A Chave dos Grandes Mistérios
Eliphas Levi
A Chave dos Grandes
Mistérios
A CHAVE DOS GRANDES MISTÉRIOS........................................................................................1
A TÍTULO DE INFORMAÇÃO...............................................................................................1
PREFÁCIO..........................................................................................................................................2
PRIMEIRA PARTE............................................................................................................................4
MISTÉRIOS RELIGIOSOS......................................................................................................4
Problemas a resolver......................................................................................................4
Considerações preliminares............................................................................................4
ARTIGO I.................................................................................................................................8
Solução do primeiro problema.......................................................................................8
Esboço da teologia profética dos números.....................................................................9
ARTIGO II..............................................................................................................................39
Solução do segundo problema......................................................................................40
ARTIGO III.............................................................................................................................41
Solução do terceiro problema.......................................................................................42
ARTIGO IV.............................................................................................................................44
Solução do quarto problema.........................................................................................44
ARTIGO V..............................................................................................................................47
Solução do último problema........................................................................................47
RESUMO DA PRIMEIRA PARTE EM FORMA DE DIÁLOGO.........................................48
A Fé, A Ciência, A Razão............................................................................................48
SEGUNDA PARTE...........................................................................................................................53
MISTÉRIOS FILOSÓFICOS..................................................................................................53
Considerações preliminares..........................................................................................53
Solução dos Problemas Filosóficos..............................................................................55
TERCEIRA PARTE..........................................................................................................................61
OS MISTÉRIOS DA NATUREZA.........................................................................................61
O Grande Agente Mágico............................................................................................61
LIVRO I..................................................................................................................................61
OS Mistérios Magnéticos.............................................................................................61
LIVRO II...............................................................................................................................117
Os Mistérios Mágicos.................................................................................................117
QUARTA PARTE...........................................................................................................................134
OS GRANDES SEGREDOS PRÁTICOS OU AS REALIZAÇÕES DA CIÊNCIA............134
Introdução...................................................................................................................134
EPÍLOGO........................................................................................................................................145
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
PREFÁCIO
Os espíritos humanos têm a vertigem do mistério. O mistério
é o abismo que atrai, sem cessar, nossa curiosidade inquieta por suas
formidáveis profundezas.
O maior mistério do infinito é a existência de Aquele para
quem e somente para Ele - tudo é sem mistério.
Compreendendo o infinito, que é essencialmente incompreensível,
ele próprio é o mistério infinito e externamente insondável,
ou seja, ele é, ao que tudo indica, esse absurdo por excelência,
em que acreditava Tertuliano.
Necessariamente absurdo, uma vez que a razão deve renunciar para sempre
a atingi-lo; necessariamente crível, uma vez que a ciência e a
razão, longe de demonstrar que ele não é, são fatalmente
levadas a deixar acreditar que ele é, e elas próprias a adorá-lo
de olhos fechados. É que esse absurdo é a fonte infinita da razão,
a luz brota eternamente das trevas eternas, a ciência, essa Babel do espírito,
pode torcer e sobrepor suas espirais subindo sempre; ela poderá fazer
oscilar a Terra, nunca tocará o céu.
Deus é o que aprenderemos eternamente a conhecer. É, por conseguinte,
o que nunca saberemos. O domínio do mistério é um campo
aberto às conquistas da inteligência. Pode-se andar nele com audácia,
nunca se reduzirá sua extensão, mudar-se-á somente de horizontes.
Todo saber é o sonho do impossível, mas ai de quem não
ousa aprender tudo e não sabe que, para saber alguma coisa, é
preciso resignar-se a estudar sempre!
Dizem que para bem aprender é preciso esquecer várias vezes. O
mundo seguiu esse método. Tudo o que se questiona em nossos dias havia
sido resolvido pelos antigos; anteriores a nossos anais, suas soluções
escritas em hieróglifos não tinham mais sentido para nós;
um homem reencontrou sua chave, abriu as necrópoles da ciência
antiga e deu a seu século todo um mundo de teoremas esquecidos, de sínteses
simples e sublimes como a natureza, irradiando sempre unidade e multiplicando-se
como números, com proporções tão exatas quanto o
conhecimento demonstra e revela o desconhecido. Compreender essa ciência
é ver Deus. O autor deste livro, ao terminar sua obra, acreditará
tê-lo demonstrado.
Depois, quando tiverdes visto Deus, o hierofante vos dirá: Virai-vos
e, na sombra que projetais na presença desse sol das inteligências,
ele fará aparecer o Diabo, o fantasma negro que vedes quando não
olhais para Deus e quando acreditais ter preenchido o céu com vossa sombra,
porque os vapores da terra parecem tê-la feito crescer ao subir.
Pôr de acordo, na ordem religiosa, a ciência com a revelação
e a razão com a fé, demonstrar em filosofia os princípios
absolutos que conciliam todas as antinomias, revelar enfim o equilíbrio
universal das forças naturais, tal é a tripla finalidade desta
obra, que será, por conseguinte, dividida em três partes.
Mostraremos a verdadeira religião com caracteres tais que ninguém,
crente ou não, poderá desconhecê-la, será o absoluto
em matéria de religião. Estabeleceremos, em filosofia, os caracteres
imutáveis dessa verdade, que é, em ciência, realidade, em
julgamento, razão e, em moral, justiça. Enfim, faremos conhecer
estas leis da natureza cujo equilíbrio é o sustento e mostraremos
o quanto são vãs as fantasias de nossa imaginação
diante das realidades fecundas do movimento e da vida. Convidaremos também
os grandes poetas do futuro para refazerem a divina comédia, não
mais de acordo com os sonhos do homem, mas segundo as matemáticas de
Deus.
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Mistério dos outros mundos, forças ocultas, revelações
estranhas, doenças misteriosas, faculdades excepcionais, espíritos,
aparições, paradoxos mágicos, arcanos herméticos,
diremos tudo e explicaremos tudo. Quem pois nos deu esse poder? Não tememos
revelá-lo a nossos leitores. Existe um alfabeto oculto e sagrado que
os hebreus atribuem a Henoch, os egípcios a Tot ou a Mercúrio
Trismegistos, os gregos a Cadmo e a Palamédio. Esse alfabeto, conhecido
pelos pitagóricos, compõe-se de idéias absolutas ligadas
a signos e a números e realiza, por suas combinações, as
matemáticas do pensamento. Salomão havia representado esse alfabeto
por setenta e dois nomes escritos em trinta e seis talismãs e é
o que os iniciados do Oriente denominam ainda de as pequenas chaves ou clavículas
de Salomão. Essas chaves são descritas e seu uso é explicado
num livro cujo dogma tradicional remonta ao patriarca Abraão, é
o Sepher Yétsirah, e, com a inteligência do Sepher Yétsirah,
penetra-se o sentido oculto do Zohar, o grande livro dogmático da Cabala
dos hebreus. As clavículas de Salomão, esquecidas com o tempo
e que se dizia estarem perdidas, nós as encontramos, e abrimos sem dificuldade
todas as portas dos antigos santuários, onde a verdade absoluta parecia
dormir, sempre jovem e sempre bela, como aquela princesa de um conto infantil
que espera durante um século de sono o esposo que deve despertá-la.
Depois de nosso livro, ainda haverá mistérios, mas mais alto e
mais longe nas profundezas infinitas. Esta publicação é
uma luz ou uma loucura, uma mistificação ou um monumento. Lede,
refleti e julgai.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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PRIMEIRA PARTE
MISTÉRIOS RELIGIOSOS
Problemas a resolver
I. Demonstrar de uma maneira certa e absoluta a existência de um Deus
e dela dar uma idéia satisfatória para todos os espíritos.
II. Estabelecer a existência de uma verdadeira religião de maneira
a torná-la incontestável.
III. Indicar o alcance e a razão de ser de todos os mistérios
da religião única, verdadeira e universal.
IV. Transformar as objeções da filosofia em argumentos favoráveis
à verdadeira religião.
V. Traçar o limite entre a religião e a superstição
e dar a razão dos milagres e dos prodígios.
Considerações preliminares
Quando o conde Joseph de Maistre, este grande lógico apaixonado, disse
com desespero: O mundo está sem religião, assemelhou-se àqueles
que dizem temerariamente: Deus não existe. O mundo, com efeito, está
sem a religião do conde Joseph de Maistre, assim como é provável
que Deus, tal qual o concebe a maioria dos ateus, não exista.
A religião é uma idéia apoiada num fato constante e universal;
a humanidade é religiosa: a palavra religião tem, portanto, um
sentido necessário e absoluto. A própria natureza consagra a idéia
que representa essa palavra e a eleva à altura de um princípio.
A necessidade de crer liga-se estreitamente à necessidade de amar: é
por isso que as almas têm necessidade de comungar com as mesmas esperanças
e com o mesmo amor. As crenças isoladas não passam de dúvidas:
é o laço da confiança mútua que faz a religião
ao criar a fé. A fé não se inventa, não se impõe,
não se estabelece por convicção política; manifesta-se,
como a vida, com uma espécie de fatalidade. O mesmo poder que dirige
os fenômenos da natureza estende e limita, além de todas as previsões
humanas, o domínio sobrenatural da fé. Não se imaginam
as revelações, elas se impõem, e nelas se crê. Por
mais que o espírito proteste contra as obscuridades do dogma, está
subjugado pela atração dessas mesmas obscuridades, e freqüentemente
o mais indócil dos pensadores coraria em aceitar o título de homem
sem religião. A religião ocupa um espaço bem maior entre
as realidades da vida do que pretendem crer aqueles que dispensam a religião
ou que têm a pretensão de dispensá-la. Tudo o que eleva
o homem acima do animal, o amor moral, a abnegação, a honra são
sentimentos essencialmente religiosos. O culto da pátria e do lar, a
religião do juramento e das lembranças são coisas que a
humanidade jamais 4 abjurará sem se degradar completamente, e que não
saberiam existir sem a crença em alguma coisa maior do que a vida mortal,
com todas as suas vicissitudes, suas ignorâncias e suas misérias.
Se a perda eterna no nada tivesse de ser o resultado de todas as nossas aspirações
às coisas sublimes que sentimos serem eternas, a fruição
do presente, o esquecimento do passado e a displicência para com o futuro
seriam nossos únicos deveres, e seria rigorosamente verdadeiro dizer,
com um sofista célebre, que o homem que pensa é um animal degradado.
Por isso, de todas as paixões humanas, a paixão religiosa é
a mais poderosa e a mais vivaz. Produz-se seja pela afirmação
seja pela negação, com igual fanatismo, uns afirmando com obstinação
o deus que fizeram à sua imagem, outros negando Deus com temeridade,
como se tivessem podido compreender e devastar por um único pensamento
todo o infinito que está ligado a seu grande nome.
Os filósofos não refletiram suficientemente sobre o fato fisiológico
da religião na humanidade: a religião, com efeito, existe além
de toda discussão dogmática. É uma faculdade da alma humana,
da mesma forma que a inteligência e o amor. Enquanto houver homens, a
religião existirá. Considerada assim, ela não é
outra coisa que a necessidade de um idealismo infinito, necessidade que justifica
todas as aspirações ao progresso, que inspira todas as abnegações,
que sozinha impede a virtude e a honra de serem unicamente palavras que servem
para iludir a vaidade dos fracos e dos tolos em proveito dos fortes e dos hábeis.
É a essa necessidade inata de crença que se poderia dar o nome
de religião natural, e tudo o que tende a diminuir e limitar o impulso
dessa crença está, na ordem religiosa, em oposição
à natureza. A essência do objeto religioso é o mistério,
uma vez que a fé começa no desconhecido e abandona todo o resto
às investigações da ciência. A dúvida é,
aliás, mortal à fé; ela sente que a intervenção
do ser divino é necessária para cobrir o abismo que separa o finito
do infinito e afirma essa intervenção com todo o ímpeto
de seu coração, com toda a docilidade de sua inteligência.
Fora desse ato de fé, a necessidade religiosa não encontra satisfação
e transmuta-se em ceticismo e em desespero. Mas, para que o ato de fé
não seja um ato de loucura, a razão quer que ele seja dirigido
e regulado. Pelo quê? Pela ciência? Vimos que nesse caso a ciência
é impotente. Pela autoridade civil? É absurdo. Colocai guardas
para vigiar as orações!
Resta, pois, a autoridade moral, única que pode constituir o dogma e
estabelecer a disciplina do culto de comum acordo, dessa vez, com a autoridade
civil, mas não conforme às suas ordens; é preciso, em uma
palavra, que a fé dê à necessidade religiosa uma satisfação
real, inteira, permanente, indubitável. Para tanto, é preciso
a afirmação absoluta, invariável, de um dogma conservado
por uma hierarquia autorizada. É preciso um culto eficaz que dê,
com uma fé absoluta, uma realização substancial aos signos
da crença.
A religião, assim compreendida, sendo a única que satisfaz a necessidade
natural de religião, deve ser chamada de a única verdadeiramente
natural. E chegamos por nós mesmos a esta dupla definição:
a verdadeira religião natural é a religião revelada, é
a religião hierárquica e tradicional, que se afirma absolutamente
acima das discussões humanas pela comunhão da fé, da esperança
e da caridade. Ao representar a autoridade moral e ao realizá-la pela
eficácia de seu ministério, o sacerdote é santo e infalível,
enquanto a humanidade está sujeita ao vício e ao erro. O padre,
ao agir como padre, é sempre o representante de Deus. Pouco importam
as faltas ou mesmo os crimes do homem. Quando Alexandre VI fazia uma ordenação,
não era o envenenador que impunha as mãos aos bispos, era o papa.
Ora, o papa Alexandre VI nunca corrompeu nem falsificou os dogmas que o condenavam,
os sacramentos que, em suas mãos, salvavam os outros e não o justificavam.
Houve sempre e em todos os lugares homens mentirosos e criminosos; mas, na Igreja
hierárquica e divinamente autorizada, nunca houve e nunca haverá
nem maus papas nem maus padres. Mau e padre são palavras que não
se ajustam.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
5
Falamos de Alexandre VI e acreditamos que esse nome baste, sem que nos oponham
outras lembranças justamente execradas. Grandes criminosos puderam duplamente
desonrar-se, por causa do caráter sagrado de que estavam revestidos;
mas não lhes foi dado desonrar esse caráter, que continua sempre
radiante e esplêndido acima da humanidade que cai. Dissemos que não
há religião sem mistérios; acrescentemos que não
há mistérios sem símbolos. Sendo o símbolo a fórmula
ou a expressão do mistério, ele só exprime sua profundidade
desconhecida por imagens paradoxais emprestadas do conhecido. Devendo caracterizar
o que está acima da razão científica, a forma simbólica
deve necessariamente encontrar-se fora dessa razão: daí, a palavra
célebre e perfeitamente justa de um Pai da Igreja: Creio, porque é
absurdo, credo quia absurdum.
Se a ciência afirmasse o que não sabe, destruiria a si própria.
A ciência não pode, portanto, realizar a obra da fé, tanto
quanto a fé não pode decidir em matéria de ciência.
Uma afirmação de fé com que a ciência tenha a temeridade
de ocupar-se será apenas um absurdo para ela, da mesma forma que uma
afirmação de ciência que nos fosse dada como artigo de fé
seria um absurdo na ordem religiosa. Crer e saber são dois termos que
nunca se podem confundir.
Tampouco poderiam opor-se um ao outro num antagonismo qualquer. É impossível,
com efeito, crer no contrário do que se sabe sem deixar, por isso mesmo,
de o saber, e é igualmente impossível chegar a saber o contrário
do que se crê sem deixar imediatamente de crer. Negar ou mesmo contestar
as decisões da fé, e isso em nome da ciência, é provar
que não se compreende nem a ciência nem a fé: com efeito,
o mistério de um Deus em três pessoas não é um problema
de matemática; a encarnação do Verbo não é
um fenômeno que pertença à medicina; a redenção
escapa à crítica dos historiadores. A ciência é absolutamente
impotente para decidir se se tem ou não razão de se acreditar
ou não no dogma; ela pode constatar somente os resultados da crença
e, se a fé torna evidentemente os homens melhores, se, aliás,
a fé em si mesma, considerada como um fato fisiológico, é
evidentemente uma necessidade e uma força, será preciso que a
ciência o admita e tome o sábio partido de contar sempre com a
fé.
Ousemos afirmar agora que existe um fato imenso, igualmente apreciável
pela fé e pela ciência, um fato que torna Deus visível de
algum modo sobre a terra, um fato incontestável e de alcance universal;
esse fato é a manifestação, no mundo, a partir da época
em que começa a revelação cristã, de um espírito
desconhecido pelos antigos, de um espírito evidentemente divino, mais
positivo que a ciência em suas obras, mais magnificamente ideal em suas
aspirações que a mais elevada poesia, um espírito para
o qual era preciso criar um nome novo, completamente inaudito nos santuários
da Antigüidade. Assim, esse nome foi criado, e demonstraremos que esse
nome, que essa palavra é, em religião, tanto para a ciência
quanto para a fé, a expressão do absoluto; a palavra é
caridade e o espírito de que falamos chama-se o espírito de caridade.
Diante da caridade, a fé prosterna-se e a ciência, vencida, inclina-se.
Há evidentemente aqui alguma coisa maior do que a humanidade; a caridade
prova por suas obras que não é um sonho. É mais forte do
que todas as paixões; triunfa sobre o sofrimento e a morte; faz que Deus
seja compreendido por todos os corações e parece já preencher
a eternidade pela realização iniciada de suas legítimas
esperanças.
Diante da caridade viva e atuante, que Proudhon ousará blasfemar? Que
Voltaire ousará rir? Empilhai, um sobre os outros, os sofismas de Diderot,
os argumentos críticos de Strauss, as Ruínas de Volney - tão
bem nomeadas, pois esse homem não poderia fazer senão ruínas
-, as blasfêmias dessa revolução cuja voz extingue-se uma
vez no sangue e outra no silêncio do desprezo; acrescentei a isso o que
o futuro pode nos reservar de monstruosidades e devaneios; depois, que venha
a mais humilde e a mais simples de todas as irmãs da caridade, o mundo
abandonará todas as suas tolices, todos os seus crimes, todos os seus
devaneios doentios, para inclinar-se diante dessa realidade sublime.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Caridade! palavra divina, palavra que, por si, leva à compreensão
de Deus, palavra que contém uma revelação inteira! Espírito
de caridade, aliança de duas palavras que são toda uma solução
e todo um futuro! Que pergunta, com efeito, essas duas palavras não podem
responder? O que é Deus para nós senão o espírito
de caridade? o que é a ortodoxia? não é o espírito
de caridade que não discute sobre a fé a fim de não alterar
a confiança dos pequenos e de não perturbar a paz da comunhão
universal? Ora, o que é a Igreja universal senão a comunhão
em espírito de caridade? É pelo espírito de caridade que
a Igreja é infalível. O espírito de caridade é a
virtude divina do sacerdócio.
Dever dos homens, garantia de seus direitos, prova de sua imortalidade, eternidade
de felicidade iniciada para eles na terra, objetivo glorioso dado a sua existência,
fim e meio de seus esforços, perfeição de sua moral individual,
civil e religiosa, o espírito de caridade abrange tudo, aplica-se a tudo,
tudo pode esperar, tudo empreender e tudo cumprir.
Era pelo espírito de caridade que Jesus, expirando na cruz, dava a sua
mãe um filho na pessoa de São João e, triunfando sobre
as angústias do mais horrível suplício, soltava um grito
de libertação e de salvação ao dizer: "Pai,
nas tuas mãos entrego meu espírito." Foi pelo espírito
de caridade que doze artesãos da Galiléia conquistaram o mundo;
amaram a verdade mais do que suas vidas; e foram sozinhos dizê-la aos
povos e aos reis; provados pela tortura, foram considerados fiéis. Mostraram
às multidões a imortalidade viva em sua morte e regaram a terra
com um sangue cujo calor não podia extinguir-se, pois neles ardia a chama
da caridade. Foi pela caridade que os apóstolos constituíram seus
símbolos. Disseram que acreditar juntos é melhor do que duvidar
separadamente; constituíram a hierarquia sobre a obediência, tornada
tão nobre e tão grande pelo espírito de caridade, que servir
assim é reinar; formularam a fé de todos e a esperança
de todos e puseram esse símbolo sob a guarda da caridade de todos. Ai
do egoísta que se apropria de uma só palavra dessa herança
do Verbo, pois é um deicida que quer desmembrar o corpo do Senhor.
O símbolo é a arca sagrada da caridade, quem quer que o toque
é atingido pela morte eterna, pois a caridade retira-se dele. É
a herança sagrada de nossos filhos, é o preço do sangue
de nossos pais. Era pela caridade que os mártires se consolavam nas prisões
dos césares e atraíam para sua crença seus guardas e mesmo
seus carrascos.
Era em nome da caridade que São Martinho de Tours protestava contra o
suplício dos priscilianos e separava-se da comunhão do tirano
que queria impor a fé pela espada. Foi pela caridade que tantos santos
consolaram o mundo dos crimes cometidos em nome da própria religião
e dos escândalos do santuário profanado.
Foi pela caridade que São Vicente de Paulo e Fenelon impuseram-se à
admiração dos séculos, mesmo aos mais ímpios, e
fizeram calar de antemão o riso dos filhos de Voltaire diante da seriedade
imponente de suas virtudes.
Foi pela caridade, enfim, que a loucura da cruz tornou-se a sabedoria das nações,
porque todos os nobres corações compreenderam que é mais
elevado acreditar ao lado dos que amam e devotam-se do que duvidar ao lado dos
egoístas e dos escravos do prazer!
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7
ARTIGO I
Solução do primeiro problema
O Verdadeiro Deus
Deus só pode ser definido pela fé; a ciência não
pode negar nem afirmar que ele existe. Deus é o objeto absoluto da fé
humana. No infinito, é a inteligência suprema e criadora da ordem.
No mundo, é o espírito de caridade.
Será o Ser universal uma máquina fatal que tritura eternamente
as inteligências ocasionais ou uma inteligência providencial que
dirige as forças para a melhoria dos espíritos? A primeira hipótese
repugna à razão, é desesperadora e imoral.
Ciência e razão devem, portanto, inclinar-se diante da segunda.
Sim, Proudhon, Deus é uma hipótese, mas é uma hipótese
tão necessária que, sem ela, todos os teoremas tornam-se absurdos
ou duvidosos.
Para os iniciados da cabala, Deus é a unidade absoluta que cria e anima
os números.
A unidade da inteligência humana demonstra a unidade de Deus. A chave
dos números é a dos símbolos, porque os sintomas são
as figuras analógicas da harmonia que vem dos números.
As matemáticas não saberiam demonstrar a fatalidade cega, uma
vez que são a expressão da exatidão que é o caráter
da mais suprema razão.
A unidade demonstra a analogia dos contrários; é o princípio,
o equilíbrio e o fim dos números. O ato de fé parte da
unidade e retorna à unidade.
Vamos esboçar uma explicação da Bíblia pelos números,
porque a Bíblia é o livro das imagens de Deus.
Perguntaremos aos números a razão dos dogmas da religião
eterna, e os números responderão sempre, reunindo-se na síntese
da unidade.
As poucas páginas que se seguem são simples apanhados das hipóteses
cabalísticas; são externas à fé e as indicamos somente
como pesquisas curiosas. Não nos cabe inovar em matéria de dogma,
e nossas asserções como iniciado estão inteiramente subordinadas
à nossa submissão como cristão.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
8
Esboço da teologia profética dos números
I - A Unidade
A unidade é o princípio e a síntese dos números,
é a idéia de Deus e do homem, é a aliança da razão
e da fé.
A fé não pode ser oposta à razão, é exigida
pelo amor, é idêntica à esperança. Amar é
acreditar e esperar, e esse triplo ímpeto da alma é chamado virtude,
porque é preciso coragem para realizá-lo. Mas haveria coragem
nisso se a dúvida não fosse possível? Ora, poder duvidar
é duvidar. A dúvida é a força equilibrante da fé
e tem todo o seu mérito.
A própria natureza nos induz a crer, mas as fórmulas de fé
são constatações sociais das tendências da fé
numa época dada. É o que dá a infalibilidade à Igreja,
infalibilidade de evidência e de fato. Deus é necessariamente o
mais desconhecido de todos os seres, uma vez que só é definido
em sentido inverso de nossas experiências, é tudo o que não
somos, é o infinito oposto ao finito por hipótese contraditória.
A fé e, por conseguinte, a esperança e o amor são tão
livres que o homem, longe de impô-los aos outros, não os impõe
a si mesmo.
São graças, diz a religião. Ora, será concebível
que se exija a graça, isto é, que se queira forçar os homens
ao que vem livre e gratuitamente do céu? É preciso desejar-lhes
isso.
Raciocinar sobre a fé é disparatar, uma vez que o objeto da fé
é externo à razão. Se me perguntam:
"Existe um Deus?", eu respondo: "Acredito que sim." "Mas
o senhor tem certeza disso?" "Se tivesse certeza, não acreditaria
nele, eu o saberia."
Formular a fé é admitir termos da hipótese comum.
A fé começa onde a ciência acaba. Ampliar a ciência
é aparentemente suprimir a fé, e, na realidade, é ampliar
igualmente seu domínio, pois é ampliar sua base.
Só se pode adivinhar o desconhecido por suas proporções
supostas ou passíveis de serem supostas do conhecido.
A analogia era o dogma único dos antigos magos. Dogma verdadeiramente
mediador, pois é metade científico, metade hipotético,
metade razão e metade poesia. Esse dogma foi e será sempre o gerador
de todos os outros.
O que é o Homem-Deus? É o que realiza na vida mais humana o ideal
mais divino.
A fé é uma adivinhação da inteligência e do
amor dirigidos pelos índices da natureza e da razão. Faz parte,
portanto, da essência das coisas de fé serem inacessíveis
à ciência, duvidosas para a filosofia e indefinidas para a certeza.
A fé é uma realização hipotética dos fins
últimos da esperança. É a adesão ao signo visível
das coisas que não se vê.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
9
Sperandarum substantia rerum
Argumentum non apparentium
Para afirmar sem disparate que Deus existe ou não, é preciso partir
de uma definição sensata ou insensata de Deus. Ora, essa definição
para ser sensata deve ser hipotética, analógica e negativa do
finito conhecido. Pode-se negar um Deus qualquer, mas o Deus absoluto não
se nega tanto quanto não se prova; é sensatamente suposto e nele
se acredita.
Bem-aventurados os que têm o coração puro, pois verão
a Deus, disse o Mestre; ver com o coração é acreditar e,
se essa fé se relaciona ao verdadeiro bem, não pode ser enganada
contanto que não procure definir muito seguindo as induções
arriscadas da ignorância pessoal. Nossos julgamentos, em matéria
de fé, aplicam-se a nós mesmos, será para nós como
tivermos acreditado. Isto é, nós próprios nos fazemos à
semelhança de nosso ideal.
Quem faz os deuses torna-se semelhante a eles, assim como todos aqueles que
lhes dão sua confiança.
O ideal divino do velho mundo fez a civilização que acabou, e
não se deve desesperar ao ver o deus de nossos bárbaros pais tornar-se
o diabo de nossos filhos mais esclarecidos. Fazem-se diabos com deuses de refugo,
e Satã só é assim tão incoerente e tão disforme
porque é feito com todos os retalhos das antigas teogonias. É
a esfinge sem palavra, é o enigma sem solução, é
o mistério sem verdade, é o absoluto sem realidade e sem luz.
O homem é o filho de Deus, porque Deus, manifestado, é chamado
o filho do homem. Foi depois de ter feito Deus em sua inteligência e seu
amor que a humanidade compreendeu o verbo sublime que disse: Faça-se
a luz!
O homem é a forma do pensamento divino, e Deus é a síntese
idealizada do pensamento humano.
Assim, o Verbo de Deus é o que revela o homem, e o Verbo do homem é
o que revela Deus.
O homem é o Deus do mundo, e Deus é o homem do céu.
Antes de dizer: Deus quer, o homem quis.
Para compreender e honrar Deus todo-poderoso, é preciso que o homem seja
livre. Obedecendo e abstendo-se por temor ao fruto da ciência, tendo sido
inocente e estúpido como o cordeiro, curioso e rebelde como o anjo de
luz, o homem cortou o cordão de sua ingenuidade e, caindo livre sobre
a terra, arrastou Deus em sua queda.
E é por isso que, do fundo dessa queda sublime, revela-se glorioso com
o grande condenado do calvário e entra com ele no reino do céu.
Pois o reino do céu pertence à inteligência e ao amor, ambos
filhos da liberdade! Deus mostrou ao homem a liberdade como uma amante, e, para
pôr seu coração à prova, fez passar, entre ela e
ele, o fantasma da morte.
O homem amou e sentiu-se Deus; deu por ela isto que Deus acabava de nos dar:
a esperança eterna.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
10
Lançou-se em direção de sua noiva através da sombra
da morte e o espectro desapareceu.
O homem possuía a liberdade; tinha abraçado a vida.
Expia agora tua glória, ó Prometeu!
Teu coração devorado sem cessar não pode morrer; é
o teu abutre e Júpiter que morrerão. Um dia despertaremos enfim
dos sonhos penosos de uma vida atormentada, a obra de nossa provação
terá acabado, seremos fortes o bastante contra a dor para sermos imortais.
Então viveremos em Deus, numa vida mais abundante, e desceremos às
suas obras com a luz de seu pensamento, seremos levados ao infinito pelo sopro
de seu amor. Seremos, sem dúvida, os primogênitos de uma nova raça;
anjos do porvir.
Mensageiros celestes, vogaremos na imensidão e as estrelas serão
nossas brancas naus. Transformar-nos-emos em doces visões para acalmar
os olhos dos que choram; colheremos lírios resplandecentes em prados
desconhecidos e espargiremos seu orvalho sobre a terra. Tocaremos a pálpebra
da criança que dorme e alegraremos docemente o coração
de sua mãe com o espetáculo da beleza de seu filho bem-amado.
II - O Binário
O binário é mais particularmente o número da mulher, esposa
do homem e mãe da sociedade.
O homem é o amor na inteligência, a mulher é a inteligência
no amor. A mulher é o sorriso do criador contente de si próprio,
e foi depois de tê-la feito que ele descansou, diz a parábola celeste.
A mulher está antes do homem, porque é mãe e tudo lhe é
perdoado de antemão porque dá à luz com dor.
A mulher foi quem primeiro se iniciou na imortalidade pela morte; o homem, então,
a viu tão bela e a compreendeu tão generosa, que não quis
sobreviver a ela, e amou-a mais do que sua vida, mais do que sua felicidade
eterna.
Feliz proscrito! já que lhe foi dada como companheira de seu exílio.
Mas os filhos de Caim revoltaram-se contra a mãe de Abel e escravizaram
sua mãe.
A beleza da mulher tornou-se uma presa para a brutalidade dos homens sem amor.
Então, a mulher fechou seu coração como um santuário
desconhecido e disse aos homens indignos dela: "Sou virgem, mas quero ser
mãe, e meu filho ensinar-vos-á a me amar." Ó Eva!
sê saudada e adorada em tua queda!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Ó Maria! sê abençoada e adorada em tuas dores e em tua glória!
Santa crucificada que sobrevivia a teu Deus para enterrar teu filho, sê
para nós a última palavra da revelação divina!
Moisés chamava Deus de Senhor, Jesus chamava-o de meu Pai, e nós,
pensando em ti, diremos à Providência: "Sois nossa mãe!"
Filhos da mulher, perdoemos a mulher decaída.
Filhos da mulher, adoremos a mulher regenerada.
Filhos da mulher, que dormimos em seu seio, que fomos embalados em seus braços
e consolados por seus carinhos, amemo-la e amemo-nos entre nós!
III - O Ternário
O ternário é o número da criação.
Deus criou a si próprio eternamente e o infinito que ele preenche com
suas obras é uma criação incessante e infinita.
O amor supremo contempla-se na beleza como em um espelho, e experimenta todas
as formas como enfeites, pois é o noivo da vida.
O homem também afirma e cria a si próprio: enfeita-se com suas
conquistas, ilumina-se com suas concepções, reveste-se com suas
obras como que com vestes nupciais. A grande semana da criação
foi imitada pelo gênio humano divinizando as formas da natureza. Cada
dia forneceu uma revelação nova, cada rei progressivo do mundo
foi por um dia a imagem e a encarnação de Deus! Sonho sublime
que explica os mistérios da Índia e justifica todos os simbolismos!
A elevada concepção do homem-Deus corresponde à criação
de Adão, e o cristianismo, à semelhança dos primeiros dias
do homem típico no paraíso terrestre, foi apenas uma aspiração
e uma viuvez.
Esperamos o culto da esposa e da mãe, aspiramos às núpcias
da nova aliança. Então os pobres, os cegos, todos os proscritos
do velho mundo serão convidados para o festim e receberão um traje
nupcial; e olhar-se-ão uns aos outros com uma grande doçura e
um inefável sorriso, porque terão chorado muito tempo.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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IV - O Quartenário
O quaternário é o número da força. É o ternário
completado por seu produto, é a unidade rebelada reconciliada à
trindade soberana.
No ardor primeiro da vida, o homem, tendo esquecido sua mãe, compreendeu
Deus apenas como um pai inflexível e cioso.
O sombrio Saturno, armado com sua foice parricida, põe-se a devorar seus
filhos.
Júpiter teve cenhos que abalaram o Olimpo, e Jeová, trovões
que ensurdeceram as solidões do Sinai. E, no entanto, o pai dos homens,
embriagado às vezes como Noé, deixava o mundo perceber os mistérios
da vida.
Psiquê, divinizada por suas aflições, tornava-se esposa
do Amor; Adônis ressuscitado reencontrava Vênus no Olimpo; Jó,
vitorioso ao mal, recuperava mais do que tinha perdido. A lei é uma prova
de coragem. Amar a vida mais do que se teme as ameaças da morte é
merecer a vida.
Os eleitos são os que ousam; ai dos tímidos!
Assim, os escravos da lei que se fazem os tiranos das consciências, e
os servidores do temor, e os avaros de esperança, e os fariseus de todas
as sinagogas e de todas as igrejas, estes são os réprobos e os
malditos do Pai!
Cristo não foi excomungado e crucificado pela sinagoga?
Savonarola não foi queimado por ordem de um pontífice da religião
cristã?
Os fariseus não são hoje o que eram no tempo de Caifás?
Se alguém lhes fala em nome da inteligência e do amor, escutá-lo-ão?
Foi arrancando os filhos da liberdade à tirania dos Faraós que
Moisés inaugurou o reino do Pai. Foi quebrando o jugo insuportável
do farisaísmo mosaico que Jesus convidou todos os homens à fraternidade
do filho único de Deus.
Quando caírem os últimos ídolos, quando se quebrarem as
últimas correntes materiais das consciências, quando os últimos
matadores de profetas, quando os últimos sufocadores do Verbo forem confundidos,
será o reino do Espírito Santo.
Glória, pois, ao Pai, que enterrou o exército do Faraó
no mar Vermelho! Glória ao Filho que rasgou o véu do templo e
cuja cruz extremamente pesada posta sobre a coroa dos Césares quebrou
contra a terra a fronte dos Césares!
Glória ao Espírito Santo que deve varrer da terra com seu sopro
terrível todos os ladrões e todos os carrascos para dar lugar
ao banquete dos filhos de Deus!
Glória ao Espírito Santo que prometeu ao anjo da liberdade a conquista
da terra e do céu.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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O anjo da liberdade nasceu antes da aurora do primeiro dia, antes mesmo do despertar
da inteligência, e Deus o denominou estrela da manhã.
Ó Lúcifer, tu te desligaste voluntária e desdenhosamente
do céu onde o sol te inundava com sua claridade, para sulcar com teus
próprios raios os campos agrestes da noite. Brilhas quando o sol se põe
e teu olhar resplandecente precede o nascer do dia.
Cais para de novo levantar; experimentas a morte para melhor conhecer a vida.
És, para as glórias antigas do mundo, a estrela da noite; para
a verdade renascente, a bela estrela da manhã!
A liberdade não é a licença: a licença é
a tirania.
A liberdade é a guardiã do dever, porque ela reivindica o direito.
Lúcifer, cujas idades das trevas fizeram o gênio do mal, será
verdadeiramente o anjo da luz quando, tendo conquistado a liberdade ao preço
da reprovação, fizer uso dela para se submeter à ordem
eterna, inaugurando assim as glórias da obediência voluntária.
O direito é apenas a raiz do dever, é preciso possuir para dar.
Ora, eis como uma elevada poesia explica a queda dos anjos.
Deus tinha dado aos espíritos a luz e a vida, depois lhes disse: Amai.
- O que é amar?, responderam os espíritos.
- Amar é dar-se aos outros, respondeu Deus. - Os que amarem sofrerão,
mas serão amados.
- Temos o direito de não dar nada, e nada queremos sofrer, disseram os
espíritos inimigos do amor. - Estais em vosso direito, respondeu Deus
-, e separemo-nos. Eu e os meus queremos sofrer e morrer, mesmo para amar. É
nosso dever!
O anjo caído é pois aquele que desde o princípio recusou
amar; não ama, e é todo o seu suplício; não dá,
e é toda a sua miséria; não sofre, e é seu nada;
não morre, e é seu exílio. O anjo caído não
é Lúcifer, o porta-luz, é Satã, o caluniador do
amor. Ser rico é dar; não dar nada é ser pobre; viver é
amar, não amar nada é estar morto; ser feliz é devotar-se;
existir somente para si é reprovar a si próprio, é seqüestrar-se
no inferno. O céu é a harmonia dos sentimentos gerais; o inferno
é o conflito dos instintos lassos. O homem do direito é Caim,
que matou Abel por inveja; o homem do dever é Abel, que morre para Caim
por amor.
E tal foi a missão do Cristo, o grande Abel da humanidade.
Não é pelo direito que devemos ousar em tudo, é pelo dever.
O dever é a expansão e a fruição da liberdade; o
direito isolado é o pai da servidão.
O dever é a obrigação, o direito é o egoísmo.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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O dever é o sacrifício, o direito é a rapina e o roubo.
O dever é o amor, o direito é o ódio.
O dever é a vida infinita, o direito é a morte eterna.
Se é preciso combater pela conquista do direito, é somente para
adquirir a potência do dever: e por que seríamos livres se não
fosse para amar, devotarmo-nos e, assim, assemelharmo-nos a Deus? Se é
preciso infringir a lei, é quando ela submete o amor ao medo. Aquele
que quiser salvar sua alma perdê-la-á, diz o livro santo, e aquele
que consentir em perdê-la salvá-la-á.
O dever é amar: pereça todo aquele que cria obstáculos
ao amor! Silêncio aos oráculos do ódio!
Aniquilamento aos falsos deuses do egoísmo e do medo! Vergonha aos escravos
avaros de amor!
Deus ama os filhos pródigos!
V - O Quinário
O quinário é o número religioso, pois é o número
de Deus reunido ao da mulher.
A fé não é a credulidade estúpida da ignorância
maravilhada.
A fé é a consciência e a confiança do amor.
A fé é o grito da razão que persiste em negar o absurdo,
mesmo diante do desconhecido. A fé é um sentimento necessário
à alma como a respiração à vida: é a dignidade
do coração, é a realidade do entusiasmo.
A fé não consiste na afirmação deste ou daquele
símbolo, mas na aspiração verdadeira e constante às
verdades veladas por todos os simbolismos.
Um homem rejeita uma idéia indigna da divindade, quebra suas falsas imagens,
revolta-se contra odiosas idolatrias, e dizeis que é um ateu?
Os perseguidores da Roma decaída também chamavam os primeiros
cristãos de ateus, porque não adoravam os ídolos de Calígula
ou de Nero.
Negar toda uma religião e mesmo todas as religiões de preferência
a aderir a fórmulas que a consciência reprova é um corajoso
e sublime ato de fé.
Todo homem que sofre por suas convicções é um mártir
da fé. Talvez se explique mal, mas prefere a justiça e a verdade
a qualquer coisa; não o condeneis sem entendê-lo.
Acreditar na verdade suprema não é defini-la, e declarar que nela
se crê é reconhecer ignorá-la.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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O apóstolo São Paulo limita toda fé a estas duas coisas:
acreditar que Deus existe e que ele recompensa aqueles que o procuram.
A fé é maior que as religiões, porque precisa menos dos
artigos da crença. Um dogma qualquer constitui apenas uma crença
e pertence a uma comunhão especial; a fé é um sentimento
comum a toda a humanidade.
Quanto mais se discute para precisar, menos se acredita; um dogma a mais é
uma crença de que uma seita se apropria e eleva assim, de alguma maneira,
à fé universal. Deixemos os sectários fazerem e refazerem
seus dogmas, deixemos os supersticiosos detalharem e formularem suas superstições,
deixemos os mortos enterrarem seus mortos, como dizia o Mestre, e acreditemos
na verdade indizível, no absoluto que a razão admite sem compreender,
no que pressentimos sem saber.
Acreditemos na razão suprema.
Acreditemos no amor infinito e tenhamos piedade das estupidezes da escola e
das barbáries da falsa religião.
Ó homem! dize-me o que esperas, e eu dir-te-ei o que vales. Rezas, jejuas,
velas e crês que escaparás assim sozinho, ou quase sozinho, à
perda imensa dos homens devorados por um Deus cioso. És um hipócrita
e um ímpio. Fazes da vida uma orgia e esperas o nada como sono, és
um doente ou um insano. Estás pronto a sofrer como os outros e pelos
outros e esperas a salvação de todos, és um sábio
e um justo.
Esperar não é ter medo.
Ter medo de Deus! Que blasfêmia!
O ato de esperança é a oração.
A oração é o derramar-se da alma na sabedoria e no amor
eternos.
É o olhar do espírito para a verdade e o suspiro do coração
para a beleza suprema.
É o sorriso da criança para a mãe.
É o murmúrio do bem-amado que se debruça para os beijos
de sua bem-amada.
É a doce felicidade da alma amante que se dilata num oceano de amor.
É a tristeza da esposa na ausência do novel esposo.
É o suspiro do viajante que pensa em sua pátria.
É o pensamento do pobre que trabalha para alimentar a mulher e os filhos.
Oremos em silêncio e ergamos em direção de nosso Pai desconhecido
um olhar de confiança e de amor; aceitemos com fé e resignação
a parte que nos cabe nas penas da vida, e todas as batidas de nossos corações
serão palavras de oração.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Necessitamos acaso informar a Deus que coisas lhe pedimos, já não
sabe ele o que nos é necessário? Se choramos, apresentemos-lhe
as nossas lágrimas; se nos regozijamos, dirijamos-lhe o nosso sorriso;
se ele nos atinge, baixemos a cabeça; se nos acaricia, adormeçamos
em seus braços! Nossa oração será perfeita, quando
orarmos sem sequer saber que oramos.
A oração não é um ruído que fere os ouvidos,
é um silêncio que penetra no coração.
E doces lágrimas vêm umedecer os olhos, e suspiros escapam como
a fumaça dos incensos. Fica-se tomado por um inefável amor a tudo
o que é beleza, verdade, justiça; palpita-se de uma nova vida
e não se teme mais morrer. Pois a oração é a vida
eterna da inteligência e do amor; é a vida de Deus na terra.
Amai-vos uns aos outros, eis a lei e os profetas! Meditai e compreendei essa
palavra.
E, quando tiverdes compreendido, não leiais mais, não procures
mais, não duvideis mais, amai! Não mais sejais sábios,
não mais sejais eruditos, amai! Essa é a doutrina da verdadeira
religião; religião quer dizer caridade, e o próprio Deus
não é senão amor. Eu já vos disse: amar é
dar.
O ímpio é aquele que absorve os outros.
O homem pio é aquele que se expande na humanidade.
Se o coração do homem concentra em si próprio o fogo com
o qual Deus o anima, é um inferno que devora tudo e que só se
preenche de cinzas; se ele o faz resplandecer fora, torna-se um doce sol de
amor.
O homem doa-se à família; a família doa-se à pátria;
a pátria, à humanidade. O egoísmo do homem merece o isolamento
e o desespero, o egoísmo da família merece a ruína e o
exílio, o egoísmo da pátria merece a guerra e a invasão.
O homem que se isola de todo amor humano ao dizer: Eu servirei a Deus, este
se engana. Pois, diz o apóstolo São João, se ele não
ama ao próximo que vê, como amará a Deus que não
vê? É preciso dar a Deus o que é de Deus, mas não
se deve recusar mesmo a César o que é de César.
Deus é quem dá a vida, César é quem pode dar a morte.
É preciso amar a Deus e não temer a César, pois está
dito no livro sagrado: Quem com ferro fere com ferro perecerá.
Quereis ser bons, sede justos; quereis ser justos, sede livres!
Os vícios que deixam o homem semelhante à besta são os
primeiros inimigos da sua liberdade.
Olhai o bêbado e dizei-me se essa besta imunda pode ser livre!
O avaro maldiz a vida de seu pai e, como o corvo, tem fome de cadáveres.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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O ambicioso quer ruínas, é um invejoso em delírio; o devasso
escarrou no seio da mãe e encheu de abortos as entranhas da morte.
Todos esses corações sem amor são punidos pelo mais cruel
dos suplícios: o ódio.
Pois, saibamo-lo bem, a expiação está contida no pecado.
O homem que faz o mal é como um vaso de barro defeituoso, quebrar-se-á,
a fatalidade o quer.
Com os escombros do mundo, Deus refaz estrelas; com os escombros da alma, refaz
anjos.
VI - O Senário
O senário é o número da iniciação pela prova;
é o número do equilíbrio, é o hieróglifo
da ciência do bem e do mal.
Quem procura a origem do mal procura o que não é.
O mal é o apelativo da desordem do bem, é a tentativa infrutífera
de uma vontade inábil.
Cada um possui o fruto de suas obras, e a pobreza é somente o aguilhão
do trabalho. Para o rebanho dos homens, o sofrimento é como o cão
pastor que morde a lã das ovelhas para recolocá-las no caminho.
É por causa da sombra que podemos ver a luz; é por causa do frio
que sentimos o calor; é por causa da dor que somos sensíveis ao
prazer.
O mal é, portanto, para nós, a ocasião e o começo
do bem.
Mas, nos sonhos de nossa inteligência imperfeita, acusamos o trabalho
providencial, por não o compreender.
Assemelhamo-nos ao ignorante que julga o quadro no começo do esboço
e diz, quando a cabeça está feita: "Então esta figura
não tem corpo."
A natureza continua calma e realiza sua obra.
A relha não é cruel quando rasga o seio da terra, e as grandes
revoluções do mundo são a lavoura de Deus.
Tudo tem seu tempo: aos povos ferozes, senhores bárbaros; ao gado, açougueiros;
aos homens, juizes e pais.
Se o tempo pudesse transformar os carneiros em leões, eles comeriam os
açougueiros e os pastores.
Os carneiros nunca se transformam porque não se instruem, mas os povos
instruem-se. Pastores e açougueiros dos povos, tendes razão, portanto,
em ver como inimigos aqueles que falam a vosso rebanho.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Rebanhos que conheceis ainda apenas vossos pastores e que quereis ignorar seu
comércio com os açougueiros, sois desculpáveis por apedrejar
aqueles que vos humilham e que vos inquietam ao falarem de vossos direitos.
Ó Cristo! Os grandes condenam-te, teus discípulos renegam-te,
o povo amaldiçoa-te e aclama teu suplício, somente tua mãe
chora, Deus abandona-te!
Eli! Eli! Lamma Sabachtani!
VII - O Setenário
O setenário é o grande número bíblico. É
a chave da criação de Moisés e o símbolo de toda
a religião. Moisés deixou cinco livros, e a lei resume-se em dois
testamentos. A Bíblia não é uma história, é
uma coletânea de poemas, é um livro de alegorias e imagens. Adão
e Eva são somente tipos primitivos da humanidade; a serpente que tenta
é o tempo que põe à prova; a árvore da ciência
é o direito; a expiação pelo trabalho é o dever.
Caim e Abel representam a carne e o espírito, a força e a inteligência,
a violência e a harmonia.
Os gigantes são os antigos usurpadores da terra; o dilúvio foi
um imensa revolução. A arca é a tradição
conservada numa família: a religião, nessa época, torna-se
um mistério e a propriedade de uma raça. Caim é maldito
por ser seu revelador. Nemrod e Babel são duas alegorias primitivas do
désposta único e do império universal sempre sonhado desde
então; empreendido sucessivamente pelos assírios, os medas, os
persas, Alexandre, Roma, Napoleão, os sucessores de Pedro, o Grande,
e sempre inacabado por causa da dispersão de interesses, figurada pela
confusão das línguas.
O império universal não deveria realizar-se pela força,
mas pela inteligência e pelo amor. Por isso, a Nemrod, homem do direito
selvagem, a Bíblia opõe Abraão, homem do dever, que se
exila para buscar a liberdade e a luta numa terra estrangeira de que se apodera
pelo pensamento. Tem uma mulher estéril, é seu pensamento, e uma
escrava fecunda, é sua força; mas, quando a força produz
seu fruto, o pensamento torna-se fecundo, e o filho da inteligência exila
o filho da força. O homem de inteligência é submetido a
duras provas; deve confirmar suas conquistas pelo sacrifício. Deus quer
que ele imole seu filho, isto é, a dúvida deve pôr à
prova o dogma e o homem intelectual deve estar pronto a tudo sacrificar diante
da razão suprema. Deus, então, intervém: a razão
universal cede aos esforços do trabalho, mostra-se à ciência
e apenas o lado material do dogma é imolado. É o que representa
o carneiro preso pelos chifres entre os arbustos. A história de Abraão
é pois um símbolo à moda antiga e contém uma elevada
revelação dos destinos da alma humana. Tomada ao pé da
letra, é um relato absurdo e revoltante. Santo Agostinho não tomava
ao pé da letra o Asno de Ouro de Apuleu! Pobres grandes homens!
A história de Isaac é uma outra lenda. Rebeca é o tipo
de mulher oriental, laboriosa, hospitaleira,
parcial em suas afeições, astuta e ardilosa em suas manobras.
Jacó e Esaú são ainda os dois tipos
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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reproduzidos de Caim e Abel; mas aqui Abel se vinga; a inteligência emancipada
triunfa pela astúcia. Todo o gênio israelita está no caráter
de Jacó, o paciente laborioso suplantador que cede à cólera
de Esaú, torna-se rico e compra o perdão de seu irmão.
Quando os antigos queriam filosofar, contavam, nunca se deve esquecer.
