 
  vida e que deve ser rejeitado como uma imundície no instante do nascimento.
  Nosso corpo na vida humana é como um segundo invólucro inútil 
  para a terceira vida e é por isso que o rejeitamos no instante de nosso 
  segundo nascimento.
  A vida humana comparada à vida celeste é um verdadeiro embrionato. 
  Quando as más paixões nos matam, a natureza aborta e nascemos 
  antes do tempo para a eternidade, o que nos expõe à dissolução 
  terrível a que São João chama segunda morte.
  Segundo a tradição constante dos extáticos, os abortos 
  da vida humana permanecem nadando na atmosfera terrestre que eles não 
  podem ultrapassar e que aos poucos os absorve e os afoga. Têm a forma 
  humana, mas sempre imperfeita e truncada: a um falta a mão, a outro um 
  braço, este já tem só o tronco, este último é 
  uma cabeça pálida que rola. O que os impediu de subirem ao céu 
  foi um ferimento recebido durante a vida humana, ferimento moral que causou 
  uma disformidade física e, por esse ferimento, pouco a pouco toda sua 
  existência se vai. Logo, sua alma imortal ficará nua e, para esconder 
  sua vergonha criando a qualquer preço um novo véu, será 
  obrigada a arrastar-se nas trevas exteriores e a atravessar lentamente o mar 
  morto, isto é, as águas adormecidas do antigo caos.
  Essas almas feridas são as larvas do segundo embrionato, alimentam seu 
  corpo aéreo com o vapor do
  sangue propagado e temem a ponta das espadas. Freqüentemente ligam-se aos 
  homens viciados e
  vivem de sua vida como o embrião vive no seio da mãe; podem, então, 
  tomar as mais horríveis
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  141
  formas para representar os desejos desenfreados dos que as alimentam, e são 
  elas que aparecem sob a forma de demônios aos miseráveis operadores 
  das obras sem nome da magia negra. Essas larvas temem a luz, sobretudo a luz 
  dos espíritos. Um clarão de inteligência basta para fulminá-las 
  e precipitá-las nesse mar morto que não se deve confundir com 
  o lago Asfaltite, na Palestina. Tudo o que aqui revelamos pertence à 
  tradição hipotética dos videntes e só pode ser afirmado 
  diante da ciência em nome dessa filosofia excepcional que Paracelso chamava 
  a filosofia da sagacidade, philosophia sagax.
  Capítulo IV
  O grande arcano dos arcanos
  O grande arcano, isto é, o segredo indizível inexplicável, 
  é a ciência absoluta do bem e do mal.
  "Quando tiverdes comido o fruto desta árvore, sereis como deuses", 
  diz a serpente.
  "Se comerdes, morrereis", responde a sabedoria divina.
  Assim, o bem e o mal frutificam numa mesma árvore e brotam de uma mesma 
  raiz.
  O bem personificado é Deus.
  O mal personificado é o diabo.
  Saber o segredo ou a ciência de Deus é ser Deus.
  Saber o segredo ou a ciência do diabo é ser o diabo.
  Querer ser ao mesmo tempo Deus e diabo é absorver em si a antinomia mais 
  absoluta, as duas forças contrárias mais tensas; é querer 
  abrigar um antagonismo infinito. É beber um veneno que apagaria os sóis 
  e que consumiria mundos.
  É vestir a túnica devorante de Dejanira.
  É votar-se à mais pronta e mais terrível de todas as mortes.
  Ai daquele que quer saber demais! Pois se a ciência excessiva e temerária 
  não o matar o tornará louco!
  Comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal é associar 
  o mal ao bem e assimilá-los um ao outro.
  É cobrir com a máscara de Tífon o rosto irradiante de Osíris.
  É erguer o véu sagrado de Ísis, é profanar o santuário.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  142
  O temerário que ousa olhar o sol sem sombra torna-se cego e, então, 
  para ele o sol é negro!
  É proibido contarmos mais, terminaremos nossa revelação 
  pela figura de três pentáculos. Essas três estrelas dizem 
  o bastante, pode-se compará-las àquelas que desenhamos no início 
  de nossa história da magia, e reunindo as quatro será possível 
  chegar a entrever o grande arcano dos arcanos.