A história ou lenda de José contém em germe todo o gênio
do Evangelho, e Cristo, desconhecido por seu povo, teve de chorar mais de uma
vez ao reler esta cena em que o governador do Egito lança-se ao pescoço
de Benjamim dando um grito e dizendo: "Eu sou José!" Israel
torna-se o povo de Deus, isto é, o conservador da idéia e o depositário
do Verbo. Essa idéia é a da independência humana e a da
realeza pelo trabalho, mas é ocultada com cuidado, como um germe precioso.
Um signo doloroso e indelével é imprimido nos iniciados, toda
imagem da verdade é proibida, e os filhos de Israel velam, segurando
o sabre em torno da unidade do tabernáculo. Hermor e Siquém querem
introduzir-se pela força na família sagrada e perecem com seu
povo em conseqüência de uma falsa iniciação. Para dominar
os povos, é preciso que o santuário já esteja cercado de
sacrifícios e terror.
A servidão dos filhos de Jacó prepara sua libertação:
eles têm uma idéia, e não se acorrenta uma idéia;
têm uma religião, e não se violenta uma religião;
são por fim um povo, e não se acorrenta um verdadeiro povo. A
perseguição suscita vingadores, a idéia encarna-se num
homem, Moisés levanta, o Faraó cai e a coluna de nuvens e chamas
que precede um povo livre avança majestosamente no deserto.
O Cristo é o pai e o rei pela inteligência e pelo amor.
Recebeu a unção santa, a unção do gênio, a
unção da fé, a unção da virtude que é
a força. Ele vem quando o sacerdote está esgotado, quando os velhos
símbolos não têm mais virtudes, quando a pátria da
inteligência está extinta.
Vem para fazer Israel voltar à vida e, se não puder galvanizar
Israel, morto pelos fariseus, ressuscitará o mundo abandonado ao culto
morto dos ídolos. Cristo é o direito do dever!
O homem tem o direito de cumprir o seu dever e não tem outro.
Homem, tens o direito de resistir até a morte a quem quer que te impeça
de cumprir o teu dever! Mãe! teu filho afoga-se; um homem impede-te de
socorrê-lo; feres esse homem e corres a salvar teu filho!... Quem ousará
condenar-te?...
Cristo veio para opor o direito do dever ao dever do direito.
O direito para os judeus era a doutrina dos fariseus. E, com efeito, pareciam
ter adquirido o privilégio de dogmatizar; não eram eles os legítimos
herdeiros da sinagoga? Tinham o direito de condenar o Salvador, e o Salvador
sabia que seu direito era o de resistir-lhes.
O Cristo é a protestação viva.
Mas protestação de quê? Da carne contra a inteligência?
Não!
Do direito contra o dever? Não!
Da atração física contra a atração moral?
Não! não!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
20
Da imaginação contra a razão universal? Da loucura contra
a sabedoria? Não, mil vezes não, ainda uma vez!
O Cristo é o dever real que protesta eternamente contra o direito imaginário.
É a emancipação do espírito que quebra a servidão
da carne.
É a devoção revoltada contra o egoísmo.
É a modéstia sublime que responde ao orgulho: Eu não te
obedecerei!
O Cristo é viúvo, o Cristo é só, o Cristo é
triste: por quê? É que a mulher prostituiu-se.
É que a sociedade é acusada de roubo.
É que a felicidade egoísta é ímpia.
Cristo é julgado, condenado, executado, e nós o adoramos!
Isso se passou num mundo talvez tão sério quanto o nosso.
Juizes do mundo em que vivemos, sede atentos e pensai naquele que julgará
vossos julgamentos.
Mas, antes de morrer, o Salvador legou a seus filhos o símbolo imortal
da salvação: a comunhão.
Comunhão! União comum! Última palavra do Salvador do mundo.
O pão e o vinho repartidos entre todos, disse ele, é minha carne
e meu sangue!
Ele deu sua carne aos carrascos, seu sangue à terra que quis bebê-lo:
e por quê? Para que todos repartam o pão da inteligência
e o vinho do amor. Ó signo da união dos homens! Ó mesa
comum! Ó banquete da fraternidade e da igualdade! quando enfim serás
melhor compreendido?
Mártires da humanidade, vós que destes a vida para que todos tivessem
o pão que alimenta e o vinho que fortifica, também não
dizeis ao impor a mão sobre esses símbolos da comunhão
universal: Isso é nossa carne e nosso sangue!
E vós, homens do mundo inteiro, vós a quem o Mestre chama irmãos:
oh, não sentis que o pão universal é Deus!
Devedores do crucificado.
Vós todos que não estais prontos para dar à humanidade
vosso sangue, vossa carne e vossa vida não sois dignos da comunhão
do Filho de Deus! Não o façais derramar seu sangue sobre vós,
pois faria nódoas sobre vossa fronte!
Não aproximeis vossos lábios do coração de Deus,
ele sentiria vossa mordedura. Não bebais o sangue do Cristo, queimaria
vossas entranhas; já é suficiente que ele o tenha derramado inutilmente
por vós!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
21
VIII - O Número Oito
O octonário é o número da reação e da justiça
equilibrante.
Toda ação produz uma reação.
É a lei universal do mundo.
O cristianismo devia produzir o anticristianismo.
O anticristo é a sombra, é o contraste e a prova do Cristo.
O anticristo já se produzia na Igreja na época dos apóstolos:
Aquele que resiste agora resiste até a morte, dizia São Paulo,
e o filho da iniqüidade manifestar-se-á. Os protestantes disseram:
O anticristo é o papa.
O papa respondeu: Todo herege é um anticristo.
O anticristo não é mais o papa do que Lutero: o anticristo é
o espírito oposto ao do Cristo.
É a usurpação do direito pelo direito; é o orgulho
da dominação e o despotismo do pensamento. É o egoísmo
pretensamente religioso dos protestantes da mesmíssima maneira que a
ignorância crédula e imperiosa dos maus católicos.
O anticristo é o que divide os homens ao invés de os unir; é
o espírito de disputa, é a teimosia dos doutores e dos sectários,
o desejo ímpio de se apropriar da verdade e dela excluir os outros, o
de forçar todo o mundo a sofrer a estreiteza de nossos julgamentos. O
anticristo é o pai que amaldiçoa ao invés de abençoar,
que afasta ao invés de aproximar, que escandaliza ao invés de
edificar, que condena ao invés de salvar. É o fanatismo odioso
que desencoraja a boa vontade.
É o culto da morte, da tristeza e da fealdade.
Que futuro daremos a nosso filho? disseram os pais insensatos; ele é
fraco de espírito e de corpo e seu coração não dá
ainda sinal de vida: faremos dele um padre, a fim de que viva do altar. E não
compreenderam que o altar não é uma manjedoura para os animais
preguiçosos. Por isso, olhai os padres indignos, contemplei esses pretensos
servidores do altar. O que é que dizem a vossos corações
esses homens gordos ou cadavéricos, de olhos inexpressivos, de lábios
cerrados ou escancarados?
Escutai-os falarem: o que vos ensina esse ruído desagradável e
monótono?
Rezam como dormem e sacrificam como comem.
São máquinas de pão, de carne, de vinho e de palavras vazias
de sentido. E, quando se regozijam, como ostras ao sol, por estarem sem pensamento
e sem amor, diz-se que têm paz de espírito.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
22
Têm a paz da besta e, para o homem, a do túmulo é melhor;
são os padres da tolice e da ignorância, são os ministros
do anticristo.
O verdadeiro padre do Cristo é um homem que vive, que sofre, que ama
e que combate pela justiça.
Não briga, não reprova, difunde o perdão, a inteligência
e o amor. O verdadeiro cristão é estranho ao espírito de
seita; ele é tudo para todos e vê todos os homens como filhos de
um pai comum que quer salvar a todos; o símbolo inteiro tem para ele
somente um sentido de doçura e amor: deixa para Deus os segredos da justiça
e só compreende a caridade. Vê os maus como doentes de quem é
preciso ter pena e cuidar; o mundo com seus erros e seus vícios é,
para ele, o hospital de Deus, e ele quer ser seu enfermeiro. Não se acha
melhor que ninguém, apenas diz: Enquanto eu for melhor, sirvamos os outros,
quando for preciso cair e morrer, outros talvez tomarão meu lugar e nos
servirão.
IX - O Número Nove
Eis o eremita do tarô; eis o número dos iniciados e dos profetas.
Os profetas são solitários, pois seu destino é nunca serem
ouvidos. Vêem muito mais que os outros; pressentem as desgraças
por vir. Assim, são aprisionados, mortos ou vilipendiados, são
rejeitados como leprosos, ou deixam-nos morrer de fome. Depois, quando os eventos
ocorrem, dizemos: Foram essas pessoas que nos trouxeram desgraça.
Agora, como sempre, na véspera dos grandes desastres, nossas ruas estão
plenas de profetas.
Encontrei alguns nas prisões; vi outros que morriam esquecidos em pardieiros.
Toda grande cidade viu algum cuja profecia silenciosa era girar incessantemente
e andar sempre coberto de andrajos no palácio do luxo e da riqueza.
Vi um cujo rosto resplandecia como o do Cristo: tinha as mãos calejadas
e a roupa do trabalhador e moldava epopéias como argila. Torcia juntos
o gládio do direito e o cetro do dever e, sobre esta coluna de ouro e
aço, inaugurava o símbolo criador do amor. Um dia, numa grande
assembléia do povo, desceu a rua, segurando um pão que partia
e distribuía, dizendo: Pão de Deus, faze-te pão para todos!
Conheço outro que gritou: Não quero mais adorar o Deus do diabo;
não quero um carrasco como Deus! E acreditou-se que ele blasfemava.
Não; mas a energia de sua fé transbordava em palavras inexatas
e imprudentes. Dizia ainda, na loucura de sua caridade ferida: Todos os homens
são solidários e expiam uns pelos outros, da mesma forma que se
merecem uns aos outros.
O castigo para o pecado é a morte.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
23
O próprio pecado é, aliás, um castigo, e o maior dos castigos.
Um grande crime é apenas uma grande desgraça.
O pior dos homens é o que se acredita melhor do que os outros. Os homens
apaixonados são escusáveis, uma vez que são passivos. Paixão
significa sofrimento e redenção pela dor.
O que chamamos de liberdade é somente a onipotência da atração
divina. Os mártires diziam: Mais vale obedecer a Deus que aos homens.
O menos perfeito ato de amor vale mais ao que a melhor palavra de piedade.
Não julgueis, falai pouco, amai e agi.
Um outro que veio disse: Protestai contra as más doutrinas por boas obras,
mas não vos separeis de ninguém.
Restabelecei todos os altares, purificai todos os templos e estai prontos para
a visita do espírito do amor.
Que cada um reze seguindo seu rito e comungue com os seus, mas não condeneis
os outros.
Uma prática de religião nunca é desprezível, pois
é o símbolo de um grande e santo pensamento.
Rezar em conjunto é comungar na mesma esperança, na mesma fé,
na mesma caridade.
O signo não é nada para si próprio: é a fé
que o santifica.
A religião é o laço mais sagrado e mais forte da associação
humana, e fazer um ato de religião é fazer um ato de humanidade.
Quando os homens compreenderem, enfim, que não se deve discutir sobre
coisas que se ignora;
Quando sentirem que um pouco de caridade vale mais que muita influência
e dominação;
Quando todos respeitarem o que o próprio Deus respeita na menor de suas
criaturas: a espontaneidade da obediência e a liberdade do dever;
Então, só haverá uma religião no mundo, a religião
cristã e universal, a verdadeira religião católica que
não renegará mais a si própria por restrição
de lugares ou de pessoas. Mulher, dizia o Salvador à samaritana, em verdade
te digo que virá o tempo em que os homens não adorarão
mais a Deus nem em Jerusalém nem sobre esta montanha, pois Deus é
espírito, e seus verdadeiros adoradores devem servi-lo em espírito
e em verdade.
X - Número Absoluto da Cabala
A chave das sefirotes (ver Dogma e Ritual da Alta Magia).
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
24
XI - O Número Onze
Onze é o número da força; é o da luta e do martírio.
Todo homem que morre por uma idéia é um mártir, pois nele
as aspirações do espírito triunfaram sobre os temores dos
animais.
Todo homem que morre na guerra é um mártir, pois morre pelos outros.
Todo homem que morre miserável é um mártir, pois é
como um soldado vencido na batalha da vida. Aqueles que morrem pelo direito
são tão santos em seu sacrifício quanto as vítimas
do dever e, nas grandes lutas da revolução contra o poder, os
mártires caem dos dois lados. Sendo o direito a raiz do dever, nosso
dever é defender nossos direitos. O que é um crime? É o
exagero do direito. O assassínio e o roubo são negações
da sociedade; é o despotismo isolado de um indivíduo que usurpa
a realeza e faz guerra por sua conta e risco. O crime deve ser sem dúvida
reprimido, e a sociedade deve defender-se; mas quem poderia ser justo o suficiente,
grande o suficiente e puro o suficiente para ter a pretensão de punir?
Paz a todos os que tombam na guerra, mesmo na guerra ilegítima, pois
arriscaram a cabeça e perderam-na, e, tendo pago, o que podemos ainda
reclamar? Honra a todos os que combatem bravamente e lealmente! Vergonha somente
aos traidores e aos covardes!
O Cristo morreu entre dois ladrões e levou consigo um deles ao céu.
O reino dos céus é dos lutadores e se ganha à força.
Deus dá sua onipotência ao amor. Gosta de triunfar sobre o ódio,
mas vomita a tibieza.
O dever é viver, nem que seja por um instante!
É belo ter reinado por um dia, mesmo por uma hora! Mesmo que seja sob
a espada de Dâmocles ou na fogueira de Sardanapalo.
Mas é mais belo ter visto a seus pés todas as coisas do mundo
e ter dito: Serei o rei dos pobres e meu trono será sobre o calvário.
Existe um homem mais forte do que aquele que mata, é o que morre para
salvar.
Não existem crimes isolados nem expiações solitárias.
Não existem virtudes pessoais nem devotamentos perdidos.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Quem não for irrepreensível é cúmplice de todo mal,
e quem não for absolutamente perverso pode participar de todo bem.
É por isso que um suplício é sempre uma expiação
humanitária, e toda cabeça que é recolhida de um cadafalso
pode ser saudada e honrada como a cabeça de um mártir. É
por isso também que o mais nobre e o mais santo dos mártires podia,
ao entrar em sua consciência, achar-se digno da pena que iria suportar
e dizer, saudando o gládio pronto a feri-lo: Justiça seja feita!
Puras vítimas das catacumbas de Roma, judeus e protestantes massacrados
por indignos cristãos. Padres da Abbaye e dos Carmes, guilhotinados do
terror, realistas degolados, revolucionários sacrificados, soldados de
nossos grandes exércitos que semeasses as ossadas pelo mundo, vós
todos que morresses com sofrimento, ousados de toda sorte, bravos filhos de
Prometeu que não tendes medo nem do raio nem do abutre, honra a vossas
cinzas, paz e veneração a vossas memórias! Sois os heróis
do progresso, os mártires da humanidade!
XII - O Número Doze
O doze é o número cíclico; é o do símbolo
universal.
Eis uma tradução dos versos feitos para o símbolo mágico
e católico sem restrição:
Creio num só Deus onipotente, nosso pai,
Eterno criador do céu e da terra.
Creio no Rei salvador, chefe da humanidade.
Da divindade, filho, palavra e esplendor.
Concepção viva do eterno amor,
Divindade visível e luz atuante.
Desejado pelo mundo sempre e em todos os lugares.
Mas que não é um Deus separável de Deus.
Descido entre nós para libertar a terra,
Santificou a mulher em sua mãe.
Era o homem celeste, sábio e doce homem.
Nasceu para sofrer e morrer como nós.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Proscrito pela ignorância, acusado pela inveja,
Morreu na cruz para nos dar a vida.
Todos os que o tomarem por guia e apoio
Podem, por sua doutrina, ser Deus como ele.
Ressuscitou para reinar sobre os tempos;
Deve, da ignorância, as nuvens dissipar.
Seus preceitos, um dia mais fortes e mais conhecidos,
Serão o julgamento dos vivos e dos mortos.
Creio no Espírito Santo cujos únicos intérpretes
São o espírito e o coração dos santos e dos profetas.
É um sopro de vida e fecundidade
Que provém da humanidade e do Pai.
Creio na família única e sempre santa
Dos justos que o céu reuniu em seu temor.
Creio na unidade do símbolo, do lugar,
Do pontífice e do culto na honra de um só Deus.
Creio que, em nos transformando, a morte nos renove,
E que em nós, como em Deus, a vida é eterna.
XIII - O Número Treze
O treze é o número da morte e o do nascimento; é o da propriedade
e da herança, da sociedade e da família, da guerra e dos tratados.
A sociedade tem por bases as trocas do direito, do dever e da fé mútua.
O direito é a propriedade; a troca, a necessidade; a boa fé, o
dever.
Aquele que quer receber mais do que dá ou que quer receber sem dar é
um ladrão. A propriedade é o direito de dispor de uma parte da
fortuna comum; não é nem o direito de destruição
nem o direito de seqüestro.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Destruir ou seqüestrar o bem público não é possuir,
é roubar. Digo bem público, porque o verdadeiro proprietário
de todas as coisas é Deus, que quer que tudo seja de todos. O que quer
que façais, não levareis convosco ao morrer nenhum dos bens deste
mundo. Ora, o que vos deve ser tomado um dia não vos pertence realmente.
Foi apenas um empréstimo. Quanto ao usufruto, é o resultado do
trabalho; mas o próprio trabalho não é uma garantia segura
de posse, e a guerra pode vir, pela devastação ou pelo incêndio,
deslocar a propriedade. Fazei, pois, um bom uso das coisas que perecem, vós
que perecereis antes delas! Levai em consideração que o egoísmo
provoca o egoísmo e que a imoralidade do rico corresponderá a
crimes dos pobres.
O que quer o pobre, se é honesto?
Quer trabalho. Usai vossos direitos, mais fazei vosso dever: o dever do rico
é expandir a riqueza; o bem que não circula está morto,
não entesoureis a morte.
Um sofista disse: A propriedade é o roubo. E queria sem dúvida
falar da propriedade absorvida, subtraída à troca, desviada da
utilidade COMUM.
Se esse era seu pensamento, ele poderia ir mais longe e dizer que tal supressão
da vida pública é um verdadeiro assassínio.
É o crime do açambarcamento, que o instinto público sempre
viu como um crime de lesa-majestade humana.
A família é uma associação natural que resulta do
casamento. O casamento é a união de dois seres que o amor uniu
e que se prometem um devotamento mútuo no interesse dos filhos que podem
nascer.
Dois esposos que têm um filho e se separam são ímpios. Será
que querem executar o julgamento de Salomão e separar também o
filho?
Prometer-se um amor eterno é puerilidade: o amor sexual é uma
emoção sem dúvida divina, mas acidental, involuntária
e transitória; mas a promessa do devotamente recíproco é
a essência do casamento e o princípio da família.
A sanção e a garantia dessa promessa devem ser uma confiança
absoluta.
Todo ciúme é uma suspeita, e toda suspeita é um ultraje.
O verdadeiro adultério é o da confiança: a mulher que se
queixa de seu marido perto de outro homem; o homem que confia a outra mulher,
que não a sua, as aflições ou as esperanças de seu
coração, esses traem verdadeiramente a fé conjugal.
As surpresas dos sentidos só são infidelidades por causa dos arrebatamentos
do coração que se abandona mais ou menos ao reconhecimento do
prazer. Afora isso, são faltas humanas, de que é preciso envergonhar-se
e que se deve esconder: são indecências que é preciso evitar
afastando as ocasiões, mas que nunca se deve procurar surpreender; os
bons costumes são a proscrição do escândalo.
Todo escândalo é uma torpeza. Não se é indecente
porque tem-se órgãos que o pudor não nomeia; mas se é
obsceno quando são mostrados.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Maridos, escondei as chagas de vossa vida a dois; não desnudeis vossas
mulheres perante o escárnio público!
Mulheres, não exibais as misérias do leito conjugal: seria vos
ínscreverdes na opinião pública como prostituídas.
É preciso uma elevada dignidade de coração para conservar
a fé conjugal: é um pacto de heroismo que somente as grandes almas
podem compreender em toda a extensão. Os casamentos que são rompidos
não são casamentos, são acasalamentos. No que se pode transformar
uma mulher que abandona o marido? Não é mais esposa, não
é viúva; o que é então? É uma apóstata
da honra, que é forçada a ser licenciosa, porque não é
nem virgem nem livre.
Um marido que abandona a mulher a prostitui e merece o nome infame que é
dado aos amantes das jovens perdidas.
O casamento é sagrado, indissolúvel, quando existe realmente.
Mas só pode existir para seres de elevada inteligência e nobre
coração. Os animais não se casam, e os homens que vivem
como animais sofrem as fatalidades de sua natureza.
Fazem sem cessar tentativas para agir racionalmente. Suas promessas são
tentativas e simulacros de promessas; seus casamentos, tentativas e simulacros
de casamento; seus amores, tentativas e simulacros de amor. Quereriam sempre
e não querem nunca; começam sempre e não terminam nunca.
Para tais pessoas, as leis só se aplicam pela repressão. Tais
seres podem ter uma ninhada, mas nunca têm uma família: o casamento,
a família são direitos do homem perfeito, do homem emancipado,
do homem inteligente e livre. Por isso, consultar os anais dos tribunais e lede
a história dos parricidas. Erguei o véu negro de todas estas cabeças
cortadas e perguntai-lhes o que pensaram do casamento e da família, que
leite sugaram, que carinhos as enobreceram... Depois tremei, vós todos
que não dais a vossos filhos o pão da inteligência e do
amor, vós todos que não sancionais a autoridade paterna pela virtude
do bom exemplo...
Esses miseráveis eram órfãos pelo espírito e pelo
coração e vingaram-se de seu nascimento!... Vivemos num século
em que mais do que nunca a família é desconhecida no que tem de
augusta e sagrada: o interesse material mata a inteligência e o amor;
as lições da experiência são desprezadas, regateia-se
as coisas de Deus. A carne insulta o espírito, a fraude ri na cara da
lealdade. Quanto mais ideal, mais justiça: a vida humana ficou órfã
dos dois lados.
Coragem e paciência! Este século irá para onde devem ir
todos os culpados. Vede como é triste! O tédio é o véu
negro de sua cabeça... a carroça anda, e a multidão segue
estremecendo... Logo, mais um século será julgado pela história,
e será escrito num túmulo de ruínas: Aqui jaz o século
parricida! o século carrasco de Deus e de seu Cristo!
Na guerra tem-se o direito de matar para não morrer: mas na batalha da
vida, o mais sublime dos direitos é o de morrer para não matar.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
29
A inteligência e o amor devem resistir à opressão até
a morte, nunca até o assassínio. Homem de coração,
a vida daquele que te ofendeu está em tuas mãos, pois ele é
senhor da vida dos outros, o qual não faz questão da sua. Massacra-o
com tua grandeza: perdoa-o! - Mas será proibido matar o tigre que nos
ameaça?
- Se for um tigre com rosto humano, é mais belo deixar-se devorar, no
entanto, aqui, a moral nada prescreve.
- Mas e se o tigre ameaça meus filhos?
- A própria natureza vos responderá.
Harmódio e Aristogiston tinham festas e estátuas na Grécia
antiga. A Bíblia consagrou os nomes de Judite e Aud e uma das mais sublimes
figuras do livro santo, Sansão cego e acorrentado que sacode as colunas
do templo e grita: Que eu morra com os filisteus! Acreditai, entretanto, que,
se Jesus, antes de morrer, tivesse ido a Roma apunhalar Tibério, teria
salvado o mundo como fez ao perdoar seus carrascos e até mesmo ao morrer
por Tibério? Brutus, ao matar César, salvou a liberdade romana?
Ao matar Calígula, Quéreas apenas deu lugar a Cláudio e
a Nero. Protestar contra a violência com violência é justificá-la
e forçá-la a se reproduzir.
Mas triunfar sobre o mal pelo bem, sobre o egoísmo pela abnegação,
sobre a ferocidade pelo perdão:
é o segredo do cristianismo e da vitória eterna.
Eu vi o lugar em que a terra sangrava ainda pelo assassínio de Abel e
nesse lugar passava um regato de pranto.
E miríades de homens avançavam conduzidos pelos séculos,
deixando cair lágrimas no regato. E a eternidade, agachada e morna, contemplava
as lágrimas que caíam, contava-as uma a uma, e nunca havia o suficiente
para lavar uma mancha de sangue.
Mas, entre duas multidões e duas épocas, veio o Cristo, pálida
e resplandecente figura. E, na terra do sangue e das lágrimas, plantou
a vinha da fraternidade, e as lágrimas e o sangue aspirados pelas raizes
da árvore divina tornaram-se a seiva deliciosa da uva que deve embriagar
de amor os filhos do futuro.
XIV - O Número Catorze
Catorze é o número da fusão, da associação
e da unidade universal, e é em nome do que representa que faremos aqui
um apelo às nações, a começar pela mais antiga e
mais santa. Filhos de Israel, por que, em meio ao movimento das nações,
continuais imóveis como se guardásseis os túmulos de vossos
pais?
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
30
Vossos pais não estão mais aqui, ressuscitaram: pois o Deus de
Abraão, de Isaac e de Jacó não é o Deus dos mortos!
Por que imprimis sempre a vossa geração a marca sangrenta do cutelo?
Deus não quer mais separar-vos dos outros homens; sede nossos irmãos,
e comei conosco hóstias pacíficas nos altares que o sangue nunca
conspurca.
A lei de Moisés está cumprida: lede vossos livros e compreendei
que fostes um povo cego e duro, como dizem todos os vossos profetas.
Mas fostes também um povo corajoso e perseverante na luta.
Filhos de Israel, tornai-vos filhos de Deus: compreendei e amai! Deus apagou
de vossa fronte a marca de Caim, e os povos ao vos ver passar não dirão
mais: Aí estão os judeus! gritarão: Abram alas para nossos
irmãos, abram alas para os que nos precederam na fé. E iremos
todos os anos comemorar convosco a páscoa na nova Jerusalém. E
descansaremos debaixo de vossa videira e de vossa figueira; pois sereis ainda
amigos do viajante, em memória de Abraão, de Tobias e dos anjos
que os visitavam. E em memória daquele que disse: Quem ao menor dentre
vós recebe a mim me recebe. Pois doravante não recusareis mais
um asilo em vossa casa e em vosso coração a vosso irmão
José que vendesses às nações.
Porque ele se tornou poderoso na terra do Egito onde procuráveis pão
durante os dias de esterilidade. E ele recordou-se de seu pai Jacó e
de Benjamim, seu jovem irmão; e perdoa vossa inveja e vos abraça
chorando.
Filhos dos crentes, cantaremos convosco: não existe outro Deus senão
Deus e Maomé é seu profeta.
Dizei com os filhos de Israel: Nenhum Deus existe senão Deus e Moisés
é seu profeta!
Dizei com os cristãos: Não existe outro Deus senão Deus
e Jesus Cristo é seu profeta!
Maomé é a sombra de Moisés. Moisés é o precursor
de Jesus. O que é um profeta? É um representante da humanidade
que procura Deus. Deus é Deus, o homem é o profeta de Deus quando
faz que acreditemos em Deus.
A Bíblia, o Alcorão e o Evangelho são três traduções
diferentes do mesmo livro. Há somente uma lei como há somente
um Deus.
Ó mulher idealizada, ó recompensa dos eleitos, és mais
bela do que Maria? Ó Maria, filha do Oriente, casta como o puro amor,
grande como as aspirações maternais, vem ensinar aos filhos do
Islã os mistérios do céu e os segredos da beleza. Convida-os
para o festim da nova aliança, lá, em três tronos resplandecentes
de pedrarias, três profetas estarão sentados.
A árvore tuba fará de seus galhos recurvados um dossel para a
mesa celeste.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
31
A esposa será branca como a lua e rubra como o sorriso da manhã.
Todos os povos acorrerão para vê-Ia e não temerão
mais passar Al Sirah, pois, sobre essa ponte cortante como uma lâmina
de barbear, o Salvador estenderá sua cruz e virá estender a mão
aos que vacilarem, e aos que caírem a esposa estenderá seu véu
perfumado e os trará em sua direção. Povos, batei palmas
e aplaudi o último triunfo do amor! Somente a morte ficará morta
e somente o inferno será queimado.
Ó nações da Europa, a quem o Oriente estende as mãos,
uni-vos para expulsar os ursos do Norte! Que a última guerra faça
triunfar a inteligência e o amor, que o comércio entrelace os braços
do mundo e que uma civilização nova, saída do Evangelho
armado, reúna todos os rebanhos da terra sob o cajado do mesmo pastor!
Tais serão as conquistas do progresso; tal é o objetivo para o
qual nos empurra todo o movimento do mundo.
O progresso é o movimento; e o movimento é a vida.
Negar o progresso é afirmar o nada e deificar a morte.
O progresso é a única resposta que a razão pode opor às
objeções relativas à existência do mal.
Nada está bem, mas tudo estará bem um dia. Deus inicia e acabará
sua obra.
Sem o progresso, o mal seria imutável como Deus!
O progresso explica as ruínas e consola Jeremias que chora.
As nações sucedem-se como os homens e nada é estável
porque tudo caminha em direção da perfeição.
O grande homem que morre lega a sua pátria o fruto de seu trabalho; a
grande nação que se extingue na terra transfigura-se numa estrela
para iluminar as obscuridades da história. O que ele escreveu por suas
ações fica gravado no livro eterno; acrescentou uma página
à bíblia do gênero humano.
Não digais que a civilização é má; pois assemelha-se
ao calor úmido que amadurece as colheitas, desenvolve rapidamente os
princípios da vida e os princípios da morte, mata e vivifica.
É como o anjo do julgamento que separa os maus dos bons.
A civilização transforma em anjos de luz os homens de boa vontade
e coloca o egoísta abaixo da besta; é a corrupção
dos corpos e a emancipação das almas. O mundo ímpio dos
gigantes elevou ao céu a alma de Henoch; acima das bacanais da Grécia
primitiva eleva-se o espírito harmonioso de Orfeu.
Sócrates e Pitágoras, Platão e Aristóteles resumem,
ao explicá-las, todas as aspirações do mundo antigo; as
fábulas de Homero permanecem mais verdadeiras do que a história,
e só nos restam das grandezas de Roma os escritos imortais que elaborou
o século de Augusto. Assim, Roma talvez só tenha abalado o mundo
com suas guerreiras convulsões para gerar seu Virgílio.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
32
O cristianismo é o fruto das meditações de todos os sábios
do Oriente que revivem em Jesus Cristo. Assim, a luz dos espíritos nasceu
onde nasce o sol do mundo; o Cristo conquistou o Ocidente, e os doces raios
do sol da Ásia tocaram os gelos do Norte.
Movidos por esse calor desconhecido, formigueiros de homens novos espalharam-se
por um mundo exaurido; as almas dos povos mortos brilharam sobre os povos rejuvenescidos
e aumentaram neles o espírito de vida.
Há no mundo uma nação que se chama franqueza e liberdade,
pois essas duas palavras são sinônimos do nome França.
Essa nação sempre foi, de algum modo, mais católica do
que o papa e mais protestante do que Lutero.
A França das cruzadas, a França dos trovadores e das canções,
a França de Rabelais e de Voltaire, a França de Bossuet e de Pascal,
ela é a síntese dos povos; ela consagra a aliança da razão
e da fé, da revolução e do poder, da crença mais
terna e da dignidade humana mais altiva. Por isso, vede como ela caminha, como
se agita, como luta, como cresce! Freqüentemente enganada e ferida, nunca
batida, entusiasta com seus triunfos, audaciosa em seus reveses, ela ri, canta,
morre e ensina ao mundo a fé na sua imortalidade. A velha guarda não
se rende, mas também não morre. Confiai no entusiasmo de nossos
filhos, que querem ser um dia, eles também, soldados da velha guarda!
Napoleão não é mais um homem, é o próprio
gênio da França, é o segundo salvador do mundo, e também
deu como símbolo a seus apóstolos a cruz!
Santa Helena e o Gólgota são os marcos da nova civilização,
são os pilares de uma imensa arcada que o arco-íris do último
dilúvio forma e que lança uma ponte entre dois mundos. E pensaríeis
que a espora de um tártaro quebrará um dia o pacto de nossas glórias,
o testamento de nossa liberdade!
Dizei antes que voltaremos a ser crianças e retornaremos ao seio de nossas
mães! Caminha!, caminha!, diz a voz divina a Aasveros. Avança!
avança! grita para a França o destino do mundo!... E para onde
vamos? Para o desconhecido, para o abismo talvez; não importa! Mas para
o passado, para os cemitérios do esquecimento, mas para os cueiros que
nossa própria infância rasgou, mas para a imbecilidade e a ignorância
das primeiras idades... nunca! nunca!
XV - O Número Quinze
Quinze é o número do antagonismo e da catolicidade.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
33
O cristianismo divide-se agora em duas Igrejas: a Igreja civilizadora e a Igreja
bárbara, a Igreja progressista e a Igreja estacionária.
Uma é ativa, a outra é passiva; uma sempre condenou as nações
e os governos, uma vez que os reis a temem; a outra submeteu-se a todos os despotismos
e só pode ser um instrumento de servidão. A Igreja ativa realiza
Deus pelos homens e só ela crê na divindade do Verbo humano, intérprete
do Verbo de Deus.
O que é, afinal de contas, a infalibilidade do papa, senão a autocracia
da inteligência confirmada pelo sufrágio universal da fé?
A esse respeito, dir-se-á, o papa deveria ser o primeiro gênio
de seu século. Por quê? É melhor, na realidade, que ele
seja um espírito comum. Sua supremacia não é mais divina,
porque é, de algum modo, mais humana.
Os acontecimentos não falam mais alto do que os rancores e as ignorâncias
irreligiosas? Não vedes a França católica sustentar com
uma mão o papado desfalecido e com a outra segurar a espada para combater
na liderança do exército do progresso?
Católicos, israelitas, turcos, protestantes já combateram sob
a mesma bandeira; o crescente uniu-se à cruz latina, e juntos lutamos
contra a invasão dos bárbaros e contra sua embrutecida ortodoxia.
É para sempre um fato consumado. Ao admitir dogmas novos, a cátedra
de São Pedro acaba de se pronunciar solenemente progressiva.
A pátria do cristianismo católico é a da ciência
e das belas-artes, e o Verbo eterno do Evangelho vivo e encarnado numa autoridade
visível é ainda a luz do mundo. Silêncio pois aos fariseus
da nova sinagoga! Silêncio às tradições odiosas da
escola, ao presbiterianismo arrogante, ao jansenismo absurdo e a todas estas
vergonhosas e supersticiosas interpretações do dogma eterno, tão
justamente estigmatizadas pelo gênio impiedoso de Voltaire! Voltaire e
Napoleão morreram católicos. E será que sabeis o que deve
ser o catolicismo do futuro? Será o dogma evangélico posto à
prova como ouro pela crítica dissolvente de Voltaire, e realizado no
governo do mundo pelo gênio de um Napoleão cristão!
Os que não quiserem caminhar, os acontecimentos os arrastarão
ou passarão sobre eles! Imensas calamidades podem ainda pesar sobre o
mundo. Os exércitos do Apocalipse um dia talvez desencadearão
os quatro flagelos. O santuário será depurado. A santa e severa
pobreza enviará seus apóstolos para sustentar todo aquele que
cambalear, reanimar aquele que estiver fatigado e espalhar o óleo santo
em todas as feridas!
O despotismo e a anarquia, esses dois monstros ávidos de sangue, dilacerar-se-ão
e aniquilar-se-ão um ao outro depois de serem mutuamente sustentados,
por pouco tempo, pelo próprio entrelaçamento de sua luta.
E o governo do futuro será aquele cujo modelo é mostrado na natureza
pela família, no ideal religioso pela hierarquia dos pastores. Os eleitos
devem reinar com Jesus Cristo durante mil anos, dizem as tradições
apostólicas: ou seja, durante uma seqüência de séculos,
a inteligência e o amor dos homens de elite dedicados aos encargos do
poder administrarão os interesses e os bens da família universal.
Então, segundo a promessa do Evangelho só haverá um rebanho
e um pastor.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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XVI - O Número Dezesseis
Dezesseis é o número do templo.
Digamos o que será o templo do futuro.
Quando o espírito de inteligência e de amor tiver se revelado,
toda trindade manifestar-se-á em sua verdade e em sua glória.
A humanidade transformada em rainha e, como que ressuscitada, terá a
graça da infância em sua poesia, o vigor da juventude em sua razao
e a sabedoria da idade madura em suas obras. Todas as formas que o pensamento
divino revestiu sucessivamente renascerão imortais e perfeitas. Todos
os traços que a arte sucessiva das nações tinha esboçado
reunir-se-ão e formarão a imagem completa de Deus.
Jerusalém reconstruirá o templo de Jeová de acordo com
o modelo profetizado por Ezequiel; e o Cristo, novo e eterno Salomão,
nele cantará, debaixo de lambris de cedro e de ciprestes, suas núpcias
com a santa liberdade, a jovem esposa do cântico.
Mas Jeová terá largado seu raio para abençoar com as duas
mãos o noivo e a noiva: aparecerá sorridente entre os dois esposos
e alegrar-se-á por ser chamado de pai. Entretanto, a poesia do Oriente,
em suas mágicas lembranças, ainda o chamará de Brama e
Júpiter. A índia ensinará a nossos climas encantados as
fábulas maravilhosas de Vishnu, e experimentaremos na fronte ainda ensangüentada
de nosso Cristo bem-amado a tripla coroa de pérolas da mística
trimurti. Vênus purificada sob o véu de Maria não mais chorará
seu Adônis. O esposo ressuscitou para não mais morrer, e o javali
infernal encontrou a morte em sua passageira vitória.
Reerguei-vos, templos de Delfos e Éfeso! O deus da luz e das artes tornou-se
o Deus do mundo, e o verbo de Deus concorda em ser chamado de Apolo! Diana não
reinará mais como viúva nos campos solitários da noite;
seu crescente prateado está agora sob os pés da esposa. Mas Diana
não foi vencida por Vênus; seu Endimião acaba de despertar,
e a virgindade vai orgulhar-se de ser mãe!
Sai da tumba, ó Fídias, e alegra-te com a destruição
de teu primeiro Júpiter: é agora que vais gerar um Deus!
Ó Roma! Que teus templos reergam-se ao lado de tuas basílicas;
sê ainda a rainha do mundo e panteão das nações;
que Virgílio seja coroado no capitólio pelas mãos de São
Pedro; e que o Olimpo e o Carmelo unam suas divindades sob o pincel de Rafael!
Transfigurai-vos, antigas catedrais de nossos pais; arremessei até as
nuvens vossas flechas cinzeladas e vivas, e que a pedra conte por figuras animadas
as sombrias lendas do Norte, alegradas pelos apólogos dourados e maravilhosos
do Alcorão!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
35
Que o Oriente adore Jesus Cristo em suas mesquitas, e que nos minaretes de uma
nova Santa Sofia a cruz se eleve em meio ao crescente!
Que Maomé liberte a mulher para dar ao verdadeiro crente as huris com
que tanto sonhou, e que os mártires do Salvador ensinem castas carícias
aos belos anjos de Maomé. Toda a terra revestida com os ricos ornamentos
que todas as artes lhe bordaram será então um templo magnífico,
cujo padre eterno será o homem!
Tudo o que foi verdadeiro, tudo o que foi belo, tudo o que foi doce nos séculos
passados reviverá gloriosamente nessa transfiguração do
mundo.
E a forma bela continuará inseparável da idéia verdadeira,
como o corpo será um dia inseparável da alma, quando a alma, tendo
alcançado todo o seu poder, terá feito para si um corpo à
sua imagem. Esse será o reino do céu sobre a terra, e os corpos
serão os templos da alma, da mesma forma que o universo regenerado será
o templo de Deus.
E os corpos e as almas, e a forma e o pensamento, e o universo inteiro serão
a luz, o Verbo e a revelação permanente e visível de Deus.
Amém! Assim seja!
XVII - O Número Dezessete
Dezessete é o número da estrela; é o da inteligência
e do amor. Inteligência guerreira, audaciosa, cúmplice do divino
Prometeu, primogênita de Lúcifer, louvor a ti em tua audácia!
Quiseste saber para ter, desafiaste todos os trovões e afrontaste todos
os abismos! Inteligência, tu a quem os pobres pecadores amaram até
o delírio, até o escândalo, até a reprovação!
Direito divino do homem, essência e alma da liberdade, louvor a ti! Pois
perseguiram-te pisoteando, por ti, todos os sonhos mais caros de sua imaginação,
os fantasmas mais amados de seu coração! Por ti foram repelidos
e proscritos; por ti suportaram a prisão, o desenlace, a fome, a sede,
o abandono daqueles que amavam e as sombrias tentações do desespero!
Eras o direito deles, e eles conquistaram-te! Agora eles podem chorar e crer,
podem submeter-se e rezar! Caim arrependido teria sido maior do que Abel: é
o legítimo orgulho satisfeito que tem o direito de se fazer humilde!
Creio porque sei por que e como é preciso crer; creio porque amo e porque
não temo mais nada. Amor! amor! redentor e reparador sublime; tu que
fazes tanta felicidade de tantas torturas, tu, o sacrificador do sangue e das
lágrimas, tu que és a própria virtude e o salário
da virtude; força da resignação, liberdade da obediência,
alegria das dores, vida da morte, louvor, louvor e glória a ti! Se a
inteligência é uma lâmpada, és a sua chama; se é
o direito, és o dever; se é a nobreza, és a felicidade!
Amor pleno de orgulho e pudor nos mistérios, amor divino, amor oculto,
amor insano e sublime, Titã que toma o céu com duas mãos
e que o força a descer, último e inefável segredo da viuvez
cristã, amor eterno, amor infinito e ideal que seria suficiente para
criar mundos, amor! amor! bênção e glória a ti! Glória
às inteligências que se encobrem para não ofender os olhos
doentes!
Glória ao direito que se transforma inteiramente em dever e que se torna
a devoção! às almas viúvas
que amam e consumam-se sem serem amadas! aos que sofrem e não fazem nada
sofrer, aos que
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
36
perdoam os ingratos, aos que amam seus inimigos! Oh! felizes sempre, felizes
mais do que nunca os que se empobrecem e que se esgotam para se dar! Felizes
as almas que fazem sempre tua paz! Felizes os corações puros e
simples que não se acham melhor do que ninguém! Humanidade minha
mãe, humanidade filha e mãe de Deus, humanidade concebida sem
pecado, Igreja universal, Maria! Feliz de quem tudo ousou para te conhecer e
te entender, e de quem está pronto a tudo sofrer para te servir e te
amar!
XVIII - O Número Dezoito
Esse número é o do dogma religioso, que é toda poesia e
todo mistério. O Evangelho diz que, quando da morte do Salvador, o véu
do templo rasgou-se, porque essa morte manifestou o triunfo da devoção,
o milagre da caridade, o poder de Deus no homem, a humanidade divina e a divindade
humana, o último e o mais sublime dos arcanos, a última palavra
de todas as iniciações.
Mas o Salvador sabia que não seria compreendido a princípio, e
disse: Não suportaríeis agora toda a luz de minha doutrina; mas,
quando se manifestar o espírito de verdade, ele vos ensinará toda
verdade e sugerirá o sentido do que eu vos disse.
Ora, o espírito de verdade é o espírito de ciência
e de inteligência, o espírito de força e de conselho. Foi
esse espírito que se manifestou solenemente na Igreja romana, quando
ela declarou nos quatro artigos do decreto de 12 de dezembro de 1845:
1º Que, se a fé for superior à razão, a razão
deve apoiar as inspirações da fé;
2º Que a fé e a ciência tem cada uma seu domínio separado,
e que uma não deve usurpar as funções da outra;
3º Que é próprio da fé e da graça não
enfraquecer, mas, ao contrário, afirmar e desenvolver a razão;
4º Que o concurso da razão, que examina não as decisões
da fé mas as bases naturais e racionais da autoridade que decide, longe
de prejudicar a fé, não poderia senão ser-lhe útil;
em outras palavras, que a fé, perfeitamente racional em seus princípios,
não deve temer, mas deve, ao contrário, desejar o exame sincero
da razão.
Semelhante decreto é toda uma revolução religiosa acabada,
e a inauguração do Espírito Santo na terra.
XIX - O Número Dezenove
É o número da luz.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
37
É a existência de Deus provada pela própria idéia
de Deus.
Ou é preciso dizer que o Ser imenso é um túmulo universal,
ou que se move automaticamente, uma forma sempre morta e cadavérica,
ou é preciso admitir o princípio absoluto da inteligência
e da vida. A luz universal está morta ou viva? Fatalmente dedicada à
obra da destruição ou providencialmente dirigida para a criação
universal?
Se Deus não existe, a inteligência é apenas uma decepção
pois ela carece de absoluto e seu ideal é uma mentira.
Sem Deus, o ser é um nada que se afirma, e a vida, uma morte que se disfarça.
A luz é uma noite sempre enganada pela miragem dos sonhos.
O primeiro e o mais essencial ato de fé é pois este.
O Ser é, e o ser do ser, a verdade do ser é Deus.
O Ser é vivo com inteligência, e a inteligência viva do Ser
absoluto é Deus.
A luz é real e vivificante; ora, a realidade e a vida de toda luz é
Deus.
O Verbo da razão universal é uma afirmação e não
uma negação.
Cegos os que não vêem que a luz física é apenas o
instrumento do pensamento!
Somente o pensamento vê a luz e a produz empregando-a em benefício
próprio.
A afirmação do ateísmo é o dogma da noite eterna;
a afirmação de Deus é o dogma da luz! Vamos parar aqui,
no décimo nono número, embora o alfabeto sagrado tenha vinte e
duas letras; as dezenove primeiras são as chaves da teologia oculta.
As outras são as chaves da natureza; voltaremos a elas na terceira parte
desta obra.
Resumamos o que dissemos de Deus citando uma bela evocação emprestada
da liturgia israelita. É uma página do Kether-Malkuth, poema cabalístico
do rabino Salomão, filho de Gabirol. "Sois um, o começo de
todos os números, o fundamento de todos os edifícios; sois um
e, no segredo de vossa unidade, os homens mais sábios perdem-se porque
não a conhecem. Sois um, e vossa unidade nunca diminui, nem aumenta,
nem sofre nenhuma alteração. Sois um, mas não como o um
em matéria de cálculo, pois vossa unidade não admite nem
multiplicação, nem mudança, nem fórmula. Sois um,
para quem nenhuma de minhas fantasias pode fixar definição: eis
por que vigiarei minha conduta, evitando cometer faltas com a língua.
Sois um enfim, cuja excelência é tão elevada que não
pode cair de maneira alguma, e não como em um que pode deixar de ser.
"Sois existente; entretanto, o entendimento e a vista dos mortais não
podem atingir vossa existência nem colocar em vós o onde, o como
e o porquê. Sois existente, mas em vós mesmo, uma vez que outro
não pode existir convosco. Sois existente desde antes do tempo e em lugar
algum. Sois enfim existente e vossa existência é tão oculta
e tão profunda que ninguém pode descobri-Ia ou penetrar seu segredo.
"Sois vivo, mas não desde um tempo conhecido e fixo; sois vivo,
mas não por um espírito e uma alma; pois sois a alma de todas
as almas. Sois vivo, mas não como as vidas dos mortais, que são
comparadas a um sopro, e cujo fim será o alimento dos vermes. Sois vivo,
e aquele que puder atingir vossos mistérios desfrutará as delícias
eternas e viverá para sempre.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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"Sois grande, e perto de vossa grandeza todas estas grandezas se curvam,
e tudo o que há de mais excelente torna-se defeituoso. Sois grande, acima
de qualquer imaginação, e elevai-vos acima de todas as hierarquias
celestes. Sois grande, acima de toda grandeza, e sois exaltado acima de qualquer
louvor. Sois forte, e nenhuma de vossas criaturas fará as obras que fazeis
e nem sua força poderá ser comparada à vossa. Sois forte,
e é a vós que pertence essa força invencível que
não muda nem se altera nunca. Sois forte, e por vossa magnanimidade perdoais
no momento de vossa mais ardente cólera, e mostrai-vos paciente para
com os pecadores. Sois forte, e vossas misericórdias que sempre existiram
estendem-se para todas as vossas criaturas. Sois a luz eterna que as almas puras
verão e que a nuvem dos pecados ocultará aos olhos dos pecadores.
Sois a luz que é oculta neste mundo e visível no outro, onde a
glória do Senhor se mostra. Sois soberano, e os olhos do entendimento
que desejam ver-vos estão inteiramente espantados por só poderem
atingir de vós uma parte e nunca o todo. Sois o Deus dos deuses, testemunham-no
todas vossas criaturas; e em honra desse grande nome todas devem render-vos
culto. Sois Deus, e todas as criaturas são vossas servidoras e vossas
adoradoras; vossa glória não é embaçada mesmo que
outros sejam adorados, porque a intenção deles é a de se
dirigir a vós; são como cegos, cujo objetivo é seguir o
grande caminho, e perdem-se. Um afoga-se num poço e o outro cai numa
fossa; todos, em geral, acreditam ter alcançado seus desejos e, no entanto,
cansaram-se em vão. Mas vossos servidores são como clarividentes
que andam num caminho seguro, e que dele nunca se afastam, nem à direita,
nem à esquerda, até que entrem no adro do palácio do rei.
Sois Deus que sustentais por vossa deidade todos os seres e que socorreis por
vossa unidade todas as criaturas. Sois Deus, e não há diferença
entre vossa deidade, vossa unidade, vossa eternidade e vossa existência;
pois tudo é um mesmo mistério; e, embora os nomes variem, tudo
retorna ao mesmo. Sois sábio, e essa ciência, que é a fonte
da vida, emana de vós mesmo; e em comparação com vossa
ciência os homens mais sábios são estúpidos. Sois
sábio e o antigo dos antigos, e a ciência sempre alimentou-se convosco.
Sois sábio, e não aprendesses a ciência com ninguém,
e tampouco a adquirisses de outro senão de vós. Sois sábio
e, como um operário e um arquiteto, reservasses de vossa ciência
uma divina vontade, num tempo marcado para atrair o ser do nada; do mesmo modo
que a luz que sai dos olhos é atraída de seu próprio centro
sem nenhum instrumento ou ferramenta. Essa divina vontade cavou, traçou,
purificou e fundiu; ordenou ao nada abrir-se, ao ser aprofundar-se e ao mundo
estender-se. Mediu os céus com o palmo, com seu poder reuniu o pavilhão
das esferas, com o laço de seu poder cerrou as cortinas das criaturas
do universo e, tocando com sua força a ponta da cortina da criação,
uniu a parte superior à inferior."