  Primeiro Pantáculo, a estrela branca
  Agora, para completar nossa obra, resta-nos dar a grande chave de Guilherme 
  Postel. Essa chave é a do tarô. Vêem-se aí os quatro 
  naipes, paus, copas, espada, ouros ou círculo, que correspondem aos quatro 
  pontos cardeais do céu e aos quatro animais ou signos simbólicos, 
  os números e as letras dispostos em círculo, depois os sete signos 
  planetários com a indicação de sua tríplice repetição 
  expressa nas três cores, para significar o mundo natural, o mundo humano 
  e o mundo divino, cujos emblemas hieroglíficos compõem os vinte 
  e um grandes trunfos de nosso jogo atual de tarô.
  No centro do anel, vê-se o duplo triângulo formando a estrela ou 
  selo de Salomão, é o ternário religioso e metafísico 
  análogo ao ternário natural da geração universal 
  na substância equilibrada.
  c
  s
  t
  n h v k t n h k t
  a
  h
  ,
  n h v k t s n t h u
  s u t h t h u s u t h t h
  Em volta do triângulo está a cruz que divide o círculo em 
  quatro partes iguais, assim os símbolos da religião reúnem-se 
  às linhas da geometria, a fé completa a ciência e a ciência 
  dá a razão da fé. Com o auxílio dessa chave pode-se 
  compreender o simbolismo universal do antigo mundo e comprovar suas surpreendentes 
  analogias com nossos dogmas. Reconhecer-se-á assim que a revelação 
  divina é permanente na natureza e na humanidade; sentir-se-á que 
  o cristianismo não trouxe senão a luz e o calor ao templo universal 
  ao fazer descer nele o espírito de caridade que é a vida do próprio 
  Deus.
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  143
  A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
  144
  EPÍLOGO
  Graças vos sejam dadas, meu Deus, porque vós me chamasses a essa 
  admirável luz. Sois a inteligência suprema e a vida absoluta desses 
  números e dessas forças que vos obedecem para povoar o infinito 
  com uma criação inesgotável. As matemáticas vos 
  provam, as harmonias vos cantam, as formas passam e vos adoram!
  Abraão conheceu-vos, Hermes adivinhou-vos, Pitágoras calculou 
  vossos movimentos, Platão aspirava a vós em tolos os sonhos de 
  seu gênio; mas um único iniciador, um único sábio 
  vos revelou aos filhos da terra, um único pôde dizer de vós: 
  Meu pai e eu somos apenas um; glória seja, pois, para ele, pois que toda 
  sua glória é para vós!
  Pai, vós o sabeis, aquele que escreve estas linhas muito lutou e sofreu; 
  suportou a pobreza, a calúnia, a proscrição odiosa, a prisão, 
  o abandono dos que amava, e, no entanto, nunca se julgou infeliz, porque restava-lhe 
  por consolo a verdade e a justiça!
  Vós sois o único santo, Deus dos corações verdadeiros 
  e das almas justas, e sabeis se algum dia acreditei estar puro diante de vós; 
  fui como todos os homens o joguete das paixões humanas, depois venci-as, 
  ou antes, venceste-as em mim, e destes-me, para que aí repousasse, a 
  paz profunda dos que buscam e ambicionam a vós somente.
  Amo a humanidade porque os homens, enquanto não são insensatos, 
  nunca são maus a não ser por erro ou fraqueza. Amam naturalmente 
  o bem e é por esse amor, que lhes destes como um sustentáculo 
  em meio a suas provações, que devem ser reconduzidos cedo ou tarde 
  ao culto da justiça pelo amor da verdade.
  Que meus livros vão agora onde Vossa Providência os enviar. Se 
  contiverem as palavras de vossa sabedoria, serão mais fortes que o esquecimento, 
  se ao contrário contiverem apenas erros, sei ao menos que meu amor pela 
  justiça e pela verdade lhes sobreviverá, e que assim a imortalidade 
  não pode deixar de recolher as aspirações e os votos de 
  minha alma que criastes imortal!
  Eliphas Levi
  FIM
  145