Extraído das orações do Kippur
Demos a essas ousadas especulações cabalísticas a única
forma que lhes convém, a da poesia ou da inspiração do
coração.
As almas crentes não precisam das hipóteses racionais contidas
nessa explicação nova das figuras da Bíblia, mas os corações
sinceros e afligidos pela dúvida, e que a crítica do século
dezoito atormenta, compreenderão ao lê-la que a própria
razão sem a fé pode encontrar no livro sagrado outra coisa além
de escolhos; se os véus com que os textos divinos são cobertos
projetam uma grande sombra, essa sombra é tão maravilhosamente
desenhada pelas oposições da luz que se torna a única imagem
inteligível de um ideal divino.
Ideal incompreensível como o infinito e indispensável como a própria
essência do mistério.
ARTIGO II
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
39
Solução do segundo problema
A Verdadeiro Religião
A religião existe na humanidade como no amor.
É única como ele.
Como ele, existe ou não existe nesta ou naquela alma; mas, seja aceita
ou negada, está na humanidade, está, portanto, na vida, está
na natureza, é incontestável diante da ciência e mesmo diante
da razão.
A verdadeira religião é a que sempre existiu, que existe e que
sempre existirá. Podem-nos dizer que a religião é isto
ou aquilo; a religião é o que é. A religião é
ela, e as falsas religiões são superstições dela
copiadas, dela emprestadas, sombras mentirosas dela própria. Pode-se
dizer da religião o que se diz da arte verdadeira. As tentativas bárbaras
de pintura ou escultura são tentativas da ignorância para se chegar
à verdade. A arte prova-se por si, brilha com seu próprio esplendor,
é única e eterna como a beleza.
A verdadeira religião é bela, e é por esse caráter
divino que se impõe aos respeitos da ciência e ao assentimento
da razão.
A ciência não poderia, sem temeridade, afirmar ou negar as hipóteses
do dogma que são verdades para a fé; mas pode reconhecer, em certos
aspectos, a única religião verdadeira, ou seja, a única
que merece o nome de religião, reunindo todos os aspectos que convêm
a essa grande e universal aspiração da alma humana.
Uma só coisa evidentemente divina manifestou-se para todos no mundo.
É a caridade.
A obra da verdadeira religião deve ser a de produzir, conservar e difundir
o espírito de caridade. Para alcançar esse objetivo, é
preciso que ela própria tenha todas as características da caridade,
de modo que se possa bem defini-la, nomeando-a de caridade organizada. Ora,
quais são as características da caridade?
É São Paulo quem vai nos ensinar.
A caridade é paciente.
Paciente como Deus, porque ela é eterna como ele. Sofre as perseguições
e nunca persegue ninguém.
É benevolente e indulgente, chamando para si os pequenos e não
rechaçando os grandes.
Não é invejosa. A quem e a que invejaria, não tem a melhor
parte que nunca lhe será tirada?
Não é nem inquieta e nem intrigante.
Não tem orgulho, ambição, egoísmo, ira.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
40
Nunca supõe o mal e nunca triunfa pela injustiça, pois põe
toda sua alegria na verdade.
Suporta tudo sem jamais tolerar o mal.
Crê em tudo, sua fé é simples, submissa, hierárquica
e universal.
Sustenta tudo, e nunca impõe fardos que não carregasse antes.
A religião é paciente, é a religião dos grandes
trabalhadores do pensamento: é a religião dos mártires.
É benevolente como o Cristo e os apóstolos, como os Vicentes de
Paulo e os Fenelons. Não deseja nem as dignidades nem os bens da terra.
É a religião dos pais do deserto, de São Francisco de Assis
e de São Bruno, das irmãs de caridade e dos irmão de São
João de Deus. Não é nem inquieta nem intrigante, ela reza,
faz o bem e espera. É humilde, é doce, só inspira a devoção
e o sacrifício. Tem, enfim, todas as características da caridade,
porque é a própria caridade. Os homens, ao contrário, são
impacientes, perseguidores, invejosos, cruéis, ambiciosos, injustos e
mostram-se como tais em nome dessa religião que puderam caluniar, mas
que nunca obrigarão a mentir. Os homens passam, e a verdade é
eterna.
Filha da caridade e criando por sua vez a caridade, a verdadeira religião
é essencialmente realizadora; acredita nos milagres da fé, porque
os cumpre todos os dias quando faz a caridade. Uma religião que faz a
caridade pode vangloriar-se de realizar todos os sonhos do amor divino. Assim,
a fé da Igreja hierárquica transforma o mistério em realismo
pela eficácia de seus sacramentos. Não mais signos, não
mais figuras que não tenham sua força na graça e que não
dêem realmente o que prometem. A fé anima tudo, torna tudo de algum
modo visível e palpável; as próprias parábolas de
Jesus Cristo tomam um corpo e uma alma. Mostra-se em Jerusalém a casa
do mau rico. Os simbolismos esparsos das religiões primitivas, abandonados
pela ciência e privados da vida da fé, assemelhavam-se a essas
ossadas embranquecidas que cobriam o campo de Ezequiel. O espírito do
Salvador, o espírito de fé, o espírito de caridade sopraram
esse pó, e tudo o que estava morto recuperou uma vida tão real
que não se reconhece mais nesses vivos de hoje os cadáveres de
ontem. E por que seriam reconhecidos, uma vez que o mundo renovou-se, uma vez
que São Paulo queimou no Éfeso os livros dos hierofantes. São
Paulo era pois um bárbaro, e não estava cometendo um atentado
contra a ciência? Não, mas ele queimava os sudários dos
ressuscitados para fazê-los esquecer a morte. Por que então lembramos
hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que então lembramos
hoje as origens cabalísticas do dogma? Por que relacionamos as figuras
da Bíblia com as alegorias de Hermes? Será para condenar São
Paulo, para trazer a dúvida aos crentes? Certamente não, pois
os crentes não necessitam de nosso livro, não o lerão,
não o quererão compreender. Mas queremos mostrar à multidão
inumerável dos que duvidam que a fé relaciona-se à razão
de todos os séculos, à ciência de todos os sábios.
Queremos forçar a liberdade humana e respeitar a autoridade divina, a
razão a reconhecer as bases da fé, para que a fé e a autoridade,
por sua vez, nunca mais proscrevam nem a liberdade nem a razão.
ARTIGO III
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
41
Solução do terceiro problema
Razão dos Mistérios
Sendo a fé a aspiração ao desconhecido, o objeto da fé
é absoluta e necessariamente o mistério.
Para formular suas aspirações, a fé é forçada
a emprestar do conhecido aspirações e imagens. Mas ela especializa
o emprego dessas formas ao reuni-las de uma maneira impossível na ordem
conhecida. Tal é a profunda razão do aparente absurdo do simbolismo.
Demos um exemplo:
Se a fé dizia que Deus é impessoal, poder-se-ia concluir daí
que Deus é apenas uma palavra ou, no máximo, uma coisa.
Se ela dizia que Deus é uma pessoa, o infinito inteligente seria representado
sob a forma necessariamente limitada de um indivíduo.
Ela diz Deus é um em três pessoas para exprimir que se concebe
em Deus a unidade e o número. A fórmula do mistério exclui
necessariamente a própria inteligência dessa fórmula, na
medida em que empresta do Verbo coisas conhecidas, pois se fosse compreendida
exprimiria o conhecido e não o desconhecido.
Pertenceria, então, à ciência e não mais à
religião, isto é, à fé.
O objeto da fé é um problema de matemática onde o x escapa
aos procedimentos de nossa álgebra. As matemáticas absolutas provam
somente a necessidade e, por conseguinte, a existência desse conhecido
representado pelo x intraduzível.
Ora, por mais que a ciência avance em seu progresso indefinido, mas sempre
relativamente finito, nunca encontrará na língua do finito a expressão
completa do infinito. O mistério é, portanto, eterno. Fazer entrar
na lógica do conhecido os termos de uma profissão de fé
é fazê-los sair da fé que tem por bases positivas o ilogismo,
isto é, a impossibilidade de explicar logicamente o desconhecido. Para
os israelitas, Deus está separado da humanidade, não vive nas
criaturas, é um egoísmo infinito.
Para os muçulmanos, Deus é uma palavra diante da qual nos prosternamos
sobre a fé de Maomé. Para os cristãos, Deus revelou-se
na humanidade, prova-se pela caridade, reina pela ordem que constitui a hierarquia.
A hierarquia é guardiã do dogma, cuja letra e cujo espírito
quer que respeitemos. Os sectários que, em nome de sua razão,
ou melhor, de sua desrazão individual, tocaram o dogma, perderam, por
esse mesmo fato, o espírito de caridade, excomungaram a si próprios.
O dogma católico, isto é, universal, merece esse belo nome resumindo
todas as aspirações religiosas
do mundo; ele afirma a unidade de Deus com Moisés e Maomé, reconhece
em si a trindade infinita
da geração eterna com Zoroastro, Hermes e Platão, concilia
com o Verbo único de São João os
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
42
números vivos de Pitágoras, eis o que a ciência e a razão
podem constatar. É portanto diante da própria razão e diante
da ciência o dogma mais perfeito, isto é, o mais perfeito que alguma
vez se produziu no mundo. Que a ciência e a razão nos concedam
isso, não lhes pediremos mais nada. Substituir o despotismo legítimo
da lei pelo arbitrário humano, pôr, em outras palavras, a tirania
no lugar da autoridade é obra de todos os protestantismos e de todas
as democracias. O que os homens chamam de liberdade é a sanção
da autoridade ilegítima ou, antes, a ficção do poder não
sancionado pela autoridade.
João Calvino protestava contra as fogueiras de Roma para se dar o direito
de queimar Miguel Servet. Todo povo que se libertou de um Carlos I ou de um
Luís XVI submeteu-se a um Robespierre ou a um Cromwel, e existe um antipapa
mais ou menos absurdo por trás de todos os protestos contra o papado
legítimo.
A divindade de Jesus Cristo só existe na Igreja católica, para
a qual ele transmite hierarquicamente sua vida e seus poderes divinos. Essa
divindade é sacerdotal e real por comunhão, mas fora dessa comunhão
toda afirmação da divindade de Jesus Cristo é idolátrica,
porque Jesus Cristo não poderia ser um Deus separado.
Pouco importa à verdade católica o número dos protestantes.
Se todos homens fossem cegos, essa seria uma razão para negar a existência
do sol? A razão, protestando contra o dogma, prova suficientemente que
não o inventou, mas é forçada a admirar a moral que resulta
desse dogma. Ora, se a moral é uma luz, é preciso que o dogma
seja um sol, a claridade não vem das trevas.
Entre os abismos do politeísmo e do deísmo absurdo e limitado,
só há um meio possível: o mistério da santíssima
trindade.
Entre o ateísmo especulativo e o antropomorfismo só há
um meio possível: o mistério da encarnação. Entre
a fatalidade imoral e a responsabilidade draconiana que decidiria pela danação
de todos os seres, só há um meio possível: o mistério
da redenção.
A trindade é a fé.
A encarnação é a esperança.
A redenção é a caridade.
A trindade é a hierarquia.
A encarnação é a autoridade divina da Igreja.
A redenção é o sacerdócio único, infalível,
indefectível e católico. Somente a Igreja católica possui
um dogma invariável e encontra-se por sua própria constituição
na impossibilidade de corromper a moral; ela não inova, explica. Assim,
por exemplo, o dogma da imaculada concepção não é
novo, estava inteiramente contido no Théotokon do concílio de
Éfeso, e o Théotokon é uma conseqüência rigorosa
do dogma católico da encarnação.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
43
Da mesma forma, a Igreja católica não faz excomunhões,
ela as declara e só ela as pode declarar, porque é a única
guardiã da unidade.
Fora da barca de Pedro, só há o abismo. Os protestantes assemelham-se
às pessoas que, cansadas da arfagem, jogar-se-iam na água para
evitar o enjôo.
E da catolicidade, tal qual é constituída na Igreja católica,
que é preciso dizer o que Voltaire disse de Deus com tanta ousadia.
Se não existisse, seria preciso inventá-la. Mas, se um homem fosse
capaz de inventar o espírito de caridade, teria também inventado
Deus. A caridade não se inventa, revela-se por suas obras, e é
então que se pode gritar com o Salvador do mundo: Felizes os que têm
o coração puro, pois verão a Deus!
Entender o espírito de caridade é ter a inteligência de
todos os mistérios.
ARTIGO IV
Solução do quarto problema
A Religião Provada pelas objeções que lhe são opostas
As objeções que se pode fazer contra a religião podem ser
feitas seja em nome da razão, seja em nome da fé.
A ciência não pode negar os fatos da existência da religião,
de seu estabelecimento e de sua influência sobre os acontecimentos da
história. É proibido a ela tocar no dogma, o dogma pertence inteiramente
à fé.
A ciência arma-se comumente contra a religião com uma série
de fatos que tem o direito de apreciar, que de fato aprecia com severidade,
mas que a religião condena mais energicamente ainda do que a ciência.
Assim fazendo, a ciência dá razão à religião
e censura a si própria; carece de lógica, acusa a desordem que
toda paixão rancorosa introduz no espírito dos homens e a necessidade
incessante que ele tem de ser reerguido e dirigido pelo espírito de caridade.
A razão, por sua vez, examina o dogma e considera-o absurdo. Mas, se
não o fosse, a razão compreendê-lo-ia; se ela o compreendesse,
não seria mais a fórmula do desconhecido.
Seria uma demonstração matemática do infinito.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
44
Seria o infinito finito, o desconhecido conhecido, o incomensurável medido,
o indizível nomeado. Isso quer dizer que o dogma só deixaria de
ser absurdo diante da razão, para se tornar, diante da fé, da
ciência, da razão e do bom senso reunidos, o mais monstruoso e
o mais impossível de todos os absurdos.
Restam as objeções da fé dissidente.
Os israelitas, nossos pais em religião, censuram-nos por termos atentado
contra a unidade de Deus, por termos mudado uma lei imutável e eterna,
por adorarmos a criatura no lugar do criador. Essas censuras são fundamentadas
numa noção perfeitamente falsa do cristianismo.
Nosso Deus é o Deus de Moisés, Deus único, imaterial, infinito,
o só adorável e sempre o mesmo. Como os judeus, acreditamo-lo
presente em todos os lugares, mas, como eles deveriam fazer, acredítamo-lo
vivo, pensante e amante na humanidade e adoramo-lo em suas obras. Não
mudamos sua lei, pois o decálogo dos israelitas é também
a lei dos cristãos. A lei é imutável, porque está
fundamentada em princípios eternos da natureza; mas o culto exigido pelas
necessidades do homem pode variar e modificar-se com os homens. O que o culto
significa é imutável, mas o culto modifica-se como as línguas.
O culto é um ensinamento, é uma língua, é preciso
traduzi-lo quando as nações não o compreendem mais.
Traduzimos e não destruímos o culto de Moisés e dos profetas.
Adorando Deus na criação, não estamos adorando a própria
criação.
Adorando Deus em Jesus Cristo, é somente Deus que adoramos, mas Deus
unido à humanidade.
Tornando a humanidade divina, o cristianismo revelou a divindade humana.
O Deus dos judeus era inumano, porque eles não o compreendiam em suas
obras. Somos, portanto, mais israelitas que os próprios israelitas. No
que acreditam, acreditamos com eles e melhor que eles. Acusam-nos de estarmos
separados dele e são eles, ao contrário, que querem estar separados
de nós.
Esperamo-los de coração e braços abertos.
Somos, como eles, discípulos de Moisés.
Como eles, viemos do Egito e detestamos sua servidão. Mas nós
estamos na terra prometida, e eles obstinam-se em permanecer e morrer no deserto.
Os muçulmanos são os bastardos de Israel, ou melhor, são
seus filhos deserdados, como Esaú.
Sua crença é ilógica, pois admitem que Jesus é um
grande profeta, e tratam os cristãos como infiéis.
Reconhecem a inspiração divina de Moisés e não vêem
os judeus como irmãos.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
45
Acreditam cegamente em seu cego profeta, o fatalista Maomé, o inimigo
do progresso e da liberdade.
Não tiremos, no entanto, de Maomé a glória de ter proclamado
a unidade de Deus entre os árabes idólatras.
Encontram-se no Alcorão páginas puras e sublimes.
É lendo essas páginas que se pode dizer com os filhos de Ismael:
Não existe outro Deus senão Deus, e Maomé é seu
profeta.
Há três tronos no céu para os três profetas das nações;
mas, no fim dos tempos, Maomé será substituído por Elias.
Os muçulmanos nada censuram nos cristãos, eles injuriam-nos.
Chamam-nos de infiéis e de giaurs, isto é, cães. Não
temos nada a lhes responder.
Não se deve refutar os turcos e os árabes, é preciso instruí-los
e civilizá-los. Restam os cristãos dissidentes, isto é,
aqueles que, tendo rompido o laço de união, declaram-se estrangeiros
à caridade da Igreja.
A ortodoxia grega, irmã gêmea da Igreja romana, que não
cresceu desde sua separação, que não tem mais importância
nos faustos religiosos, que, desde Fócio, não inspirou uma única
eloqüência; Igreja que se tornou inteiramente temporal e cujo sacerdócio
não é mais que uma função regulada pela política
imperial do czar de todas as Rússias; múmia curiosa da Igreja
primitiva, colorida e dourada com todas as suas lendas e com todos os seus ritos
que os popes não compreendem mais; sombra de uma Igreja viva, mas que
quis parar quando essa Igreja avançava e que não é mais
que uma silhueta apagada e sem cabeça.
Depois, os protestantes, esses eternos reguladores da anarquia, que romperam
o dogma e tentam sempre preenchê-lo com raciocínios, como o tonel
das Danaides; esses fantasistas religiosos cujas inovações em
sua totalidade são negativas, que formularam para uso próprio
um desconhecido pretensamente mais conhecido, mistérios mais explicados,
um infinito mais definido, uma imensidão mais restrita, uma fé
mais duvidosa, que quintessenciaram o absurdo, cindiram a caridade e tomaram
atos de anarquia pelos princípios de uma hierarquia para sempre impossível;
esses homens que querem realizar a salvação somente pela fé,
porque a caridade lhes escapa e que nada mais podem realizar, mesmo sobre a
terra, pois seus pretensos sacramentos não são mais que farsas
alegóricas, não dão mais a graça, não fazem
mais ver a Deus nem tocar em Deus, não são mais, em uma palavra,
os signos da onipotência da fé, mas as testemunhas forçadas
da impotência eterna da dúvida. Foi, portanto, contra a própria
fé que a reforma protestou. Os protestantes tiveram razão contra
o zelo inconsiderado e perseguidor que queria forçar as consciências.
Exigiram o direito de duvidar, o direito de ter menos religião ou de
não a ter absolutamente; derramaram seu sangue por esse triste privilégio;
conquistaram-no, possuem-no, mas não nos tirarão o de lastimá-los
e de amá-los. Quando sentirem novamente a necessidade de acreditar, quando
seu coração revoltar-se por sua vez contra a tirania de uma razão
falseada, quando se cansarem das frias abstrações de seu dogma
arbitrário, das vãs observâncias de seu culto sem efeito,
quando sua comunhão sem presença real, suas igrejas sem divindade
e sua moral sem perdão os aterrorizarem enfim, assim que ficarem doentes
da nostalgia de Deus, não se levantarão como o filho pródigo
e não virão jogar-se aos pés do sucessor de Pedro dizendo-lhe:
Pai, pecamos contra o céu e contra vós, já não somos
dignos de ser chamados vossos filhos, mas incluí-nos ao menos entre vossos
mais humildes servidores. Não falaremos da crítica de Voltaire.
Esse grande espírito estava dominado por um ardente amor pela verdade
e pela justiça, mas faltava-lhe esta retidão do coração
que dá a inteligência da fé.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
46
Voltaire não podia admitir a fé, porque não sabia amar.
O espírito de caridade não se revelou a essa alma sem ternura,
e ele criticou amargamente um fogo cujo calor não sentia e uma lâmpada
cuja luz não via. Se a religião fosse tal qual viu, teria tido
mil vezes razão em atacá-la e seria preciso ajoelhar-se diante
do heroismo de sua coragem. Voltaire seria o messias do bom senso, o hércules
destruidor do fanatismo. Mas este homem ria demais para compreender aquele que
disse: Felizes dos que choram, e a filosofia do riso nunca terá nada
em comum com a religião das lágrimas. Voltaire parodiou a Bíblia,
o dogma, o culto, depois ridicularizou, achincalhou, vilipendiou sua paródia.
Apenas aqueles que vêem a religião na paródia de Voltaire
podem se ofender com isso. Os voltairianos assemelham-se às rãs
da fábula que saltam sobre as vigas e, em seguida, zombam da majestade
real. São livres para tomar a viga por um rei, são livres para
refazer esta caricatura romana de que, outrora, Tertuliano ria, e que representava
o Deus dos cristãos na figura de um homem com cabeça de asno.
Os cristãos darão de ombros ao ver essa brejeirice e pedirão
a Deus pelos pobres ignorantes que pretendiam insultá-los.
O senhor conde Joseph de Maistre, depois de ter representado, num de seus mais
eloqüentes paradoxos, o carrasco como um ser sagrado e como uma encarnação
permanente de justiça divina na terra, queria que se erguesse para o
ancião de Ferney uma estátua pela mão do carrasco. Existe
profundidade nesse pensamento. Voltaire, com efeito, foi também, no mundo,
um ser ao mesmo tempo providencial e fatal, dotado de insensibilidade para a
realização de suas terríveis funções. Foi,
no domínio da inteligência, um executor das grandes obras, um executor
armado com a própria justiça de Deus.
Deus enviou Voltaire entre o século de Bossuet e o de Napoleão
para aniquilar tudo o que separa esses dois gênios e reuni-los num só.
Era o Sansão do espírito, sempre pronto a sacudir as colunas do
templo; mas, para fazê-lo girar, a contragosto, a pedra do moinho do progresso
religioso, a Providência parecia ter cegado seu coração.
ARTIGO V
Solução do último problema
Separar a religião da superstição e do fanatismo
A superstição, da palavra latina superstes, sobrevivente, é
o símbolo que sobreviveu à idéia, é a forma preferida
à coisa, é o rito sem razão, é a fé tornada
insensata, porque se isola. E, por conseguinte, o cadáver da religião,
a morte da vida, é a inspiração substituída pelo
embrutecimento.
O fanatismo é a superstição apaixonada, seu nome vem da
palavra fanum, que significa templo, é o
templo colocado no lugar de Deus, é a honra do sacerdote substituída
pelo interesse humano e
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
47
temporal do padre, é a paixão miserável do homem explorando
a fé do crente. Na fábula do asno carregado de relíquias,
La Fontaine diz-nos que o animal acreditou ser adorado, não nos diz que
algumas pessoas acreditaram de fato adorar o animal. Essas pessoas eram os supersticiosos.
Se alguém tivesse rido de suas tolices, teriam-no talvez assassinado,
pois da superstição ao fanatismo há um só passo.
A superstição é a religião interpretada pela tolice;
o fanatismo é a religião servindo de pretexto à fúria.
Os que confundem proposital e preconceituosamente a própria religião
com a superstição e o fanatismo emprestam à tolice suas
prevenções cegas e talvez emprestassem ao fanatismo suas injustiças
e seus ódios.
Inquisidores ou participantes dos Massacres de Setembro, que importam os nomes?
A religião de Jesus Cristo condena e sempre condenou os assassinos.
RESUMO DA PRIMEIRA PARTE EM FORMA DE DIÁLOGO
A Fé, A Ciência, A Razão
A CIÊNCIA - Nunca me fareis acreditar na existência de Deus.
A FÉ - Não tendes o privilégio de acreditar, mas nunca
me provareis que Deus não existe.
A CIÊNCIA - Para vo-lo provar, é preciso que, em primeiro lugar,
eu saiba o que é Deus. A FÉ - Não o sabereis nunca. Se
soubésseis, poderíeis ensinarmo, e, quando eu o soubesse, não
mais acreditaria nele.
A CIÊNCIA - Acreditais, então, sem saber em que estais acreditando?
A FÉ - Ali! não joguemos com as palavras. Sois vós quem
não sabeis em que eu acredito, precisamente porque vós não
o sabeis. Tendes a pretensão de ser infinita? Não sois interrompida
a cada instante pelo mistério? O mistério é para vós
uma ignorância que reduziria ao nada o finito de vosso saber, se eu não
o iluminasse com minhas ardentes inspirações, e quando dizeis:
Eu não sei mais, eu gritaria: Quanto a mim, começo a acreditar.
A CIÊNCIA - Mas vossas aspirações e seu objeto são
e só podem ser hipóteses para mim. A FÉ - Sem dúvida,
mas são certezas para mim, uma vez que sem essas hipóteses eu
duvidaria até mesmo de vossas certezas.
A CIÊNCIA - Mas, se começais onde eu paro, começais temerariamente
muito cedo. Meus progressos atestam que eu ando sempre.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
48
A FÉ - Que importam os vossos progressos, se ando sempre na vossa frente?
A CIÊNCIA - Tu, andar! sonhadora da eternidade, desdenhaste demais a terra,
teus pés estão dormentes.
A FÉ - Sou carregada por meus filhos!
A CIÊNCIA - São cegos que carregam um outro, cuidado com os precipícios!
A FÉ - Não, meus filhos não são cegos, muito pelo
contrário, desfrutam de dupla visão, vêem por teus olhos
o que tu podes demonstrar para eles na terra e contemplam, pelos meus, o que
lhes mostro no céu.
A CIÊNCIA - O que a razão pensa disso?
A RAZÃO - Penso, ó caras mestras, que poderíeis realizar
um apólogo tocante, o do paralítico e o do cego. A ciência
censura a fé por não saber andar na terra, e a fé diz que
a ciência não vê nada no céu das aspirações
e da eternidade. Ao invés de brigarem, ciência e fé deveriam
unir-se: que a ciência carregue a fé e a fé console a ciência,
ensinando-lhe esperar e amar. A CIÊNCIA - Essa idéia é bela,
mas é uma utopia. A fé dir-me-á absurdos, e eu quero andar
sem ela.
A FÉ - O que é que chamais de absurdos?
A CIÊNCIA - Chamo de absurdos as proposições contrárias
às minhas demonstrações, como, por exemplo, que três
são um, que um Deus fez-se homem, isto é, que o infinito fez-se
finito. Que o Eterno morreu, que Deus puniu seu filho inocente pelo pecado dos
homens culpados... A FÉ - Não digas mais nada. Externadas por
ti, essas proposições são, de fato, absurdos. Por acaso
sabes o que é o número em Deus, tu que não conheces Deus?
És capaz de raciocinar sobre as operações do desconhecido?
És capaz de entender os mistérios da caridade? Devo ser sempre
absurda para ti, pois se entendesses minhas afirmações, elas seriam
absorvidas por teus teoremas; eu seria tu, e tu serias eu, para dizer melhor,
eu não existiria mais, e a razão, em presença do infinito,
deter-se-ia sempre cegada por tuas dúvidas tão infinitas quanto
o espaço. A CIÊNCIA - Pelo menos, nunca usurpes minha autoridade,
não me desmintas em meus domínios.
A FÉ - Nunca o fiz, e não posso nunca o fazer.
A CIÊNCIA - Assim, nunca acreditaste, por exemplo, que uma virgem possa
ser mãe sem deixar de ser virgem, e isso na ordem física, natural
e positiva, a despeito de todas as leis da natureza; não afirmas que
um pedaço de pão é não somente um Deus mas um corpo
humano verdadeiro, com ossos e veias, órgãos, sangue, de maneira
que fazes de teus filhos que comem esse pão um povinho antropófago.
A FÉ - Não é cristão quem não se revolte
com o que acabaste de dizer. Isso prova o suficiente que eles não entendem
meus ensinamentos dessa maneira positiva e grosseira. O sobrenatural que afirmo
está acima da natureza e não poderia, por conseguinte, opor-se
a ela, as palavras de fé só são compreendidas pela fé;
nada que, em as repetindo, a ciência desnature. Sirvo-me de tuas palavras,
porque não tenho outras; mas uma vez que achas meus discursos absurdos,
deves concluir que dou a essas mesmas palavras um significado que te escapa.
O Salvador, ao revelar o dogma da presença real, não disse: A
carne aqui não tem nenhuma serventia, minhas palavras são espírito
e vida? Não te apresento o mistério da encarnação
como um fenômeno de anatomia nem o da transubstanciação
como uma manifestação química. Com que direito gritarias
ao absurdo? Eu não raciocino sobre nada do que conheceis; com que direito
dirias que eu disparato?
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
49
A CIÊNCIA - Começo a te compreender, ou melhor, vejo que nunca
te compreenderei. Nesse caso, continuemos separadas, nunca precisarei de ti.
A FÉ - Sou menos orgulhosa e reconheço que me podes ser útil.
Talvez também sem mim estarias bem triste e bem desesperada, e não
quero separar-me de ti, a menos que a razão o consinta. A RAZÃO
- Não façais isso. Sou necessária a ambas. E eu, que faria
sem vós? Preciso saber e crer para ser justa. Mas nunca devo confundir
o que sei com o que acredito. Saber não é mais acreditar, acreditar
não é saber ainda. O objeto da ciência é o conhecido,
a fé não se ocupa dele e deixa-o inteiramente à ciência.
O objeto da fé é o desconhecido, a ciência pode buscá-lo,
mas não defini-lo; é portanto forçada, pelo menos provisoriamente,
a aceitar as definições da fé que lhe é até
mesmo impossível de criticar. Somente se a ciência renuncia à
fé, renuncia à esperança e ao amor, cuja existência
e necessidade são, no entanto, tão evidentes para a ciência
quanto para a fé. A fé, como fato psicológico, pertence
ao domínio da ciência, e a ciência, como manifestação
da luz de Deus na inteligência humana, pertence ao domínio da fé.
A ciência e a fé devem, portanto, aceitar-se, respeitar-se mutuamente,
até mesmo sustentar-se e socorrer-se nas necessidades, mas sem nunca
usurpar uma à outra. O meio de as unir é nunca as confundir. Mas
não deve haver contradição entre elas, pois servindo-se
das mesmas palavras não falam a mesma língua. A FÉ - Pois
bem! irmã ciência, o que dizeis disso?
A CIÊNCIA - Digo que estávamos separadas por um deplorável
mal-entendido e que, doravante, podemos andar juntas. Mas a qual de seus símbolos
vais-me associar? Serei judia, católica, muçulmana ou protestante?
A FÉ - Continuarás sendo a ciência e serás universal.
A CIÊNCIA - Ou seja, católica, se bem compreendo. Mas o que devo
pensar das diferentes religiões?
A FÉ - Julga-as por suas obras. Procure a caridade verdadeira e, quando
a tiver encontrado, pergunta-lhe a que culto pertence.
A CIÊNCIA - Não será certamente ao dos inquisidores e dos
carrascos da Noite de São Bartolomeu. A FÉ - É ao de São
João, o Esmoler, de São Francisco de Sales, de São Vicente
de Paulo, de Fenelon e de tantos outros.
A CIÊNCIA - Reconheceis que, se a religião produziu algum bem,
fez também muito mal. A FÉ - Quando se mata em nome do Deus que
disse: Não matarás, quando se persegue em nome daquele que quer
que se perdoe os inimigos, quando se propaga trevas em nome daquele que não
quer que se oculte a luz, será justo atribuir o crime à própria
lei que o condena? Dize, se quereis ser justa, que, apesar da religião,
muito mal foi feito na terra. Mas, também, quantas virtudes ela fez nascer,
quantos devotamentos e sacrifícios ignorados? Contaste estes nobres corações
de ambos os sexos que renunciaram a todas as alegrias para se pôr ao serviço
de todas as dores? Essas obras devotadas ao trabalho e à oração
que passaram fazendo o bem? Quem pois fundou asilos para os órfãos
e os idosos, hospícios para os doentes, retiros para o arrependimento?
Essas instituições tão gloriosas quanto modestas são
obras reais de que os anais da Igreja estão cheios; as guerras de religião
e os suplícios dos sectários pertencem à política
dos séculos bárbaros. Os sectários, aliás, eram
eles próprios assassinos. Esquecestes a fogueira de Miguel Servet e o
massacre de nossos padres renovado ainda em nome da humanidade e da razão
pelos revolucionários inimigos da inquisição e da Noite
de São Bartolomeu? Os homens são sempre cruéis, quando
esquecem a religião que os abençoa e perdoa.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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A CIÊNCIA - Ó fé, perdoa-me então se não posso
acreditar, mas sei agora por que és crente. Respeito tuas esperanças
e partilho de teus desejos. Mas é pesquisando que eu encontro e é
preciso que eu duvide para pesquisar.
A RAZÃO - Trabalha e procura, então, ó ciência, mas
respeita os oráculos da fé. Quando tua dúvida deixar uma
lacuna no ensinamento universal, permite à fé preenchê-la.
Andai distintas uma da outra, mas apoiadas uma na outra, e nunca vos separeis.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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SEGUNDA PARTE
MISTÉRIOS FILOSÓFICOS
Considerações preliminares
Diz-se que o belo é o esplendor do verdadeiro.
Ora, a beleza moral é a bondade. É belo ser bom.
Para ser bom com inteligência, é preciso ser justo.
Para ser justo, é preciso agir com razão.
Para agir com razão, é preciso ter a ciência da realidade.
Para ter a ciência da realidade, é preciso ter consciência
da verdade.
Para ter consciência da verdade, é preciso ter uma noção
exata do ser. O ser, a verdade, a razão e a justiça são
os objetos comuns das buscas da ciência e das aspirações
da fé. A concepção de um poder supremo, real ou hipotético,
transforma a justiça em Providência, e a noção divina,
por esse ponto de vista, torna-se acessível à própria ciência.
A ciência estuda o ser em suas manifestações parciais, a
fé o supõe, ou melhor, o admite a priori em sua generalidade.
A ciência busca a verdade em todas as coisas, a fé relaciona todas
as coisas a uma verdade universal e absoluta.
A ciência verifica realidades no detalhe, a fé explica-as por uma
realidade de conjunto que a ciência não pode verificar, mas que
a própria existência dos detalhes parece forçá-la
a reconhecer e a admitir.
A ciência submete as razões das pessoas e das coisas à razão
matemática e universal; a fé procura, ou melhor, supõe
nas próprias matemáticas e acima das matemáticas uma razão
inteligente e absoluta. A ciência demonstra a justiça pela justiça;
a fé dá justeza absoluta à justiça, subordinando-a
à Providência.
Vê-se aqui tudo o que a fé empresta à ciência e tudo
o que a ciência, por sua vez, deve à fé. Sem a fé,
a ciência está circunscrita por uma dúvida absoluta e encontra-se
eternamente estacionada no empirismo arriscado a um ceticismo raciocinador;
sem a ciência, a fé constrói suas hipóteses ao acaso
e só pode prejulgar cegamente as causas dos efeitos que ignora. A grande
corrente que reúne ciência e fé é a analogia.
53
A ciência está forçada a respeitar uma crença cujas
hipóteses são análogas às verdades demonstradas.
A fé, que atribui tudo a Deus, está forçada a admitir a
ciência como uma revelação natural que, pela manifestação
parcial das leis da razão eterna, dá uma escala de proporções
a todas as aspirações e a todos os ímpetos da alma no domínio
do desconhecido.
É somente a fé, portanto, que pode dar uma solução
aos mistérios da ciência e é, em contrapartida, somente
a ciência que demonstra a razão de ser dos mistérios da
fé. Fora da união e do concurso dessas duas forças vivas
da inteligência, não há para a ciência senão
ceticismo e desespero, para a fé, temeridade e fanatismo.
Se a fé insulta a ciência, blasfema; se a ciência desconhece
a fé, abdica.
Agora, escutemo-las falar de comum acordo.
- O Ser está em todos os lugares, diz a ciência. É múltiplo
e variável em suas formas, único em sua essência e imutável
em suas leis. O relativo demonstra a existência do absoluto. A inteligência
existe no ser. A inteligência anima e modifica a matéria.
- A inteligência está em todos os lugares, diz a fé. Em
nenhum lugar a vida é fatal, uma vez que está regulada. A regra
é a expressão de uma sabedoria suprema. O absoluto em inteligência,
o regulador supremo das formas, o ideal vivo dos espíritos é Deus.
- Em sua identidade com a idéia, o ser é a verdade, diz a ciência.
- Em sua identidade com o ideal, a verdade é Deus, retorque a fé.
- Em sua identidade com minhas demonstrações, o ser é a
realidade, diz a ciência.
- Em sua identidade com minhas legítimas aspirações, a
realidade é meu dogma, diz a fé.
- Na sua identidade com o verbo, o ser é a razão, diz a ciência.
- Na sua identidade com o espírito de caridade, a mais elevada razão
é minha obediência, diz a fé - Em sua identidade com o motivo
dos atos racionais, o ser é a justiça, diz a ciência. -
Em sua identidade com o princípio de caridade, a justiça é
a Providência, responde a fé. Acordo sublime de todas as certezas
com todas as esperanças, do absoluto em inteligência e do absoluto
em amor. O Espírito Santo, o espírito de caridade deve assim tudo
conciliar e tudo transformar em sua própria luz. Não é
ele o espírito de inteligência, o espírito de ciência,
o espírito de conselho, o espírito de força? Ele deve vir,
diz a liturgia católica, e isso será como uma criação
nova, e ele mudará a face da terra.
"Rir da filosofia já é filosofar", disse Pascal ao fazer
alusão a esta filosofia cética e duvidosa que não reconhece
a fé. E, se existisse uma fé que pisoteasse a ciência, não
diríamos que rir de semelhante fé seria dar provas de verdadeira
religião, que é toda caridade, que não tolera o riso, mas
ter-se-ia razão em censurar esse amor pela ignorância e em dizer
a essa fé temerária: Já que desconheces tua irmã,
não és a filha de Deus!
Verdade, realidade, razão, justiça, providência, tais são
os cinco raios da estrela flamejante no centro da qual a ciência escreverá
a palavra Ser, a que a fé acrescentará o nome inefável
de Deus.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
54
Solução dos Problemas Filosóficos
Primeira Série
Pergunta - O que é a verdade?
Resposta - É a idéia idêntica ao ser.
P - O que é a realidade?
R - É a ciência idêntica ao ser.
P - O que é a razão?
R - É o verbo idêntico ao ser.
P - O que é a justiça?
R - É o motivo dos atos idênticos ao ser.
P - O que é o absoluto?
R - É o ser.
P - Concebe-se algo acima do ser?
R - Não, mas concebe-se no próprio ser algo de supereminente e
de transcendental.
P - O que é?
R - A razão suprema do ser.
P - Conheceis e podeis defini-la?
R - Somente a fé afirma-a e nomeia-a Deus.
P - Existe algo acima da verdade?
R - Acima da verdade conhecida existe a verdade desconhecida.
P - Como se pode racionalmente supor essa verdade?
R - Pela analogia e pela proporção.
P - Como se pode defini-la?
R - Pelos símbolos da fé.
P - Pode-se dizer da realidade a mesma coisa que da verdade?
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
55
R - Exatamente a mesma coisa.
P - Existe algo acima da razão?
R - Acima da razão finita existe a razão infinita.
P - O que é a razão infinita?
R - É esta razão suprema do ser a que a fé chama de Deus.
P - Existe algo acima da justiça?
R - Sim, de acordo com a fé, existe a providência em Deus e, no
homem, o sacrifício.
P - O que é o sacrifício?
R - É o abandono benévolo e espontâneo do direito.
P - O sacrifício é racional?
R - Não, é uma espécie de loucura maior que a razão,
pois a razão é forçada a admirá-lo.
P - Como chamar um homem que age de acordo com a verdade, a realidade, a razão
e a justiça?
R - É um homem moral.
P - E se pela justiça ele sacrifica seus atrativos?
R - É um homem de honra.
P - E se, para imitar a grandeza e a bondade da Providência, ele faz mais
do que seu dever e sacrifica seu direito pelo bem dos outros?
R - É um herói.
P - Qual é o princípio verdadeiro do heroísmo?
R - É a fé.
P - Qual é o seu sustento?
R - A esperança.
P - E sua regra?
R - A caridade.
P - O que é o bem?
R - É a ordem.
P - O que é o mal?
R - É a desordem.
P - Que prazer é permitido?
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
56
R - O gozo da ordem.
P - Que prazer é proibido?
R - O gozo da desordem.
P - Quais são as conseqüências de um e de outro?
R - A vida e a morte na ordem moral.
P - O inferno, com todos os seus horrores, tem, pois, razão de ser no
dogma religioso?
R - Sim, é a conseqüência rigorosa de um princípio.
P - E que princípio é esse?
R - A liberdade.
P - O que é a liberdade?
R - É o direito de fazer o dever com a possibilidade de não o
fazer.
P - O que é faltar com o dever?
R - É perder o direito. Ora, sendo o direito eterno, perdê-lo significa
perda eterna.
P - Não se pode reparar uma falta?
R - Sim, pela expiação.
P - O que é a expiação?
R - É uma sobrecarga de trabalho. Assim, porque fui preguiçoso
ontem, devo realizar, hoje, uma dupla tarefa.
P - Que pensar dos que se impõem sofrimentos voluntários?
R - Se é para remediar a atração brutal do prazer, são
sábios; se é para sofrer no lugar dos outros, são generosos;
mas, se o fazem sem conselho e sem medida, são imprudentes. P - Assim,
diante da verdadeira filosofia, a religião é sábia em tudo
o que ordena?
R - Vós o vedes.
P - Mas se enfim estivermos errados em nossas esperanças eternas? R -
A fé não admite essa dúvida. Mas a própria filosofia
deve responder que todos os prazeres da terra não valem um dia de sabedoria,
e que todos os triunfos da ambição não valem um só
instante de heroísmo e de caridade.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
57
Segunda Série
P - O que é o homem?
R - O homem é um ser inteligente e corporal feito à imagem de
Deus e do mundo, uno em essência, triplo em substância, imortal
e mortal.
P - Dizeis triplo em substância. Teria o homem duas almas ou dois corpos?
R - Não. Tem em si uma alma espiritual, um corpo material e um mediador
plástico.
P - Qual é a substância desse mediador?
R - É a luz em parte volátil e em parte fixada.
P - O que é a parte volátil dessa luz?
R - É o fluido magnético.
P - E a parte fixada?
R - É o corpo fluídico ou arornal.
P - A existência desse corpo é demonstrada?
R - Sim, pelas experiências mais curiosas e mais conclusivas. Falaremos
disso na terceira parte deste livro.
P - Essas experiências são artigos de fé?
R - Não, pertencem à ciência.
P - Mas a ciência preocupar-se-ia com isso?
R - Ela já se preocupa, uma vez que escrevemos este livro e uma vez que
o ledes.
P - Dai-nos algumas noções sobre esse mediador plástico.
R - Ele é formado por uma luz astral ou terrestre e transmite ao corpo
humano a dupla imantação. Ao agir sobre essa luz, a alma, por
suas volições, pode dissolvê-la ou coagulá-la, projetá-la
ou atraí-la. Ela é o espelho da imaginação e dos
sonhos. Reage sobre o sistema nervoso e produz, assim, os movimentos do corpo.
Essa luz pode dilatar-se indefinidamente e comunicar suas imagens a distâncias
consideráveis, ela imanta os corpos submetidos à ação
do homem e pode, fechando-se, atraí-los para si. Pode assumir todas as
formas evocadas pelo pensamento e, nas coagulações passageiras
de sua parte resplandecente, aparecer aos olhos e até mesmo oferecer
uma espécie de resistência ao contato. Se essas manifestações
e esses usos do mediador plástico são anormais, o instrumento
luminoso não pode produzi-las sem ser falseado e causam necessariamente
ou alucinação ou loucura.
P - O que é o magnetismo animal?
R - É a ação de um mediador plástico sobre um outro
para dissolver ou coagular. Aumentando a
elasticidade da luz vital e sua força de projeção, ela
é enviada tão longe quanto se deseje e é retirada
totalmente carregada de imagens, mas é preciso que essa operação
seja favorecida pelo sono do
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
58
sujeito, que se produz com maior coagulação da parte fixa de seu
mediador.
P - O magnetismo é contrário à moral e à religião?
R - Sim, quando dele se abusa.
P - O que é abusar dele?
R - É servir-se dele de maneira desordenada ou para um fim desordenado.
P - O que é um magnetismo desordenado?
R - É uma emissão fluídica malsã e feita com más
intenções, por exemplo, para saber os segredos dos outros ou para
chegar a fins injustos.
P - Qual é, então, seu resultado?
R - Falseia no magnetizador e no magnetizado o instrumento fluídico de
precisão. E é a essa causa que se devem atribuir as imoralidades
e as loucuras reprovadas num grande número de pessoas que lidam com o
magnetismo.
P - Quais as condições necessárias para se magnetizar convenientemente?
R - A saúde do espírito e do corpo; a intenção reta
e a prática discreta.
P - Que vantagens pode-se obter pelo magnetismo bem dirigido? R - A cura das
doenças nervosas, a análise dos pressentimentos, o restabelecimento
das harmonias fluídicas, a descoberta de alguns segredos da natureza.
P - Explicai-nos tudo isso de uma maneira mais completa.
R - Nós o faremos na terceira parte desta obra que tratará especialmente
dos mistérios da natureza.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
59
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
60
TERCEIRA PARTE
OS MISTÉRIOS DA NATUREZA
O Grande Agente Mágico
Falamos de uma substância propagada no infinito
A substância una que é céu e terra, isto é, conforme
seus graus de polarização, sutil ou fixa. Essa substância
é o que Hermes Trismegisto chama de grande Telesma. Quando produz o esplendor,
ela denomina-se luz.
É essa substância que Deus cria antes de todas as coisas, quando
diz: Que seja a luz.
Ela é ao mesmo tempo substância e movimento. É um fluido
e uma vibração perpétua.
A força que a põe em movimento e que lhe é inerente denomina-se
magnetismo.
No infinito, essa substância única é o éter ou a
luz etérea.
Nos astros que magnetiza, torna-se luz astral.
Nos seres organizados, luz ou fluido magnético.
No homem, forma o corpo astral ou o mediador plástico.
A vontade dos seres inteligentes age diretamente sobre essa luz e, por meio
dela, sobre toda a natureza submetida às modificações da
inteligência.
Essa luz é o espelho comum de todos os pensamentos e de todas as formas;
guarda as imagens de tudo o que foi, os reflexos dos mundos passados e, por
analogia, os esboços dos mundos futuros. E o instrumento da taumaturgia
e da adivinhação, como nos resta explicar na terceira e última
parte desta obra.
LIVRO I
OS Mistérios Magnéticos
61
CAPÍTULO I
A Chave do Mesmerismo
Mesmer encontrou a ciência secreta da natureza, ele não a inventou.
A substância primeira, única e elementar, cuja existência
ele proclama em seus aforismos, era conhecida por Hermes e por Pitágoras.
Sinésio, que a canta em seus hinos, encontrara sua revelação
em meio às lembranças platônicas da escola de Alexandria:
Mia paga, mic riza
Trifahj elcmfe morfc
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
Peri gan spareisc pnoic
Cqonoj' ezwwse moifcj
Polndaidcloisi morcij
"Uma única fonte, uma única raiz de luz jorra e abre-se em
três ramos de esplendor. Um sopro circula em volta da terra e vivifica,
sob inumeráveis formas, todas as partes da substância animada."
Hinos de Sinésio, hino 11
Mesmer viu na matéria elementar uma substância indiferente tanto
ao movimento quanto ao repouso. Submetida ao movimento é volátil,
de volta ao repouso é fixa, e ele não compreendeu que o movimento
é inerente à substância primeira, que resulta não
de, sua indiferença, mas de sua aptidão combinada a um movimento
e a um repouso equilibrados um pelo outro: que o repouso não está
em nenhuma parte na matéria uníversalmente viva, mas que o fixo
atrai o volátil para fixá~lo, enquanto o volátil corrói
o fixo para volatilizá-lo. Que o pretenso repouso das partículas
aparentemente fixadas é somente uma luta mais encarniçada e uma
tensão maior de suas forças fluídicas que se imobilizam
neutralizando-se. É assim que, segundo Hermes, o que está no alto
é como o que está embaixo, a mesma força que dilata o vapor
contrai e endurece o gelo; tudo obedece às leis da vida inerentes à
substância primeira; essa substância atrai e repele e coagula-se
e dissolve-se numa constante harmonia; é dupla; é andrógina;
abraça-se e fecunda-se; luta, triunfa, destrui, renova, mas nunca se
abandona à inércia, pois a inércia seria a morte para ela.
É essa substância primeira que se designa na narrativa hierática
do Gênesis, quando o verbo dos Eloim faz a luz ordenando-lhe que seja.
Eloim diz: Que seja a luz, e a luz foi.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
62
Essa luz,cujo nome hebreu é r u t, or, é o ouro fluido e vivo
da filosofia hermética. Seu princípio positivo é o enxofre
deles; seu princípio negativo, o mercúrio, e seus princípios
equilibrados formam o que eles denominaram seu sal.
Seria preciso, pois, em vez do sexto aforismo de Mesmer assim concebido:
"A matéria é indiferente a estar em movimento ou a estar
em repouso."
Estabelecer este:
A matéria universal é necessária ao movimento por sua dupla
magnetização e procura fatalmente o equilíbrio.
E deste deduzir os seguintes:
A regularidade e a variedade no movimento resultam das combinações
diversas do equilíbrio. Um ponto equilibrado por todos os lados permanece
imóvel pelo próprio fato de ser dotado de movimento.
O fluido é uma matéria em grande movimento e sempre agitada pela
variação dos equilíbrios. O sólido é a mesma
matéria em pequeno movimento ou em repouso aparente, porque está
mais ou menos equilibrada.
Não há corpo sólido que não possa ser imediatamente
pulverizado, esvair-se em fumaça e tornar-se invisível, se o equilíbrio
de suas moléculas viesse a cessar de repente. Não há corpo
fluido que não possa tornar-se num segundo mais duro que o diamante,
sim se pudesse equilibrar imediatamente suas moléculas constitutivas.
Dirigir os ímãs, portanto, é destruir ou criar as formas,
é produzir em aparência ou anular os corpos, é exercer a
onipotência da natureza.
Nosso mediador plástico é um ímã que atrai ou repele
a luz astral sob a pressão da vontade. É um corpo luminoso que
reproduz com a maior facilidade as formas correspondentes às idéias.
É o espelho da imaginação. Esse corpo alimenta-se de luz
astral, exatamente como o corpo orgânico alimenta-se dos produtos da terra.
Durante o sono ele absorve a luz por imersão e, durante a vigília,
por uma espécie de respiração mais ou menos lenta. Quando
se produzem os fenômenos do sonambulismo natural, o mediador plástico
está sobrecarregado por uma alimentação que digere mal.
A vontade, então, embora ligada pelo torpor do sono, impele instintivamente
o mediador em direção aos órgãos para liberá-lo,
e produz-se uma reação, de certa forma mecânica, que equilibra
pelo movimento do corpo a luz do mediador. É por isso que é tão
perigoso acordar os sonâmbulos com um sobressalto, pois o mediador ingurgitado
pode, então, retirar-se subitamente para o reservatório comum
e abandonar inteiramente os órgãos que se encontram, nesse momento,
separados da alma, o que ocasiona a morte.
O estado de sonambulismo, seja natural, seja factício, é, pois,
extremamente perigoso, porque, ao reunir os fenômenos da vigília
aos do sono, constitui uma espécie de grande lacuna entre dois mundos.
Ao movimentar as moias da vida particular, a alma, banhando-se na vida universal,
experimenta um bem-estar indizível e abandonaria de bom grado as ramificações
nervosas que a mantêm suspensa acima da corrente. Nos êxtases de
todos os tipos a situação é a mesma. Se a vontade aí
mergulha num esforço apaixonado ou mesmo se a isso se abandona inteiramente,
o sujeito pode ficar idiota, paralisado ou morrer.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
63
As alucinações e as visões resultam de ferimentos causados
ao mediador plástico e de sua paralisia local. Ora ele cessa de irradiar
e substitui as realidades mostradas pela luz por imagens de algum modo condensadas,
ora irradia com muita força e condensa-se fora, em torno de alguma morada
fortuita e desregulada, como o sangue nas excrescências da carne, então
as quimeras do nosso cérebro tomam um corpo e parecem tomar uma alma,
parecemos a nós mesmos radiosos ou disformes como o ideal de nossos desejos
ou de nossos temores. Sendo as alucinações sonhos de pessoas acordadas,
supõem sempre um estado análogo ao sonambulismo, porém
em sentido contrário; o sonambulismo é o sono tomando emprestado
ao despertar seus fenômenos; a alucinação é a vigília
sujeita ainda em parte à embriaguez astral do sono.
Nossos corpos fluídicos atraem-se e repelem-se uns aos outros, segundo
leis consoantes às da eletricidade. É o que produz as simpatias
e as antipatias instintivas. Equilibram-se, assim, uns aos outros, e é
por isso que as alucinações são frequentemente contagiosas;
as projeções anormais mudam as correntes luminosas; a perturbação
de um doente ganha as naturezas mais sensitivas, um círculo de ilusões
estabelece-se e toda uma multidão é facilmente arrastada para
ele. É a história das aparições estranhas e dos
prodígios populares. Assim explicam-se os milagres dos médiuns
da América e as vertigens dos giradores de mesa, que reproduzem em nossos
dias os êxtases dos dervixes giradores. Os bruxos lapões com seus
tambores mágicos e os malabaristas curandeiros chegam a resultados parecidos
por procedimentos semelhantes; seus deuses ou seus diabos em nada contribuem.
Os loucos e os idiotas são mais sensíveis ao magnetismo do que
as pessoas sãs de espírito; deve-se compreender a razão
disso; é preciso pouco para virar completamente a cabeça de um
homem embriagado, e contrai-se mais facilmente uma doença quando todos
os órgãos estão predispostos a sofrerem suas impressões
e a manifestarem suas desordens. As doenças fluídicas têm
suas crises fatais. Toda tensão anormal do aparelho nervoso termina em
tensão contrária segundo as leis necessárias do equilíbrio.
Um amor exagerado transforma-se em aversão, e todo ódio exaltado
está bem próximo do amor; a reação dá-se
frequentemente com o estrondo e a violência do raio. A ignorância,
então, desola-se e indigna-se; a ciência resigna-se e cala-se.
Há dois amores, o do coração e o da mente, o amor do coração
nunca se exalta, recolhe-se e cresce lentamente pelas provações
e pelos sacrifícios; o amor da mente, puramente nervoso e apaixonado,
vive apenas de entusiasmo, vai contra todos os deveres, trata o objeto amado
como coisa conquistada, é egoísta, exigente, inquieto, tirânico
e traz fatalmente consigo o suicídio por catástrofe final ou o
adultério por remédio. Esses fenômenos são constantes
como a natureza, inexoráveis como a fatalidade.
Uma jovem artista cheia de futuro e de coragem tinha por marido um homem de
bem, um pesquisador científico, um poeta a quem não podia reprovar
senão um excesso de amor por ela, abandonou-o ultrajandoo e, desde então,
continua a odiá-lo. No entanto, ela também é uma boa mulher,
mas o mundo impiedoso a julga e condena. Todavia, não é agora
que ela é culpada. Sua culpa, se é permitido lhe imputar alguma,
foi em primeiro lugar ter amado louca e apaixonadamente seu marido.
Mas, dir-se-á, a alma humana então não é livre?
" Não, ela não o é mais desde que se abandona à
vertigem das paixões. Apenas a sabedoria é livre, as paixões
desordenadas são o domínio da loucura, e a loucura é a
fatalidade. O que dissemos do amor pode-se dizer também da religião,
que é o mais poderoso mas também o mais inebriante dos amores.
A paixão religiosa tem também seus excessos e suas reações
fatais.
Pode-se ter êxtases e estigmas, como São Francisco de Assis, e
cair em seguida em abismos de
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
64
devassidão e impiedade.
As naturezas apaixonadas são ímãs exaltados, atraem ou
repelem com força. Podemos magnetizar de duas maneiras: primeiramente,
agindo pela vontade sobre o mediador plástico de outra pessoa, cuja vontade
e atos encontram-se, por conseguinte, subordinados a essa ação.
Em segundo lugar, agindo pela vontade de uma pessoa, seja por intimidação,
seja por persuasão, para que a vontade impressionada modifique, segundo
nosso desejo, o mediador plástico e os atos dessa pessoa.
Magnetiza-se pela irradiação, pelo contato, pelo olhar e pela
palavra. As vibrações da voz modificam o movimento da luz astral
e são um veículo poderoso do magnetismo.
O sopro quente magnetiza positivamente, e o sopro frio magnetiza negativamente.
Uma insuflação quente e prolongada na coluna vertebral, abaixo
do cerebelo, pode ocasionar fenômenos eróticos.
Se for colocada a mão direita sobre a cabeça e a mão esquerda
sob os pés de uma pessoa envolta em lã ou em seda, ela será
inteiramente atravessada por uma fagulha magnética, e pode-se ocasionar
uma revolução nervosa em seu organismo com a rapidez de um raio.
Os passes magnéticos servem apenas para dirigir a vontade do magnetizador,
confirmando-a através de atos. São sinais e nada além disso.
O ato da vontade é expresso, e não operado, por esses sinais.
O carvão em pó absorve e retém a luz astral. É o
que explica o espelho mágico de Dupotet. Figuras desenhadas a carvão
aparecem luminosas para uma pessoa magnetizada e tomam para ela, segundo a direção
dada pela vontade do magnetizador, as mais graciosas ou as mais aterrorizantes
formas.
A luz astral, ou melhor, vital do mediador plástico, absorvida pelo carvão,
torna-se totalmente negativa; é por isso que os animais que a eletricidade
atormenta, como por exemplo os gatos, gostam de rolar-se no carvão. A
medicina, um dia, utilizará essa propriedade, e as pessoas nervosas encontrarão
aí um grande alívio.
Capítulo II
A vida e a morte. A vigília e o sono
O sono é uma morte incompleta; a morte é um sono perfeito. A natureza
submete-nos ao sono para habituar-nos à idéia da morte, e adverte-nos
por meio dos sonhos sobre a persistência de uma outra vida.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
65
A luz astral em que o sono nos mergulha é como um oceano onde flutuam
inumeráveis imagens, restos das existências naufragadas, miragens
e reflexos daquelas que passam, pressentimentos daquelas que vão nascer.
Nossa disposição nervosa atrai-nos para aquelas imagens que correspondem
à nossa agitação, à nossa fadiga especial, como
um ímã colocado em meio a detritos metálicos atrairia e
escolheria, sobretudo, a limalha de ferro.
Os sonhos revelam-nos a doença ou a saúde, a calma ou a agitação
de nosso mediador plástico e, por conseguinte, também de nosso
aparelho nervoso.
Formulam nossos presentimentos por meio da analogia das imagens.
Pois todas as idéias têm um duplo signo para nós, relativo
à nossa dupla vida. Existe uma língua do sono, de que é
impossível, no estado de vigília, compreender e até mesmo
reunir as palavras.
A língua do sono é a da natureza, hieroglífica em seus
caracteres e ritmada apenas em seus sons.
O sono pode ser vertiginoso ou lúcido.
A loucura é um estado permanente de sonambulismo vertiginoso.
Uma comoção violenta pode despertar os loucos, assim como pode
matá-los.
As alucinações, quando trazem consigo a adesão da inteligência,
são acessos passageiros de loucura. Toda fadiga do espírito provoca
o sono; mas, se a fadiga é acompanhada de irritação nervosa,
o sono pode ser incompleto e tomar os caracteres do sonambulismo. Adormece-se
por vezes sem disso se aperceber em meio à vida real, e então,
em vez de pensar, sonha-se.
Por que temos reminiscências de coisas que nunca nos aconteceram? É
que as sonhamos acordados. Esse fenômeno do sono involuntário e
não sentido, que atravessa de repente a vida real, produz-se freqüentemente
em todos aqueles que superexcitam seu organismo nervoso com excessos, quer de
trabalho, quer de vigílias, quer de bebida, quer de um eretismo qualquer.
Os monomaníacos dormem quando se entregam a atos insensatos, e não
têm mais consciência de nada ao acordarem.
Quando Papavoine foi preso pelos soldados, disse-lhes tranqüilamente estas
palavras notáveis:
" Vós tomais o outro por mim.
Era ainda o sonâmbulo que falava.
Edgar Poe, esse gênio infeliz que se embriagava, descreveu de um modo
terrível o sonambulismo dos monomaníacos. Ora é um assassino
que ouve, e acredita que todo o mundo ouve, o coração de sua vítima
bater através das lajes do túmulo, ora é um envenenador
que, por força de dizer a si mesmo: Estou em segurança, contanto
que não vá denunciar a mim mesmo, termina por sonhar em voz alta
que se denuncia e denuncia-se de fato.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
66
Edgar Poe não inventou ele próprio nem os personagens nem os fatos
de seus estranhos contos, sonhou-os acordado, e é por isso que tão
bem lhes dá as cores de uma horrível realidade. O doutor Brière
de Boismont, em sua notável obra sobre as Alucinações,
conta a história de um inglês, aliás muito sensato, que
acreditava ter encontrado um homem com quem travara conhecimento; este o conduzira
a almoçar em sua taberna, depois, tendo-o convidado a visitar a Igreja
de São Paulo, tentara precipitá-lo do alto da torre onde haviam
subido juntos. Desde esse momento, o inglês estava obcecado por esse desconhecido,
que apenas ele podia ver, e que reencontrava sempre quando estava só
e acabava de jantar bem. Os abismos atraem; a embriaguez chama a embriaguez;
a loucura possui irresistíveis atrativos para a loucura. Quando um homem
sucumbe ao sono, abomina tudo o que poderia acordá-lo. Acontece o mesmo
com os alucinados, os sonâmbulos extáticos, os maníacos,
os epiléticos e todos aqueles que se abandonam ao delírio de uma
paixão. Eles ouviram a música fatal, entraram na dança
macabra e sentem-se arrastados no turbilhão da vertigem. Vós lhes
falais, não vos ouvem mais, vós os advertis, não vos compreendem
mais, mas vossa voz os importuna; têm sono do sono da morte. A morte é
uma corrente que arrasta, um precipício que absorve, mas de cujas profundezas
o menor movimento vos pode trazer de volta. Sendo a força de repulsão
igual à de atração, freqüentemente, no instante mesmo
de expirar, fica-se violentamente preso à vida, freqüentemente também,
pela mesma lei de equilíbrio, passa-se do sono à morte; por complacência
para com o sono. Um bote balança-se próximo às margens
do lago. A criança nele entra, a água brilhante de mil reflexos
dança à sua volta chamando-a, a corrente que retém o barco
estira-se e parece querer romper-se; um pássaro maravilhoso lança-se,
então, da margem e plana cantando sobre as ondas alegres; a criança
quer segui-lo, leva a mão à corrente, solta o elo. A Antigüidade
adivinhara o mistério da morte atraente e representara-o na fábula
de Hilas. Cansado após uma longa navegação, Hilas chega
a uma ilha florida, aproxima-se de uma fonte para retirar água, uma miragem
graciosa lhe sorri; ele vê uma ninfa estender-lhe os braços, os
seus enfraquecem e não podem retirar o cântaro pesado; o frescor
da fonte adormece-o, os perfumes da margem embriagam-no, ei-lo debruçado
sobre a água como um narciso cuja haste fosse quebrada por uma criança
a brincar; o cântaro cheio cai ao fundo e Hilas segue-o, morre sonhando
com ninfas que o acariciam, e não ouve mais a voz de Hércules
que o chama de volta aos trabalhos da vida, e que percorre todas as margens
gritando mil vezes: Hilas, Hilas!
Outra fábula, não menos comovente, que sai das sombras da iniciação
órfica, é a de Eurídice chamada de volta à vida
pelos milagres da harmonia e do amor, Eurídice, esta sensitiva rompida
no próprio dia de seu casamento e que se refugiou na tumba ainda trêmula
de pudor! Logo, ela ouve a lira de Orfeu, e lentamente sobe em direção
à luz; as terríveis divindades do Érebo não ousam
fechar-lhe a passagem. Ela segue o poeta, ou antes, a poesia que ela adora...
Mas ai do amante se mudar a corrente magnética e se seguir, com um único
olhar, aquela que ele deve somente atrair! O amor sagrado, o amor virginal,
o amor mais forte que o túmulo busca apenas a dedicação
e foge desvairado diante do egoísmo do desejo. Orfeu sabe disso, mas
por um instante esquece. Eurídice, em suas brancas vestes de noiva, está
deitada no leito nupcial, ele, sob as vestimentas de grande hierofante, está
em pé, a lira nas mãos, a cabeça coroada com os louros
sagrados, os olhos voltados para o Oriente, e canta. Canta as flechas luminosas
do amor que atravessam as sombras do antigo caos, as ondas da doce claridade
escorrendo da teta negra da mãe dos deuses, Eros e Ânteros. Adônis
que volta à vida para escutar os lamentos de Vênus e que se reanima
como uma flor sob o orvalho brilhante de suas lágrimas; Castor e Pólux
que a morte não pôde desunir e que se amam ora no inferno, ora
na terra... Depois ele chama suavemente Eurídice, sua querida Eurídice,
sua Eurídice tão amada:
Ah! miseram Eurydicen animâ fugiente vocabat,
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
67
Eurydicen! toto referebant flumine ripae.
Enquanto ele canta, aquela pálida estátua que a morte fez colore-se
com as primeiras nuanças da vida, seus lábios brancos começam
a avermelhar-se como a aurora da manhã... Orfeu a vê, treme, balbucia,
o hino vai expirar em sua boca, mas ela empalidece novamente; então o
grande hierofante tira de sua lira cantos dilacerantes e sublimes, não
olha mais senão para o céu, chora, implora, e Eurídice
abre os olhos... Infeliz! não olhes para ela, canta ainda, não
afugentes a borboleta de Psiquê, que quer pousar nesta flor!... Mas o
insensato viu o olhar da ressuscitada, o grande hierofante cede à embriaguez
do amante, a lira cai de suas mãos, olha Eurídice, corre em sua
direção... Aperta-a em seus braços e a encontra ainda gelada,
seus olhos tornaram a fechar-se, seus lábios estão mais pálidos
e mais frios do que nunca, a sensitiva estremeceu, e o vínculo delicado
da alma rompeu-se novamente e para sempre... Eurídice está morta
e os hinos de Orfeu não mais a trarão de volta à vida.
Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, ousamos dizer que a ressurreição
dos mortos não é um fenômeno impossível na própria
ordem da natureza, e nisso não negamos nem contradissemos de nenhum modo
a fé fatal da morte. Uma morte que pode cessar é apenas uma letargia
e um sono, mas é sempre pela letargia e pelo sono que a morte começa.
O estado de quietude profunda que se sucede, nesse momento, às agitações
da vida leva então a alma distendida e dormente, não se pode fazê-la
voltar, forçá-la a novamente mergulhar, senão excitando
violentamente todas as suas feições e todos os seus desejos. Quando
Jesus, o Salvador do mundo, estava na terra, a terra era mais bela e mais desejável
do que o céu, e no entanto, para acordar a filha de Jairo, Jesus precisou
gritar e sacudi-la. Foi a poder de frémitos e de lágrimas que
chamou de volta do túmulo o amigo Lázaro, tão difícil
é interromper uma alma cansada que dorme o seu primeiro sono! Todavia,
o rosto da morte não tem a mesma serenidade para todas as almas que o
contemplam; quando se teve frustrado o objetivo da vida, quando se levam consigo
cobiças desenfreadas ou ódios insaciados, a eternidade aparece
para a alma ignorante ou culpada com tão formidáveis proporções
de dores que ela tenta algumas vezes lançar-se novamente na vida mortal.
Quantas almas assim agitadas pelo pesadelo do inferno refugiaram-se em seus
corpos gelados e já cobertos pelo mármore da tumba! Foram encontrados
esqueletos revirados, convulsos, retorcidos, e foi dito: Aí estão
homens que foram enterrados vivos. Enganavam-se frequentemente, e bem podiam
ser retomados da morte, ressuscitados da sepultura que, por se terem abandonado
completamente às angústias do limiar da eternidade, com ela foram
ter por duas vezes.
Um magrietista célebre, o barão Dupotet, ensina no seu livro secreto
sobre a Magia que se pode matar pelo magnetismo como pela eletricidade. Essa
revelação nada tem de estranho para quem conhece bem as analogias
da natureza. É certo que, dilatando-se além dos limites-ou coagulando-se
repentinamente o mediador plástico de um sujeito, pode-se separar sua
alma de seu corpo. Basta algumas vezes provocar numa pessoa uma violenta cólera
ou um enorme susto para matá-la subitamente.
O uso habitual do magnetismo geralmente coloca o sujeito que a ele se abandona
à mercê do magnetizador. Quando a comunicação é
bem estabelecida, quando o magnetizador pode produzir à vontade o sono,
a insensibilidade, a catalepsia, etc., só lhe custaria um esforço
a mais trazer também a morte.
Contaram-nos, como verdadeira, uma história de que todavia não
garantimos a autenticidade.
Vamos contá-la porque pode ser verdadeira.
Pessoas que duvidavam ao mesmo tempo da religião e do magnetismo, desses
incrédulos que se prestam a todas as superstições e a todos
os fanatismos, haviam convencido, a peso de ouro, uma pobre moça a submeter-se
às suas experiências. Era uma natureza impressionável e
nervosa, cansada além disso pelos excessos de uma vida mais do que irregular,
e já enojada da existência. Adormecem-na; ordenam-lhe que veja;
ela chora e debate-se. Falam-lhe de Deus.... tremem-lhe todos os membros.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
68
" Não - diz ela -, ele me dá medo; não quero olhar
para ele.
" Olhe para ele, eu quero.
Ela abre então os olhos; suas pupilas dilatam-se; fica apavorante.
" O que você está vendo?
" Não consigo dizer... Oh! por misericórdia, por misericórdia,
acordem-me!
" Não, olhe e diga o que está vendo.
" Vejo uma noite negra em que turbilhonam fagulhas de todas as cores em
volta de dois grandes olhos que se movem sem parar. Desses olhos saem raios
que se enrolam em serpentinas e ocupam todo o espaço... Oh! isso me dói!
acordem-me!
" Não, olhe.
" Para onde mais querem que eu olhe?
" Olhe dentro do paraíso.
" Não, não posso subir até lá; a grande noite
me rechaça e volto sempre a cair.
" Então olhe dentro do inferno.
Aí, a sonâmbula agita-se convulsivamente.
" Não! Não! - grita soluçando -, não quero;
me daria vertigem; cairia. Oh! segurem-me! detenham-me!
" Não, desça.
" Aonde querem que eu desça?
" Ao inferno.
" É horrível! Não, não, não quero ir!
" Vá.
" Misericórdia!
" Vá, eu quero.
As feições da sonâmbula ficam terríveis de se ver;
os cabelos em pé; os olhos esbugalhados só mostram o branco; o
peito arfa e deixa escapar um som rouco.
" Vá até lá, eu quero - repete o magnetizador.
" Estou aqui - diz entre dentes a infeliz, caindo esgotada. Depois, não
responde mais; a cabeça inerte tomba sobre os ombros; os braços
pendem ao longo do corpo. Aproximam-se dela; tocam-na. Querem, já tarde
demais, acordá-la; o crime estava consumado; a mulher estava morta e
os autores dessa experiência sacrílega, graças à
incredulidade pública em matéria de magnetismo, não foram
perseguidos. Coube à autoridade atestar um óbito, e a morte foi
atribuída à ruptura de um aneurisma. O corpo, aliás, não
tinha nenhuma marca de violência; mandaram-no enterrar e encerrou-se o
caso.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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Eis um outro caso que nos foi contado por companheiros da Volta à França.
Dois companheiros hospedavarn-se no mesmo albergue e dividiam o mesmo quarto.
Um dos dois tinha o hábito de falar dormindo, quando então respondia
às perguntas que seu colega lhe fazia. Uma noite, ele começa,
de repente, a soltar gritos sufocados, o outro companheiro acorda e pergunta-lhe
o que está havendo.
" Mas então você não está vendo - diz o que
está dormindo não está vendo esta pedra enorme... está
se soltando da montanha... está caindo sobre mim, vai me esmagar.
" Pois então fuja!
" Impossível, meus pés estão enroscados num espinheiro
que se aperta cada vez mais... Ai! Socorro! lá... lá está
a grande pedra que vem para cima de mim.
" Toma, aqui está ela! - diz rindo o outro, que lhe atira na cabeça
o travesseiro para acordá-lo.
Um grito terrível, subitamente sufocado na garganta, uma convulsão,
um suspiro, depois mais nada. O desastrado brincalhão levanta-se, puxa
o colega pelo braço, chama-o, assusta-se por sua vez, grita, alguém
traz uma luz... o infeliz sonâmbulo estava morto.
Capítulo III
Mistérios das alucinações e da evocação dos
espíritos
Uma alucinação é um ilusão produzida por um movimento
irregular da luz astral.
É, como dissemos antes, a mistura dos fenômenos do sono aos da
vigília. Nosso mediador plástico aspira e respira a luz astral
ou a alma vital da terra, como nosso corpo aspira e respira a atmosfera terrestre.
Ora, do mesmo modo que em alguns lugares o ar é impuro e irrespirável,
também algumas circunstâncias fenomenais podem tornar a luz astral
malsã e não assimilável.
Tal ar também pode ser muito vivo para algumas pessoas e convir perfeitamente
a outras, sendo assim também com a luz magnética.
O mediador plástico assemelha-se a uma estátua metálica
permanentemente em fusão. Se o molde está defeituoso, ela torna-se
disforme; se o molde se quebra, ela foge. O molde do mediador plástico
é a força vital equilibrada e polarizada. Nosso corpo, por meio
do sistema nervoso, atrai e retém essa forma fugidia de luz especificada;
mas a fadiga local ou a superexcitação parcial do aparelho pode
ocasionar disformidades fluídicas. Essas disformidades alteram parcialmente
o espelho da imaginação e ocasionam alucinações
habituais próprias aos visionários extáticos.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
70
O mediador plástico, feito à imagem e semelhança de nosso
corpo, cujos órgãos reproduz luminosamente, tem visão,
tato, audição, olfato e paladar que lhe são próprios;
pode, quando está superexcitado, comunicá-los por vibrações
ao aparelho nervoso, de tal modo que a alucinação seja completa.
A imaginação parece, então, triunfar sobre a própria
natureza e produz fenômenos verdadeiramente estranhos. O corpo material
inundado de fluido parece participar das qualidades fluídicas, escapa
às leis da gravidade, torna-se momentaneamente invulnerável e
mesmo invisível num círculo de alucinados por contágio.
Sabe-se que os convulsionários de São Medardo deixavam-se atenazar,
espancar, triturar, crucificar, sem que sentissem nenhuma dor, que se erguiam
do chão, andavam de cabeça para baixo, comiam alfinetes e os digeriam.
Achamos oportuno relatar aqui o que publicamos no jornal O Estafeta sobre os
prodígios do médium americano Home e sobre vários fenômenos
da mesma ordem. Nunca fomos, nós mesmos, testemunhas dos milagres do
senhor Home, mas nossas informações vêm das melhores fontes,
recolhemo-nas numa casa onde o médium americano foi acolhido com benevolência
quando estava infeliz, e com indulgência quando chegou a tomar sua doença
por uma felicidade e uma ventura. É a casa de uma senhora nascida na
Polônia, mas três vezes francesa pela nobreza de seu coração,
pelos encantos inefáveis de seu espírito e pela celebridade européia
de seu nome.
A publicação dessas informações no Estafeta atraiu-nos,
sem que saibamos bem por quê, as injúrias de um senhor De Pène,
conhecido, desde então, por seu duelo infeliz. Lembramo-nos, na ocasião,
da fábula de La Fontaine sobre o louco que atirava pedras num sábio.
O senhor De Pène tratava-nos de "padre que abandonou a batina"
e de mau católico. Mostramo-nos pelo menos bom cristão compadecendo-nos
dele e perdoando-o, e, como é impossível ser "padre que abandonou
a batina" sem nunca ter sido padre, deixamos cair por terra uma injúria
que não nos atingia. Na semana passada, o senhor Home queria mais uma
vez deixar Paris, essa Paris onde, se os próprios anjos e demônios
aparecessem sob uma forma qualquer, não passariam muito tempo por seres
maravilhosos, e nada melhor teriam a fazer senão retornar logo ao céu
ou ao inferno, para escapar ao esquecimento e ao abandono dos humanos.
O sr. Home, com ar triste e desiludido, despedia-se, então, de uma nobre
dama, cuja benevolente acolhida fora uma de suas primeiras alegrias na França.
Naquele dia, como sempre, a sra. B... foi gentil com ele, e quis retê-lo
para jantar; o misterioso personagem ia aceitar, quando alguém disse
que era esperado um cabalista conhecido no mundo das ciências ocultas
pela publicação de um livro intitulado Dogma e Ritual da Alta
Magia; as feições do sr. Home alteraram-se de repente, e ele declarou
balbuciando e com uma visível perturbação que não
podia ficar e que a aproximação daquele professor de magia causava-lhe
um insuperável terror. Tudo o que lhe disseram para tranqüilizá-lo
foi inútil. - Não julgo esse homem - dizia ele -, nem afirmo que
ele seja bom ou mau, nada sei sobre isso, mas sua atmosfera me faz mal, perto
dele me sentiria sem forças e como que sem vida.
E, depois dessa explicação, o sr. Home apressou-se a despedir-se
e a sair.
Esse terror dos homens de prestígio em presença dos verdadeiros
iniciados à ciência não é um fato
novo nos anais do ocultismo. Pode-se ler em Filóstrato a história
da estrige que treme ao ouvir
chegar Apolônio de Tiana. Nosso admirável escritor Alexandre Dumas
dramatizou essa lenda
mágica no belo resumo de todas as lendas que serviria de prólogo
à sua grande epopéia romanesca
do Judeu Errante. A cena passa-se em Corinto; é uma cerimônia de
casamento antiga com belas
crianças coroadas de flores que carregam archotes nupciais e cantam epitalâmios
graciosos e ornados
de voluptuosas imagens como as poesias de Catulo. A noiva está linda,
em suas castas vestes, como
a Polímnia antiga; está amorosa e deliciosamente provocante em
seu pudor, como uma Vênus de
Corrégio ou uma Graça de Cânova. Aquele que ela desposa
é Clínias, um discípulo do célebre
Apolônio de Tiana. O mestre prometeu vir às núpcias de seu
discípulo, mas não vem, e a bela noiva
respira mais aliviada, pois teme Apolônio. No entanto, o dia não
acabou. É chegada a hora do leito
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
71
nupcial, e de repente Méroe treme, empalidece, olha fixamente em direção
à porta, estende a mão aterrorizada e diz numa voz sufocada: "Ei-lo!
é ele!" É Apolônio de fato. Eis o mago, eis o mestre:
a hora dos encantamentos passou, os prestígios caem diante da verdadeira
ciência. Procura-se a bela noiva, a branca Méroe, e vê-se
apenas uma velha mulher, a bruxa Canídie, a devoradora de criancinhas.
Clínias está desiludido, agradece seu mestre; está salvo.
O vulgo sempre se enganou sobre a magia, e confunde os adeptos com os encantadores.
A verdadeira magia, isto é, a ciência tradicional, dos magos, é
inimiga mortal dos encantamentos; ela impede ou faz cessar os falsos milagres,
hostis à luz e fascinadores de um pequeno número de testemunhas
preparadas ou crédulos. A desordem aparente nas leis da natureza é
uma mentira; não é, pois, uma maravilha. A maravilha verdadeira,
o verdadeiro prodígio sempre resplandecente aos olhos de todos é
a harmonia sempre constante dos efeitos e das causas; são os esplendores
da ordem eterna! Não saberíamos dizer se Cagliostro teria feito
milagres diante de Swedenborg, mas teria certamente temido a presença
de Paracelso e de Henri Khunrath, se esses dois grandes homens tivessem sido
seus contemporâneos.
Longe de nós, no entanto, a idéia de denunciar o sr. Home como
um bruxo de baixa categoria, isto é, um charlatão. O célebre
médium americano é doce e ingênuo como uma criança.
É um pobre ser muito sensitivo, sem intriga e sem defesa; é o
joguete de uma força terrível que ele ignora, e ele próprio
é certamente a primeira de suas vítimas.
O estudo dos estranhos fenômenos que se produzem em torno desse moço
é da maior importância. Trata-se de rever seriamente as denegações
demasiado levianas do século XVIII, e de abrir diante da ciência
e da razão horizontes menos estreitos que os da crítica burguesa,
que nega tudo o que ainda não pode explicar. Os fatos são inexoráveis,
e a verdadeira boa fé nunca deve recear examiná-los. A explicação
desses fatos que todas as tradições obstinam-se em afirmar e que
se reproduzem diante de nós com uma incômoda publicidade, essa
explicação, antiga como os próprios fatos, rigorosa como
a matemática, mas pela primeira vez tirada das sombras onde a escondiam
os hierofantes de todas as idades, seria um grande evento científico,
se pudesse obter bastante luz e publicidade. Vamos talvez preparar esse evento,
pois não nos seria permitido a esperança audaciosa de concluí-lo.
Em primeiro lugar, eis os fatos em toda sua singularidade. Comprovamo-os e vamos
restabelecê-los com uma rigorosa exatidão abstendo-nos, inicialmente,
de qualquer explicação ou comentário. O sr. Home está
sujeito a êxtases que o põem, segundo ele, em contato diretamente
com a alma de sua mãe, e, pela intermediação desta, com
todo o mundo dos espíritos. Descreve, como os sonâmbulos de Cahagnet,
pessoas que nunca viu e que são reconhecidas pelos que as evocam; vos
dirá mesmo seus nomes e responderá de sua parte a perguntas que
só podem ser compreendidas por elas e por vós mesmos.
Quando ele está num apartamento, ruídos inexplicáveis fazem-se
ouvir. Batidas violentas ecoam nos móveis e nas paredes; algumas vezes
as portas e as janelas abrem-se como se fossem impelidas por uma tempestade;
fora, chega-se a ouvir o vento e a chuva; ao sair, o céu está
sem nuvens, e não se sente nem o mais leve sopro de vento.
Os móveis são erguidos e deslocados sem que ninguém os
toque.
Lápis escrevem sozinhos. A caligrafia é a do sr. Home, e cometem
os mesmos erros que ele. As pessoas presentes sentem-se tocar e agarrar por
mãos invisíveis. Esses contatos, que parecem escolher as damas,
carecem de seriedade, e por vezes mesmo de conveniência, em sua aplicação.
Pensamos que nos compreendem o suficiente.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
72
Mãos visíveis e tangíveis saem ou parecem sair das mesas,
mas para isso é preciso que as mesas estejam cobertas. São necessários
alguns preparativos ao agente invisível, assim como aos mais hábeis
sucessores de Robert Houdin.
Essas mãos mostram-se sobretudo na escuridão; são quentes
e fosforescentes ou frias e negras. Escrevem tolices ou tocam piano; e quando
tocam piano é preciso vir o afinador, pois seu contado é sempre
fatal à afinação do instrumento.
Um dos mais recomendáveis personagens da Inglaterra, sir Edward Bulwer
Lytton, viu e tocou essas mãos; lemos a declaração escrita
e assinada por ele. Declara mesmo tê-las apertado e puxado para si com
toda a força, para fazer saírem do seu esconderijo os braços
a que naturalmente elas deviam estar ligadas. Mas a coisa invisível foi
mais forte do que o romancista inglês, e as mãos escaparam-lhe.
Um fidalgo russo, que foi o protetor do senhor Home e cujo caráter e
boa fé não poderiam ser alvo de nenhuma dúvida, o conde
A.B... também viu e apertou vigorosamente as mãos misteriosas.
Eram, disse ele, formas perfeitas de mãos humanas, quentes e vivas; só
que não se sentiam os ossos. Cerradas num aperto inevitável, as
mãos não lutaram para escapar, mas diminuíram, fundiram-se
de algum modo, e o conde acabou por nada mais segurar.
Outras pessoas que viram e tocaram essas mãos dizem que os dedos são
inchados e rígidos, e comparam-nos a luvas de borracha cheias de um ar
fosforescente e quente. Por vezes, no lugar de mãos, são pés
que se exibem, todavia, nunca a descoberto. O espírito, a quem provavelmente
faltam sapatos, respeita ao menos nisso a delicadeza das damas, e nunca mostra
seu pé a não ser sob um cortinado ou uma toalha.
A aparição desses pés cansa e assusta muito o senhor Home.
Ele procura então aproximar-se de alguma pessoa saudável, agarra-a
como se temesse afogar-se; e a pessoa assim agarrada pelo médium sente-se
de repente num estado singular de esgotamento e debilidade. Um fidalgo polonês,
que assistia a uma das sessões do senhor Home, colocara no chão
entre seus pés um lápis sobre um papel, e pedira um sinal da presença
do espírito. Durante alguns instantes nada se moveu. De repente, o lápis
foi lançado ao outro extremo do apartamento. O fidalgo abaixou-se, pegou
o papel e viu aí três signos cabalísticos que ninguém
compreendia. Só o senhor Home, ao vê-los, pareceu experimentar
uma grande contrariedade e manifestou um certo temor; porém recusou-se
a explicar a natureza e a significação desses caracteres. Guardaram-nos,
então, e trouxeram-nos para este professor de magia, cuja aproximação
o médium tanto receara. Examinamo-os e aqui está sua minuciosa
descrição.
Estavam desenhados com força e o lápis quase rasgara o papel.
Estavam espalhados na folha sem ordem e sem alinhamento. O primeiro era o signo
que os iniciados egípcios geralmente colocavam na mão de Tífon.
Um tau com duplo traço vertical aberto em forma de compasso, uma cruz
com alça tendo no alto um círculo, abaixo do círculo um
duplo traço horizontal, sob o duplo traço horizontal um duplo
traço oblíquo em forma de V invertido.
O segundo caráter representava uma cruz de grande hierofante com as três
travessas hierárquicas. Esse símbolo, que remonta à mais
alta Antigüidade, é ainda o atributo de nossos soberanos pontífices
e arremata a extremidade superior de seu bastão pastoral. Mas o signo
traçado pelo lápis tinha de particular que o ramo superior, a
cabeça da cruz, era duplo e formava ainda o terrível V tifoniano,
o signo do antagonismo e da separação, o símbolo do ódio
e do combate eterno.
O terceiro caráter era o que os maçons denominam cruz filosófica,
uma cruz de quatro ramos iguais
com um ponto em cada um dos ângulos. Porém, em vez de quatro pontos,
havia somente dois,
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
73
colocados nos dois ângulos da direita, ainda um signo de luta, de separação
e de negação. O professor, que nos será permitido distinguir
aqui do narrador e nomear na terceira pessoa, para não cansar nossos
leitores parecendo falar-lhes de nós, o professor, pois, mestre Eliphas
Levi, deu às pessoas reunidas na sala da senhora B... a explicação
científica das três assinaturas, e eis o que ele disse:
"Estes três signos pertencem à série dos hieróglifos
sagrados e primitivos conhecidos somente pelos iniciados da primeira ordem,
o primeiro é a assinatura de Tífon. Ele exprime a blasfêmia
desse espírito do mal estabelecendo o dualismo no princípio criador.
Pois a cruz com alça de Osíris é um linga invertido, e
representa a força paterna e ativa de Deus (a linha vertical saindo do
círculo) fecundando a natureza passiva (a linha horizontal). Dobrar a
linha vertical é afirmar que a natureza tem dois pais; é colocar
o adultério no lugar da maternidade divina, é afirmar, ao invés
do primeiro princípio inteligente, a fatalidade cega que tem por resultado
o conflito eterno das aparências no nada; é, pois, o mais antigo,
o mais autêntico e o mais terrível de todos os estigmas do inferno.
Significa o deus ateu, é a assinatura de Satã.
"Essa primeira assinatura é hierática e refere-se aos caracteres
ocultos do mundo divino. "A segunda pertence aos hieróglifos filosóficos,
representa a medida ascensional da idéia e a extensão progressiva
da forma.
"É um triplo tau invertido, é o pensamento humano afirmando
alternativamente o absoluto nos três mundos, e esse absoluto termina aqui
por um forcado, ou seja, pelo signo da dúvida e do antagonismo. De tal
modo que, se o primeiro caráter queria dizer: Não existe Deus,
este tem por significação rigorosa: A verdade hierárquica
não existe.
"O terceiro, ou a cruz filosófica, foi em todas as iniciações
o símbolo da natureza e de suas quatro formas elementares, os quatro
pontos representam as quatro letras indizíveis e incomunicáveis
do tetragrama oculto, esta fórmula eterna do grande arcano G.'. A.'.
"Os dois pontos da direita representam a força, os da esquerda figuram
o amor, e as quatro letras devem ser lidas da direita para a esquerda começando
pelo alto à direita, e indo daí para a letra embaixo à
esquerda, e assim para as outras fazendo a cruz de Santo André. "A
supressão dos dois pontos da esquerda exprime, pois, a negação
da cruz, a negação da misericórdia e do amor.
"A afirmação do reino absoluto da força, e de seu
antagonismo eterno, de alto a baixo e de baixo ao alto.
"A glorificação da tirania e da revolta.
"O signo hieroglífico do vício imundo, que se teve ou não
razão de reprovar aos Templários, é o signo da desordem
e do desespero eternos."
Tais são, portanto, as primeiras revelações da ciência
oculta dos magos sobre esses fenômenos de manifestações
sobrenaturais. Agora, seja-nos permitido relacionar essas assinaturas estranhas
a outras aparições contemporâneas de escrituras fenomenais,
pois é um verdadeiro processo que a ciência deve instruir antes
de levá-lo ao tribunal da razão pública. É preciso,
pois, não desprezar nenhuma averiguação e nenhum indício.
Nas proximidades de Caen, em Tilly-sur-Seulles, uma série de fatos inexplicáveis
produziam-se, havia alguns anos, sob a influência de um médium
ou de um extático chamado Eugène Vintras.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
74
Algumas circunstâncias ridículas e um processo fraudulento logo
fizeram cair no esquecimento e mesmo no desprezo esse taumaturgo, atacado aliás
com violência em panfletos cujos autores eram antigos admiradores de sua
doutrina, pois o médium Vintras também dogmatiza. No entanto,
uma coisa é notável nas invectivas de que ele é alvo: é
que seus adversários, mesmo esforçando-se em condená-lo,
reconhecem a verdade de seus milagres e contentam-se em atribuí-los ao
demônio. Quais são, pois, os milagres tão autênticos
de Vintras?
Sobre esse assunto estamos melhor informados do que ninguém, como logo
se notará. Autos assinados por testemunhas honradas, artistas, médicos,
padres, aliás irrepreensíveis, foram-nos comunicados; interrogamos
testemunhas oculares, e, melhor do que isto, vimos. As coisas merecem ser contadas
com alguns detalhes.
Existe em Paris um escritor, no mínimo excêntrico, que se chama
Madrolle. É um ancião cuja família e relações
são honradas. Escreveu primeiramente no sentido católico mais
exaltado, recebeu os estímulos mais lisonjeiros das autoridades eclesiásticas
e até mesmo breves emanações da Santa Sé, depois
conheceu Vintras; e, arrastado pelo prestígio de seus milagres, tornou-se
um sectário determinado e um inimigo irreconciliável da hierarquia
e do clero. Na época em que Eliphas Levi publicava seu Dogma e Ritual
da Alta Magia, recebeu uma brochura de Madrolle que o surpreendeu. O autor sustentava
abertamente os paradoxos mais inauditos no estilo desordenado dos extáticos.
Para ele, a vida bastava para a expiação dos grandes crimes, uma
vez que ela era a conseqüência de uma sentença de morte. Os
piores homens, por serem os mais infelizes de todos, pareciam-lhe oferecer a
Deus uma expiação mais sublime. Enfurecia-se contra toda repressão
e toda danação. "Uma religião que condena", exclamava
ele, "é uma religião condenada!" Depois pregava a licença
mais absoluta sob o pretexto de caridade, e chegava até a dizer que o
ato de amor mais imperfeito e aparentemente mais repreensível valia mais
que a melhor das preces. Era o Marquês de Sade tornado pregador. Depois
negava o diabo com um entusiasmo por vezes pleno de eloqüência.
"Podeis conceber", dizia ele, "um diabo que Deus tolera, que
Deus autoriza! Conceber além disso um Deus que fez o diabo e que o deixa
atormentar criaturas já tão fracas e tão prontas a se enganarem!
Um Deus do diabo enfim, secundado, preconceituoso e mal superado em suas vinganças
por um diabo de Deus!..." O restante da brochura tinha a mesma força.
O professor de magia esteve a ponto de aterrorizar-se e tratou de conseguir
o endereço de Madrolle. Não foi sem alguma dificuldade que ele
chegou até esse singular panfletário, e eis a seguir mais ou menos
o que foi a conversa:
Eliphas Levi: - Senhor, recebi sua brochura. Venho agradecer-lhe e testemunhar-lhe
ao mesmo tempo meu espanto e meu pesar.
Madrolle: - Seu pesar, senhor! Queira explicar-se, não estou entendendo.
" Lamento profundamente, senhor, vê-lo cometer erros que outrora
eu mesmo cometi. Mas eu tinha, então, pelo menos a desculpa da inexperiência
e da juventude. Falta alcance à sua brochura porque falta-lhe medida.
Por certo sua intenção era protestar contra erros na crença,
contra abusos na moral; e acontece serem a própria crença e a
moral que o senhor ataca. A exaltação que transborda em seu pequeno
escrito deve mesmo causar-lhe muito transtorno, e alguns de seus melhores amigos
devem ter-se preocupado com seu estado de saúde...
" Sem dúvida! Já se disse e ainda se diz que sou louco. Mas
não é de hoje que os crentes devem suportar a loucura da cruz.
Estou exaltado porque, no meu lugar, o senhor também estaria, pois é
impossível permanecer frio na presença dos prodígios.
" Oh! Oh! o senhor está falando de prodígios, isso me interessa.
Vejamos, cá entre nós e de boa fé,
de que prodígios se trata?
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
75
" Ora! de que prodígios senão daqueles do grande profeta
Elias, que voltou à terra sob o nome de Pierre Michel.
" Estou ouvindo; o senhor quer dizer Eugène Vintras. Ouvi falar
de suas obras. Mas ele realmente faz milagres?
(Nesse momento, Madrolle dá um salto da cadeira, ergue os olhos e as
mãos para o céu, e termina por sorrir com uma condescendência
que se assemelha a uma profunda piedade.)
" Se ele faz milagres, meu senhor! E os maiores!... Os mais surpreendentes!...
Os mais incontestáveis!... Os mais verdadeiros milagres que se tenham
feito na terra desde Jesus Cristo!... Como! milhares de hóstias aparecem
sobre altares onde não havia nenhuma, o vinho brota em cálices
vazios, e não é uma ilusão, é vinho, um vinho delicioso...
ouvem-se músicas celestes, exalam-se aromas do outro mundo... e finalmente
sangue... um verdadeiro sangue humano (foi examinado por médicos!), um
sangue de verdade, estou dizendo, goteja e por vezes jorra das hóstias
deixando nelas caracteres misteriosos! Estou lhe dizendo o que vi, ouvi, toquei,
provei! E o senhor quer que eu permaneça frio diante de uma autoridade
eclesiástica que acha mais cômodo negar tudo do que examinar qualquer
coisa...!
" Com licença, meu senhor; é sobretudo em matéria
de religião que a autoridade nunca pode errar...
Em religião, o bem é a hierarquia, e o mal é a anarquia;
a que se reduziria, com efeito, a influência do sacerdócio, se
o senhor coloca como princípio que é preciso acreditar no testemunho
dos sentidos mais do que nas decisões da Igreja? A Igreja não
é mais visível do que todos os seus milagres? Os que vêem
milagres e não vêem a Igreja são bem mais dignos de compaixão
do que os cegos, pois não lhes resta nem mesmo o recurso de se deixarem
conduzir...
" Meu senhor, sei tanto quanto o senhor essas coisas. Mas Deus não
pode estar em desacordo consigo próprio. Não pode permitir que
a boa fé seja ludibriada, e a própria Igreja não poderia
decidir que sou cego quando tenho dois olhos... Ouça, eis o que se lê
nas cartas de Jan Hus, quadragésima terceira carta, no final:
"Um doutor disse-me: "Em todas as coisas submeter-me-ia ao concílio,
tudo então seria bom e legítimo para mim." Acrescentou: "Se
o concílio dissesse que tendes apenas um olho, embora tenhais dois, ainda
assim seria preciso dizer que o concílio tem razão." Quando
o mundo inteiro, respondi, afirmasse tal coisa, enquanto tivesse o uso da razão,
não poderia concordar sem ferir minha consciência." Eu lhe
direi como Jan Hus: Antes de haver uma Igreja e concílios, há
uma verdade e uma razão.
" Um momento, meu caro senhor. Antigamente o senhor era católico,
não é mais; as consciências são livres. Observarei
apenas que a instituição da infalibilidade hierárquica
em matéria de dogma é de modo bem diverso racional e bem mais
incontestavelmente verdadeira que todos os milagres do mundo. Aliás,
o que não se deve fazer para conservar a paz! Acredita o senhor que Jan
Hus não teria sido um homem bastante superior, se tivesse sacrificado
um de seus olhos à concórdia universal, ao invés de inundar
a Europa de sangue! Oh! Senhor, que a Igreja decida quando lhe aprouver que
sou caolho; só lhe peço uma graça, a de me dizer de qual
olho, para que eu possa fechá-lo e olhar através do outro, com
uma ortodoxia irrepreensível!
" Confesso que não sou ortodoxo ao seu modo.
" Estou percebendo. Mas voltemos aos prodígios! O senhor os viu,
tocou, sentiu, provou; mas, vejamos, exaltações à parte,
queira me contar um bem detalhado, bem circunstanciado, e que sobretudo seja
evidentemente um milagre. Estou sendo indiscreto ao lhe pedir isso?
" De modo nenhum; mas qual escolherei? Há tantos! Ouça -
acrescentou Madrofle após um instante de reflexão e com um leve
tremor de emoção na voz -, o profeta está em Londres e
nós estamos aqui. Pois bem! se o senhor lhe pedisse, apenas em pensamento,
que lhe enviasse imediatamente a A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas
Levi 76
comunhão e se, num lugar designado pelo senhor, em sua casa, numa peça
de roupa, num livro, o senhor encontrasse, ao voltar, uma hóstia, o que
diria?
" Declararia esse fato inexplicável pelos meios usuais da crítica.
- Pois bem, senhor! - exclama então Madrolle triunfante - no entanto,
é isso que muitas vezes me acontece; quando quero, isto é, quando
estou preparado e quando espero ser digno! Sim, senhor, encontro a hóstia
quando a peço; eu a encontro real, palpável, mas freqüentemente
decorada com pequenos corações milagrosos que se acreditaria pintados
por Rafael.
Eliphas Levi, que se sentia pouco à vontade para discutir fatos a que
se misturava uma espécie de profanação das coisas mais
veneradas, despediu-se do antigo escritor católico e saiu meditando sobre
a estranha influência desse Vintras, que modificara assim esta velha crença
e esta velha mente de sábio.
Alguns dias depois, o cabalista Eliphas foi acordado muito cedo por um visitante
desconhecido. Era um homem de cabelos brancos, todo vestido de preto, a fisionomia
de um padre extremamente devoto, de aspecto, em suma, inteiramente respeitável.
Esse eclesiástico estava munido de uma carta de recomendação
assim escrita:
"Caro Mestre,
Envio-lhe um velho sábio que deseja "arranhar" com o senhor
o hebraico da bruxaria. Receba-o como eu mesmo (quero dizer como eu mesmo o
recebi), desembaraçando-se dele da melhor maneira possível.
Todo seu na sacrossanta Cabala.
Ad. Desbarolles."
" Senhor Abade - diz Eliphas sorrindo após haver lido -, estou à
sua inteira disposição e nada posso recusar ao amigo que me escreve,
então o senhor esteve com meu excelente discípulo Desbarolles?
" Sim, senhor, e encontrei nele um homem muito amável e muito sábio.
O senhor e ele, acredito serem dignos da verdade que recentemente se manifestou
através de surpreendentes milagres e das revelações positivas
do arcanjo São Miguel.
" O senhor nos deixa honrados. O prezado Desbarolles surpreendeu-o, então,
por sua ciência?
" Oh! com certeza ele possui os segredos da quiromancia num grau bastante
notável; apenas com a leitura de minha mão contou-me quase toda
minha vida.
" Ele é bem capaz disso. Mas entrou em detalhes?
" O suficiente, senhor, para convencer-me de seus conhecimentos extraordinários.
" Disse-lhe que o senhor é o antigo pároco de Mont-Louis,
na diocese de Tours? Que é o discípulo mais zeloso do extático
Eugène Vintras? E que se chama Charvoz? Tamanha reviravolta causou-lhe
um choque: o velho padre, a cada uma dessas três frases, dera um salto
na cadeira. Quando ouviu seu nome empalideceu e levantou-se como se fosse impulsionado
por uma mola.
" O senhor é realmente um mágico? - exclamou ele. - Charvoz
é de fato meu nome, mas não é o
que uso; faço-me chamar La Paraz...
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
77
" Eu sei. La Paraz é o sobrenome de sua mãe. O senhor deixou
uma posição bastante invejável: a de pároco de um
cantão e de um encantador presbitério, para compartilhar da existência
agitada de um sectário...
" Diga de um grande profeta!
" Senhor, acredito inteiramente em sua boa fé. Mas vai me permitir
examinar um pouco a missão e o caráter de seu profeta.
" Pois não, senhor, o exame, o grande dia, a luz da ciência,
eis o que pedimos. Venha a Londres e verá! Os milagres são permanentes.
" Pode me dar, antes, alguns detalhes exatos e conscienciosos sobre os
milagres?
" Oh! quantos quiser.
E o velho padre começou imediatamente a contar coisas que todo o mundo
teria considerado impossíveis, mas que não fizeram o professor
de alta magia sequer franzir as sobrancelhas.
Coisas como por exemplo:
" Um dia, Vintras, num acesso de entusiasmo, pregava diante de seu altar
heterodoxo; vinte e cinco pessoas assistiam a esse sermão. Um cálice
vazio estava sobre o altar, cálice bem conhecido pelo abade Charvoz;
trouxera-o ele próprio de sua igreja de Mont-Louis, e tinha absoluta
certeza de que esse cálice sagrado não tinha nem conduto misterioso
nem fundo duplo. "Para vos provar", diz Vintras, "que é
o próprio Deus quem me inspira, ele me faz saber que o cálice
vai se encher com as gotas de seu sangue sob a aparência de vinho, e todos
vós podereis saborear o produto das vinhas do porvir, o vinho que devemos
beber com o Salvador no reino de seu pai..."
" Tomado de espanto e medo - continua o abade Charvoz subo ao altar, pego
o cálice, olho no fundo: estava inteiramente vazio. Viro-o diante de
todos, depois volto a me ajoelhar ao pé do altar, segurando o cálice
entre as mãos... De repente ouve-se um leve ruído, como se tivesse
caído do teto uma gota de água no cálice, e uma gota de
vinho aparece no fundo. Todos os olhares voltam-se para mim, olha-se para o
teto, pois nossa simples capela estava armada num quarto pobre; no teto não
havia buraco nem fenda, nada se via cair, e no entanto o barulho da queda das
gotas multiplicava-se mais rápido e mais apressado... e o vinho brotava
do fundo do cálice para a borda. Quando o cálice ficou cheio,
passei-o lentamente sob os olhares da assembléia, depois o profeta molhou
aí seus lábios, e todos, um após o outro, provaram o vinho
milagroso. Qualquer lembrança de um sabor delicioso não poderia
dar a idéia de seu gosto. E o que lhe direi - acrescentou o abade Charvoz
- dos prodígios de sangue que nos surpreendem todos os dias. Milhares
de hóstias feridas e sangrentas refugiam-se em nossos altares. Os estigmas
sagrados aparecem diante de todos aqueles que os querem ver. As hóstias,
inicialmente brancas, marmorizam-se lentamente de caracteres e de corações
ensangüentados... Deve-se acreditar que Deus abandona aos prestígios
do demônio as coisas mais santas? ou antes de mais nada é preciso
adorar e crer que é chegada a hora da suprema e última revelação?
O abade Charvoz, ao falar assim, tinha na voz aquela espécie de tremor
nervoso que Eliphas Levi já observara em Mandrolle. O mágico balançava
a cabeça com um ar pensativo; depois, de repente:
" Senhor - diz ao abade -, o senhor traz consigo uma ou várias dessas
hóstias. Seja gentil deixando-me vê-Ias.
" Senhor...
" Eu sei que o senhor as tem; por que tentar negar?
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
78
" Não o nego - diz o abade Charvoz -, mas o senhor me permitirá
não expor às investigações da incredulidade os objetos
da mais sincera e devotada crença.
" Senhor Abade - diz gravemente Eliphas -, a incredulidade é a desconfiança
de uma ignorância quase certa de estar enganada. A ciência não
é incrédula. A princípio creio em sua convicção,
uma vez que o senhor aceitou uma vida de privações e mesmo de
reprovações por essa infeliz crença. Mostre-me, pois, suas
hóstias milagrosas e creia em todo o meu respeito pelos objetos de uma
sincera adoração.
" Pois bem! - diz o abade Charvoz após ter ainda hesitado um pouco
-, vou mostrar-lhe.
Então ele desabotoou o alto de seu colete negro e tirou um pequeno relicário
de prata, diante do qual pôs-se de joelhos com lágrimas nos olhos
e preces nos lábios; Eliphas ajoelhou-se perto dele, e o abade abriu
o relicário.
Havia no relicário três hóstias, uma inteira, as duas outras
quase em pasta e como que amassadas com sangue.
A hóstia inteira tinha no centro um coração em relevo dos
dois lados; um grumo de sangue moldado na forma de coração, e
que parecia ter-se formado na própria hóstia de modo inexplicável.
O sangue não poderia ter sido aplicado por fora, pois a coloração
por embebição deixara brancas as partes aderentes à superfície
exterior. A aparência do fenômeno era a mesma dos dois lados. O
mestre de magia foi tomado por um tremor involuntário.
Essa emoção não escapou ao velho pároco que, tendo
adorado mais uma vez e fechado seu relicário, tirou do bolso um álbum
e entregou-o a Eliphas sem nada dizer. Eram cópias de todos os caracteres
sangrentos observados nas hóstias desde o começo dos êxtases
e dos milagres de Vintras. Havia corações de todos os tipos, emblemas
de todos os gêneros. Mas três sobretudo excitaram ao máximo
a curiosidade de Eliphas...
" Senhor Abade - diz ele a Charvoz -, conhece estes três signos?
" Não - disse ingenuamente o abade -, mas o profeta garante que
são da mais alta importãncia e que sua significação
oculta deverá ser conhecida logo, isto é, no final dos tempos.
" Pois bem, senhor - diz solenemente o professor de magia - antes mesmo
do fim dos tempos vou explicar-lhe: estes três signos cabalísticos
são a assinatura do diabo!
" É impossível! - exclama o velho padre.
" É isso mesmo - continuou com firmeza Eliphas.
Ora, eis que signos eram esses:
1º - A estrela do microcosmo, ou o pentagrama mágico. É a
estrela de cinco pontas da maçonaria oculta, a estrela em que Agripa
desenhou a figura humana, a cabeça na ponta superior, os quatro membros
nas quatro outras. A estrela flamejante que, invertida, é o signo hieroglífico
do bode da magia negra, cuja cabeça pode, então, estar desenhada
na estrela, os dois chifres no alto, à direita e à esquerda as
orelhas, a barba embaixo. É o signo do antagonismo e da fatalidade. É
o bode da luxúria atacando o céu com seus chifres. É um
signo execrado mesmo no sabbat pelos iniciados de uma ordem superior.
2º - As duas serpentes herméticas, porém as cabeças
e as caudas, ao invés de se juntarem em dois semicírculos paralelos,
estavam de fora, e não havia linha intermediária representando
o caduceu.
Acima da cabeça das serpentes via-se o V fatal, o forcado tifoniano,
o caráter do inferno. À direita e
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
79
à esquerda, os números sagrados III e VII relegados sobre a linha
horizontal que representa as coisas passivas e secundárias. O sentido
do caráter, portanto, era este:
O antagonismo é eterno.
Deus é a luta das forças fatais que criam sempre destruindo.
As coisas religiosas são passivas e passageiras.
A audácia delas se serve, a guerra delas se aproveita, e é através
delas que a discórdia se perpetua. 3º - Finalmente, o monograma
cabalístico de Jehova, o Iod e o He, porém invertidos, o que forma,
segundo os doutores da ciência oculta, a mais terrível de todas
as blasfêmias e significa, de qualquer modo que se leia:
"Só a fatalidade existe: Deus e o espírito não são.
A matéria é tudo, e o espírito é apenas uma ficção
dessa mesma matéria em demência. A forma é mais que a idéia,
a mulher mais que o homem, o prazer mais que o pensamento, o vício mais
que a virtude, a multidão mais que seus chefes, os filhos mais que seus
pais, a loucura mais que a razão!"
Eis o que estava escrito em caracteres de sangue nas hóstias supostamente
milagrosas de Vintras! Damos nossa palavra de honra de que todos os fatos acima
enunciados são tais como os relatamos e de que nós mesmos vimos
e explicamos os caracteres, segundo a verdadeira ciência mágica
e as verdadeiras chaves da Cabala.
O discípulo de Vintras comunicou-nos também a descrição
e o desenho das vestes pontificais dadas, dizia ele, pelo próprio Jesus
Cristo ao pretenso profeta durante um de seus sonos extáticos. Vintras
mandou confeccionar essas vestes e enfeita-se com elas para fazer seus milagres.
São vermelhas. Ele deve trazer na fronte uma cruz em forma de linga,
ter um bastão pastoral encimado por uma mão, cujos dedos estão
todos fechados, à exceção do polegar e do auricular. Ora,
tudo isso é diabólico por excelência, e não é
uma coisa verdadeiramente maravilhosa essa intuição dos signos
de uma ciência perdida? Pois foi a alta magia que, apoiando o universo
sobre as duas colunas de Hermes e de Salomão, dividiu o mundo metafísico
em duas zonas intelectuais, uma branca e luminosa encerrando as idéias
positivas, a outra negra e obscura contendo as idéias negativas, e que
deu à noção sintética da primeira o nome de Deus,
à síntese da outra o nome do diabo, ou de Satã.
O signo do linga trazido na fronte é, na Índia, a marca distintiva
dos adoradores de Shiva, o destruidor; sendo esse signo o do grande arcano mágico
que detém o mistério da geração universal, trazê-lo
sobre a fronte é fazer profissão de impudor dogmático.
Ora, dizem os orientais, no dia em que não houver mais pudor no mundo,
e este estiver abandonado à devassidão, que é estéril,
logo acabará por falta de mães. O pudor é a aceitação
da maternidade. A mão com os três grandes dedos fechados expressa
a negação do ternário e a afirmação das únicas
forças naturais.
Os antigos hierofantes, como vai explicar nosso sábio e espirituoso amigo
Desbarolles num belo
livro, haviam feito da mão humana o resumo da ciência mágica.
O indicador, para eles, representava
Júpiter; o grande dedo ou dedo médio, Saturno; o anular, Apolo
ou o Sol. Para os egípcios, o dedo
médio era Ops, o indicador, Osíris e o anular, Hórus; o
polegar representava a força geradora, e o
auricular, a habilidade insinuante. A mão mostrando apenas o polegar
e o auricular equivale, em
língua hieroglífica sagrada, à afirmação
exclusiva da paixão e da habilidade. É a tradução
abusiva e
material desta grande fala de Santo Agostinho: "Amai e fazei o que quiserdes."
Comparai agora esse
signo à doutrina de Madrolle: o ato de amor mais imperfeito e aparentemente
mais condenável vale
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
80
mais do que a melhor das preces. E vós vos perguntareis qual força
é essa que, independentemente da vontade e da maior ou menor ciência
dos homens (pois Vintras é um homem sem letras e sem instrução),
formula seus dogmas com signos enterrados nos destroços do antigo mundo,
reencontra os mistérios de Tebas e de Elêusis, e escreve-nos os
mais doutos devaneios da Índia com os alfabetos ocultos de Hermes.
Que força é essa? Eu vos direi. Mas tenho ainda muitos outros
prodígios a vos contar, e este trabalho é, digamos, como uma instrução
jurídica. Devemos antes de mais nada completá-la. No entanto,
ser-nos-á permitido, antes de passar a outros relatos, transcrever aqui
uma página de um iluminado alemão, Ludwig Tieck.
"Se, por exemplo, como narra uma antiga tradição, uma parte
dos anjos criados não tardou em decair, e se foram precisamente, como
é dito ainda, os mais brilhantes, pode-se depreender dessa queda apenas
que eles buscavam um caminho novo, uma outra atividade, outras ocupações
e uma outra vida, ao contrário daqueles espíritos ortodoxos, ou
mais passivos, que permaneceram na região que lhes era destinada e não
fizeram nenhum uso da liberdade, seu apanágio comum. Sua queda foi essa
gravidade da forma que agora chamamos realidade, e que é a reabsorção
do espírito universal nos abismos. É assim que a morte conserva
e reproduz a vida, é assim que a vida é noiva da morte... Compreendeis
agora o que é Lúcifer? Não é o gênio mesmo
do antigo Prometeu, essa força que impulsiona o mundo, a vida, o próprio
movimento, e que regula o curso das forças sucessivas? Essa força,
por sua resistência, equilibrou o princípio criador. Foi assim
que os Eloim criaram o mundo. Quando em seguida os homens foram colocados na
terra, pelo Senhor, como espíritos intermediários, em seu entusiasmo
que os levava a investigar a natureza e suas profundezas, abandonaram-se à
influência daquele soberbo e poderoso gênio, e quando num doce enlevo
precipitaram-se na morte, para aí encontrar a vida, começaram
então a existir de modo verdadeiro, natural e como convém às
criaturas."
Esta página não necessita de comentário e explica o suficiente
as tendências do que se denomina espiritualismo, ou a doutrina espírita.
Há muito tempo já essa doutrina, ou essa antidoutrina, trabalha
o mundo para precipitá-lo numa anarquia universal. Porém a lei
de equilíbrio nos salvará, e o grande movimento de reação
já começou.
Retomemos o relato dos fenômenos.
Um operário apresentou-se um dia na casa de Eliphas Levi. Era um homem
de uns cinqüenta anos, alto, de olhar direto e que falava de modo bastante
sensato. Perguntado sobre o motivo de sua visita, respondeu:
" O senhor deve saber, venho pedir-lhe e suplicar-lhe que me devolva o
que perdi.
Devemos dizer, para sermos sinceros, que Eliphas nada sabia sobre esse visitante
nem sobre o que ele pudesse ter perdido. Assim, respondeu-lhe:
" Acredita-me muito mais bruxo do que na realidade sou; não sei
quem é nem o que procura, portanto, se acredita que lhe possa ser útil
em alguma coisa, é necessário que se explique e esclareça
o seu pedido.
" Pois bem! uma vez que não quer me compreender, reconhecerá
pelo menos isso - disse então o desconhecido, tirando do bolso um pequeno
livro negro e roto. Era o grimório do papa Honório.
Uma palavra sobre esse pequeno livro tão desacreditado.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
81
O grimório de Honório compõe-se de uma constituição
apócrifa de Honório II para a evocação e o governo
dos espíritos; e mais, de algumas receitas supersticiosas... Era o manual
dos maus padres que exerciam a magia negra durante os mais tristes períodos
da Idade Média. Encontram-se aí ritos sangrentos misturados a
profanações da missa e das espécies consagradas, fórmulas
de bruxaria e de malefícios, e também práticas que só
a estupidez pode admitir e a perfídia aconselhar. Enfim, é um
livro completo em seu gênero; assim, tornou-se muito raro nas livrarias,
e os apreciadores fazem seu preço subir muito nos leilões.
" Meu caro senhor - disse o operário suspirando -, desde a idade
de seis anos, não deixei uma única vez de fazer meu serviço.
Este livro não me deixa, e sigo rigorosamente todas as prescrições
que ele contém. Por que então os que me visitavam abandonaram-me?
Eli, Eli, Lamma...
" Pare - disse Eliphas -, não parodie as mais formidáveis
palavras que uma agonia já fez o mundo ouvir! Quais são os seres
que o visitavam pelo poder deste livro horrível? Conhece-os? Prometeu-lhes
alguma coisa? Assinou um pacto?
" Não - interrompeu o proprietário do grimório -,
não os conheço e não assumi com eles nenhum compromisso.
Sei apenas que entre eles os chefes são bons, os intermediários
alternativamente bons e maus; os inferiores maus, mas não cegamente e
sem que lhes seja possível fazer melhor. Aquele a quem evoquei e que
freqüentemente me apareceu pertence à hierarquia mais elevada, pois
tinha boa aparência, era bem vestido e sempre me dava respostas favoráveis.
Mas perdi uma página do meu grimório, a primeira, a mais importante,
a que trazia a assinatura do espírito, e, desde então, não
aparece mais quando o chamo. Sou um homem perdido. Estou nu como Jó,
não tenho mais força nem coragem. Oh! mestre, eu lhe suplico,
o senhor a quem a uma única palavra, a um único sinal os espíritos
obedecerão, tenha piedade de mim e devolva-me o que perdi!
" Dê-me seu grimório - disse Eliphas. - Que nome dava ao espírito
que lhe aparecia?
" Chamava-o Adonai.
" Em que língua era sua assinatura?
" Ignoro, mas suponho que fosse hebraico.
" Tome - disse o professor de alta magia após haver traçado
duas palavras hebraicas no começo e no final do livro. - Eis duas assinaturas
que os espíritos das trevas nunca falsificarão. Vá em paz,
durma bem e não evoque mais os fantasmas.
O operário retirou-se.
Oito dias depois voltou a procurar o homem de ciência.
" O senhor devolveu-me a esperança e a vida, minha força
voltou em parte, posso, com as assinaturas que me deu, aliviar a dor dos que
sofrem e livrar os obcecados, mas ele não posso mais ver, e, enquanto
não o vir de novo, estarei triste até a morte. Antigamente, ele
estava sempre perto de mim, tocava-me por vezes e acordava-me à noite
para me dizer tudo o que eu precisava saber. Mestre, eu lhe suplico, faça
com que o veja de novo.
" Quem?
" Adonai.
" Sabe quem é Adonai?
" Não, mas gostaria de revê-lo.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
82
" Adonai é invisível.
" Eu o vi.
" Ele não tem forma.
" Eu o toquei.
" Ele é infinito.
" É mais ou menos do meu tamanho.
" Os profetas dizem que a orla de sua roupa, do Oriente ao Ocidente, varre
as estrelas da manhã.
" Tinha um sobretudo muito limpo e a roupa muito branca.
" A Sagrada Escritura diz ainda que não se pode vê-lo sem
morrer.
" Tinha um rosto bom e jovial.
" Mas como o senhor procedia para obter essas aparições?
" Ora! Fazia tudo o que está indicado no grande grimório.
" O quê! mesmo o sacrifício de sangue?
" Sem dúvida.
" Infeliz! mas quem era a vítima?
A essa pergunta, o operário teve um leve tremor, empalideceu, seu olhar
perturbou-se.
" Mestre, o senhor sabe melhor do que eu - disse humildemente e em voz
baixa. - Oh! custou-me muito; sobretudo a primeira vez, num único golpe
com a faca mágica cortar a garganta dessa criatura inocente! Uma noite,
tinha acabado de cumprir os ritos fúnebres, estava sentado dentro do
círculo, na soleira interna da minha porta, e a vítima acabava
de se consumir num grande fogo feito com álamos e ciprestes... De repente,
perto de mim... vi, ou antes senti, que ele passava... Ouvi um lamento dilacerante...
parecia chorar, e a partir desse momento tinha a impressão de ouvi-lo
sempre. Eliphas levantara-se e olhava fixamente seu interlocutor. Teria diante
de si um louco perigoso capaz de repetir as atrocidades do Senhor de Retz? No
entanto, a aparência desse homem era suave e honesta. Não, isso
não era possível.
" Mas enfim, essa vítima... diga-me claramente o que era. O senhor
supõe que eu já saiba, e talvez saiba mesmo, mas tenho razões
para querer que me diga.
" Era, de acordo com o ritual mágico, um cabritinho de um ano, virgem
e sem defeitos.
" Um cabrito de verdade?
" Sem dúvida. Acredite, não era nem um brinquedo de criança
nem um animal empalhado.
Eliphas respirou.
"Ainda bem!" pensou, "este homem não é um bruxo
digno da fogueira. Não sabe que os abomináveis autores dos grimórios,
quando falavam do cabrito virgem, queriam dizer uma criancinha."
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
83
" Pois bem! - disse então àquele que o consultava -, dê-me
detalhes sobre essas visões. O que me conta interessa-me muitíssimo.
O bruxo, pois é preciso chamá-lo pelo seu nome, o bruxo contou-lhe
então uma série de fatos estranhos de que duas famílias
haviam sido testemunhas, e esses fatos eram precisamente idênticos aos
fenômenos do senhor Home: mãos que saíam das paredes, agitações
de móveis, aparições fosforescentes. Um dia, o temerário
aprendiz de mágico ousara chamar Astaroth, e vira aparecer um monstro
gigantesco que tinha o corpo de um porco e a cabeça tirada de um colossal
esqueleto de boi. Mas tudo isso era contado num tom de verdade, com uma certeza
de ter visto, que excluía qualquer dúvida sobre a boa fé
e a inteira convicção do narrador. Eliphas, que é artista
em magia, encantou-se com esse achado. No século XIX, um verdadeiro bruxo
da Idade Média, um bruxo ingênuo e convicto! Um bruxo que viu Satã
sob o nome de Adonai, Satã vestido como um burguês e Astaroth sob
sua verdadeira forma diabólica! que obra de arte! que tesouro de arqueologia!
" Meu amigo - disse a seu novo discípulo -, quero ajudá-lo
a encontrar o que diz ter perdido. Pegue meu livro, observe as prescrições
do ritual e venha ver-me daqui a oito dias. Oito dias depois, nova conferência,
e então o operário declarou que inventou uma máquina de
salvamento da maior importância para a marinha. A máquina está
perfeitamente montada; falta apenas uma coisa... não funciona: um defeito
imperceptível está no mecanismo. Que defeito é esse? Só
o espírito de malícia poderia dizer. É, pois, absolutamente
necessário evocá-lo!...
" Cuidado - disse Eliphas -; antes, diga durante nove dias esta invocação
cabalística (e entregou-lhe uma folha manuscrita). Comece esta noite,
e volte amanhã para me dizer o que viu, pois esta noite o senhor terá
uma manifestação.
No dia seguinte, nosso homem não faltou ao encontro.
" Acordei de repente, mais ou menos à uma hora da manhã.
Vi diante de minha cama uma grande luz, e dentro dessa luz um braço de
sombra que passava e repassava diante de mim como para magnetizar-me. Então,
tornei a dormir, e, alguns instantes depois, tendo novamente acordado, revi
a mesma luz, mas ela mudara de lugar. Passara da esquerda para a direita, e
sobre o fundo luminoso distingui a silhueta de um homem que cruzava os braços
e me olhava.
" Como era esse homem?
" Aproximadamente da sua estatura e do seu peso.
" Está bem. Vá e continue a fazer o que eu lhe disse.
Passaram-se os nove dias; ao final desse tempo, nova visita do adepto; mas dessa
vez muito feliz e agradecido. Ao ver ao longe Eliphas:
" Obrigado, mestre! - exclamou -, a máquina funciona, pessoas que
eu não conhecia vieram colocar à minha disposição
o capital de que necessitava para terminar meu empreendimento, reencontrei a
paz do sono, e tudo isso graças ao seu poder.
" Diga antes graças à sua fé e à sua docilidade,
e agora adeus, preciso trabalhar... E então? por que este ar suplicante,
o que ainda quer de mim?
" Oh! se o senhor quisesse!...
" Se quisesse o quê? Não obteve tudo o que pediu, e até
mais do que pediu, pois o senhor não havia falado em dinheiro.
" Sim, certamente, disse o outro suspirando, mas gostaria muito de revê-lo!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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" Incorrigível!
Algumas semanas depois, o professor de alta magia foi acordado mais ou menos
às duas horas da manhã por uma dor de cabeça aguda. Durante
alguns instantes, receou uma congestão cerebral, levantou-se, acendeu
a lâmpada, abriu a janela, passeou pelo seu gabinete de estudos, depois,
acalmado pelo ar fresco da manhã, voltou a deitar-se e adormeceu profundamente;
teve, então, um pesadelo; viu, com uma aparência terrível
de realidade, o gigante de cabeça de boi descarnada de que lhe falara
o mecânico. Esse monstro perseguia-o e lutava com ele. Quando acordou
já era dia e alguém batia à sua porta. Eliphas levantou-se,
jogou uma roupa sobre o corpo e foi abrir: era o operário.
" Mestre - disse entrando apressadamente e com um ar alarmado -, como o
senhor está se sentindo?
" Muito bem - respondeu Eliphas.
" Mas essa noite, às duas horas da manhã, o senhor não
correu perigo?
Eliphas não sabia do que se tratava e já não se lembrava
de sua indisposição da noite.
" Um perigo? não, nenhum que eu saiba.
" O senhor não foi atacado por um fantasma monstruoso que tentava
estrangulá-lo? O senhor não sofreu? Eliphas lembrou-se.
" Sim, certamente tive um começo de apoplexia e um sonho horrível.
Mas como sabe disso?
Na mesma hora, uma mão invisível bateu-me com força no
ombro e acordou-me em sobressalto.
Sonhava, então, que o via lutando com Astaroth. Sentei-me na cama e uma
voz disse-me ao ouvido:
"Levante-se e vá em socorro de seu mestre; ele está em perigo."
Levantei-me precipitadamente. Mas, em primeiro lugar, para onde era preciso
correr? Que perigo o ameaçava? Era em sua casa ou em outra parte? A voz
nada dissera sobre isso. Tomei a decisão de esperar o nascer do sol,
e, desde que o dia clareou, vim em seu auxílio, e aqui estou.
" Obrigado, meu amigo - disse-lhe o mágico estendendo-lhe a mão,
Astaroth é um bufão desagradável, e essa noite um pouco
de sangue subiu-me à cabeça, apenas isto. Agora estou perfeitamente
bem. Pode, portanto, ficar tranqüilo e voltar ao trabalho. Por mais estranhos
que sejam os fatos que acabamos de contar, resta-nos revelar um drama fúnebre
ainda bem mais extraordinário.
Trata-se do fato cruento, que no início deste ano, mergulhou no luto
e no estupor Paris e toda a cristandade; fato a que ninguém suspeitou
que a magia negra não fosse estranha.
Eis o que aconteceu:
Durante o inverno, no início do ano passado, um livreiro informou ao
autor de Dogma e Ritual da Alta Magia que um eclesiástico procurava seu
endereço e demonstrava o maior desejo de vê-lo. Eliphas Levi não
se sentiu, de início, tomado de confiança por esse desconhecido
a ponto de expor-se sem precauções à sua visita; indicou
uma casa amiga, onde deveria estar com seu fiel amigo Desbarolles. Na hora combinada
e no dia marcado, eles foram à casa da senha A..., e encontraram o eclesiástico
que já há alguns instantes os esperava.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
85
Era um moço bastante magro, de nariz pontiagudo e arqueado, de olhos
azuis e ternos. Sua testa ossuda e saliente era mais larga do que alta: a cabeça
era alongada atrás, os cabelos lisos e curtos, repartidos de lado, eram
de um loiro acinzentado, pendendo para o castanho claro, mas com uma nuança
particular e desagradável. A boca era sensual e batalhadora; seus modos,
aliás, eram afáveis, a voz doce e a fala algumas vezes um pouco
embaraçada. Perguntado por Eliphas Levi sobre o objetivo sua visita,
respondeu que estava à procura do grimório de Honório e
que vinha informar-se com o professor de ciências ocultas sobre o modo
de se obter esse pequeno livro negro, que se tornara praticamente impossível
de encontrar.
" Eu daria cem francos por um exemplar desse grimório - dizia ele.
" A obra em si nada vale - disse Eliphas. - É uma constituição,
que se supõe ser de Honório II, que o senhor talvez encontre citada
por algum colecionador de constituições apócrifas; o senhor
poderia procurar na biblioteca.
" Farei isso, pois em Paris passo quase todo o meu tempo na bibliotecas
públicas.
" Não está ocupado no ministério de Paris.
" Não, no momento não. Estive trabalhando durante algum tempo
na paróquia São Germano de Auxerre.
" E, pelo que vejo, ocupa-se agora com pesquisas curiosas sobre as ciências
ocultas.
" Não exatamente; mas persigo a realização de uma
idéia... Tenho alguma coisa a fazer.
" Suponho que essa alguma coisa não seja uma operação
de magia negra; sabe, como eu, senhor abade, que a Igreja sempre condenou e
ainda condena severamente tudo o que se relaciona com essas práticas
proibidas.
Um pálido sorriso, marcado por uma espécie de ironia sarcástica,
foi toda a resposta do abade, e a conversa interrompeu-se.
No entanto, o quiromante Desbarolles observava atentamente a mão do padre;
este percebeu e seguiu-se, naturalmente, uma explicação, o abade
então ofereceu de bom grado sua mão ao experimentador. Desbarolles
franziu as sobrancelhas e pareceu embaraçado. A mão era úmida
e fria, os dedos lisos e espatulados; o monte de Vênus, ou a parte da
palma da mão que corresponde ao polegar, de um desenvolvimento bastante
notável, a linha da vida curta e interrompida, cruzes no centro da mão,
estrelas no monte da Lua.
" Senhor abade - disse Desbarolles -, se o senhor não tivesse uma
sólida instrução religiosa, tornar-se-ia um perigoso sectário,
pois, por um lado, é inclinado ao misticismo mais exaltado e, pelo outro,
à obstinação mais concentrada e menos comunicativa que
possa existir no mundo. O senhor procura muito, mas imagina mais ainda, e como
não confia a ninguém suas imaginações elas poderiam
atingir proporções que as transformariam em suas verdadeiras inimigas.
Seus hábitos são contemplativos e um pouco indolentes, mas é
uma sonolência cujos despertares podem ser dignos de temor. É levado
a uma paixão que seu estado... Mas, perdoe-me, senhor abade, receio ter
ultrapassado os limites da discrição.
" Diga tudo, senhor, posso ouvir tudo e desejo tudo saber.
" Pois bem! se, como não duvido, o senhor dedica à caridade
toda a atividade inquieta que as paixões do coração lhe
dariam, deve ser muitas vezes bendito por suas boas obras. Mais uma vez o abade
deu aquele sorriso duvidoso e fatal que dava ao seu pálido rosto tão
singular expressão.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
86
Levantou-se e despediu-se sem ter dito seu nome e sem que ninguém se
tivesse lembrado de perguntá-lo.
Eliphas e Desbarolles reconduziram-no até a escada em respeito à
sua dignidade de padre. Perto da escada, voltou-se e disse lentamente:
" Em breve os senhores ouvirão dizer algo... Ouvirão falar
de mim, acrescentou sublinhando cada palavra. Depois saudou-os com um gesto
de cabeça e com a mão, virou-se sem acrescentar uma só
palavra e desceu a escada.
Os dois amigos retomaram à casa da senhora A...
" Eis aí um singular personagem - disse Eliphas. - Pareceu-me ver
Pierrot des Furnambules no papel de um traidor. O que nos disse ao partir parece-se
bastante com uma ameaça.
" O senhor intimidou-o - disse a senhora A... - Antes de sua chegada, ele
começava a expor todo seu pensamento, mas o senhor falou-lhe de consciência
e das leis da Igreja, ele não ousou confessar o que queria.
" Ora essa! o que ele queria então?
" Ver o diabo.
" Pensaria, por acaso, que o trago no bolso?
" Não, mas sabe que o senhor dá aulas de cabala e de magia,
esperava que o ajudasse em seus empreendimentos. Contou-nos, à minha
filha e a mim, que em seu presbitério, no campo, já fizera uma
noite uma evocação com o auxílio de um grimório
vulgar. Então, disse ele, um redemoinho pareceu abalar o presbitério,
as vigas rangeram, a madeira do forro estalou, as portas balançaram-se,
as janelas abriram-se com estrondo, e ouviram-se assovios em todos os cantos
da casa. Esperava, então, a visão formidável, mas nada
viu, nenhum monstro se apresentou; numa palavra, o diabo não quis aparecer.
É por isso que ele procura o grimório de Honório, pois
espera encontrar aí conjurações mais fortes e ritos mais
eficazes.
" Realmente! esse homem então é um monstro... ou um louco.
" Deve estar apenas ingenuamente apaixonado - disse Desbarolles. - Está
tormentado por alguma paixão absurda e não espera absolutamente
nada, a menos que o diabo se intrometa.
" Mas como, então, ouviremos falar dele?
" Quem sabe? Talvez tencione seqüestar a rainha da Inglaterra ou a
mãe do sultão.
A conversa parou por aí, e um ano inteiro se passou sem que nem a senhora
A.... nem Desbarolles, nem Eliphas ouvissem falar do jovem padre desconhecido.
Na noite do primeiro para o segundo dia de janeiro do ano de 1857, Eliphas Levi
acordou sobressaltado com as emoções de um sonho estranho e fúnebre.
Parecia-lhe estar num quarto gótico em ruínas muito semelhante
à capela abandonada de um velho castelo. Uma porta oculta por um pano
negro dava para esse quarto, atrás do pano adivinhava-se a luz tênue
e avermelhada dos círios, e parecia a Eliphas que, levado por uma curiosidade
cheia de terror, aproximava-se do pano negro... Então o pano entreabriu-se,
uma mão estendeu-se e agarrou o braço de Eliphas. Ele não
viu ninguém, mas ouviu uma voz baixa que dizia em seu ouvido:
" Venha ver seu pai que vai morrer!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
87
O magista acordou com o coração palpitante e a testa banhada de
suor. "O que quer dizer esse sonho?", pensou. "Meu pai morreu
há muito tempo; por que me dizem que ele vai morrer, e por que essa advertência
perturbou meu coração?" Na noite seguinte, o mesmo sonho
voltou com as mesmas circunstâncias, e Eliphas Levi acordou mais uma vez
ouvindo repetir ao seu ouvido:
" Venha ver seu pai que vai morrer!
Essa repetição de pesadelos impressionou Eliphas penosamente:
ele aceitara para 3 de janeiro um convite para jantar em companhia alegre, escreveu
para desculpar-se, achando-se pouco disposto para a alegria de um banquete de
artistas. Permaneceu, então, em seu gabinete de estudos; o tempo estava
carregado; ao meio-dia, recebeu a visita de um de seus discípulos de
magia, o visconde de M... A chuva caiu, então, com tal abundância
que Eliphas ofereceu seu guarda-chuva ao visconde, que recusou-se a aceitá-lo.
Seguiu-se uma discussão de polidez, cujo resultado foi que Eliphas saiu
para reconduzir o visconde. Enquanto estavam fora, a chuva cessou, o visconde
encontrou um carro, e Eliphas, ao invés de voltar para casa, atravessou
maquinalmente o Luxemburgo, saiu pelo portão que dá para a Rua
do Inferno, e encontrou-se diante do Panteão. Uma dupla fileira de barracas
improvisadas para a novena de Santa Genoveva indicava aos peregrinos o caminho
de Santo Estêvão do Monte. Eliphas, cujo coração
estava triste e, por conseguinte, disposto às orações,
seguiu essa via e entrou na Igreja. Podiam ser, nesse momento, quatro horas
da tarde.
A igreja estava cheia de fiéis, e o ofício realizava-se com um
grande recolhimento e uma solenidade extraordinária. Os estandartes das
paróquias da cidade e do subúrbio atestavam a veneração
pública por essa virgem que salvou Paris da fome e das invasões.
No fundo da igreja, o túmulo de Santa Genoveva resplandecia de luz. Cantavam-se
as ladainhas e a procissão saía do coro. Após a cruz, acompanhada
de seus acólitos e seguida pelos meninos do coro, vinha o estandarte
de Santa Genoveva; depois caminhavam em duas filas as senhoras genovevinas,
vestidas de preto com um véu branco na cabeça, uma fita azul ao
pescoço e a medalha da legenda, um círio na mão encimado
por uma pequena lanterna gótica, como as que a tradição
atribui às imagens da santa. Pois, nos antigos legendários, Santa
Genoveva é sempre representada com uma medalha ao pescoço, a que
lhe deu São Germano de Auxerre, e segurando um círio que o demônio
esforça-se em apagar, mas que é preservado do sopro do espírito
imundo por um pequeno tabernáculo milagroso. Após as senhoras
genovevinas vinha o clero, depois, finalmente, aparecia o venerável arcebispo
de Paris, mitrado de branco, portando uma capa levantada de cada lado por dois
grandes vigários; o prelado, apoiando-se em seu báculo, caminhava
lentamente e abençoava à direita e à esquerda a multidão
que se ajoelhava à sua passagem. Eliphas via o arcebispo pela primeira
vez e observou os traços de seu rosto. Expressavam a bonomia e a doçura;
mas podia-se notar aí a expressão de um grande cansaço
e mesmo de um sofrimento nervoso penosamente dissimulado. A procissão
desceu até o ádrio da igreja atravessando a nave, subiu pela nave
à esquerda da porta de entrada e chegou ao túmulo de Santa Genoveva;
depois voltou pela nave da direita continuando a cantar ladainhas.
Um grupo de fiéis seguia a procissão e caminhava logo atrás
do arcebispo. Eliphas misturou-se a esse grupo para atravessar mais facilmente
a multidão que ia se formar novamente e para alcançar a porta
da igreja, pensativo e enternecido com essa piedosa solenidade.
A frente da procissão já tornava a entrar no coro, o arcebispo
chegava à grade da nave: aí o vão era
muito estreito para que três pessoas pudessem passar de frente; o arcebispo,
portanto, estava adiante
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
88
e os dois grandes vigários atrás sempre segurando as extremidades
de sua capa, que encontrava-se, assim, jogada e puxada para trás, de
modo que o prelado apresentava seu peito descoberto e protegido apenas pelos
bordados cruzados da estola.
Então, os que estavam atrás do arcebispo viram-no estremecer,
e ouviu-se uma interpelação feita em voz alta, todavia sem clamor.
O que fora dito? Parecia ter sido: Abaixo as deusas! mas acreditava-se ter ouvido
mal, tão deslocada e sem sentido parecia essa frase. No entanto, a exclamação
repetiu-se duas ou três vezes, alguém gritou: "Salvem o arcebispo!"
outras vozes responderam: "Às armas!" A multidão dispersou-se,
então, revirando as cadeiras e as barreiras, precipitou-se para as portas
gritando. Eram choros de criança, gritos de mulheres, e Eliphas, arrastado
pela multidão, foi de certo modo carregado para fora da igreja; mas os
últimos olhares que pôde lançar aí dentro depararam-se
com um terrível e indelével quadro. No meio de um círculo
alargado pelo terror dos que o rodeavam, o prelado estava em pé, só,
sempre apoiado em seu báculo e sustentado pela rigidez de sua capa, que
os grandes vigários haviam soltado, e que pendia agora até o chão.
A cabeça do arcebispo estava um pouco inclinada, os olhos e a mão
que não segurava o báculo estavam erguidos para o céu.
Sua atitude era a que Eugênio Delacroix deu ao Bispo de Liège assassinado
por bandidos do Javali das Ardenas; havia no seu gesto toda a epopéia
do martírio, era uma aceitação e uma oferenda, uma prece
por seu povo e um perdão para o seu algoz. A tarde caía, e a igreja
começava a escurecer. O arcebispo, com os braços erguidos para
o céu e iluminado por um último raio de luz vindo dos caixilhos
da nave, destacava-se contra um fundo sombrio, onde se distinguia apenas um
pedestal sem estátua em que estavam escritas estas duas palavras da paixão
de Cristo: ECCE HOMO, e mais adiante, no fundo, uma pintura apocalíptica
representando os quatro flagelos prontos a lançarem-se sobre o mundo,
e os turbilhões do inferno seguindo os rastros poeirentos do cavalo pálido
da morte.
Diante do arcebispo, um braço erguido, que se desenhava na sombra como
uma silhueta infernal, segurava e brandia uma faca: soldados avançavam
com a espada em punho. E enquanto todo esse tumulto acontecia no ádrio
da igreja, o canto das ladainhas continuava no coro como a harmonia das esferas
celestes perpetua-se, atenta às nossas revoluções e às
nossas angústias. Eliphas Levi fora arrastado para fora pela multidão.
Saíra pela porta da direita. Quase no mesmo instante, a porta da esquerda
abria-se com violência, e um grupo furioso precipitava-se para fora da
igreja.
Esse grupo girava em volta de um homem que cinqüenta braços pareciam
segurar, que cem punhos estendidos queriam socar.
Esse homem, mais tarde, queixou-se de ter sido maltratado pelos soldados; mas,
tanto quanto se podia observar nesse tumulto, os soldados protegiam-no contra
a exasperada multidão. Mulheres corriam em seu encalço gritando:
Matem-no! - Mas o que ele fez? - diziam outras vozes.
" O miserável! deu um soco no arcebispo, diziam as mulheres. Depois
outras pessoas saíram da igreja, e as versões contraditórias
entrecruzavam-se.
" O arcebispo teve medo e passou mal - diziam alguns.
" Ele morreu - respondiam outros.
" Viram a faca? - acrescentava um novo interlocutor.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
89
" Era longa como um sabre, e o sangue escorria na lâmina.
Esse pobre monsenhor perdeu um de seus sapatos - observava uma velha senhora
juntando as mãos.
" Não foi nada! Não foi nada! - veio anunciar, então,
uma locadora de cadeiras.
" Podem voltar para a igreja: monsenhor não está ferido,
acabam de declará-lo no púlpito.
A multidão, então, fez um movimento para retornar à igreja.
" Saiam! Saiam! - disse nesse mesmo instante a voz grave e desolada de
um padre.
" O ofício não pode prosseguir. A igreja será fechada;
está profanada.
" Como está o arcebispo? - disse então um homem.
" Senhor - respondeu o padre -, o arcebispo está morrendo, e talvez
nesse momento mesmo em que falamos ele esteja morto!
A multidão dispersou-se consternada, para ir divulgar essa funesta notícia
em toda Paris. Uma circunstância estranha envolveu Eliphas, e de certo
modo desviou o seu espírito da profunda dor pelo que acabava de acontecer.
Na hora do tumulto, uma mulher idosa e de aparência muito respeitável
tomara-lhe o braço solicitando sua proteção.
Ele achou-se no dever de responder a esse apelo, e, quando saiu da multidão
com essa senhora:
" Como estou feliz - disse-lhe - por ter encontrado um homem que se aflige
com esse grande crime com o qual alegram-se, nesse momento, tantos miseráveis!
" O que diz, senhora, e como é possível existirem seres tão
depravados para alegrarem-se com tamanha infelicidade?
" Silêncio! - disse a velha senhora - talvez nos ouçam...
Sim - acrescentou, abaixando a voz -, há pessoas que estão encantadas
com o que aconteceu, e olhe, ali, há poucos minutos, havia um homem de
aparência sinistra, que dizia para a multidão inquieta, quando
interrogado sobre o que acabava de acontecer... Oh! não foi nada! foi
uma aranha que tombou!
" Não, a senhora deve ter ouvido mal. A multidão não
teria permitido esse abominável propósito, e o homem teria sido
imediatamente preso.
" Quisera Deus que todo o mundo pensasse como o senhor - disse a dama.
Depois acrescentou:
" Recomendo-me às suas orações, pois vejo que é
um homem de Deus.
" Talvez não seja a opinião de todo o mundo - respondeu Eliphas.
" E o que nos importa o mundo? - continuou a senhora com vivacidade - ele
é mentiroso, caluniador, ímpio! talvez fale mal do senhor. Não
me espanto com isso, e se o senhor pudesse saber o que ele diz de mim, compreenderia
por que desprezo sua opinião.
" O mundo fala mal da senhora!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
90
" Certamente, e o pior mal que se possa dizer.
" Como assim?
" Acusa-me de sacrilégio.
" A senhora está me assustando. E de qual sacrilégio, por
favor?
" De uma indigna comédia que teria representado para enganar duas
crianças na montanha da Salette.
" Quê! seria...
" Sou a senhorita Merlière.
" Ouvi falar de seu processo, senhorita, e do escândalo que provocou,
mas parece-me que sua idade e sua responsabilidade deveriam protegê-la
de semelhante acusação.
" Venha ver-me, senhor, e o apresentarei a meu advogado, senhor Farre,
é um homem talentoso que eu gostaria de ganhar para Deus.
Conversando assim os dois interlocutores haviam chegado à Rua do Velho
Pombal. A dama agradeceu ao seu cavalheiro improvisado e renovou o convite para
que fosse vê-Ia.
" Vou tentar - disse Eliphas. - Mas, se for, perguntarei ao porteiro pela
senhorita Merlière?
" Cuidado! não me conhecem por esse nome; pergunte pela senhora
Dutruck.
" Dutruck, está bem, senhora, queira aceitar meus humildes cumprimentos.
E separaram-se.
O julgamento do assassino começou, e Eliphas, ao ler nos jornais que
esse homem era padre, que fizera parte do clero de São Germano de Auxerre,
que fora pároco no interior, que parecia furioso, lembrou-se do padre
pálido que um ano antes procurava o grimório de Honório.
Mas a descrição que as páginas públicas davam desse
criminoso contrariava as lembranças do professor de magia. Com efeito,
a maioria dos jornais atribuíam-lhe cabelos negros... Portanto, não
é ele, pensava Eliphas. No entanto, tenho ainda no ouvido e na memória
as palavras que para mim estariam agora explicadas por esse grande crime:
" Não tardarão a saber algo. Em breve ouvirão falar
de mim.
O julgamento teve lugar com todas as horríveis peripécias que
todos conhecem, e o acusado foi condenado à morte.
No dia seguinte, Eliphas leu numa folha judiciária o relato dessa cena
inaudita nos anais da justiça; e sentiu a vista turvar-se quando leu
o trecho em que se descrevia o acusado: "Ele é loiro".
" Deve ser ele - disse o professor de magia.
Alguns dias depois, uma pessoa que na audiência pudera traçar um
esboço do perfil do condenado mostrou-o a Eliphas.
" Deixe-me copiar este desenho - disse, tremendo de espanto.
Fez a cópia e levou-a ao seu amigo Desbarolles a quem perguntou sem maiores
explicações:
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
91
" Conhece este rosto?
" Sim - assentiu vivamente Desbarolles -; espere, é o padre misterioso
que vimos na casa da senhora A.... e que queria fazer evocações
mágicas.
" Pois bem, meu amigo! o senhor confirma minha triste convicção.
O homem que vimos, não tornaremos mais a ver, a mão que o senhor
examinou tornou-se sanguinária. Ouvimos falar dele, como nos anunciara,
pois este padre pálido, sabe qual era seu nome?
" Oh! meu Deus! - disse Desbarolles mudando de cor - receio saber.
" Pois o senhor sabe, era o infeliz Louis Verger!
Algumas semanas depois do que acabamos de contar, Eliphas Levi conversava com
um livreiro que tem por especialidade colecionar velhos livros de ciências
ocultas sobre o grimório de Honório.
" É agora um artigo impossível de ser encontrado, dizia o
comerciante. O último que tive nas mãos cedi-o a um padre que
ofereceu cem francos por ele.
" Um jovem padre! e lembra-se qual era sua fisionomia?
" Oh! perfeitamente. Mas o senhor deve conhecê-lo, pois ele contou-me
tê-lo visto, e fui eu quem o indicou.
Assim, não havia mais dúvida, o infeliz padre encontrara o fatal
grimório, fizera a evocação e preparara-se para o crime
através de uma série de sacrilégios, pois eis no que consiste
a evocação infernal, segundo o grimório de Honório:
"Escolher um galo preto e dar-lhe o nome do espírito das trevas
que se quer evocar."
"Matar o galo, reservar sua língua, o coração e a
primeira pena da asa esquerda."
"Deixar secarem a língua e o coração e reduzi-los
a pó."
"Não comer carne e não beber vinho nesse dia."
"Na terça-feira, ao nascer do dia, dizer uma missa dos anjos."
"Traçar sobre o altar com a pena do galo molhada em vinho consagrado
assinaturas diabólicas (aquelas do lápis do senhor Home e das
hóstias ensangüentadas de Vintras)." "Na quarta-feira,
preparar uma vela de cera amarela; levantar-se à meia-noite, e, sozinho
numa igreja, começar o ofício dos mortos."
"Misturar a esse ofício evocações infernais."
"Terminar o ofício à luz de uma única vela, que será
em seguida apagada, e permanecer sem luz na igreja assim profanada até
o nascer do sol."
"Na quinta-feira, misturar à água benta o pó da língua
e do coração do galo preto, e fazer um cordeiro macho de nove
dias engolir a mistura..."
A mão recusa-se a escrever o resto. É um misto de práticas
brutais e atentados revoltantes apropriados a matar o discernimento e a consciência.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
92
Mas para comunicar-se com o fantasma do mal absoluto, para realizar o fantasma
a ponto de vê-lo e tocá-lo, não é preciso estar,
necessariamente, sem consciência e sem discernimento? Aí está
certamente o segredo dessa inacreditável perversidade, dessas fúrias
assassinas, desse ódio doentio contra toda ordem, toda magistratura,
toda hierarquia, dessa fúria sobretudo contra o dogma que santifica a
paz, a obediência, a doçura sob o símbolo tão comovente
de uma mãe. Esse infeliz estava certo de que não morreria. O imperador,
acreditava ele, seria forçado a perdoá-lo, um exílio honroso
esperava-o, seu crime lhe daria uma enorme celebridade, seus devaneios seriam
comprados a peso de ouro pelos livreiros. Tornar-se-ia imensamente rico, atrairia
a atenção de uma grande dama e se casaria do outro lado do mar.
Era com promessas semelhantes que outrora o fantasma do demônio também
tentava e fazia saltar de um crime a outro Gilles de Laval, senhor de Retz.
Um homem capaz de evocar o diabo, segundo os ritos do grimório de Honório,
engajou-se de tal maneira na trilha do mal que está disposto a todas
as alucinações e a todas as mentiras. Assim Verger adormecia no
sangue para acordar em não sei que abominável Panteão;
e acordou no cadafalso.
Mas as aberrações da perversidade não constituem uma loucura;
a execução desse miserável provou-o.
Sabe-se que resistência desesperada ele opôs aos executores. "É
uma traição", dizia, "não posso morrer assim!
Uma hora apenas, uma hora para escrever ao Imperador! O Imperador deve salvar-me."
Quem, pois, o traía?
Quem, pois, prometera-lhe a vida?
Quem, pois, assegurara-lhe de antemão uma clemência impossível,
visto que ela teria revoltado a consciência pública?
Perguntai tudo isso ao grimório de Honório!
Duas coisas nessa história tão trágica relacionam-se com
os fenômenos do senhor Home: o ruído de tempestade ouvido pelo
mau padre quando de suas primeiras evocações e a perturbação
que o impediu de expor todo seu pensamento na presença de Eliphas Levi.
Pode-se observar também a aparição de um homem sinistro
regozijando-se com o luto público e sustentando um propósito verdadeiramente
infernal em meio à multidão consternada, aparição
observada apenas pela extática da Salette, a tão célebre
senhorita Merlière, que, não obstante ter a aparência de
uma pessoa boa e respeitável, é muito exaltada e capaz talvez
de agir e de falar, sem se aperceber, sob a influência de um sonambulismo
ascético.
Esta palavra sonambulismo traz-nos de volta ao senhor Home, e nossos relatos
não nos fizeram esquecer do que o título deste trabalho prometia
a nossos leitores. Devemos dizer-lhes o que é o senhor Home.
Vamos manter nossa promessa.
O senhor Home é um doente afetado por um sonambulismo contagioso.
Isso é uma asserção.
Restou-nos uma explicação e uma demonstração a dar.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
93
Essa explicação e essa demonstração, para serem
completas, pediam um trabalho capaz de encher um livro.
Esse livro está pronto e publicá-lo-emos brevemente.
Eis seu título: A Razão dos Prodígios, ou o Diabo diante
da Ciência. Por que o diabo? Porque demonstramos através de fatos
o que antes de nós o senhor Mirville incompletamente pressentira.
Dizemos incompletamente porque o diabo é, para o senhor Mirville, uma
personagem fantástica, enquanto para nós é o uso abusivo
de uma força natural.
Um médium disse: O inferno não é um lugar, é um
Estado.
Poderíamos acrescentar: O diabo não é nem uma pessoa nem
uma força; é um vício e, por conseguinte, uma fraqueza.
Voltemos por um momento ao estudo dos fenômenos.
Os médiuns geralmente são seres doentes e limitados.
Nada de extraordinário podem fazer diante das pessoas calmas e instruídas.
É preciso estar habituado a seu contato para ver e sentir algo. Os fenômenos
não são os mesmos para todos os espectadores. Assim, onde um verá
uma mão, o outro notará apenas um vapor esbranquiçado.
As pessoas impressionáveis pelo magnetismo do senhor Home experimentam
uma espécie de mal-estar; parece-lhes que a sala gira, e têm a
sensação de que a temperatura abaixa-se rapidamente.
Os prodígios ou os prestígios realizam-se melhor diante de um
pequeno número de testemunhas escolhidas pelo próprio médium.
Numa reunião de pessoas que verão os prestígios, pode encontrar-se
uma que não verá absolutamente nada.
Dentre as pessoas que vêem, não vêem todas a mesma coisa.
Assim, por exemplo:
Numa noite, na casa da senhora B... I o médium fez aparecer o filho que
essa senhora perdeu. Apenas a senhora B... via a criança, o conde de
M... via um pequeno vapor esbranquiçado em forma de pirâmide, as
outras pessoas nada viam.
Todo mundo sabe que certas substâncias, o haxixe, por exemplo, entorpecem
sem privar do uso da razão, e fazem ver, com uma surpreendente impressão
de realidade, coisas que não existem. Grande parte dos fenômenos
do senhor Home pertencem a uma influência natural semelhante à
do haxixe.
Eis por que o médium quer operar apenas diante de um pequeno número
de pessoas escolhidas por ele.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
94
O restante desses fenômenos deve ser atribuído ao poder magnético.
Ver algo com o senhor Home não é um indício tranqüilizador
para a saúde de quem vê. Aliás, mesmo que a saúde
fosse excelente, essa visão revela uma perturbação passageira
do aparelho nervoso em suas relações com a imaginação
e com a luz.
Se essa perturbação fosse frequentemente repetida, a pessoa se
tornaria seriamente doente. Quem sabe quantas catalepsias, tétanos, loucuras
e mortes violentas a mania das mesas girantes já produziu?
Esses fenômenos tornam-se particularmente terríveis quando deles
a perversidade se apodera.
É então que se pode realmente afirmar a intervenção
e a presença do espírito do mal.
Perversidade ou fatalidade, os pretensos milagres obedecem a um desses dois
poderes. Quanto às escrituras cabalísticas e às assinaturas
misteriosas, diremos que se reproduzem pela intuição magnética
das imagens do pensamento no fluido vital universal. Esses reflexos instintivos
podem produzir-se se o Verbo mágico nada tiver de arbitrário e
se os signos do santuário oculto forem a expressão natural das
idéias absolutas. É o que demonstramos em nosso livro.
Mas, para não remetermos nossos leitores do desconhecido ao futuro, vamos
antecipar dois capítulos dessa obra inédita, um sobre o Verbo
cabalístico, o outro sobre os segredos da cabala, e deles tiraremos conclusões
que completarão de modo satisfatório para todos a explicação
que prometemos para os fenômenos do senhor Home.
Existe um poder gerador das formas; este poder é a luz.
A luz cria as formas segundo as leis das matemáticas eternas, pelo equilíbrio
universal do dia e da sombra.
Os signos primitivos do pensamento delineiam-se por si sós na luz, que
é o instrumento material do pensamento.
Deus é a alma da luz. A luz universal e infinita é para nós
como o corpo de Deus.
A cabala ou a alta magia é a ciência da luz.
A luz corresponde-se com a vida.
O reino das trevas é a morte.
Todos os dogmas da verdadeira religião estão escritos na cabala
em caracteres de luz numa página de sombra.
A página de sombra são as crenças cegas.
A luz é o grande mediador plástico.
A aliança da alma com o corpo é um casamento de luz e de sombra.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
95
A luz é o instrumento do Verbo, é a escritura branca de Deus no
grande livro da noite.
A luz é a fonte dos pensamentos, e é nela que se deve buscar a
origem de todos os dogmas religiosos.
Mas só há um verdadeiro dogma, como só há uma pura
luz; apenas a sombra é infinitamente variada. A luz, a sombra e sua união
que é a visão dos seres, tal é o princípio analógico
dos grandes dogmas da Trindade, da Encarnação e da Redenção.
Tal é também o mistério da cruz.
Eis o que nos será fácil provar pelos monumentos religiosos, pelos
signos do Verbo primitivo, pelos livros iniciados na cabala, pela explicação
racional, enfim, de todos os mistérios por meio das chaves da magia cabalística.
Com efeito, em todos os simbolismos encontramos as idéias de antagonismo
e de harmonia produzindo uma noção trinitária na concepção
divina, depois a personificação mitológica dos quatro pontos
cardeais do céu completa o setenário sagrado, base de todos os
dogmas e de todos os ritos. Para convencermo-nos disto, bastará relermos
e meditarmos sobre a sábia obra de Dupuis, que seria um grande cabalista
se tivesse visto uma harmonia de verdades onde suas preocupações
negativas apenas o deixaram ver um concerto de erros.
Não devemos refazer aqui o seu trabalho, que todos conhecem; mas o que
importa provar é que a reforma religiosa de Moisés era inteiramente
cabalística, e que o cristianismo, ao instituir um dogma novo, simplesmente
reaproximou-se das fontes primitivas do mosaísmo, e que o Evangelho não
é mais do que um véu transparente lançado sobre os mistérios
universais e naturais da iniciação oriental.
Um sábio notável, mas muito pouco conhecido, M. P. Lacour, em
seu livro sobre os Eloim ou deuses de Moisés, lançou nova luz
sobre essa questão e encontrou nos símbolos do Egito todas as
figuras alegóricas do Gênesis. Mais recentemente, um bravo pesquisador,
de vasta erudição, M. Vincent (de Yonne), publicou um tratado
sobre a idolatria entre os antigos e os modernos, onde ergue o véu da
mitologia universal.
Convidamos os homens de estudos conscienciosos a lerem essas diferentes obras
e nós nos concentraremos no estudo especial da cabala entre os hebreus.
Sendo o Verbo, ou a palavra, segundo os iniciados nessa ciência, toda
a revelação, os princípios da alta cabala devem se encontrar
reunidos nos próprios sinais que compõem o alfabeto primitivo.
Ora, eis o que encontramos em todas as gramáticas hebraicas.
Há uma letra principiante e universal geradora de todas as outras. É
o Iod h . Há duas outras letras mães opostas e análogas
entre si; o Aleph t e o Mem n , seguindo-se a outras o Schin a .
Há sete letras duplas, o Beth c , o Ghimel d , o Daleth s , o Caph f
, o Phé p , o Resch r e o Tau , .
Finalmente há doze simples que são as outras letras; ao todo,
vinte e duas. A unidade é representada de modo relativo pelo aleph, o
ternário é figurado ou por iod, mem, schin, ou por aleph, mem,
schin.
O setenário por beth, ghimel, daleth, caph, phé, resch, tau.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
96
O duodenário pelas outras letras. O duodenário é o ternário
multiplicado por quatro; e entra também no simbolismo do setenário.
Cada letra representa um número:
Cada conjunto de letras uma série de números.
Os números representam idéias filosóficas absolutas.
As letras são hieróglifos abreviados.
Vejamos agora as significações hieroglíficas e filosóficas
de cada uma das vinte e duas letras. (Ver Belarmino, Reuchlin, São Jerônimo,
Kabbala denudata, o Sepher Yétsírah, Technica curiosa do padre
Schott, Pico delia Mirandola e os outros autores, especialmente os da coleção
de Pistorius.)
As Mães
O iod - o princípio absoluto, o ser produtor;
O mem - o espírito, ou o Jaquim de Salomão;
O schin - a matéria, ou a coluna Boaz.
As Duplas
Beth - o reflexo, o pensamento, a lua, o anjo Gabriel, príncipe dos mistérios;
Ghimel - o amor, a vontade, Vênus, o anjo Anael, príncipe da vida
e da morte;
Daleth - a força, o poder, Júpiter, Sachiel Melech, rei dos reis;
Caph - a violência, a luta, o trabalho, Mars Samaël Zébaoth,
príncipe das falanges;
Phé - a eloqüência, a inteligência, Mercúrio,
Rafael, príncipe das ciências;
Resch - a destruição e a regeneração, o Tempo, Saturno,
Cassiel, rei dos túmulos e das solidões;
Tau - a verdade, a luz, o Sol, Micael, rei dos Eloim.
As Simples
As simples dividem-se em quatro ternários trazendo por títulos
as quatro letras do tetragrama divino v u v h .
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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No tetragrama divino, o iod, como acabamos de dizer, figura o princípio
produtor ativo. O he v representa o princípio produtor passivo, o ctëiss.
O vau , figura a união dos dois ou o linga, e o he final é a imagem
do princípio produtor secundário, isto é, da reprodução
passiva no mundo dos efeitos e das formas.
As doze letras simples v u z y j h k b o g m e , divididas em grupos de três,
reproduzem a noção do triângulo primitivo, com a interpretação
e sob a influência de cada uma das letras do tetragrama. Vê-se que
a filosofia e o dogma religioso da cabala estão indicados aí de
modo completo mas velado.
Interroguemos agora as alegorias do Gênesis.
"No princípio (iod, a unidade do ser), Eloim, as forças equilibradas
(Jaquin e Boaz) fizeram o céu (o espírito) e a terra (a matéria),
em outras palavras, o bem e o mal, a afirmação e a negação."
Assim começa o relato de Moisés.
Depois, quando se trata de dar um lugar ao homem e um primeiro santuário
à sua aliança com a divindade, Moisés fala de um jardim
no meio do qual uma fonte única dividia-se em quatro rios (o Jod e o
Tetragrama), depois de duas árvores, uma da vida, outra da morte, plantadas
perto do rio. Aí são colocados o homem e a mulher, o ativo e o
passivo, a mulher simpatiza com a morte e arrasta consigo em sua ruína
Adão, eles são, pois, expulsos do santuário da verdade
e um chérub (uma esfinge com cabeça de touro, ver os hieróglifos
da Assíria, da Índia e do Egito) é colocado à porta
do jardim da verdade para impedir os profanadores de destruírem a árvore
da vida. Aí está, portanto, o dogma misterioso com todas as suas
alegorias e seus horrores que sucede à simples verdade. O ídolo
substituiu Deus, e a humanidade decadente não tardará a dedicar-se
ao culto do novilho de ouro. O mistério das reações necessárias
e sucessivas dos dois princípios um sobre o outro é, em seguida,
indicado pela alegoria de Caim e Abel. A força vinga-se, por opressão,
das seduções da fraqueza; a fraqueza mártir expia e intercede
pela força condenada em conseqüência do crime à vergonha
e ao remorso. Assim revela-se o equilíbrio do mundo moral, assim assenta-se
a base de todas as profecias e o ponto de apoio de toda política inteligente.
Abandonar uma força a seus próprios excessos é condená-la
ao suicídio.
O que faltou a Dupuis para compreender o dogma religioso universal da cabala
foi a ciência desta bela hipótese demonstrada em parte e realizada
a cada dia mais pelas descobertas da ciência: a analogia universal.
Privado dessa chave do dogma transcendental, não pôde ver em todos
os deuses senão o sol, os sete planetas e os doze signos do zodíaco,
mas não viu no sol a imagem do logos de Platão, nos sete planetas
as sete notas da gama celeste, e no zodíaco a quadratura do ciclo ternário
de todas as iniciações.
O imperador Juliano, esse espiritualista incompreendido, esse iniciado cujo
paganismo era menos idólatra do que a fé de certos cristãos,
o imperador Juliano, dizemos, compreendia melhor que Dupuis e Volnay o culto
simbólico ao sol. Em seu hino ao rei Hélio reconhece que o astro
do dia é apenas o reflexo e a sombra material daquele sol de verdade
que ilumina o mundo da inteligência e que é ele próprio
apenas um clarão tomado emprestado ao absoluto. Coisa notável,
Juliano tem o Deus supremo que os cristãos pensavam serem os únicos
a adorar, idéias bem maiores e bem mais justas do que as de vários
pais da Igreja, adversários e contemporâneos desse imperador.
Eis como ele expressa-se em sua defesa do helenismo:
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
98
"Não basta escrever num livro: Deus disse, e as coisas foram feitas.
É preciso ver se as coisas que atribuem a Deus não são
contrárias às próprias leis do Ser. Pois, se assim for,
Deus não as pode ter feito, ele que não pode dar desmentidos à
natureza sem negar-se a si próprio... Sendo Deus eterno, é absolutamente
necessário que suas ordens sejam imutáveis como ele." Eis
como falava esse apóstata e esse ímpio, e mais tarde um doutor
cristão, que se tornou o oráculo das escolas de teologia, devia,
inspirando-se talvez nas belas palavras do descrente, colocar um freio em todas
as superstições ao escrever esta bela e corajosa máxima
que tão bem resume o pensamento do grande imperador:
"Uma coisa não é justa porque Deus a quer; mas Deus a quer
porque ela é justa." A idéia de uma ordem perfeita e imutável
na natureza, a noção de uma hierarquia ascendente e de uma influência
descendente em todos os seres fornecerá aos antigos hierofantes a primeira
classificação de toda a história natural. Os minerais,
os vegetais, os animais foram estudados analogicamente, e atribuíram-se
sua origem e suas propriedades ao princípio passivo ou ao princípio
ativo, às trevas ou à luz. O signo de sua eleição
ou de sua reprovação, desenhado na sua forma, tornou-se o caráter
hieroglífico de um vício ou de uma virtude; depois, de tanto tomar
o signo pela coisa, e exprimir a coisa pelo signo, acabou-se por confundi-los,
e tal é a origem da história natural fabulosa em que leões
deixam-se abater por galos, em que delfins morrem de dores após haverem
feito ingratos entre os homens, em que mandrágoras falam e estrelas cantam.
Esse mundo encantado é verdadeiramente o domínio poético
da magia; mas tem como realidade apenas a significação dos hieróglifos
que lhe deram origem. Para o sábio que compreende as analogias da alta
cabala e a relação exata das idéias com os signos, esse
país fabuloso das fadas é uma região ainda fértil
em descobertas, pois as verdades muito belas ou muito simples para agradar aos
homens sem véus foram todas ocultadas sob essas sombras engenhosas.
Sim, o galo pode intimidar o leão e tornar-se seu mestre, porque a vigilância
freqüentemente substitui a força e consegue domar a cólera.
As outras fábulas da pretensa história natural dos antigos explicam-se
do mesmo modo, e, nesse uso alegórico das analogias, já se pode
compreender os abusos possíveis e pressentir os erros que se devem ter
originado na cabala. A lei das analogias foi, de fato, para os cabalistas da
segunda ordem, o objeto de uma fé cega e fanática. É a
essa crença que devem ser relacionadas todas as superstições
reprovadas aos adeptos das ciências ocultas. Eis como raciocinavam:
O signo exprime a coisa.
A coisa é a virtude do signo.
Há correspondência analógica entre o signo e a coisa significada.
Quanto mais perfeito é o signo, mais a correspondência é
total. Dizer uma palavra é evocar um pensamento e torná-lo presente.
Dizer Deus, por exemplo, é manifestar Deus.
A palavra age sobre as almas e as almas reagem sobre os corpos; pode-se, portanto,
assustar, consolar, fazer adoecer, curar, matar e ressuscitar por palavras.
Proferir um nome é criar ou chamar um ser.
No nome está contida a doutrina verbal ou espiritual do próprio
ser.
Quando a alma evoca um pensamento, o signo desse pensamento escreve-se por si
só na luz. Invocar
é adjurar, isto é, jurar por um nome: é fazer ato de fé
nesse nome e comungar na virtude que ele
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
99
representa.
As palavras, portanto, são por si próprias boas ou más,
venenosas ou salutares. As palavras mais perigosas são as palavras vãs
e proferidas levianamente, porque são abortos voluntários do pensamento.
Uma palavra inútil é um crime contra o espírito de inteligência.
É um infanticídio intelectual. As coisas são para cada
pessoa o que ela as faz ao denominá-las. O verbo de cada pessoa é
uma impressão ou uma prece habitual.
Falar bem é viver bem.
Um belo estilo é uma auréola de santidade.
Desses princípios, uns verdadeiros, outros hipotéticos, e das
conseqüências mais ou menos exageradas que deles tiravam, resultava
para os cabalistas supersticiosos uma confiança absoluta nos encantamentos,
evocações, conjurações e orações misteriosas.
Ora, como a fé sempre realiza prodígios, nunca lhe faltaram as
aparições, os oráculos, as curas maravilhosas, as doenças
súbitas e estranhas.
Foi assim que uma simples e sublime filosofia tornou-se a ciência secreta
da magia negra. É sobretudo desse ponto de vista que a cabala pode ainda
excitar a curiosidade da maioria em nosso século tão desconfiado
e tão crédulo. No entanto, como acabamos de expor, a verdadeira
ciência não está aí.
Os homens raramente procuram a verdade por ela mesma; têm sempre por motivo
secreto em seus esforços alguma paixão a satisfazer ou alguma
cupidez a saciar. Dentre os segredos da cabala, há um que sempre atormentou
os pesquisadores: o segredo da transmutação dos metais e a conversão
de todas as substâncias terrestres em ouro.
De fato, a alquimia tomou emprestado à cabala todos os seus signos, e
era na lei das analogias, resultantes da harmonia dos contrários, que
baseava suas operações. Um segredo físico imenso estava,
aliás, oculto sob parábolas cabalísticas dos antigos. Conseguimos
decifrá-lo e vamos confiá-lo às investigações
dos fazedores de ouro. Ei-lo:
1º - Os quatro fluidos imponderáveis são apenas as manifestações
diversas de um mesmo agente universal que é a luz.
2º - A luz é o fogo que serve à grande obra sob forma de
eletricidade. 3º - A vontade humana dirige a luz vital por meio do aparelho
nervoso. Em nossos dias isso denomina-se magnetizar.
4º - O agente secreto da pedra filosofal, o azote dos sábios, o
ouro vivo e vivificante dos filósofos, o agente produtor metálico
universal é a ELETRICIDADE MAGNETIZADA. A aliança dessas duas
palavras ainda não nos diz muito e, no entanto, elas talvez encerrem
uma força capaz de revolucionar o mundo. Dizemos talvez por conveniência
filosófica, pois, de nossa parte, não duvidamos da alta importância
desse grande arcano hermético.
Acabamos de dizer que a alquimia é filha da cabala; e, para convencer-se
disso, basta interrogar os
símbolos de Flamel, de Basílio Valentim, as páginas do
judeu Abraão e os oráculos mais ou menos
apócrifos da mesa de esmeralda de Hermez. Em toda a parte encontram-se
os traços dessa década de
Pitágoras tão brilhantemente aplicada, no Sepher Yétsirah,
à noção completa e absoluta das coisas
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
100
divinas, essa década composta da unidade e de um tríplice ternário
que os rabinos denominaram o Bereschit e a Mercabah, a árvore luminosa
das Sefirotes e a chave dos Schemamphorasch. Falamos, com certa extensão,
em nosso livro intitulado Dogma e Ritual da Alta Magia, de um monumento hieroglífico
conservado até os nossos dias sob um pretexto fútil, e que sozinho
explica todas as escrituras misteriosas da alta iniciação. Esse
monumento é o tarô dos Boêmios que deu origem a nossos jogos
de cartas. Compõe-se de vinte e duas letras alegóricas e de quatro
séries, cada uma de dez hieróglifos relativos às quatro
letras do nome de Jehovah. As diversas combinações desses signos
e dos números que lhes correspondem formam a mesma quantidade de oráculos
cabalísticos, de modo que a ciência inteira está contida
nesse livro misterioso. Essa máquina filosófica perfeitamente
simples surpreende pela profundidade e exatidão de seus resultados. O
abade Trithème, um de nossos maiores mestres em magia, compôs sobre
o alfabeto cabalístico um trabalho muito engenhoso a que ele denomina
poligrafia. É uma série combinada de alfabetos progressivos em
que cada letra representa uma palavra, as palavras correspondem-se e completam-se
de um alfabeto ao outro, e não há dúvida de que Trithème
teve conhecimento do tarô e dele se utilizou para dispor numa ordem lógica
suas sábias combinações. Jerônimo Cardano conhecia
o alfabeto simbólico dos iniciados como se pode reconhecer pelo número
e pela disposição dos capítulos de sua obra sobre a sutileza.
Essa obra, com efeito, é composta de vinte e dois capítulos, e
o tema de cada capítulo é análogo ao número e à
alegoria da carta correspondente no tarô. Fizemos a mesma observação
sobre um livro de São Martinho intitulado Quadro Natural das Relações
que existem entre Deus, o Homem e o Universo. A tradição desse
segredo não foi, pois, interrompida desde os primórdios da cabala
até os nossos dias. Os giradores de mesa e os que fazem falar os espíritos
através de quadrantes alfabéticos estão, pois, muitos séculos
atrasados e não sabem que existe um instrumento de oráculo claro
e de um sentido exato por meio do qual se pode comunicar com os sete gênios
dos planetas e fazer falar à vontade as setenta e duas rodas de Aziah,
Jezirah e Briah. Para isso basta conhecer o sistema de analogias universais,
tal como expôs Swedenborg na chave hieroglífica dos arcanos, depois
embaralhar as cartas e tirar ao acaso, dispondo-as sempre pelos números
correspondentes às idéias cujos esclarecimentos se deseja, depois
ler os oráculos como devem ser lidas as escrituras cabalísticas,
isto é, começando no meio indo da direita para a esquerda para
os números ímpares, começando à direita para os
pares e interpretando sucessivamente o número pela letra que lhe corresponde,
o conjunto das cartas pela adição de seus números e todos
os oráculos sucessivos por sua ordem numeral e suas relações
hieroglíficas.
Essa operação dos sábios cabalistas para encontrar o desenvolvimento
rigoroso das idéias absolutas degenerou em superstições
em meio aos padres ignorantes e aos nômades ancestrais dos Boêmios
que possuíam o tarô da Idade Média, sem conhecer seu verdadeiro
emprego e que dele se serviam unicamente para ler a sorte.
O jogo de xadrez, atribuído a Palamedes, não tem outra origem
senão o tarô, e nele encontram-se as mesmas combinações
e os mesmos símbolos, o rei, a rainha, o cavaleiro, o soldado, o louco,
a torre, depois casas representando os números. Os antigos jogadores
de xadrez procuravam em seu tabuleiro a solução dos problemas
filosóficos e religiosos, e argumentavam um contra o outro em silêncio
manobrando os caracteres hieroglíficos através dos números.
Nosso vulgar jogo do ganso, copiado dos gregos e igualmente atribuído
a Palamedes, é apenas um tabuleiro de figuras imóveis e números
móveis por meio dos dados. É um tarô disposto em roda destinado
ao uso dos aspirantes à iniciação. Ora, a palavra tarô,
em que se encontram rota e tora, exprime ela própria, como demonstrou-o
Guilherme Postel, essa disposição primitiva em forma de roda.
Os hieróglifos do jogo do ganso são mais simples que os do tarô,
mas encontram-se aí os mesmos símbolos: o bobo, o rei, a rainha,
a torre, o diabo ou tífon, a morte, etc. As probabilidades aleatórias
desse jogo representam as da vida e escondem um sentido filosófico bastante
profundo para fazer meditar os sábios e bastante simples para ser compreendido
pelas crianças.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
101
A personagem alegórica de Palamedes é aliás idêntica
às de Henoc, de Hermes e de Cádmo, aos quais atribui-se a invenção
das letras nas diversas mitologias. Mas, no pensamento de Homero, Palamedes,
o revelador e a vítima de Ulisses, representa o iniciador ou o gênio
cujo destino eterno é ser morto por aqueles que inicia. O discípulo
torna-se a realização viva dos pensamentos do mestre apenas depois
de ter tomado seu sangue e comido sua carne, segundo a enérgica e alegórica
expressão do iniciador tão mal compreendido pelos cristãos.
A concepção do alfabeto primitivo era, como se pode ver, a idéia
de uma língua universal, encerrando em suas combinações
e em seus próprios signos o resumo e a lei da evolução
de todas as ciências divinas e humanas. Acreditamos que, desde então,
nada mais bonito nem maior foi sonhado pelo gênio dos homens e confessamos
que a descoberta desse segredo do mundo antigo compensou-nos plenamente por
tantos anos de pesquisas estéreis e trabalhos ingratos nas criptas das
ciências perdidas e nas necrópoles do passado.
Um dos primeiros resultados dessa descoberta seria uma nova direção
dada ao estudo das escrituras hieroglíficas ainda tão imperfeitamente
decifradas pelos êmulos e pelos sucessores de Champollion. Sendo o sistema
de escritura dos discípulos de Hermes analógico e sintético
como todos os signos da cabala, para a leitura das páginas gravadas nas
pedras dos antigos templos não importaria recolocar essas pedras em seu
lugar e contar o número de suas letras comparando-as com os números
das outras pedras?
O obelisco de Lúxor, por exemplo, não era uma das duas colunas
da entrada de um templo? ficava à direita ou à esquerda? Se ficava
à direita, seus sinais referem-se ao princípio ativo; se ficava
à esquerda, é pelo princípio passivo que se devem interpretar
seus caracteres. Mas deve haver uma correspondência exata de um obelisco
ao outro, e cada signo deve receber seu sentido completo da analogia dos contrários;
Champollion encontrou traços do copta nos hieróglifos, um outro
sábio talvez encontrasse mais facilmente e mais felizmente o hebraico,
mas o que diriam se não fosse nem hebraico nem copta? Se fosse, por exemplo,
a língua universal primitiva? Ora, essa língua, que é a
da alta cabala, existiu certamente, existe na base do próprio hebraico
e de todas as línguas orientais que dele derivam, essa língua
é a do santuário, e as colunas da entrada dos templos geralmente
resumiam todos os seus símbolos. A intuição dos extáticos
aproxima-se mais da verdade sobre esses signos primitivos do que a própria
ciência dos sábios. Isso porque, como dissemos, o fluido vital,
universal, a luz astral, sendo princípio mediador entre as idéias
e as formas, obedece aos impulsos extraordinários da alma que procura
o desconhecido e fornece-lhe naturalmente os signos já encontrados, mas
esquecidos, das grandes revelações do ocultismo. Assim formaram-se
as pretensas assinaturas dos espíritos, assim produziram-se as escrituras
misteriosas de Gablidone que visitava o doutor Laváter, dos fantasmas
de Schroepfer, do São Miguel de Vintras e dos espíritos do senhor
Home.
Se a eletricidade pode mover um corpo leve ou mesmo pesado sem que seja tocado,
seria impossível, pelo magnetismo, dar à eletricidade uma direção
e assim produzir naturalmente sinais e escrituras? É certamente possível,
uma vez que isso é feito.
Assim, portanto, aos que nos perguntarem qual é o maior agente dos prodígios,
responderemos:
" É a matéria-prima da pedra filosofal.
" É a ELETRICIDADE MAGNETIZADA.
Tudo foi criado pela luz.
É na luz que a forma conserva-se.
É pela luz que a forma reproduz-se.
As vibrações da luz são o princípio do movimento
universal.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
102
Pela luz os sóis ligam-se uns aos outros e entrelaçam seus raios
como cadeias de eletricidade. Os homens e as coisas são imantados de
luz como os sóis e podem, por meio de cadeias eletromagnéticas
estendidas pelas simpatias e afinidades, comunicar-se uns com os outros de uma
à outra extremidade do mundo, acariciar-se ou bater-se, curar-se ou ferir-se
de modo natural certamente, mas prodigioso e invisível.
Aí está o segredo da magia.
A magia, a ciência que nos vem dos magos. A magia, a primeira das ciências.
A mais santa de todas, uma vez que estabelece de modo mais sublime as grandes
verdades religiosas. A mais caluniada de todas, porque o vulgo obstina-se em
confundir a magia com a bruxaria supersticiosa cujas práticas abomináveis
denunciamos.
É somente pela magia que pode, diante das questões enigmáticas
da Esfinge de Tebas e das obscuridades por vezes escandalosas difundidas nos
relatos da Bíblia, responder a tais perguntas e encontrar a solução
desses problemas da história judaica.
Os próprios historiadores sagrados reconhecem a existência e o
poder da magia que concorria abertamente com o de Moisés.
A Bíblia conta-nos que Janes e Mambres, os mágicos do Faraó,
fizeram em primeiro lugar os mesmos milagres que Moisés, e que declararam
impossíveis à ciência humana os que não puderam imitar.
Com efeito, é mais lisonjeiro para o amor-próprio de um charlatão
confessar o milagre do que declarar-se vencido pela ciência ou pela destreza
de um colega, sobretudo quando esse colega é um inimigo político
ou um adversário religioso.
Onde começa e onde termina o possível na ordem dos milagres mágicos?
Eis uma grave e importante questão. É certa a existência
dos fatos habitualmente classificados como milagres. Os magnetizadores e os
sonâmbulos fazem-nos todos os dias; a irmã Rose Tamisier os fez,
o iluminado Vintras ainda os faz; mais de quinze mil testemunhas atestavam ultimamente
os dos médiuns da América, dez mil camponeses do Berry e da Sologne
atestariam, se necessário, os do deus Cheneau (um antigo comerciante
de botões retirado dos negócios e que se acredita inspirado por
Deus). Todas essas pessoas são alucinadas ou espertalhonas? Alucinadas,
talvez, mas o próprio fato de ser sua alucinação idêntica,
seja separadamente, seja coletivamente, não é um milagre bastante
grande da parte de quem o produz sempre que deseja e no momento oportuno? Fazer
milagres ou persuadir a multidão de que os faz é quase a mesma
coisa, sobretudo num século tão leviano e tão zombeteiro
quanto o nosso. Ora, o mundo está cheio de taumaturgos, e a ciência
é freqüentemente obrigada a negar suas obras ou a recusar-se a vê-las
para não ser obrigada a examiná-las e atribuir-lhes uma causa.
No século passado, repercutiram em toda a Europa os prodígios
de Cagliostro. Quem não sabe de todo o poder que se atribuía a
seu vinho do Egito e a seu elixir? Que poderíamos acrescentar a tudo
o que se conta daquelas ceias do outro mundo, em que ele fazia aparecer em carne
e osso os personagens ilustres do passado? No entanto, Cagliostro estava longe
de ser um iniciado da primeira ordem, já que a grande associação
dos adeptos abandonou-o à inquisiçao romana, diante da qual, se
se deve acreditar nas peças de seu processo, deu uma ridícula
e odiosa explicação do trigrama maçônico L.'.P.'.D.'.
Mas os milagres não são um quinhão exclusivo dos iniciados
da primeira ordem e freqüentemente
são realizados por seres sem instrução e sem virtude. As
leis naturais encontram num organismo,
cujas qualidades excepcionais nos escapam, uma ocasião para exercerem-se,
e fazem sua obra, como
sempre, com precisão e calma. Os gourmets mais delicados apreciam as
trufas e consomem-nas, mas
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
103
são os porcos que as desenterram: analogicamente, ocorre o mesmo com
muitas coisas menos materiais e menos gastronômicas: os instintos procuram
e pressentem, mas apenas a ciência verdadeiramente encontra.
O progresso atual do conhecimento humano diminuiu muito as chances dos prodígios,
mas resta ainda um grande número deles, uma vez que não se conhece
nem a força da imaginação nem a razão de ser e o
poder do magnetismo. A observação das analogias universais foi
negligenciada e é por isso que não se crê mais na adivinhação.
Um sábio cabalista ainda pode, portanto, assustar a multidão e
confundir até mesmo as pessoas instruídas:
1º - Adivinhando as coisas ocultas;
2º predizendo muitas coisas futuras;
3º dominando a vontade dos outros de modo a impedi-los de fazer o que desejam
e a forçá-los a fazer o que não desejam;
4º excitando à vontade aparições e sonhos;
5º curando um grande número de doenças;
6º devolvendo a vida a sujeitos em que se manifestam todos os sintomas
da morte;
7º finalmente, demonstrando, com exemplos, se necessário, a realidade
da pedra filosofal e da transmutação dos metais, segundo os segredos
de Abraão, o Judeu, de Flamel e de Raimundo Lúlio. Todos esses
prodígios operam-se por meio de um único agente que os hebreus
chamavam OD, como o cavaleiro de Reichenbach; que chamamos luz astral, com a
escola de Pasqualis Martinez; que Mirville chama diabo; que os antigos alquimistas
denominavam azote. É o elemento vital que se manifesta pelos fenômenos
de calor, de luz, de eletricidade e de magnetismo, que imanta todos os globos
terrestres e todos os seres vivos. Nesse agente manifestam-se as provas da doutrina
cabalística sobre o equilíbrio e o movimento pela dupla polaridade,
em que uma atrai enquanto a outra repele, em que uma produz o quente, a outra
o frio, enfim em que uma dá uma luz azul e esverdeada, a outra uma luz
amarela e avermelhada.
Esse agente, por seus diferentes modos de imantação, atrai-nos
uns para os outros ou distancia-nos uns dos outros, submete um às vontades
do outro fazendo-o entrar em seu círculo de atração, restabelece
ou perturba o equilíbrio na economia animal por suas transmutações
e seus eflúvios alternativos, recebe e transmite as impressões
da força imaginária, que é no homem a imagem e a semelhança
do verbo criador, produz, assim, os pressentimentos e determina os sonhos. A
ciência dos milagres é, pois, o conhecimento dessa força
maravilhosa, e a arte de fazer milagres é tão simplesmente a arte
de imantar ou de iluminar os seres segundo as leis invariáveis do magnetismo
ou da luz astral.
Preferimos a palavra luz a magnetismo, porque ela é mais tradicional
no ocultismo e expressa de modo mais completo e perfeito a natureza do agente
secreto. Encontra-se aí, verdadeiramente, o ouro fluido e potável
dos mestres da alquimia, a palavra ouro vem do hebraico or, que significa luz.
"O que quereis?", perguntava-se aos recipiendários de todas
as iniciações. "Ver a luz", devia-se responder. O nome
iluminados, que comumente se dá aos adeptos, foi, pois, muito mal interpretado
quando lhe deram um sentido místico, como se significasse homens cuja
inteligência teria se tornado iluminada num dia miraculoso. Iluminados
quer dizer simplesmente conhecedores e possuidores da luz, seja pela ciência
do grande agente mágico, seja pela noção racional e ontológica
do absoluto.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
104
O agente universal é a força vital e subordinada à inteligência.
Abandonado a si próprio, devora rapidamente, como Moloch, tudo o que
gera, e transforma em vasta destruição a superabundância
da vida. É, então, a serpente infernal dos antigos mitos, o Tífon
dos egípcios e o Moloch da Fenícia; mas, se a sabedoria, mãe
dos Eloim, coloca-lhe o pé sobre a cabeça, extingue todas as chamas
vomitadas por ele e derrama sobre a terra, a mãos cheias, uma luz vivificante.
Do mesmo modo está dito no Zohar que no início de nosso período
terrestre, quando os elementos disputavam entre si a superfície do mundo,
o fogo, semelhante a uma serpente imensa, envolvera tudo em suas espirais e
ia consumir todos os seres, quando a clemência divina, erguendo à
sua volta as ondas do mar como uma vestimenta de nuvens, colocou o pé
sobre a cabeça da serpente e fê-la retornar ao abismo. Quem não
vê nessa alegoria o primeiro dado e a explicação mais razoável
de uma das imagens mais caras ao simbolismo católico, o triunfo da mãe
de Deus?
Os cabalistas dizem que o nome oculto do diabo, seu verdadeiro nome, é
o mesmo de Jehovah escrito às avessas. Isso é toda uma revelação
para o iniciado aos mistérios do tetragrama. De fato, a ordem das letras
desse grande nome indica a predominância da idéia sobre a forma,
do ativo sobre o passivo, da causa sobre o efeito. Invertendo-se essa ordem
obtém-se o contrário. Jehovah é aquele que doma a natureza
como a um cavalo bravio e a faz ir onde ele quer, chevajoh (o demônio)
é o cavalo sem freio que, semelhante aos dos egípcios no cântico
de Moisés, derruba seu cavaleiro arrastando-o consigo para o abismo.
O diabo, pois, existe de modo muito real para os cabalistas, mas não
é nem uma pessoa, nem um poder distinto das próprias forças
da natureza. O diabo é a divagação ou o sono da inteligência.
É a loucura e a mentira.
Assim explicam-se todos os pesadelos da Idade Média, assim explicam-se
também os estranhos símbolos de alguns iniciados, como os dos
Templários, por exemplo, bem menos culpados por terem prestado culto
a Baphomet do que por terem revelado sua imagem a profanos. O Baphomet, figura
panteística do agente universal, não é outra coisa senão
o demônio barbudo dos alquimistas. Sabe-se que os mais graduados na antiga
maçonaria hermética atribuíam a um demônio barbudo
dar conclusão à pedra filosofal, cabendo ao não iniciado
nesta palavra persignar-se e tapar a vista, mas os iniciados ao culto de Hermès-Panthée
compreendiam a alegoria e cuidavam em não explicá-la aos profanos.
Mirville, num livro atualmente quase esquecido, mas que teve certa repercussão
há alguns meses, deu-se muito trabalho para reunir algumas bruxarias
no gênero das que enchem as compilações dos Delancre, dos
Delrio e dos Bodin. Teria encontrado melhor do que isso na história.
E sem falar dos milagres tão averiguados dos jansenistas de PortRoyal
e do diácono Páris, que pode haver de mais maravilhoso do que
a grande monomania do marítimo que fez as crianças e as próprias
mulheres acorrerem ao suplício como a uma festa durante trezentos anos?
Que pode haver de mais magnífico do que essa fé entusiasta atribuída
durante tantos séculos aos mais incompreensíveis e, humanamente
falando, mais revoltantes dos mistérios? Nessa ocasião, direis,
os milagres vinham de Deus, e servimo-nos deles até como uma prova para
estabelecer a verdade da religião. Ora essa! Os heréticos também
deixavam-se matar por dogmas francamente bastante absurdos; sacrificavam, pois,
também a razão e a vida ao seu credo? Oh! com relação
aos heréticos é evidente que o diabo estava em jogo. Pobres-coitados
que tomavam o diabo por Deus e Deus pelo diabo! Como desiludiram-se quando os
fizeram reconhecer o verdadeiro Deus na caridade, na ciência, na justiça
e sobretudo na misericórdia de seus ministros!
Os necromantes, que fazem aparecer o diabo após uma série fatigante
e quase impossível das mais revoltantes evocações, são
apenas crianças ao pé do Santo Antônio da lenda que os tirava
aos milhares do inferno e os arrastava sempre consigo, como de Orfeu se conta
que atraía para si os carvalhos, as rochas e os animais mais selvagens.
Somente Callot, iniciado pelos boêmios nômades durante a infância
aos mistérios da bruxaria negra,
pôde compreender e reproduzir as evocações do primeiro eremita.
E credes que ao descreverem os
sonhos assustadores da maceração e do jejum, os legendários
tenham inventado? Não; ficaram muito
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
105
aquém da realidade. Os claustros, com efeito, sempre foram povoados por
espectros sem nome, cujas sombras e larvas infernais pulsam em suas paredes.
Certa vez, Santa Catarina de Sena passou oito dias em meio a uma orgia obscena
que teria desencorajado a veia poética de Aretino; Santa Teresa sentiu-se
transportada viva ao inferno e aí sofreu, entre muralhas que se juntavam,
angústias que apenas as mulheres histéricas poderão compreender...
Tudo isso, dir-se-á, passava-se na imaginação dos pacientes.
Mas onde, pois, quereis que se possam passar fatos de ordem sobrenatural? O
certo é que todos esses visionários viram, tocaram, tiveram o
sentimento lancinante de uma realidade aterradora. Falamos baseados em nossa
própria experiência, e há visões de nossa primeira
juventude passada num recolhimento e num ascetismo cuja lembrança ainda
nos faz estremecer.
Deus e o diabo são o ideal do bem e do mal absolutos. Mas o homem nunca
concebe o mal absoluto senão como uma falsa idéia do bem. Só
o bem pode ser absoluto, e o mal é relativo unicamente a nossas ignorâncias
e a nossos erros. Todo homem para ser deus faz-se primeiro diabo; mas, como
a lei da solidariedade é universal, a hierarquia existe no inferno como
no céu. Um ser malévolo sempre encontrará um pior do que
ele para fazer-lhe mal; e quando o mal atinge seu ápice é preciso
que cesse, pois só poderia continuar pelo aniquilamento do ser, o que
é impossível. Então os homens-diabo, esgotados seu recursos,
recaem no domínio dos homens-Deus e são salvos por aqueles que
inicialmente pareciam ser suas vítimas; mas o homem que se esmera em
viver fazendo o mal presta homenagem ao bem por toda a inteligência e
energia que desenvolve em si próprio. É por isso que o grande
iniciador dizia em sua linguagem figurada: Sede frios ou quentes, porque se
sois mornos fazeis-me vomitar.
O grande mestre, numa de suas parábolas, condena unicamente o preguiçoso
que enterrou seu depósito por medo de perdê-lo nas operações
arriscadas desse banco que se chama vida. Nada pensar, nada amar, nada querer,
nada fazer, eis o verdadeiro pecado. A natureza reconhece e recompensa apenas
os trabalhadores.
A vontade humana desenvolve-se e aumenta pela atividade. Para querer realmente,
é preciso agir. A ação domina e sempre arrasta a inércia.
Tal é o segredo da influência dos pretensos celerados sobre as
pessoas supostamente honestas. Quantos poltrões e covardes crêem-se
virtuosos porque têm medo! Quantas mulheres honradas olham com inveja
para as prostitutas! Não faz ainda muito tempo os galerianos estavam
na moda. Por quê? Pensais que a opinião pública nunca possa
render homenagem ao vício? Não, mas ela faz justiça à
atividade e à audácia, e está na ordem que os covardes
infames estimem os bandidos audaciosos.
A audácia unida à inteligência é a mãe de
todos os sucessos neste mundo. Para empreender, é preciso saber; para
realizar, é preciso querer; para querer verdadeiramente, é preciso
ousar; e, para recolher em paz os frutos da própria audácia, é
preciso calar-se.
SABER, OUSAR, QUERER, CALAR-SE são, como dissemos antes, os quatro verbos
cabalísticos que correspondem às quatro letras do tetragrama e
às quatro formas hieroglíficas da Esfinge. Saber é a cabeça
humana; ousar são as garras do leão; querer são as ilhargas
laboriosas do touro; calar-se são as asas místicas da águia.
Apenas mantém-se acima dos outros homens quem não prostitui os
segredos de sua inteligência aos comentários e ao escárnio
daqueles. Todos os homens verdadeiramente fortes são magnetizadores e
o agente universal obedece à sua vontade. É assim que eles operam
maravilhas. Fazem-se acreditar, fazem-se seguir e quando dizem:
Isto é assim, a natureza de certa forma muda aos olhos do vulgo e torna-se
o que o grande homem quis. Isto é minha carne e isto é meu sangue,
disse um homem que se fez Deus por suas virtudes e, em presença de um
pedaço de pão e de um pouco de vinho, dezoito séculos viram,
tocaram, provaram, adoraram a carne e o sangue divinizados pelo martírio!
Dizei-nos agora que a vontade humana nunca realiza milagres!
Não nos faleis aqui de Voltaire, Voltaire não foi um taumaturgo,
foi o espiritual e eloqüente
intérprete daqueles sobre os quais os milagres não agiam mais.
Tudo em sua obra é negativo; ao
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
106
contrário, tudo era afirmativo na de Galileu, como o chamava um ilustre
e muito infeliz imperador. Do mesmo modo, Juliano tentara em sua época
mais do que Voltaire pôde realizar, queria opor o prestígio aos
prestígios, a austeridade do poder à do protesto, as virtudes
às virtudes, os milagres aos milagres; os cristãos jamais tiveram
inimigos tão perigosos, e sentiram-no bem, pois Juliano foi assassinado,
e a lenda dourada ainda atesta que um santo mártir, acordado na tumba
pelos clamores da Igreja, pegou das armas e feriu o apóstata no ombro
em meio a seu exército e a suas vitórias. Tristes mártires
que ressuscitam para serem algozes! Crédulo imperador que se fiava em
seus deuses e nas virtudes dos tempos antigos.
Quando os reis da França viviam cercados pela adoração
de seu povo, quando eram vistos como os ungidos do Senhor e os primogênitos
da Igreja, curavam escrófulas. Um homem em voga fará milagres
quando quiser. Cagliostro podia ser apenas um charlatão, mas, desde que
a opinião pública fizera dele o divino Cagliostro, ele devia operar
prodígios, e foi também o que aconteceu. Quando Céphas
Barjona era apenas um judeu, proscrito por Nero e que vendia às mulheres
dos escravos um específico para a vida eterna, não passava de
um charlatão para todas as pessoas instruídas de Roma; mas a opinião
pública fez do empírico espiritualista um apóstolo; e os
sucessores de Pedro, sejam eles Alexandre VI ou mesmo João XXII, são
infalíveis para todo homem bem-educado e que não deseje ser inutilmente
banido da sociedade. Assim segue o mundo. O charlatanismo, quando bem-sucedido,
é, pois, em magia como em todas as coisas, um grande instrumento de poder.
Fascinar habilmente o vulgo não é já dominá-lo?
Vê-se que os pobres-diabos dos bruxos que, na Idade Média, tolamente
faziam-se queimar vivos não tinham um grande domínio sobre os
outros. Joana d'Arc era mágica à frente dos exércitos,
e em Rouen a pobre moça não foi bruxa. Sabia apenas orar e combater,
e o prestígio que a rodeava cessou assim que lhe colocaram os grilhões.
Consta de sua história que o rei da França a tenha reclamado?
Que a nobreza francesa, que o povo, que o exército tenham protestado
contra sua condenação? O papa, de quem o rei da França
era o primogênito, excomungou os algozes da Virgem? Não, nada disso.
Joana d'Arc foi bruxa para todos assim que deixou de ser mágica, e certamente
não foram os ingleses os únicos a queimá-la. Quando se
exerce um poder aparentemente sobre-humano, é preciso exercê-lo
sempre ou resignar-se a perecer. O mundo vinga-se sempre covardemente por ter
acreditado muito, admirado muito e sobretudo obedecido muito.
Só compreendemos o poder mágico em sua aplicação
às grandes coisas, se um verdadeiro mágico prático não
se torna mestre do mundo é porque o desdenha; e para que desejaria diminuir
seu soberano poder? "Eu te darei todos os reinos do mundo se tu caíres
a meus pés e me adorares", diz a Jesus o satã da parábola.
"Retira-te", diz-lhe o Salvador, "pois está escrito: Tu
adorarás somente a Deus..." Eli, Eli lammah Sabbachtani! devia gritar
mais tarde esse sublime e divino adorador de Deus. Se tivesse respondido a satã:
Não te adorarei e és tu que vais cair a meus pés, pois
ordeno-te em nome da inteligência e da eterna razão!, não
teria devotado sua santa e nobre vida ao mais atroz de todos os suplícios.
O satã da montanha foi bem cruelmente vingado. Os antigos chamavam a
magia prática de arte sacerdotal e arte real; e lembramos que os magos
foram os mestres da civilização primitiva, porque foram os mestres
de toda a ciência de seu tempo. Saber é poder quando se ousa querer.
A primeira ciência do cabalista prático ou do mago é o conhecimento
dos homens. A frenologia, a psicologia, a quiromancia, a observação
dos gostos e dos movimentos, do som da voz e das impressões, sejam simpáticas,
sejam antipáticas, são ramos dessa arte, e os antigos não
os ignoravam. Gall e Spurzëim reencontraram em nossos dias a frenologia,
Laváter depois de Porta.
Cardano, Taisnier, Jean Belot e alguns outros novamente adivinharam mais do
que reencontraram a
ciência da psicologia; a quiromancia está ainda oculta e é
com dificuldade que se encontram alguns
traços seus na obra bastante recente e muito interessante, aliás,
do cavalheiro d'Arpentigny. Para se
ter noções suficientes dessa ciência é preciso remontar
às próprias fontes cabalísticas em que se
inspirou o sábio Cornélius Agrippa. É oportuno, pois, dizer
algumas palavras a esse respeito,
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
107
enquanto aguardamos a obra de nosso amigo Desbarolles.
A mão é no homem o instrumento da ação; é,
como o rosto, uma espécie de síntese nervosa, e também
deve ter seus traços e sua fisionomia. O caráter dos indivíduos
está traçado aí em signos irrefutáveis. Assim, dentre
as mãos, umas são laboriosas, outras preguiçosas; umas
pesadas e quadradas, outras insinuantes e leves. As mãos duras e secas
são feitas para a luta e o trabalho, as mãos macias e úmidas
aspiram somente à volúpia. Os dedos pontudos são escrutadores
e místicos, os dedos quadrados, matemáticos, os dedos espatulados,
pertinazes e ambiciosos. O polegar, pollex, o dedo da força e do poder,
corresponde no simbolismo cabalístico à primeira letra do nome
de Jehovah. Esse dedo, pois, é por si só como a síntese
da mão: se ele é forte, o homem é forte moralmente; se
é fraco, o homem é frágil. Ele possui três falanges,
das quais a primeira está oculta na palma da mão, como o eixo
imaginário do mundo atravessa a espessura da terra. Essa primeira falange
corresponde à vida física, a segunda à inteligência,
a última à vontade. As palmas da mão gordas e espessas
denotam gostos sensuais e uma, grande força física; um polegar
longo, sobretudo em sua última falange, revela uma vontade forte que
pode chegar ao despotismo; polegares curtos, ao contrário, são
caracteres dóceis e fáceis de dominar. As pregas naturais da mão
determinam suas linhas. Essa linhas, portanto, são o traço dos
hábitos, e o observador paciente saberá reconhecê-las e
julgá-las. O homem cuja mão fecha-se mal é desastrado ou
infeliz. A mão tem três funções principais: pegar,
segurar e apalpar. As mãos mais macias pegam e apalpam melhor; as mãos
duras e fortes retêm mais tempo. Mesmo as mais leves rugas atestam as
sensações habituais desse órgão. Cada dedo, aliás,
tem uma função especial que lhe ocasionou o nome. Já falamos
do polegar; o indicador é o dedo que aponta, é o do verbo e da
profecia; o médio domina toda a mão, é o do destino; o
anular é o das alianças e das honras: os quiromantes consagraram-no
ao sol; o auricular é insinuante e loquaz, ao menos no dizer dos simplórios
e das amas a quem seu dedinho conta tantas coisas: a mão tem sete protuberâncias
que os cabalistas, segundo as analogias naturais, atribuíram aos sete
planetas: a do polegar, a Vênus; do indicador, a Júpiter; do médio,
a Saturno; do anular, ao Sol; do auricular, a Mercúrio; dos dois outros,
a Marte e à Lua. De acordo com sua forma e sua predominância, eles
julgavam os atrativos, as aptidões e, por conseguinte, os prováveis
destinos dos indivíduos submetidos à sua apreciação.
Não existe vício que não deixe marca, nem uma virtude que
não tenha seu sinal. Além disso, para os olhos exercitados do
observador, não há hipocrisia possível. Compreender-se-á
que tal ciência já é um poder verdadeiramente sacerdotal
e real.
A predição dos principais acontecimentos da vida já é
possível pelas numerosas probabilidades analógicas dessa observação,
contudo existe uma faculdade que se designa pressentimentos ou sensitivismo.
As coisas eventuais freqüentemente existem em sua causa antes de realizarem-se
em ações, os sensitivos vêem antecipadamente os efeitos
nas causas, e existiram antes de todos os grandes acontecimentos surpreendentes
predições. Durante o reinado de Luís Filipe, ouvimos sonâmbulos
e extáticos anunciarem a volta do Império e precisarem a data
de seu advento. A República de 1848 estava claramente anunciada na profecia
de Orval, que datava no mínimo de 1830 e de que suspeitamos, bem como
daquelas atribuídas aos Olivarius, ter sido obra pseudônima de
Mlle. Lenormand. Mas isso pouco importa para nossa tese.
Essa luz magnética que faz prever o futuro também faz adivinhar
as coisas presentes e ocultas; como
é a vida universal, ela é também o agente da sensibilidade
humana, transmitindo a uns os males ou a
saúde dos outros, segundo a influência fatal dos contatos ou as
leis da vontade. É o que explica o
poder das bênçãos e dos feitiços tão claramente
reconhecido pelos grandes adeptos e sobretudo pelo
maravilhoso Paracelso. Um crítico judicioso e sagaz, M. Ch. Fauvety,
num artigo publicado pela
Revista Filosófica e Religiosa, aprecia de modo notável os trabalhos
avançados de Paracelso,
Pomponace, Goglenius, Crollius e Robert Flud sobre o magnetismo. Mas o que nosso
sábio amigo e
colaborador estuda somente como uma curiosidade filosófica, Paracelso
e os seus praticavam sem
preocuparem-se muito em torná-lo compreensível para o mundo, pois
era segundo eles, um desses
segredos tradicionais para os quais o ocultismo é de rigor, e que basta
indicar aos que sabem,
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
108
deixando sempre um véu sobre a verdade para desorientar os ignorantes.
Ora, eis o que Paracelso reservava somente para os iniciados, e que compreendemos
ao definir os caracteres cabalísticos e as alegorias de que ele faz uso
na coleção de suas obras:
A alma humana é material, o mens divino lhe é oferecido para imortalizá-la
e fazê-la viver espiritual e individualmente, mas sua substância
natural é fluídica e coletiva. Há no homem, pois, duas
vidas, a individual ou racional, e a vida comum ou instintiva. É por
esta última que se pode viver uns nos outros, uma vez que a alma universal,
como todo organismo nervoso com uma consciência separada, é a mesma
para todos. Vivemos da vida comum e universal no embrionato, no êxtase
e no sono. De fato, no sono a razão não age, e a lógica,
quando é encontrada em nossos sonhos, ocorre apenas fortuitamente e segundo
os acasos das reminiscências puramente físicas.
Nos sonhos, temos a consciência da vida universal; misturamo-nos à
água, ao fogo, ao ar e à terra; voamos como os pássaros;
escalamos como os esquilos; rastejamos como as serpentes; estamos embriagados
de luz astral; tornamos a mergulhar na morada comum, como acontece de modo mais
completo na morte; mas então (e é assim que Paracelso explica
os mistérios da outra vida) os maus, isto é, aqueles que se deixaram
dominar pelos instintos da besta em prejuízo da razão humana,
afogam-se no oceano da vida comum com todas as angústias de uma morte
eterna; os outros flutuam e gozam para sempre das riquezas daquele ouro fluido
que conseguiram dominar. Essa identidade da vida física permite às
vontades mais fortes apoderarem-se da existência das outras e tornarem-se
suas auxiliares, explica as correntes simpáticas que ocorrem em proximidade
ou à distância, e dá todo o segredo da medicina oculta,
porque essa medicina tem por princípio a grande hipótese das analogias
universais e, atribuindo todos os fenômenos da vida física ao agente
universal, ensina que é preciso agir sobre o corpo astral para reagir
sobre o corpo materialmente visível; ensina também que a essência
da luz astral é um duplo movimento de atração e de projeção;
assim como os corpos humanos atraem-se e repelem-se uns aos outros, podem também
absorver-se, propagar-se uns nos outros e realizar trocas; as idéias
ou as imaginações de um podem influenciar sobre a forma do outro
e reagir em seguida sobre o corpo exterior. Assim produzem-se os fenômenos
tão estranhos da influência dos olhares na gravidez, assim a proximidade
de pessoas doentes causa maus sonhos, assim a alma respira algo de insalubre
na companhia dos loucos e dos maus.
Pode-se observar que nos pensionatos as crianças adquirem um pouco a
fisionomia umas das outras; cada casa de educação tem, por assim
dizer, um ar de família que lhe é próprio. Nos escolas
de órfãs dirigidas por religiosas, todas as garotas parecem-se
e adquirem todas essa fisionomia obediente e apagada que caracteriza a educação
ascética. Os homens tornam-se belos na escola do entusiasmo, das artes
ou da glória; tornam-se feios na prisão, e de ar triste nos seminários
e nos conventos. Aqui se compreende que abandonamos Paracelso para entrar nas
conseqüências e nas aplicações de suas idéias,
que são simplesmente as dos antigos magos e os elementos dessa cabala
física que chamamos magia.
Segundo os princípios cabalísticos formulados pela escola de Paracelso,
a morte seria apenas um
sono cada vez mais profundo e definitivo, que seria possível interromper
em seu início exercendo
uma poderosa ação de vontade sobre o corpo astral que se desprende
e chamando-o de volta à vida
por algum interesse poderoso ou alguma afeição dominante. Jesus
exprimia o mesmo pensamento
quando dizia da filha de Jairo: "Esta moça não está
morta, está dormindo"; e de Lázaro: "Nosso
amigo adormeceu e vou acordá-lo." Para exprimir esse sistema ressurreicionista
de modo que não
ofenda o senso comum, isto é, as opiniões geralmente adotadas,
digamos que a morte, quando não há
destruição ou alteração essencial dos órgãos,
é sempre precedida de uma letargia mais ou menos
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
109
longa. (A ressurreição de Lázaro, se tivesse de ser admitida
como fato científico, provaria que esse estado pode durar quatro dias).
Voltemos agora ao segredo da pedra filosofal que demos somente em hebraico não
pontuado no Ritual da Alta Magia. Eis o texto completo em latim, tal como é
encontrado à página 144 do Sepher Yétsirah, comentado pelo
alquimista Abraão (Amsterdam, 1642):
Semita XXXI
Vocatur intelligentia perpetua; et quare vocatur ita? Eo quod ducit motum solis
et lunae juxta constitutionem eorum; utrumque in orbe sibi conveniente.
Rabbi Abraham F.'. D.'. dicit:
Semita trigésima prima vocatur intelligentia perpetua: et illa ducit
solem et lunam et reliquas stellas et figuras, unum quodque in orbe suo, et
impertit omnibus creatis juxta dispositionem ad signa et figuras.
Eis a tradução do texto hebraico que transcrevemos em nosso ritual:
"A trigésima primeira via chama-se inteligência perpétua
e rege o sol e a lua e as outras estrelas e figuras, cada qual em seu orbe respectivo.
E distribui o que convém a todas as coisas criadas segundo sua disposição
nos signos e nas figuras."
Vê-se que esse texto é ainda totalmente obscuro para alguém
que não conhece o valor característico de cada uma das trinta
e duas vias. (As trinta e duas vias são os dez números e as vinte
e duas letras hieroglíficas da Cabala. A trigésima primeira refere-se
ao a , que representa a lâmpada mágica ou a luz entre os chifres
de Baphomet. É o signo cabalístico do od ou da luz astral com
seus dois pólos e seu centro equilibrado. Sabe-se que na linguagem dos
alquimistas o sol significa o olho, a lua, a prata, e que as outras estrelas
ou planetas referem-se aos outros metais. Deve-se compreender agora o pensamento
do judeu Abraão.
O fogo secreto dos mestres em alquimia era, pois, a eletricidade, e aí
está a metade de seu grande arcano; mas eles sabiam equilibrar sua força
por uma influência magnética que concentravam em seu atanor. É
o que resulta dos dogmas obscuros de Basílio Valentim, Bernard Trévisan
e Henri Kunrath, que pretendem, todos, ter operado a transmutação
como Raimundo Lúlio, Arnaud de Villeneuve e Nicolas Flamel.
A luz universal, quando imanta os mundos, chama-se luz astral; quando forma
os metais, denomina-se azote, ou mercúrio dos sábios; quando dá
vida aos animais, deve chamar-se magnetismo animal.
O bruto sofre as fatalidades dessa luz; o homem pode dirigi-la. É a inteligência
que, ao adaptar o sinal ao pensamento, cria as formas e as imagens.
A luz universal é como a imaginação divina, e esse mundo
que muda sem cessar, permanecendo sempre o mesmo quanto às suas leis
de configuração, é o sonho imenso de Deus.
O homem formula a luz por sua imaginação; atrai para si luz suficiente
para dar as formas
convenientes a seus pensamentos e mesmo a seus sonhos; se essa luz o invade,
se afoga seu
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
110
entendimento nas formas que evoca, fica louco. Mas a atmosfera fluídica
dos loucos freqüentemente é um veneno para as razões vacilantes
e para as imaginações exaltadas. As formas que a imaginação
superexcitada produz para perturbar o entendimento são tão reais
quanto as impressões da fotografia. Não se pode ver o que não
existe. Os fantasmas dos sonhos, e os próprios sonhos das pessoas acordadas,
são, pois, imagens reais que existem na luz. Existem, aliás, alucinações
contagiosas. Mas afirmamos aqui algo mais do que alucinações comuns.
Se as imagens atraídas pelos cérebros doentes são algo
real, eles não podem projetá-las exteriormente, reais como as
recebem?
Essas imagens, projetadas por todo o organismo nervoso do médium, não
podem afetar todo o organismo daqueles que, deliberadamente ou não, entram
em simpatia nervosa com o médium? Os feitos do senhor Home provam que
tudo isso é possível.
Agora, respondamos aos que crêem ver nesses fenômenos manifestações
do outro mundo e fatos de necromancia.
Tomamos nossa resposta emprestada ao livro sagrado dos cabalistas, e nisto nossa
doutrina é igual à dos rabinos compiladores do Zohar.
Axioma
O espírito reveste-se para descer e despoja-se para subir.
De fato: Por que os espíritos criados são revestidos de corpos?
É que eles devem ser limitados para terem uma existência possível.
Despojados de corpo e, por conseguinte, tornados sem limites, os espíritos
criados se perderiam no infinito, e, por não poderem concentrar-se em
algum lugar, estariam mortos e impotentes em toda a parte, porque estariam precipitados
na imensidão de Deus.
Todos os espíritos, portanto, têm corpos, uns mais delgados, outros
mais espessos, segundo os meios em que foram chamados a viver.
A alma de um morto não poderia, pois, viver na atmosfera dos vivos, assim
como nós não poderíamos viver na terra ou na água.
Seria necessário a um espírito aéreo, ou antes, etéreo,
um corpo factício semelhante aos aparelhos de mergulhadores, para que
pudesse chegar até nós.
Tudo o que podemos ver dos mortos são os reflexos que deixaram na luz
atmosférica, luz cujas impressões evocamos pela simpatia de nossas
lembranças.
As almas dos mortos estão acima de nossa atmosfera. Nosso ar respirável
torna-se terra para eles.
Foi o que o Salvador declarou em seu Evangelho, quando fez a alma de um bem-aventurado
dizer:
"Agora o grande caos firmou-se para nós, e os que estão no
alto não podem mais descer para os que estão embaixo."
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
111
As mãos que o senhor Home faz aparecer são, pois, ar colorido
pelos reflexos que sua imaginação doente atrai e projeta.
São tocadas como são vistas: metade ilusão, metade força
magnética e nervosa.
A nosso ver aí estão explicações bastante claras
e precisas.
Raciocinemos um pouco com os partidários de aparições do
outro mundo:
Ou essas mãos são corpos reais.
Ou são ilusões.
Se são corpos, não são, portanto, espíritos.
Se são ilusões produzidas por miragens, seja em nós, seja
fora de nós, então vós me dais ganho de causa.
Agora, uma observação:
Todos os doentes de congestão luminosa ou de sonambulismo contagioso
perecem de morte violenta, ou pelo menos de morte súbita.
É por essa razão que antigamente se atribuía ao diabo o
poder de estrangular os bruxos.
O bom e honesto Laváter evocava habitualmente o suposto espírito
de Gablidone.
Foi assassinado.
Um vendedor de limonadas de Leipsick, Scroepfer, evocava imagens animadas dos
mortos.
Suicidou-se com um tiro de pistola.
Sabe-se qual foi o final infeliz de Cagliostro.
Apenas um mal maior que a própria morte pode salvar a vida desses experimentadores
imprudentes. Podem tornar-se idiotas ou loucos, e então só não
morrem se forem atentamente vigiados para impedir que se suicidem.
As doenças magnéticas por si próprias são um encaminhamento
para a loucura, e sempre nascem da hipertrofia ou da atrofia do sistema nervoso.
Assemelham-se ao histerismo, que é uma de suas variações,
e freqüentemente são produzidas ou por excessos de celibato, ou
por excessos de um gênero totalmente oposto. Sabe-se qual a relação
existente entre o cérebro e os órgãos encarregados pela
natureza da realização de suas obras mais nobres: as que têm
por finalidade a reprodução dos seres. Não se viola impunemente
o santuário da natureza.
Ninguém ergue, sem arriscar a própria vida, o véu da grande
Ísis.
A natureza é casta, e é à castidade que ela deve as chaves
da vida.
Entregar-se aos amores impuros é desposar a morte.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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A liberdade, que é a vida da alma, se conserva apenas na ordem da natureza.
Toda desordem voluntária a fere, um excesso prolongado a mata.
Então, ao invés de sermos guiados e preservados pela razão,
somos abandonados às fatalidades do fluxo e do refluxo da luz magnética.
Ora, a luz magnética devora sem cessar porque está sempre criando;
para produzir continuamente, é preciso eternamente absorver.
Daí vêm as monomanias assassinas e as tentações de
suicídio. Daí vem esse espírito de perversidade que Edgar
Poe descreveu de forma tão impressionante e tão verdadeira, e
que Mirville teria razão em chamar diabo.
O diabo é a vertigem da inteligência atordoada pelas oscilações
do coração. É a monomania do nada, é a atração
do abismo, independentemente do que isso possa ser segundo as decisões
da fé católica, apostólica e romana, em que não
receamos tocar. Quanto à reprodução dos signos e dos caracteres
por esse fluido universal a que chamamos luz astral, negar sua possibilidade
seria importar-se pouco com os fenômenos mais comuns da natureza. A miragem
nas estepes da Rússia, os palácios da fada Morgana, as figuras
impressas naturalmente no coração das pedras que Gaffarel denomina
gamahés, a configuração monstruosa de algumas crianças
proveniente dos olhares ou pesadelos das mães, todos esses fenômenos
e muitos outros provam que a luz está repleta de imagens e reflexos que
projeta e reproduz de acordo com as evocações da imaginação,
da lembrança ou do desejo. A alucinação não é
sempre um devaneio sem objeto: desde que todos vêem uma coisa, ela certamente
é visível; mas, se essa coisa é absurda, deve-se rigorosamente
concluir que todos estão enganados ou alucinados por uma aparência
real. Dizer, por exemplo, que nas sessões magnéticas do senhor
Home saem das mesas mãos reais e vivas, mãos verdadeiras, que
uns vêem, que outros tocam, e pelas quais outros ainda sentem-se tocados
sem vê-Ias, dizer que essas mãos verdadeiramente corporais são
mãos de espíritos é falar como crianças ou como
loucos, é implicar contradição nos termos. Mas reconhecer
que esta ou aquela aparência, esta ou aquela sensação se
produz é ser simplesmente sincero e zombar da zombaria dos homens probos
ainda quando esses homens fossem espirituosos como este ou aquele redator brincalhão
do jornal.
Esses fenômenos de luzes que produzem aparições mostraram-se
sempre em épocas difíceis para a humanidade. São os fantasmas
da febre do mundo, é o histerismo de uma sociedade que se entedia. Virgílio
conta-nos em belos versos que, na época de César, Roma estava
repleta de espectros; sob Vespasiano, as portas do Templo de Jerusalém
abriam-se sozinhas, e ouvia-se gritar: "Os deuses se vão."
Ora, quando os deuses partem, os diabos retornam. O sentimento religioso transforma-se
em superstição quando a fé está perdida; pois as
almas têm necessidade de acreditar, porque têm sede de ter esperança.
Como a fé pode perder-se? Como a ciência pode duvidar do infinito
e da harmonia? Porque o santuário do absoluto está sempre fechado
para a maioria. Mas o reino da verdade, que é o de Deus, sofre violências
e deve ser conquistado pelos fortes. Existe um dogma, uma chave, uma tradição
sublime; e esse dogma, essa chave, essa tradição é a alta
magia. Apenas aí encontram-se o absoluto da ciência e a base eterna
da lei, o preservativo contra toda loucura, toda superstição e
todo erro, o Éden da inteligência, o repouso do coração
e a quietude da alma. Não dizemos isso na esperança de convencer
os que riem, mas somente para advertir os que procuram. Coragem e esperança
a estes; eles certamente encontrarão, uma vez que nós encontramos.
O dogma mágico não é aquele dos médiuns. Os médiuns
que dogmatizam só podem ensinar a
anarquia, uma vez que sua inspiração resulta de uma exaltação
desordenada. Eles sempre prevêem
desastres, negam a autoridade hierárquica, assumem a postura de soberanos
pontífices, como
Vintras. O iniciado, ao contrário, respeita antes de tudo a hierarquia,
ama e conserva a ordem,
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
113
inclina-se diante das crenças sinceras, ama todos os signos da imortalidade
na fé e da redenção pela caridade, que é toda ela
disciplina e obediência.
Acabamos de ler um livro publicado sob a influência da vertigem astral
e magnética e ficamos chocados com as tendências anárquicas
de que ele está repleto sob uma grande aparência de benevolência
e religião. Encabeçando a obra, vê-se o signo, ou, como
dizem os magistas, a assinatura das doutrinas que ela ensina. Em vez da cruz
cristã, símbolo de harmonia, aliança e regularidade, vê-se
aí a vara de videira tortuosa, com seus brotos em gavinhas, imagens da
alucinação e da embriaguez.
As primeiras idéias formuladas nesse livro são o cúmulo
do absurdo. As almas dos mortos, diz ele, estão em toda a parte, e nada
mais as limita. Eis o infinito todo povoado de deuses que entram uns nos outros.
As almas podem e querem comunicar-se conosco por meio das mesas e dos chapéus.
Assim, nada mais de ensino regulamentado, de sacerdócio, de Igreja, o
delírio alçado à condição de verdade, oráculos
que escrevem para a salvação do gênero humano a palavra
atribuída a Cambronne, grandes homens que deixam a serenidade dos destinos
eternos para fazer dançarem nossos móveis e manter conosco conversas
semelhantes àquelas que lhes empresta Béroalde de Verville como
meio de ter sucesso. Tudo isso causa piedade; e no entanto, na América,
propaga-se como uma peste intelectual. A jovem América delira, tem febre,
talvez esteja em sua primeira dentição. Mas a França! A
França acolher semelhantes coisas! Não, isso não é
possível, e isso não é. Mas, ao renegarem as doutrinas,
os homens sérios devem observar os fenômenos, permanecer calmos
em meio às agitações de todos os fanatismos (pois a incredulidade
também tem o seu), julgar após haver examinado. Conservar a razão
em meio aos loucos, a fé em meio às superstições,
a dignidade em meio aos caracteres enfraquecidos e a independência em
meio aos carneiros de Panurgo é de todos os milagres o mais raro, o mais
belo e também o mais difícil de realizar.
Capitulo IV
Os fantasmas fluídicos e seus mistérios
Os antigos davam-lhes diferentes nomes. Eram larvas, lêmures, empusas.
Gostavam do vapor do sangue derramado, e fugiam do gume do gládio.
A teurgia evocava-os, e a cabala conhecia-os sob o nome de espíritos
elementares.
No entanto, não eram espíritos, pois eram mortais.
Eram coagulações fluídicas que se podiam destruir, dividindo-as.
Eram espécies de miragens animadas, emanações imperfeitas
da vida humana: as tradições da magia negra as fazem nascer do
celibato de Adão. Paracelso diz que os vapores do sangue das mulheres
histéricas povoam o ar de fantasmas; e essas idéias são
tão antigas que as encontramos em Hesíodo, que defende expressamente
fazer secar diante do fogo roupa branca manchada por uma poluição
qualquer.
As pessoas obcecadas pelos fantasmas geralmente estão exaltadas por um
celibato muito rigoroso, ou enfraquecidas por excessos de devassidão.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
114
Os fantasmas fluídicos têm os abortos da luz vital; são
mediadores plásticos sem corpo e sem espírito, nascidos dos excessos
do espírito e dos desregramentos do corpo. Esses mediadores errantes
podem ser atraídos por certos doentes que lhes são fatalmente
simpáticos, e que lhes emprestam, às suas expensas, uma existência
factícia mais ou menos durável. Servem, então, de instrumentos
suplementares para as vontades instintivas desses doentes: nunca, todavia, para
curá-los, sempre para desviá-los e aluciná-los mais.
Se os embriões corporais têm a propriedade de tomar as formas que
lhes dá a imaginação das mães, os embriões
fluídicos errantes devem ser prodigiosamente variáveis e transformar-se
com uma surpreendente facilidade. Sua tendência a darem-se um corpo para
atrair uma alma faz com que condensem e assimilem, naturalmente, as moléculas
corporais que flutuam na atmosfera. Assim, ao coagularem o vapor do sangue,
refazem sangue, o mesmo sangue que os maníacos alucinados vêem
escorrer nos quadros e nas estátuas. Mas não são os únicos
a vê-lo. Vintras e Rose Tamisier não são impostores nem
vítimas de alguma ilusão; o sangue escorre realmente; médicos
examinam-no; analisam-no; é sangue, verdadeiro sangue humano: de onde
vem? Pode ter se formado espontaneamente na atmosfera? Pode sair naturalmente
de um mármore, unia tela pintada ou uma hóstia? Não, certamente;
esse sangue circulou em veias, depois propagou-se, evaporou-se, dessecou-se,
o soro tornou-se vapor, os glóbulos poeira intangível, o todo
flutuou e voltejou na atmosfera, depois foi atraído para a corrente de
um eletromagnetismo especificado. O soro voltou a ser líquido, retomou
e embebeu novamente os glóbulos que a luz astral coloriu, e o sangue
escorreu. A fotografia é prova suficiente de que as imagens são
modificações reais da luz. Ora, existe uma fotografia acidental
e fortuita que opera, segundo as miragens errantes na atmosfera, impressões
duráveis em folhas de árvores, na madeira e até no coração
das pedras: assim formam-se as figuras naturais a que Gaffarel consagrou várias
páginas em seu livro Curiosidades Inauditas, as pedras a que ele atribui
uma virtude oculta, e que denomina gamahés; assim traçam-se as
escrituras e os desenhos que tanto surpreendem os observadores dos fenômenos
fluídicos. São fotografias astrais feitas pela imaginação
dos médiuns com ou sem a ajuda das larvas fluídicas. A existência
dessas larvas nos foi demonstrada de modo peremptório por uma experiência
bastante curiosa. Várias pessoas, para testar o poder mágico do
americano Home, pediram-lhe que evocasse parentes que elas alegavam ter perdido,
mas que na realidade jamais existiram. Os espectros não faltaram a esse
apelo, e os fenômenos que habitualmente seguiam-se à evocação
do médium manifestaram-se plenamente.
Essa experiência por si só bastaria para convencer de credulidade
deplorável e de erro formal os que crêem na intervenção
dos espíritos nesses fenômenos estranhos. Para que mortos retornem,
é preciso antes de mais nada que tenham existido, e demônios não
seriam tão facilmente enganados por nossas mistificações.
Como todos os católicos, acreditamos na existência dos espíritos
das trevas; mas sabemos também que o poder divino lhes deu as trevas
por prisão eterna e que o Redentor viu Satã cair do céu
como um raio. Se os demônios nos tentam é pela cumplicidade voluntária
de nossas paixões más, e não lhes é permitido afrontar
o império de Deus e perturbar, por manifestações tolas
e inúteis, a ordem eterna da natureza.
Os caracteres e assinaturas diabólicos, que se produzem à revelia
dos médiuns, evidentemente não são provas de um pacto tácito
ou formal entre esses doentes e as inteligências do abismo. Esses signos
serviram em todos os tempos para exprimir a vertigem astral e permaneceram no
estado de miragem nos reflexos da luz extraviada. A natureza também tem
suas reminiscências e envia-nos os mesmos signos com relação
às mesmas idéias. Não há nisso nada de sobrenatural
nem de infernal.
"Como quer o senhor que eu admita", dizia-nos o pároco Charvoz,
primeiro vigário de Vintras, "que
Satã ousa imprimir seus hediondos estigmas nas espécies consagradas
e tornadas o próprio corpo de
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
115
Jesus Cristo?" Declaramos logo que nos era igualmente impossível
pronunciarmo-nos a favor de semelhante blasfêmia; no entanto, como demonstramos
em nossos folhetins do jornal O Estafeta, os signos impressos em caracteres
sangrentos nas hóstias de Vintras, regularmente consagradas por Charvoz,
eram os que, na magia negra, são absolutamente reconhecidos como as assinaturas
dos demônios.
As escrituras astrais são freqüentemente ridículas ou obscenas.
Os pretensos espíritos, interrogados sobre os maiores mistérios
da natureza, respondem muitas vezes com uma expressão grosseira tornada
heróica, segundo dizem, nos lábios militares de Cambronne. Os
desenhos que os lápis traçam por si sós reproduzem com
freqüência essas figuras priápicas informes, que o pálido
vadio, para servirmo-nos da pitoresca expressão de Augusto Barbier, desenha
assoviando ao longo dos muros de Paris, prova recente do que adiantamos, isto
é, que o espírito não preside de nenhum modo a essas manifestações
e que seria soberbamente absurdo reconhecer aí sobretudo a intervenção
dos espíritos desligados da matéria.
O jesuíta Paul Saufidius, que escreveu sobre os usos e costumes dos japoneses,
narra um caso muito interessante. Um grupo de peregrinos japoneses, atravessando
um dia um deserto, viu aproximar-se um bando de espectros em igual número
ao seu e que caminhava no mesmo passo. Esses espectros, no princípio
disformes e semelhantes a larvas, tomavam ao se aproximarem a aparência
do corpo humano. Logo, encontraram os peregrinos e misturaram-se a eles, deslizando
em silêncio por entre as fileiras, então os japoneses viram-se
duplos, tendo cada fantasma se tornado a imagem perfeita e como que a miragem
de cada peregrino. Os japoneses aterrorizados prosternaram-se, e o bonzo que
os conduzia pôs-se a orar por eles com grandes contorsões e em
altos brados. Quando os peregrinos se levantaram, os fantasmas haviam desaparecido
e o grupo devoto pôde continuar livremente seu caminho. Esse fenômeno,
que não colocamos em dúvida, apresenta as duplas características
de uma miragem e de uma projeção repentina de larvas astrais,
ocasionadas pelo calor da atmosfera e esgotamento fanático dos peregrinos.
O doutor Brière de Boismont, em seu curioso Tratado das Alucinações,
conta que um homem perfeitamente sensato, e que jamais tivera visões,
foi atormentado uma manhã por um terrível pesadelo. Viu em seu
quarto um macaco enorme, horrendo, que rangia os dentes e fazia as mais hediondas
contorsões. Acordou sobressaltado, era dia claro; saltou da cama e ficou
apavorado ao ver realmente o medonho objeto de seu sonho. O macaco estava lá
perfeitamente idêntico àquele do pesadelo, igualmente absurdo,
igualmente assustador e fazendo as mesmas caretas. O personagem em questão
não podia acreditar em seus olhos; permaneceu cerca de meia hora imóvel,
observando esse singular fenômeno e perguntando-se se estava com febre
alta ou se estava ficando louco. Aproximou-se, enfim, do fantástico animal
para tocá-lo e a aparição dissipou-se. Cornelius Gemma,
em sua História Crítica Universal, conta que em 454, na ilha de
Creta, o fantasma de Moisés apareceu para alguns judeus na praia; trazia
na fronte seus chifres luminosos, na mão sua vara fulminante, e convidava-os
a segui-lo apontando-lhes o horizonte na direção da Terra Santa.
A notícia desse prodígio espalhou-se, e uma multidão de
israelitas precipitou-se em direção à margem. Todos viram,
ou imaginaram ter visto, a maravilhosa aparição: eram em número
de vinte mil, no dizer do cronista, que supomos ter exagerado um pouco. Logo
as cabeças esquentam-se, as imaginações exaltam-se; acredita-se
num milagre mais extraordinário do que foi outrora a travessia do mar
Vermelho. Os judeus formam-se em colunas cerradas e correm em direção
ao mar; os últimos empurravam os primeiros com frenesi: acreditavam ver
o suposto Moisés caminhando sobre as águas. Foi um terrível
desastre: essa multidão quase toda afogou-se, e a alucinação
só se extinguiu com a vida da maioria desses infelizes visionários.
O pensamento humano cria o que imagina; os fantasmas da superstição
projetam sua disformidade
real na luz astral e vivem dos próprios terrores que os conceberam. Esse
gigante negro que estende
suas asas do oriente ao ocidente para ocultar ao mundo a luz, esse monstro que
devora as almas, essa
aterrorizante divindade da ignorância e do medo, numa palavra, o diabo,
ainda é, para uma multidão
de crianças de todas as idades, uma aterradora realidade. Em nosso Dogma
e Ritual da Alta Magia,
representamo-lo como a sombra de Deus, e dizendo isso ocultamos ainda metade
de nosso
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
116
pensamento; Deus é a luz sem sombra. O diabo é apenas a sombra
do fantasma de Deus! O fantasma de Deus! Esse último ídolo da
terra; esse espectro antropomórfico que se torna maliciosamente invisível;
essa personificação finita do infinito; esse invisível
que não se pode ver sem morrer, sem morrer ao menos em inteligência
e em razão, pois que para ver o invisível é preciso estar
louco; o fantasma do que não tem corpo; a forma confusa que é
sem formas e sem limites: eis o que adora sem saber a maioria dos crentes. Aquele
que é essencialmente, puramente, espiritualmente, não sendo nem
o ser absoluto, nem um ser abstrato, nem a coleção dos seres,
numa palavra, o infinito intelectual, é muito difícil de se imaginar!
Assim, toda imaginação a seu respeito é uma idolatria,
é preciso nele crer e adorá-lo. Nosso espírito deve calar-se
diante dele e apenas nosso coração tem direito a dar-lhe um nome:
Pai nosso!
LIVRO II
Os Mistérios Mágicos
Capítulo I
Teoria da vontade
A vida humana e suas dificuldades incontáveis têm por finalidade,
na ordem da sabedoria eterna, a educação da vontade do homem.
A dignidade do homem consiste em fazer o que quer e em querer o bem, em conformidade
com a ciência do verdadeiro.
O bem conforme ao verdadeiro é o justo.
A justiça é a prática da razão.
A razão é o verbo da realidade.
A realidade é a ciência da verdade.
A verdade é a história idêntica ao ser.
O homem chega à idéia absoluta do ser por duas vias, a experiência
e a hipótese. A hipótese é provável quando é
solicitada pelos ensinamentos da experiência; é improvável
ou absurda quando é rejeitada por esse ensinamento.
A experiência é a ciência, e a hipótese é a
fé.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
117
A verdadeira ciência admite necessariamente a fé; a verdadeira
fé conta necessariamente com a ciência.
Pascal blasfemava contra a ciência quando disse que, pela razão,
o homem não pode chegar ao conhecimento de nenhuma verdade.
Assim, Pascal morreu louco.
Mas Voltaire não blasfemava menos contra a ciência, quando declarava
absurda toda hipótese da fé e admitia por regra da razão
apenas o testemunho dos sentidos.
Assim, as últimas palavras de Voltaire foram esta fórmula contraditória:
Deus e a Liberdade
Deus, isto é, um mestre supremo: o que exclui toda idéia de liberdade,
como a entendia a escola de Voltaire.
E a liberdade, isto é, uma independência absoluta de todo mestre;
o que exclui toda idéia de Deus. A palavra DEUS exprime a personificação
suprema da lei e, por conseguinte, do dever; e, se pela palavra LIBERDADE se
quiser entender conosco O DIREITO DE FAZER O DEVER, tomaremos, de nossa parte,
por divisa e repetiremos sem contradição e sem erro:
Deus e a Liberdade
Como só há liberdade para o homem na ordem que resulta do verdadeiro
e do bem, pode-se dizer que a conquista da liberdade é o grande trabalho
da alma humana. O homem, libertando-se das más paixões e de sua
servidão, de certo modo cria-se a si próprio uma segunda vez.
A natureza fizera-o vivo e sofredor, ele se faz feliz e imortal; torna-se, assim,
o representante da divindade na terra e exerce relativamente sua onipotência.
AXIOMA I
Nada resiste à vontade do homem quando ele sabe o verdadeiro e quer o
bem.
AXIOMA II
Querer o mal é querer a morte. Uma vontade perversa é um começo
de suicídio.
AXIOMA III
Querer o bem com violência é querer o mal; pois a violência
produz a desordem, e a desordem produz o mal.
AXIOMA IV
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
118
Pode-se e deve-se aceitar o mal como meio para o bem; mas é preciso nunca
querê-lo ou fazê-lo, do contrário destruir-se-ia com uma
mão o que se edificasse com a outra. A boa fé nunca justifica
os maus meios; corrige-os quando são suportados e condena-os quando deles
se lança mão.
AXIOMA V
Para se ter direito de possuir, sempre é preciso querer pacientemente
e por muito tempo.
AXIOMA VI
Passar a vida querendo o que é impossível possuir, sempre é
abdicar da vida e aceitar a eternidade da morte.
AXIOMA VII
Quanto mais a vontade supera obstáculos, mais se fortalece. É
por isso que Cristo glorificou a pobreza e a dor.
AXIOMA VIII
Quando a vontade é consagrada ao absurdo, é reprovada pela eterna
razão.
AXIOMA IX
A vontade do homem justo é a vontade do próprio Deus, e é
a lei da natureza.
AXIOMA X
É pela vontade que a inteligência vê. Se a, vontade é
sã, a visão é justa. Deus disse: Que seja a luz! e a luz
é; a vontade disse: Que o mundo seja como eu o quero ver! e a inteligência
o vê como a vontade quis. É o que significa a expressão
assim seja, que confirma os atos de fé.
AXIOMA XI
Quando alguém cria fantasmas, põe no mundo vampiros, e será
preciso alimentar esses filhos de um pesadelo voluntário com seu sangue,
sua vida, sua inteligência e sua razão, sem nunca saciá-los.
AXIOMA XII
Afirmar e querer o que deve ser é criar; afirmar e querer o que não
deve ser é destruir.
AXIOMA XIII
A luz é um fogo elétrico colocado pela natureza a serviço
da vontade: ilumina os que dela sabem servir-se, queima os que dela abusam.
AXIOMA XIV
O império do mundo é o império da luz.
AXIOMA XV
As grandes inteligências cuja vontade equilibra-se mal assemelham-se aos
cometas, que são sóis abortados.
AXIOMA XVI
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
119
Nada fazer é tão funesto quanto fazer o mal, mas é mais
covarde. O mais imperdoável dos pecados mortais é a inércia.
AXIOMA XVII
Sofrer é trabalhar. Uma grande dor sofrida é um progresso realizado.
Os que sofrem muito vivem mais do que os que não sofrem.
AXIOMA XVIII
A morte voluntária por abnegação não é um
suicídio; é a apoteose da vontade.
AXIOMA XIX
O medo é apenas uma preguiça da vontade, e é por isso que
a opinião desencoraja os covardes.
AXIOMA XX
Consegui não temer o leão, e o leão vos temerá.
Dizei à dor: Quero que tu sejas um prazer, e ela se tornará até
mais do que um prazer, uma felicidade.
AXIOMA XXI
Uma corrente de ferro é mais fácil de quebrar que uma corrente
de flores.
AXIOMA XXII
Antes de declarar um homem feliz ou infeliz, sabei como o fez a direção
de sua vontade: Tibério morria todos os dias em Capri, enquanto Jesus
provava sua imortalidade e sua divindade no Calvário e na cruz.
Capítulo II
O poder da palavra
É o verbo que cria as formas, e as formas, por sua vez, reagem sobre
o verbo para modificá-lo e terminá-lo.
Toda palavra de verdade é o começo de um ato de justiça.
Pergunta-se se o homem algumas vezes pode ser necessariamente impelido para
o mal. Sim, quando ele tem o julgamento falso e, por conseguinte, o verbo injusto.
Mas alguém é tão responsável por um julgamento falso
como por uma má ação.
O que falseia o julgamento são as vaidades injustas do egoísmo.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
120
O verbo injusto, não podendo realizar-se pela criação,
realiza-se pela destruição. É preciso que mate ou morra.
Se pudesse permanecer sem ação seria a maior de todas as desordens,
uma blasfêmia duradoura contra a verdade.
Tal é a palavra ociosa da qual Cristo disse que se prestará conta
no juizo final. Um gracejo, uma tolice que recreia e que faz rir não
é uma palavra ociosa.
A beleza da palavra é um esplendor de verdade. Uma palavra verdadeira
é sempre bela, uma bela palavra é sempre verdadeira.
É por isso que as obras de arte são sempre santas quando são
belas. Que me importa que Anacreonte cante Batylle, se, em seus versos, ouço
as notas da divina harmonia que é o hino eterno da beleza? A poesia é
pura como o sol: ela estende seu véu de luz sobre os erros da humanidade.
Ai daquele que quisesse erguer o véu para perceber fealdades. O Concílio
de Trento disse que é permitido às pessoas sábias e prudentes
lerem os livros dos antigos, mesmo obscenos, por causa da beleza da forma.
Uma estátua de Nero ou de Heliogábalo feita como as obras-primas
de Fídias não seria uma obra absolutamente bela e absolutamente
boa? E os que gostariam de vê-la destruída por representar um monstro
não mereceriam as vaias do mundo inteiro?
As estátuas escandalosas são as estátuas malfeitas; e a
Vênus de Milo seria profanada se fosse exposta ao lado das Virgens que
ousam expor em algumas igrejas. Aprende-se o mal nos livros de moral tolamente
escritos, bem mais do que nas poesias de Catulo ou nas engenhosas alegorias
de Apuleio.
Não há maus livros senão os livros malpensados ou malfeitos.
Todo verbo de beleza é um verbo de verdade. É uma luz formulada
em palavra. Porém, é preciso uma sombra para que a mais brilhante
luz produza-se e torne-se visível; e a palavra criadora, para tornar-se
eficaz, necessita de contraditores. É preciso que suporte a prova da
negação, do sarcasmo, depois aquela ainda bem mais cruel da indiferença
e do esquecimento. "É preciso", dizia o Mestre, "que o
grão apodreça para germinar." O verbo que afirma e a palavra
que nega devem casar-se, e de sua união nascerá a verdade prática,
a palavra real e progressiva. É a necessidade que deve constranger os
trabalhadores a escolherem por pedra angular a que inicialmente fora desconhecida
e rejeitada. Que a contradição nunca desencoraje, pois, os homens
de iniciativa. O arado necessita de uma terra e a terra resiste porque trabalha.
Ela defende-se como todas as virgens, concebe e dá à luz lentamente
como todas as mães. Vós, pois, que quereis semear uma planta nova
no campo da inteligência, compreendei e respeitai as resistências
pudibundas da experiência limitada e da razão tardia.
Quando uma palavra nova vem ao mundo, necessita de laços e cueiros; foi
o gênio que a concebeu, mas é a experiência que deve alimentá-la.
Não receeis que seja desamparada e morra; o esquecimento para ela é
um repouso favorável e as contradições são uma cultura.
Quando um sol desponta no espaço, cria ou atrai mundos. Uma única
fagulha de luz fixa promete ao espaço um universo.
Toda a magia está numa palavra, e essa palavra, pronunciada cabalisticamente,
é mais forte que
todos os poderes do céu, da terra e do inferno. Com o nome de Jod he
van he domina-se: os reinos
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
121
são conquistados em nome de Adonai, e as forças ocultas que compõem
o império de Hermes são totalmente obedientes àquele que
sabe pronunciar segundo a ciência o nome incomunicável de Agla.
Para pronunciar segundo a ciência as grandes palavras da Cabala, é
preciso pronunciá-las com uma inteligência inteira, com uma vontade
que nada detenha, com uma atividade que nada rejeite. Em magia ter dito é
ter feito; o verbo começa com letras, termina com atos. Só se
quer realmente algo quando se quer com todo o coração, a ponto
de por isso ferir as mais caras afeições; com todas as forças
a ponto de expor a saúde, a fortuna e a vida.
É pela devoção absoluta que a fé se prova e se constitui.
Mas o homem armado de semelhante fé poderá remover montanhas.
O inimigo mais fatal de nossas almas é a preguiça. A inércia
possui uma embriaguez que nos adormece; mas o sono da inércia é
a corrupção e a morte. As faculdades da alma humana são
como as ondas do oceano: necessitam, para conservarem-se, do sal e do amargor
das lágrimas; necessitam das tormentas do céu e da agitação
das tempestades.
Quando, ao invés de caminharmos na rota do progresso, queremos ser carregados,
estamos dormindo nos braços da morte; é para nós que é
dito, como ao paralítico do Evangelho: Carregai vossa cama e andai! Somos
nós que devemos carregar a morte para precipitá-la na vida. Segundo
a magnífica e terrível expressão de São João,
o inferno é um fogo que dorme. É uma vida sem atividade e sem
progresso; é enxofre em estagnação: stagnum ignis et sulphuris.
A vida que dorme é análoga à palavra ociosa e é
disso que os homens terão de prestar contas no dia do juízo final.
A inteligência fala e a matéria agita-se; só descansará
depois de ter tomado a forma dada pela palavra. Vede o verbo cristão
há dezenove séculos trabalhando o mundo. Que combates de gigantes!
Quantos erros experimentados e rechaçados! Quanto cristianismo desiludido
e irritado no fundo do protesto, desde o século XVI até o século
XVIII! O egoísmo humano, desesperado com suas derrotas, amotinou sucessivamente
todas as suas estupidezes. Revestiram o Salvador do mundo com todos os andrajos
e todas as púrpuras derrisórias: depois de Jesus o Inquisidor,
fez-se o Jesus Revolucionário. Se fordes capaz, medi quantas lágrimas
e quanto sangue correram, ousai prever quanto ainda correrá antes que
se chegue ao reino messiânico do Homem-Deus, que subjuga ao mesmo tempo
todas as paixões aos poderes e todos os poderes à justiça!
ADVENIAT REGNUM TUUM! Eis o que setecentos milhões de vozes repetem noite
e dia em toda a superfície da terra, há quase mil e novecentos
anos, enquanto os israelitas continuam a esperar o Messias. Ele falou, e ele
voltará; veio para morrer, e prometeu retornar para viver. CÉU
É A HARMONIA DOS SENTIMENTOS GENEROSOS.
INFERNO É O CONFLITO DOS INSTINTOS COVARDES.
Quando a humanidade, a poder de experiências sangrentas e dolorosas, tiver
compreendido bem essa dupla verdade, abjurará do inferno do egoísmo
para entrar no céu da abnegação e da caridade cristã.
A lira de Orfeu desbravou a Grécia selvagem, e a lira de Anfião
construiu a misteriosa Tebas. É que
a harmonia é a verdade. A natureza inteira é harmonia, mas o Evangelho
não é uma lira: é o livro dos
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
122
princípios eternos que devem regular e que regularão todas as
liras e todas as harmonias vivas do universo.
Enquanto o mundo não compreender estas três palavras: verdade,
razão, justiça, e estas: dever, hierarquia, sociedade, a divisa
revolucionária, liberdade, igualdade, fraternidade, será apenas
uma tríplice mentira.
Capítulo III
As influências misteriosas
Não há meio-termo possível. Todo homem é bom ou
mau. Os indiferentes, os mornos não são bons, são, pois,
maus, e os piores de todos os maus, pois são imbecis e covardes. O combate
da vida assemelha-se a uma guerra civil, os que permanecem neutros traem igualmente
os dois lados e renunciam ao direito de serem contados dentre os filhos da pátria.
Todos nós respiramos a vida dos outros e de algum modo insuflamo-lhes
uma parte de nossa existência. Os homens inteligentes e bons são,
sem saberem, os médicos da humanidade, os homens tolos e maus são
envenenadores públicos.
Existem pessoas perto de quem sentimo-nos melhores. Vede esta jovem senhora
da alta sociedade, ela conversa, ri, adorna-se como todas as outras, por que,
então, tudo nela é melhor e mais perfeito? Nada mais natural que
sua distinção, nada mais franco e mais nobremente despretensioso
que sua conversa. Perto dela tudo deve achar-se à vontade, exceto os
maus sentimentos, mas eles são impossíveis perto dela. Ela não
encontra os corações, prende-os e os instrui, não embriaga,
encanta. O que toda sua pessoa prega parece ser uma perfeição
mais aprazível do que a própria virtude; é mais graciosa
que a graça, suas ações são fáceis e inimitáveis
como a bela música e os belos versos.
Era dela que uma encantadora mundana, muito amiga para ser rival, dizia depois
de um baile:
Pareceu-me ver a Sagrada Bíblia em movimento. Vede ao contrário
esta outra mulher, afeta a mais rígida devoção e se escandalizaria
ao ouvir os anjos cantarem, mas sua fala é malévola, seu olhar
é altivo e desdenhoso; quando fala sobre virtude poderia provocar o amor
ao vício. Para ela Deus é um marido ciumento que ela tem o grande
mérito de não enganar; suas máximas são desoladoras,
as ações mais vãs que caridosas e poder-se-ia dizer após
a ter encontrado na igreja: Vi o diabo orando a Deus.
Ao deixar a primeira, senti-vos cheio de amor por tudo o que é belo,
por tudo o que é bom e generoso. Estais feliz por lhe terdes dito tudo
o que ela vos inspirou de bem e por terdes sido por ela aprovado; dizei-vos
que a vida é boa, uma vez que foi dada por Deus a semelhantes almas,
estais cheio de coragem e de esperança. A outra vos deixa enfraquecido,
rejeitado, ou talvez, o que é pior, estimulado a fazer o mal; vos faz
duvidar da honra, da piedade e do dever; perto dela só escapais ao tédio
pela porta dos maus desejos. Falastes mal de alguém para agradá-la,
diminuíste-vos para adular seu orgulho, ficais descontente com ela e
convosco mesmo. O sentimento vivo e certo dessas diversas influências
é próprio dos espíritos justos e das consciências
delicadas, e é precisamente o que os antigos escritores ascéticos
chamavam graça do discernimento dos espíritos.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
123
Sois cruéis consoladores, dizia Jó a seus pretensos amigos. De
fato, os seres viciosos sempre afligem ao invés de consolarem. Têm
um tato prodigioso para encontrar e escolher as mais desesperadoras banalidades.
Chorais um afeto perdido, como sois ingênuo! Zombavam de vós, não
vos amavam. Com dor confessais que vosso filho é coxo, amigavelmente
vos fazem ver que ele é corcunda. Ele tosse e inquietai-vos, suplicam-vos
ternamente que tomeis cuidado, pois talvez esteja tuberculoso. Vossa mulher
está doente há muito tempo, consolai-vos, pois ela morrerá.
Espera e trabalha, eis o que o céu nos diz pela voz de todas as boas
almas; desespera e morre, eis o que o inferno nos grita em todas as palavras,
todos os movimentos, todas as amizades e todos os afagos dos seres imperfeitos
ou degradados.
Qualquer que seja a reputação de uma pessoa e quaisquer que sejam
os testemunhos de amizade que ela vos dá, se, ao deixá-la, sentivos
menos amigo do bem e menos forte, ela é perniciosa para vós: evitai-a.
Nossa dupla imantação produz em nós duas espécies
de simpatias. Temos necessidade de, alternadamente, absorver e irradiar. Nosso
coração gosta dos contrastes, e existem poucos exemplos de mulheres
que tenham amado sucessivamente dois gênios. Repousamo-nos pela proteção
dos cansaços da admiração, é a lei do equilíbrio;
mas por vezes também as naturezas sublimes surpreendem-se em caprichos
de vulgaridade. O homem, disse o abade Gerbet, é a sombra de um Deus
no corpo de um animal: existem os amigos do anjo e os complacentes para com
o animal. O anjo atrai-nos, mas, se não tomamos cuidado, é a besta
que nos leva: ela deve mesmo fatalmente levar-nos quando se trata de asneiras,
isto é, das satisfações desta vida nutriz da morte, que
na linguagem das bestas chama-se vida real. Em religião, o Evangelho
é um guia seguro, o mesmo não sendo em negócios, e muitas
pessoas, quando se tratasse de estabelecer a sucessão temporal de Jesus
Cristo, se entenderiam melhor com Judas Iscariotes do que com São Pedro.
Admiram a probidade, disse Juvenal, e não lhe dão o que lhe cabe.
Se, por exemplo, tal homem célebre não tivesse escandalosamente
mendigado a riqueza, alguém teria pensado em recompensar sua velha musa?
Alguma herança lhe teria caído do céu? A virtude toma nossa
admiração, nossa bolsa, portanto, nada lhe deve, essa grande dama
é bastante rica sem nós. Preferimos dar ao vício, ele é
tão pobre!
"Não gosto dos mendigos e dou apenas aos pobres vergonhosos",
dizia um homem inteligente. "Mas o que lhes dais, se não os conheceis?"
"Dou-lhes minha admiração e minha estima, e não preciso
conhecê-los para isso." "Como necessitais de tanto dinheiro",
foi perguntado a outro, "se não tendes filhos nem encargos?"
"Tenho meus pobres vergonhosos a quem não me posso impedir de dar
muito." "Apresente-os a mim, talvez dê-lhes também."
"Oh! certamente já conheceis alguns. Tenho sete deles, que comem
excessivamente, e um oitavo que come mais do que os outros sete: os sete são
os sete pecados capitais; o oitavo é o jogo."
"Senhor, dai-me cinco francos, estou morrendo de fome." "Imbecil!
estás morrendo de fome e queres que te encoraje a prosseguir em tão
mau caminho! Morres de fome e tens a imprudência de confessá-lo!
Queres tornar-me cúmplice de tua incapacidade, nutriz de teu suicídio!
Queres um prêmio pela miséria? Por quem me tomas? Acaso sou um
traste da tua espécie..." "Meu amigo, preciso de um milhão
de escudos para seduzir uma mulher honesta." "Ah! isso é mau;
mas não sei recusar nada a um amigo. Toma, e quando tiveres conseguido
dá-me o endereço dessa pessoa." Eis o que se chama, na Inglaterra
e em outros lugares, agir como um perfeito cavalheiro. "O homem honrado
sem trabalho rouba, e não mendiga!", respondeu um dia Cartouche
a um transeunte que lhe pedia esmola. É enfático como a palavra
emprestada a Cambronne; e, na realidade, talvez o célebre ladrão
e o grande general tenham ambos respondido do mesmo modo.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
124
Foi esse mesmo Cartouche quem de outra feita ofereceu, por iniciativa própria
e sem que lhe fosse pedido, vinte mil libras a alguém falido. Entre irmãos
é preciso saber viver. A assistência mútua é uma
lei da natureza. Ajudar nossos semelhantes é ajudar a nós mesmos.
Mas acima da assistência mútua eleva-se uma lei maior e mais santa:
é a assistência universal, é a caridade.
Todos admiramos e amamos São Vicente de Paulo, mas quase todos temos
também um fraco secreto pela habilidade, pela presença de espírito
e, sobretudo, pela audácia de Cartouche. Os cúmplices confessos
de nossas paixões podem repugnar-nos humilhando-nos; saberemos, sujeitando-nos
aos perigos, resistir-lhes por orgulho. Mas que pode haver de mais perigoso
para nós que nossos cúmplices hipócritas e ocultos? Seguem-nos
como o desgosto, esperam-nos como o abismo, envolvem-nos como a vertigem. Nós
os desculpamos para desculparmo-nos, os defendemos para defendermo-nos, os justificamos
para justificarmo-nos e os suportamos em seguida porque é preciso, porque
não temos força para resistir a nossas inclinações,
porque não desejamos isso.
Apossaram-se de nosso ascendente, como diz Paracelso, e onde quiserem conduzir-nos
iremos. São nossos maus anjos, sabemo-lo no fundo de nossa consciência;
mas os poupamos, pois fizemo-nos seus servidores, a fim de que eles também
nos sirvam. Nossas paixões, aduladas e poupadas, tornaram-se servas-senhoras;
e os complacentes para com nossas paixões são valetes que se tornaram
nossos mestres. Respiramos nossos pensamentos e aspiramos os dos outros impressos
na luz astral, tornada sua atmosfera eletromagnética: assim, a companhia
dos maus é menos funesta para as pessoas de bem do que a dos seres vulgares,
covardes e mornos. Uma forte antipatia adverte-nos facilmente e salva-nos do
contato com os vícios grosseiros; não é assim com os vícios
disfarçados, diminuídos de certo modo e tornados quase amáveis.
Uma mulher honesta sentirá apenas repulsa em companhia de uma moça
perdida; mas tem tudo a recear das seduções de uma doidivanas.
Sabemos que a loucura é contagiosa; mas os loucos são mais particularmente
perigosos quando são amáveis e simpáticos. Entramos pouco
a pouco em seu círculo de idéias, chegamos a compreender seus
exageros compartilhando seus entusiasmos, habituamo-nos à sua lógica
excepcional e transviada, chegamos a pensar que não são tão
loucos quanto acreditávamos no início. Daí a acreditar
que são os únicos a ter razão não há muita
distância. Nós os amamos, os aprovamos, estamos loucos como eles.
As afeições são livres e podem ser racionalizadas; mas
as simpatias são fatais e muito freqüentemente desarrazoadas; dependem
das atrações mais ou menos equilibradas da luz magnética,
e agem sobre os homens do mesmo modo que sobre os animais. Divertiremo-nos tolamente
com uma pessoa que nada tem de amável porque estamos misteriosamente
atraídos e dominados por ela. Freqüentemente, essas simpatias estranhas
começaram por vivas antipatias; os fluidos repeliam-se no início,
equilibrando-se depois.
A especialidade equilibrante do mediador plástico de cada pessoa é
o que Paracelso chama seu ascendente, e denomina flagum ao reflexo particular
das idéias habituais de cada um na luz universal.
Chega-se ao conhecimento do ascendente de uma pessoa pela adivinhação
sensitiva do flagum, e por um direcionamento perseverante da vontade vira-se
o lado ativo do próprio ascendente para o lado passivo do ascendente
do outro, quando se quer apoderar-se do outro e dominá-lo. O ascendente
astral foi adivinhado por outros magistas, que o chamaram turbilhão.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
125
É, dizem eles, uma corrente de luz especializada, reproduzindo sempre
um mesmo círculo de imagens, e, por conseguinte, de impressões
determinadas e determinantes. Esses turbilhões existem para os homens
como para as estrelas. "Os astros", diz Paracelso, "respiram
sua alma luminosa e atraem a irradiação uns dos outros. A alma
da terra, cativa das leis fatais da gravitação, desprende-se especializando-se
e passa pelo instinto dos animais para chegar à inteligência do
homem. A parte cativa dessa alma é muda, mas conserva por escrito os
segredos da natureza. A parte livre não pode mais ler essa escritura
fatal sem perder instantaneamente sua liberdade. Só se passa da contemplação
muda e vegetativa ao pensamento livre e vibrante mudando de meios e de órgãos.
Daí vem o esquecimento que acompanha o nascimento e as reminiscências
vagas de nossas intuições doentias, sempre análogas às
visões de nossos êxtases e de nossos sonhos." Essa revelação
do grande mestre da medicina oculta lança uma enorme luz sobre todos
os fenômenos do sonambulismo e da adivinhação. Aí
está, também, para quem souber encontrá-la, a verdadeira
chave das evocações e das comunicações com a alma
fluídica da terra. As pessoas cuja influência perigosa se faz sentir
num único contato são as que fazem parte de uma associação
fluídica; ou que dispõem, quer voluntariamente, quer sem saberem,
de uma corrente de luz astral desviada. Aquelas, por exemplo, que vivem no isolamento
e na privação de toda comunicação humana e que estão
diariamente em relação fluídica com animais reunidos em
grande número, como estão normalmente os pastores, esses estão
possuídos pelo demônio a que se denomina legião, e, por
sua vez, reinam despoticamente sobre as almas fluídicas dos rebanhos
confiados à sua guarda: desse modo sua benevolência ou sua malevolência
faz prosperar ou morrer o rebanho; podem exercer essa influência de simpatia
animal sobre mediadores plásticos humanos mal defendidos por uma vontade
fraca ou uma inteligência limitada. Assim explicam-se os encantamentos
operados habitualmente pelos pastores e os fenômenos ainda muito recentes
do presbitério de Cideville.
Cideville é um pequeno vilarejo da Normandia onde, há alguns anos,
produziram-se fenômenos semelhantes aos que se produziram, depois, sob
a influência do senhor Home. Mirville estudou-os cuidadosamente e Gougenot
Desmousseaux repetiu todos seus detalhes num livro publicado em 1854 e intitulado:
Costumes e Práticas dos Demônios. O que há de notável
nesse último autor é que ele parece adivinhar a existência
do mediador plástico ou do corpo fluídico. "Com certeza não
temos duas almas", diz ele, "mas talvez tenhamos dois corpos."
Com efeito, tudo o que ele conta pareceria provar essa hipótese. Trata-se
de um pastor, cuja forma fluídica infestava um presbitério e que
foi ferido à distância pelos golpes desfechados à sua larva
astral. Aqui perguntaremos aos senhores Mirville e Gougenot Desmousseaux se
eles tomam esse pastor pelo diabo e se, de perto ou à distância,
o diabo, tal como o concebem, pode ser arranhado ou ferido. Na Normandia, até
então, quase não eram conhecidas as doenças magnéticas
dos médiuns e o infeliz sonâmbulo, que fora preciso tratar e curar,
foi rudemente maltratado e até agredido, segundo se diz, não em
aparência fluídica, mas em sua própria pessoa, pelo próprio
pároco. Aí está, convenhamos, um singular gênero
de exorcismo! Se realmente essas violências aconteceram, e se são
imputáveis a um eclesiástico que dizem, e que pode ser, credulidade
à parte, muito bom e respeitável, reconheçamos que escritores
como Mirville e Gougenot Desmousseaux tornam-se de certo modo seus cúmplices.
As leis da vida física são inexoráveis e, em sua natureza
animal, o homem nasce escravo da fatalidade; e é à custa de lutas
contra os instintos que ele pode conquistar a liberdade moral. Duas existências
diferentes, portanto, nos são possíveis na terra: uma fatal, a
outra livre. O ser fatal é o joguete ou o instrumento de uma força
que ele não dirige: ora, quando os instrumentos da fatalidade se encontram
e se chocam, o mais forte destrói ou domina o mais fraco; os seres verdadeiramente
libertos não temem nem as bruxarias nem as influências misteriosas.
Dir-nos-ão que o encontro de Caim pode ser fatal para Abel. Sem dúvida;
mas semelhante fatalidade é uma felicidade para a santa e pura vítima,
é uma infelicidade apenas para o assassino.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
126
Assim como entre os justos existe uma grande comunidade de virtudes e méritos,
existe entre os maus uma solidez absoluta de culpabilidade fatal e castigo necessário.
O crime está nas disposições do coração.
As circunstâncias quase sempre independentes da vontade fazem sozinhas
a gravidade dos atos. Se a fatalidade tivesse feito de Nero um escravo, ele
se teria tornado um histrião ou um gladiador e não teria incendiado
Roma: seria preciso agradecer-lhe por isso? Nero era cúmplice de todo
o povo romano e os únicos responsáveis pela fúria desse
monstro eram os que a deveriam ter impedido. Sêneca, Burro, Tráseas,
Corbulão, eis os verdadeiros culpados desse reino terrível: grandes
homens egoístas ou incapazes! Souberam apenas morrer. Se um dos ursos
do Jardim Zoológico escapasse e devorasse algumas pessoas, seria ele
ou seus vigias quem deveria prestar contas? Todo aquele que se liberta dos erros
comuns deve pagar um resgate proporcional à soma desses erros: Sócrates
responde por Anito, e Jesus teve que sofrer um suplício que se igualou
em horrores a toda a traição de Judas.
É assim que, ao pagar as dívidas da fatalidade, a liberdade conquistada
compra o império do mundo; é a ela que compete ligar ou desligar:
Deus entregou-lhe as chaves do céu e do inferno. Homens que abandonais
as bestas a si mesmas, quereis que elas vos devorem. As multidões escravas
da fatalidade só podem gozar da liberdade pela obediência absoluta
à vontade dos homens livres; elas devem trabalhar para eles, porque eles
respondem por elas. Mas, quando a besta governa as bestas, quando o cego conduz
os cegos, quando o homem fatal governa as massas fatais, o que se deve esperar?
Terríveis catástrofes, e elas nunca faltarão. Ao admitir
os dogmas anárquicos de 89, Luís XVI lançara o Estado num
declive fatal. A partir desse momento todos os crimes da Revolução
pesaram unicamente sobre ele; apenas ele faltara a seu dever. Robespierre e
Marat haviam feito o que deviam fazer. Girondinos e Montanheses fatalmente mataram-se
uns aos outros e suas mortes violentas foram apenas catástrofes necessárias;
houve nessa época apenas um grande e legítimo suplício,
verdadeiramente sagrado, verdadeiramente expiatório: o do rei. O princípio
da realeza devia cair se esse príncipe demasiado fraco tivesse sido absoluto.
Mas era impossível uma transação entre a ordem e a desordem.
Não se herda dos que são assassinados, eles são poupados,
e a Revolução reabilitou Luís XVI ao assassiná-lo.
Após tantas concessões, fraquezas, indignas vilezas, esse homem
sagrado uma segunda vez pela desgraça pôde ao menos dizer, ao subir
ao cadafalso: a Revolução está julgada, e eu continuo sendo
o rei da França! Ser justo é sofrer por todos os que não
o são, mas é viver; ser mau é sofrer por si mesmo sem conquistar
a vida, é enganar-se, agir mal e morrer eternamente. Resumindo: as influências
fatais são as da morte, as influências salutares são as
da vida. Conforme sejamos mais fracos ou mais fortes na vida, atraímos
ou repelimos o malefício. Esse poder oculto não é senão
demasiado real; mas a inteligência e a virtude terão sempre os
meios de evitar suas obsessões e seus ataques.
Capítulo IV
Mistérios da perversidade
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
127
O equilíbrio humano compõe-se de dois atrativos; um pela morte,
o outro pela vida. A fatalidade é a vertigem que nos atrai para o abismo;
a liberdade é o esforço racional que nos eleva acima das atuações
fatais da morte.
O que é um pecado mortal? É uma apostasia de nossa liberdade;
é um abandono de nós mesmos às leis materiais da gravidade;
um ato injusto é um pacto com a injustiça: ora, toda injustiça
é uma abdicação da inteligência. Caímos, então,
sob o império da força, cujas reações sempre esmagam
tudo o que se afasta do equilíbrio.
O amor pelo mal e a adesão formal da vontade à injustiça
são os últimos esforços da vontade expirante. O homem,
não importa o que faça, é mais forte que o bruto e não
pode, como este, abandonar-se à fatalidade. É necessário
que escolha e que ame. A alma desesperada que se acredita apaixonada pela morte
está ainda mais viva do que uma alma sem amor. A atividade para o mal
pode e deve reconduzir o homem ao bem por contragolpe e reação.
O verdadeiro mal sem remédio é a inércia.
Aos abismos da perversidade correspondem os abismos da graça. Freqüentemente
Deus fez de celerados santos; nunca fez nada de mornos e de covardes.
Sob pena de reprovação, é preciso trabalhar, é preciso
agir. A natureza, aliás, provê para isso, e se não queremos,
com toda nossa coragem, ir em direção à vida, ela nos precipita
com todas as suas forças para a morte. Os que não querem caminhar,
ela os arrasta. Um homem que poderia ser chamado o grande profeta dos ébrios,
Edgar Poe, esse alucinado sublime, esse gênio da extravagância lúcida,
descreveu com uma realidade assustadora os pesadelos da perversidade...
"Matei este velho porque era estrábico. Fiz isso porque não
deveria ser feito."
Eis a terrível contrapartida do Credo quia absurdum, de Tertuliano. Desafiar
Deus e injuriá-lo é um último ato de fé. "Os
mortos não te louvam, Senhor", diz o salmista; e poderíamos
acrescentar, se ousássemos: "Os mortos não te blasfemam."
"Oh! meu filho!", dizia um pai inclinado sobre o leito do filho, caído
em letargia após um violento acesso de delírio; "insulta-me;
batame, morda-me; sentirei que ainda vives... Mas não fiques para sempre
neste silêncio medonho da tumba!"
Um grande crime sempre protesta contra uma grande tepidez. Cem mil padres honestos
teriam podido, através de uma caridade mais ativa, prevenir o atentado
daquele miserável Verger. A Igreja deve julgar, condenar, punir um eclesiástico
escandaloso; mas não tem o direito de abandoná-los aos frenesis
do desespero e às tentações da miséria e da fome.
Nada é tão assustador quanto o nada; e se se pudesse jamais formular
sua concepção, se fosse possível admiti-lo, o inferno seria
uma esperança.
Eis por que a própria natureza procura e impõe a expiação
como um remédio; eis por que o suplício suplica, como tão
bem o compreendeu esse grande católico chamado conde Joseph de Maistre;
eis por que a pena de morte é o direito natural e nunca desaparecerá
das leis humanas. A mácula do homicídio seria indelével
se Deus não absolvesse o cadafalso; o poder divino abdicado pela sociedade
e usurpado pelos celerados pertencer-lhes-ia sem contestação.
O assassinato, então, transformar-se-ia em virtude quando exercesse as
represálias da natureza ultrajada. As vinganças particulares protestariam
contra a ausência da expiação pública, e com os restos
do gládio quebrado da justiça a anarquia fabricaria punhais para
si.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
128
"Se Deus suprimisse o inferno, os homens fariam outro para desafiá-lo",
dizia-nos um dia um bom padre. Tinha razão; e é por isso que o
inferno deseja tanto ser suprimido. Emancipação! tal é
o grito de todos os vícios. Emancipação do homicídio
pela abolição da pena de morte; emancipação da prostituição
e do infanticídio pela abolição do casamento; emancipação
da preguiça e do roubo pela abolição da propriedade...
Assim gira o turbilhão da perversidade até que chegue a esta fórmula
suprema e secreta: Emancipação da morte pela abolição
da vida! É pelas vitórias do trabalho que se escapa às
fatalidades da dor. O que chamamos morte é somente o parto eterno da
natureza. Ininterruptamente, ela reabsorve e retoma em seu seio tudo o que não
nasceu do espírito. A matéria inerte por si mesma só pode
existir pelo movimento perpétuo, e o espírito naturalmente volátil
só pode durar fixando-se. A emancipação das leis fatais
pela adesão livre do espírito ao verdadeiro e ao bem é
o que o Evangelho denomina nascimento espiritual; a reabsorção
na morada eterna da natureza é a segunda morte. Os seres não-emancipados
são atraídos para essa segunda morte por uma gravidade fatal,
arrastam-se uns aos outros, como o divino Michelangelo tão bem nos faz
ver em sua grande pintura sobre o juízo final; são invasores e
tenazes como pessoas que se afogam, e os espíritos livres devem lutar
energicamente contra eles para não serem por eles retidos em seu vôo
e rebaixados fatalmente ao inferno.
Essa guerra é tão antiga quanto o mundo; os gregos representavam-na
sob os símbolos de Eros e Anteros, e os hebreus pelo antagonismo de Caim
e Abel. É a guerra dos titãs e dos deuses. Os dois exércitos
estão em toda a parte, invisíveis, mas disciplinados e sempre
prontos ao ataque ou à represália. As pessoas ingênuas dos
dois partidos, surpresas com as resistências súbitas e unânimes
que encontram, acreditam em vastos complôs, sabiamente organizados, das
sociedades ocultas e todo-poderosas. Eugène Sue inventa Rodin; pessoas
da Igreja falam de iluminados e de maçons;
Wronski sonha com seus bandos místicos, e o que há de verdadeiro
e sério no fundo de tudo isso é apenas a luta necessária
entre a ordem e a desordem, os instintos e o pensamento; o resultado dessa luta
é o equilíbrio no progresso e o diabo contribui sempre, contra
a sua vontade, para a glória de São Miguel.
O amor físico é a mais perversa de todas as paixões fatais.
É o anarquista por excelência; não conhece nem leis, nem
deveres, nem verdade, nem justiça. Faria a moça passar por cima
do cadáver de seus pais. É uma embriaguez irresistivel, uma loucura
furiosa, uma vertigem da fatalidade que procura novas vítimas; a embriaguez
de Saturno que quer ser pai para ter crianças a quem devorar. Vencer
o amor é triunfar sobre toda a natureza. Submetê-lo à justiça
é reabilitar a vida devotando-a à imortalidade; assim, as maiores
obras da revelação cristã são a criação
da virgindade voluntária e a santificação do matrimônio.
Enquanto o amor é apenas um desejo e um gozo, ele é mortal. Para
eternizar-se é preciso que se torne um sacrifício, pois torna-se,
então, uma força e uma virtude. É a luta de Eros e Anteros
que faz o equilíbrio do mundo.
Tudo o que superexcita a sensibilidade conduz à depravação
e ao crime. As lágrimas chamam o sangue. Existem grandes emoções
que são como licores fortes, usá-las habitualmente é abusar.
Ora, todo abuso das emoções perverte o sentido moral; buscamo-las
por elas mesmas, sacrificamos tudo para obtê-las. Uma mulher romanesca
se tornará facilmente uma heroína de Tribunal do Júri,
chegará talvez ao deplorável e irreparável absurdo de suicidar-se
para admirar-se e enternecer-se consigo mesma vendo-se morrer.
Os hábitos romanescos levam as mulheres à histeria e os homens
à depressão. Manfred, Renê, Lélia são tipos
de perversidade muito mais profunda por racionalizarem seu orgulho doentio e
poetizarem sua demência. Perguntamo-nos aterrorizados que monstro poderia
nascer do casamento de Manfred e Lélia!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
129
A perda do sentido moral é uma verdadeira alienação; um
homem que não obedece à justiça antes de tudo não
se pertence mais, caminha sem luz na noite de sua existência, agita-se
como num sonho vítima do pesadelo de suas paixões.
As correntes impetuosas da vida instintiva e as fracas resistências da
vontade formam um antagonismo tão distinto que os cabalistas acreditaram
no embrionato das almas, isto é, a presença num mesmo corpo de
várias almas que o disputam entre si e freqüentemente tentam destruí-lo,
mais ou menos como os náufragos da Medusa, que no momento em que disputavam
a jangada muito estreita, tentavam fazê-la soçobrar.
É certo que alguém ao se tornar servo de uma corrente qualquer
de instintos, ou mesmo de idéias, aliena sua personalidade e torna-se
escravo desse gênio das multidões que o Evangelho chama Legião.
Os artistas sabem algo sobre isso. Suas freqüentes evocações
da luz universal enervam-nos. Tornam-se médiuns, isto é, doentes.
Quanto mais o sucesso os faz crescer junto à opinião pública,
mais sua personalidade enfraquece; tornam-se sujeitos a acessos, absurdos, invejosos,
coléricos; não admitem que outro mérito, mesmo de ordem
diferente, possa produzir-se ao lado do seu, e desde que se tornam injustos
eximem-se até de serem polidos. Para escapar a essa fatalidade os verdadeiros
grandes homens isolam-se de toda camaradagem liberticida e salvam-se dos atritos
da vil multidão por uma impopularidade orgulhosa: se Balzac, quando vivo,
tivesse sido um homem de conventículo ou de partido, não teria
permanecido, após sua morte, o grande universal de nossa época.
A luz não ilumina as coisas insensíveis nem os olhos fechados,
ou pelo menos só as ilumina em proveito dos que vêem. A palavra
do Gênesis, Que se faça a luz!, é o grito de vitória
da inteligência triunfante sobre as trevas. Essa palavra é sublime
porque exprime com simplicidade a maior e mais sublime coisa do mundo: a criação
da inteligência por si mesma quando, convocando seus poderes, equilibrando
suas faculdades, ela diz: Quero imortalizar-me vendo a verdade eterna, que seja
a luz! E a luz é. A luz eterna como Deus começa todos os dias
para os olhos que se abrem. A verdade será eternamente a invenção
e como que a criação do gênio: ele grita: Que seja a luz,
e ele próprio é porque ela é. Ele é imortal porque
compreendera eterna. Ele contempla a verdade como sua obra porque ela é
sua conquista, e a imortalidade como seu triunfo porque ela será sua
recompensa e sua coroa.
Mas nem todos os espíritos vêem com justeza porque nem todos os
corações querem com justiça. Existem almas para as quais
a verdadeira luz parece nunca dever existir. Contentam-se com visões
fosforescentes, abortos de luz, alucinações do pensamento, e,
apaixonadas por esses fantasmas, temem o dia que os faria fugirem porque sentem
que, não sendo o dia feito para seus olhos, voltariam a cair numa profunda
escuridão. Assim é que os loucos, no início, temem, depois
caluniam, insultam, perseguem e condenam os sábios. É preciso
compadecer-se deles e perdoá-los, não sabem o que fazem.
A verdadeira luz repousa e satisfaz a alma, a alucinação, ao contrário,
cansa-a e atormenta-a. As satisfações da loucura assemelham-se
aos sonhos gastronômicos das pessoas famintas que aguçam sua fome
sem nunca saciá-la. Daí nascem as irritações e as
perturbações, os desencorajamentos e os desesperos. "A vida
sempre nos mentiu", dizem os discípulos de Werther, "eis por
que queremos morrer!" Pobres crianças, não é a morte
que vos seria preciso, é a vida. Desde que estais no mundo morreis todos
os dias, é à cruel volúpia do nada que deveis pedir o remédio
do nada de vossas volúpias? Não, a vida nunca vos enganou, pois
não vivestes ainda. O que tomais por vida são as alucinações
e os sonhos do primeiro sono da morte!
Todos os grandes criminosos são alucinados voluntários, e todos
os alucinados voluntários podem ser fatalmente levados a tornarem-se
grandes criminosos. Nossa luz pessoal especializada, concebida, determinada
por nossa afeição dominante é o germe de nosso paraíso
ou de nosso inferno.
Cada um de nós de algum modo concebe, põe no mundo e alimenta
seu bom anjo ou seu mau
demônio. A concepção da verdade faz nascer em nós
o bom gênio; a percepção desejada da mentira
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
130
é uma incubadora e uma criadora de pesadelos e de vampiros. Cada um deve
alimentar seus filhos, e nossa vida consome-se em proveito de nossos pensamentos.
Felizes os que reencontram a imortalidade nas criações de sua
alma! Ai dos que se exaurem para alimentar a mentira e engordar a morte, pois
cada um gozará o fruto de suas obras.
Existem alguns seres inquietos e atormentados cuja influência é
turbulenta e a conversa, fatal. Perto deles sentimo-nos irritados e ao deixá-los
sentimo-nos encolerizados; entretanto, por uma perversidade secreta, nós
os procuramos para afrontar a perturbação e gozar as emoções
malévolas que eles nos dão. São doentes contagiosos do
espírito de perversidade. O espírito de perversidade sempre tem
por móvel secreto a sede da destruição e por fim o suicídio.
O assassino Eliçabide, segundo suas próprias declarações,
não só experimentava uma necessidade selvagem de matar seus parentes
e amigos, como também gostaria, se isso fosse possível, e disse-o
com suas próprias palavras diante do tribunal, de fazer o globo saltar
como uma castanha cozida. Lacenaire, que passava seus dias combinando assassínios
para obter meios de passar as noites em ignóbeis orgias, ou nos frenesis
do jogo, vangloriava-se abertamente de ter vivido. Chamava a isso viver! E cantava
um hino à guilhotina, que chamava sua bela noiva! E o mundo estava repleto
de imbecis que admiravam esse celerado! Alfred de Musset, antes de aniquilar-se
na embriaguez, desperdiçou um dos primeiros talentos de seu século
em contos de fria ironia e desgosto universal; o infeliz fora enfeitiçado
pelo respir de uma mulher profundamente perversa, que, após tê-lo
morto, acocorou-se sobre seu cadáver como um vampiro e rasgou seu sudário.
Perguntávamos um dia a um jovem escritor dessa escola o que provava sua
literatura. "Prova", respondeu-nos franca e ingenuamente, "que
é preciso desesperar e morrer." Que apostolado e que doutrina! Mas
eis as conclusões necessárias e rigorosas do espírito de
perversidade. Aspirar incessantemente ao suicídio, caluniar a vida e
a natureza, invocar todos os dias a morte sem poder morrer, é o inferno
eterno, é o suplício de Satã, esse avatar mitológico
do espírito de perversidade; a verdadeira tradução da palavra
grega diabolos, ou diabo, é o perverso.
Eis um mistério de que os pervertidos não desconfiam. É
que só se pode gozar os prazeres da vida, mesmo os materiais, pelo sentido
moral. O prazer é a música das harmonias interiores; os sentidos
são apenas seus instrumentos, instrumentos que desafinam ao contato com
uma alma degradada. Os maus nada podem sentir, porque nada podem amar: para
amar, é preciso ser bom. Para eles, portanto, tudo é vazio, e
parece-lhes que a natureza é impotente, porque eles próprios o
são, duvidam de tudo porque nada sabem, blasfemam contra tudo porque
de nada gostam; se afagam, é para emurchecer; se bebem, é para
embriagar-se; se dormem, é para esquecer; se acordam, é para entediar-se
mortalmente: assim viverá, ou antes, assim morrerá todos os dias
aquele que se liberta de toda lei e de todo dever para tornar-se escravo de
suas fantasias. O mundo e a própria eternidade tornam-se inúteis
para quem se torna inútil para o mundo e para a eternidade. Nossa vontade,
ao agir diretamente sobre nosso mediador plástico, isto é, sobre
a porção de luz astral que se especializou em nós e que
serve para a assimilação e configuração dos elementos
necessários à nossa existência; nossa vontade, justa ou
injusta, harmoniosa ou perversa, configura o mediador à sua imagem e
dá-lhe aptidões conforme os nossos atrativos. Assim, a monstruosidade
moral produz a fealdade física, pois o mediador astral, esse arquiteto
interior de nosso edifício corporal, modificado incessantemente segundo
nossas necessidades verdadeiras ou factícias. Ele faz crescer o ventre
e os maxilares do glutão, crispa os lábios do avarento, torna
impudentes os olhares da mulher impura e venenosos os do invejoso e do mau.
Quando o egoísmo prevaleceu numa alma, o olhar torna-se frio, os traços
duros; a harmonia das formas desaparece e, segundo a especialidade absorvente
ou irradiante desse egoísmo, os membros dessecam-se ou ficam comprometidos
por uma excessiva gordura. A natureza, ao fazer de nosso corpo o retrato de
nossa alma, garantiu tal semelhança para sempre, e retoca-o incansavelmente.
Lindas mulheres que não sois bondosas, estai certas de não permanecerdes
belas por muito tempo. A beleza é um adiantamento que a natureza faz
à virtude: se a virtude não está pronta para o acerto da
dívida, a emprestadora recuperará impiedosamente seu capital.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
131
A perversidade, ao modificar o organismo cujo equilíbrio ela destrói,
cria ao mesmo tempo a fatalidade das necessidades que impele à destruição
do próprio organismo e à morte. Quanto menos o perverso desfruta,
mais sede de prazer tem. O vinho é como água para o ébrio,
o ouro derrete nas mãos do jogador; Messalina cansa-se sem ficar saciada.
A volúpia que lhes escapa transforma-se para eles num longo desejo irritado.
Quanto mais seus excessos são homicidas, mais parece-lhes que a suprema
felicidade se aproxima... Mais uma golada de licor forte, mais um espasmo, mais
uma violência contra a natureza... Ah! finalmente, o prazer! a vida...
e seu desejo, no paroxismo de sua insaciável fome, extingue-se para sempre
na morte!
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
132
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
133
QUARTA PARTE
OS GRANDES SEGREDOS PRÁTICOS OU AS
REALIZAÇÕES DA CIÊNCIA
Introdução
As altas ciências da Cabala e da magia prometem ao homem um poder excepcional,
real, efetivo, realizador, e deve-se encará-las como vãs e mentirosas
se não o dão. Vós julgareis os doutores por suas obras,
dizia o mestre supremo, e essa regra de julgamento é infalível.
Se quereis que eu acredite no que sabeis, mostrai-me o que fazeis. Deus, para
elevar o homem à emancipação moral, esconde-se dele e de
certo modo abandona-lhe o governo do mundo. Deixa-se adivinhar pelas grandezas
e harmonias da natureza, a fim de que o homem se aperfeiçoe progressivamente,
sempre ampliando a idéia que faz de seu autor. O homem conhece Deus apenas
pelos nomes que dá a esse Ser dos seres e só o distingue pelas
imagens que dele tenta traçar. Assim, ele é de certo modo o criador
daquele que o criou. Acredita-se o espelho de Deus e, ampliando indefinidamente
sua própria miragem, acredita poder esboçar no espaço infinito
a sombra daquele que é sem corpo, sem sombra e sem espaço. CRIAR
DEUS, CRIAR-SE A SI PRÓPRIO, TORNAR-SE INDEPENDENTE, IMPASSÍVEL
E IMORTAL: aí está com certeza um programa mais temerário
do que o sonho de Prometeu. Pois bem, esse programa é paradoxal apenas
na forma que empresta a uma falsa e sacrílega interpretação.
Num sentido ele é perfeitamente razoável, e a ciência dos
adeptos promete realizá-lo e dar-lhe uma perfeita execução.
O homem, com efeito, cria um Deus conforme à sua própria inteligência
e à sua própria bondade, não pode elevar seu ideal mais
alto do que lhe permite seu desenvolvimento moral. O Deus que ele adora é
sempre seu próprio reflexo aumentado. Conceber o que seja o absoluto
em bondade e em justiça é ser ele próprio muito justo e
muito bom.
As qualidades do espírito, as qualidades morais são riquezas,
e as maiores de todas as riquezas. É preciso adquiri-las pela luta e
pelo trabalho. Objetar-nos-ão a desigualdade das aptidões e as
crianças que nascem com uma organização mais perfeita.
Mas devemos crer que tais organizações são o resultado
de um trabalho mais avançado da natureza e que as crianças delas
dotadas adquiriram-nas, senão por seus próprios esforços,
ao menos pelas obras solidárias dos seres humanos a quem sua existência
está ligada. É um segredo da natureza, que nada faz ao acaso;
a propriedade das faculdades intelectuais mais desenvolvidas como a do dinheiro
e das terras constitui um direito imprescritível de transmissão
e de herança.
Sim, o homem é chamado a terminar a obra de seu Criador, e cada um dos
instantes por ele empregados para tornar-se melhor ou perder-se é decisivo
para toda uma eternidade. É pela conquista de uma inteligência
para sempre reta e de uma vontade para sempre justa que ele se torna vivo para
a vida eterna, pois que nada sobrevive à injustiça e ao erro,
a não ser a pena por sua 134 desordem. Compreender o bem é querê-lo,
e, na ordem da justiça, querer é fazer. Eis por que o Evangelho
nos diz que os homens serão julgados segundo suas obras. Nossas obras
tanto nos fazem o que somos, que, como já dissemos, nosso corpo sofre
modificação com nossos hábitos e, algumas vezes, transformação
total de sua forma. Uma forma conquistada ou suportada torna-se para toda a
existência uma providência ou uma fatalidade. Essas figuras estranhas
que os egípcios davam aos símbolos humanos da divindade representam
as formas fatais. Tífon, por sua boca de crocodilo, está condenado
a devorar incessantemente para encher seu ventre de hipopótamo. Assim,
por sua voracidade e sua fealdade, é consagrado à destruição
eterna.
O homem pode matar ou vivificar suas faculdades pela negligência ou pelo
abuso. Pode criar para si faculdades novas pelo bom uso das que recebeu da natureza.
Freqüentemente se diz que as afeições não podem ser
comandadas, que a fé não é possível a todos, que
não se refaz o caráter, e todas essas asserções
são verdadeiras apenas para os preguiçosos ou os perversos. Alguém
pode se tornar crente, piedoso, amante, devoto, quando sinceramente o quer.
Pode-se dar a calma da justeza ao espírito como a onipotência da
justiça à vontade. Pode-se reinar no céu pela fé,
e na terra pela ciência. O homem que sabe comandar a si próprio
é rei de toda a natureza. Vamos mostrar, neste último livro, por
que meios os verdadeiros iniciados tornaram-se mestres de vida comandando a
dor e a morte; como operam em si mesmos e nos outros as transformações
de Proteu; como exercem as adivinhações de Apolônio; como
fazem o ouro de Raimundo Lúlio e de Flamel; como possuem, para renovar
sua juventude, os segredos de Postel, o Ressuscitado, e do fabuloso Cagliostro.
Vamos dizer, enfim, a última palavra da magia.
CAPÍTULO I
Da transformação. A vara de Circe.
O banho de Medéia. A magia vencida por suas próprias armas.
O grande arcano dos jesuítas e o segredo de seu poder
A Bíblia conta que o rei Nabucodonosor, no auge de seu poder e orgulho,
foi repentinamente transformado em besta.
Fugiu para lugares selvagens, pôs-se a pastar a relva, deixou crescer
a barba, os cabelos e todo o pêlo do corpo, bem como as unhas, e permaneceu
nesse estado durante sete anos. Em nosso Dogma e Ritual da Alta Magia, dissemos
o que pensamos dos mistérios da licantropia, ou seja, da metamorfose
dos homens em lobisomens.
Todos conhecem a fábula de Circe e compreendem sua alegoria.
O ascendente fatal de uma pessoa sobre outra é a verdadeira vara de Circe.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
135
Sabe-se que quase todas as fisionomias humanas portam alguma semelhança
com um animal, isto é, a assinatura de um instinto especializado.
Ora, os instintos são balanceados pelos instintos contrários e
dominados por instintos mais fortes.
Para dominar os carneiros, o cão explora o medo do lobo.
Se vós sois cão, e se quereis que uma linda gatinha vos ame, tendes
apenas uma medida a tomar:
metamorfosear-vos em gato.
Como? Pela observação, imitação e imaginação.
Pensamos que se compreende aqui nossa linguagem figurada, e recomendamos essa
revelação a todos os magnetistas; aí está o mais
profundo de todos os segredos de sua arte.
Eis sua fórmula em termos técnicos:
"Polarizar sua própria luz animal, em antagonismo equilibrado com
um pólo contrário."
Ou então:
Concentrar em si mesmo as especialidades absorventes para dirigir as irradiantes
para uma morada absorvente; e vice-versa.
Esse governo de nossa polarização magnética pode ser feito
com o auxílio das formas animais de que falamos, e que servirão
para fixar a imaginação.
Demos um exemplo:
Quereis agir magneticamente sobre uma pessoa polarizada como vós, o que
sabereis no primeiro contato, se fordes magnetizador; porém, ela é
um pouco menos forte que vós: é um rato, sois uma ratazana. Fazei-vos
gato, e tomá-la-eis.
Num dos admiráveis contos que não inventou, mas que narrou melhor
do que ninguém, Perrault põe em cena um mestre gato que, por seus
ardis, induz um ogro a metamorfosear-se em rato; mal ele acabara de fazê-lo,
foi devorado pelo gato. Os contos da Mamãe Gansa seriam, como o Asno
de Ouro, de Apuleio, verdadeiras lendas mágicas, e ocultariam, sob a
aparência pueril, os formidáveis segredos da ciência?
Sabe-se que os magnetizadores dão à água pura, apenas com
a imposição das mãos, isto é, de sua vontade expressa
por um sinal, as propriedades e o sabor do vinho, dos licores e de todos os
medicamentos possíveis.
Sabe-se também que os domadores de animais ferozes subjugam os leões
fazendo-se eles mesmos mental e magneticamente mais fortes e mais ferozes que
os leões. Jules Gérard, o intrépido matador de leões
da África, seria devorado se tivesse medo. Mas, para não ter medo
de um leão, é preciso, por um esforço de imaginação
e de vontade, fazer-se mais forte e mais selvagem que o próprio animal;
é preciso dizer a si mesmo: O leão sou eu, e este animal diante
de mim é apenas um cão que deve sentir medo.
Fourier sonhara os antileões: Jules Gérard realizou essa quimera
do sonhador falansteriano.
Mas, para não temer os leões, basta ser um homem corajoso e ter
armas, dirão.
Não, isso não basta. É preciso, por assim dizer, conhecer
de cor seu leão, calcular as investidas do
animal, adivinhar seus ardis, evitar suas garras, prever seus movimentos, numa
palavra, ser mestre na
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
136
profissão de leão, como diria o bom La Fontaine.
Os animais são os símbolos vivos dos instintos e das paixões
dos homens. Se tornais um homem temeroso, vós o transformais em lebre;
se, ao contrário, impeli-o à ferocidade, fazeis dele um tigre.
A vara de Circe é o poder fascinador da mulher; e os companheiros de
Ulisses transformados em porcos não são uma história apenas
daquele tempo.
Mas nenhuma metamorfose se opera sem destruição. Para transformar
um gavião em pomba, é necessário primeiro matá-lo,
depois cortá-lo em pedaços, de modo a destruir até o menor
vestígio de sua primeira forma, depois fervê-lo no banho mágico
de Medéia. Vede como os hierofantes modernos procedem para realizar a
regeneração humana; como fazem, por exemplo, na religião
católica para transformarem um homem mais ou menos fraco e apaixonado
num estóico missionário da Companhia de Jesus.
Aí está o grande segredo dessa ordem venerável e terrível,
sempre desconhecida, freqüentemente caluniada e sempre soberana.
Lede atentamente o livro intitulado os Exercícios de Santo Inácio
e vede com que mágico poder esse gênio opera a realização
da fé.
Ele ordena a seus discípulos que vejam, toquem, cheirem, degustem as
coisas invisíveis; quer que os sentidos sejam exaltados na oração
até a alucinação voluntária. Meditais sobre um mistério
da fé, Santo Inácio quer primeiramente que construais um lugar,
que o sonheis, vejais, toqueis. Se é o inferno, ele vos faz tatear rochas
ardentes, nadar em trevas espessas como o pez, coloca em vossa língua
enxofre líquido, enche vossas narinas de um abominável mau cheiro;
mostra-vos atrozes suplícios, vos faz ouvir gemidos sobre-humanos; diz
à vossa vontade para criar tudo isso através de exercícios
persistentes. Cada um o faz a seu modo, mas sempre da forma mais capaz de impressioná-lo.
Não é mais a embriaguez do haxixe servindo à fraude do
Velho da Montanha; é um sonho sem sono, uma alucinação
sem loucura, uma visão racional e intencional, uma criação
verdadeira da inteligência e da fé. Daí em diante, ao pregar,
o jesuíta poderá dizer: É o que vimos com nossos olhos,
o que ouvimos com nossos ouvidos, o que nossas mãos tocaram, é
isso o que vos anunciamos. O jesuíta assim formado comunga com um círculo
de vontades exercitadas como a sua: desse modo, cada um dos padres é
forte como a sociedade, e a sociedade é mais forte que o mundo.
Capitulo II
Como se pode conservar e renovar a juventude. Os segredos de Cagliostro. A possibilidade
da ressurreição. Exemplo de Guilherme Postel, dito o Ressuscitado.
De um operário taumaturgo, etc.
Sabemos que uma vida sóbria, moderadamente laboriosa e perfeitamente
regular geralmente prolonga a existência. Mas é pouco, a nosso
ver, a prolongação da velhice; temos o direito de pedir à
ciência que professamos outros privilégios e outros segredos.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
137
Ser por muito tempo jovem, ou mesmo voltar a sê-lo, eis o que pareceria,
com razão, desejável e precioso para a maioria dos homens. É
possível? É o que vamos examinar. O famoso conde de Saint-Germain
morreu, não duvidamos disso; mas nunca o viram envelhecer.
Aparentava sempre quarenta anos, e no auge de sua celebridade afirmava ter mais
de oitenta.
Ninon de l'Enclos, tendo atingido uma idade avançada, era ainda uma mulher
jovem, bela e sedutora.
Morreu sem ter envelhecido.
Desbarrolles, o célebre quiromante, há muito tempo é para
todo o mundo um homem de trinta e cinco anos. Sua certidão de nascimento
diria outra coisa, se ousasse mostrar-se; mas ninguém acreditaria.
Cagliostro sempre foi visto com a mesma idade, e não apenas pretendia
possuir um elixir que devolvia aos idosos, por um instante, todo o vigor da
juventude, como também gabava-se de operar a regeneração
física por meios que detalhamos e analisamos em nossa História
da Magia. Cagliostro e o conde de Saint-Germain atribuíam a conservação
de sua juventude à existência e ao uso da medicina universal, inutilmente
procurada por tantos sopradores e alquimistas. Um iniciado do século
XVI, o bom e sábio Guilherme Postel, não afirmava possuir o grande
arcano da filosofia hermética; e no entanto, após o terem visto
velho e alquebrado, viram-no novamente com uma tez vermelha e sem rugas, barba
e cabelos negros, corpo ágil e vigoroso. Seus inimigos pretenderam que
ele se maquiava e que tingia os cabelos; pois os zombeteiros e os falsos sábios
necessitam de uma explicação qualquer para fenômenos que
não compreendem. O grande meio mágico para conservar a juventude
do corpo é impedir a alma de envelhecer, conservando-lhe preciosamente
o frescor original de sentimentos e pensamentos que o mundo corrompido denomina
ilusões, e a que chamaremos miragens primitivas da verdade eterna. Acreditar
na felicidade da terra, na amizade, no amor, numa Providência materna
que conta todos os nossos passos e recompensará todas as nossas lágrimas
é ser perfeitamente ingênuo, dirá o mundo corrompido; e
não vê que o ingênuo é ele, que se acredita forte
privando-se de todas as delícias da alma.
Acreditar no bem da ordem moral é possuir o bem: e é por isso
que o Salvador do mundo prometia o reino do céu aos que se tornassem
semelhantes às criancinhas. O que é a infância? É
a idade da fé. A criança ainda nada sabe da vida; desse modo,
resplandece de imortalidade confiante. Como poderia duvidar da dedicação,
da ternura, da amizade, do amor, da Providência, quando está nos
braços de sua mãe?
Fazei-vos crianças de coração e permanecereis jovens de
corpo. As realidades de Deus e da natureza superam infinitamente em beleza e
bondade toda a imaginação dos homens. Assim, os empedernidos são
pessoas que nunca souberam ser felizes; e os desiludidos provam, por seus dissabores,
que beberam apenas em fontes lamacentas. Para gozar os prazeres, mesmo sensuais,
da vida, é preciso ter o sentido moral; e os que caluniam a existência
certamente deles abusaram.
A alta magia, como provamos, reconduz o homem às leis da mais pura moral.
Vel sanctum invenit, vel sanctum facit, disse um adepto; pois ela nos faz compreender
que, para ser feliz, mesmo neste mundo, é preciso ser santo.
Ser santo! é fácil dizer; mas como dar-se a fé, quando
não se acredita mais? Como reencontrar o gosto da virtude num coração
tornado insípido pelo vício?
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
138
Trata-se aqui de recorrer aos quatro verbos da ciência: saber, ousar,
querer e calar-se.
É preciso impor silêncio aos dissabores, estudar o dever e começar
por praticá-lo como se o amasse.
Vós sois incrédulo, por exemplo, e gostaríeis de tornar-vos
cristão. Fazei os exercícios de um cristão. Orai regularmente,
servindo-vos das fórmulas cristãs; aproximai-vos dos sacramentos
supondo a fé, e a fé virá. Aí está o segredo
dos jesuítas, contido nos exercícios espirituais de Santo Inácio.
Por exercícios análogos, um tolo, se o quisesse com perseverança,
tornar-se-ia um homem inteligente.
Mudando-se os hábitos da alma, mudam-se certamente os do corpo: já
o dissemos e explicamos como.
O que contribui, sobretudo, para envelhecer-nos tornando-nos feios são
os pensamentos rancorosos e amargos, os julgamentos desfavoráveis que
fazemos dos outros, nossas raivas por orgulho ferido e paixões malsatisfeitas.
Uma filosofia benevolente e doce evitar-nos-ia todos esses males. Se fechássemos
os olhos aos defeitos do próximo, levando em conta apenas suas boas qualidades,
encontraríamos o bem e a benevolência em toda a parte. O homem
mais perverso tem seu lado bom e abranda-se quando se sabe abordá-lo.
Se nada tivésseis em comum com os vícios dos homens, nem mesmo
os perceberíeis. A amizade e as dedicações que ela inspira
encontram-se até nas penitenciárias e nas prisões de forçados.
O horrível Lacenaire devolvia fielmente o dinheiro que lhe haviam emprestado,
e várias vezes teve atos de generosidade e beneficência. Não
tenho dúvidas de que na vida criminosa de Cartouche e Mandrin tenha havido
lances de virtude capazes de tirar lágrimas dos olhos. Nunca houve ninguém
totalmente mau nem totalmente bom. "Ninguém é bom, a não
ser Deus", disse o melhor dos mestres.
O que tomamos em nós por zelo da virtude é freqüentemente
apenas um secreto amor-próprio dominador, um ciúme dissimulado
e um instinto orgulhoso de contradição. "Quando vemos desordens
manifestas e pecadores escandalosos", dizem os autores da teologia mística,
"cremos que Deus os submete a maiores provas do que nós, que certamente,
ou pelo menos muito provavelmente, não as merecemos, e que faríamos
bem pior em seu lugar."
A paz! a paz! Tal é o bem supremo da alma, e foi para nos dar esse bem
que Cristo veio ao mundo. Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos
homens que desejam o bem!, clamavam os espíritos do céu quando
o Salvador acabava de nascer.
Os antigos pais do cristianismo contavam um oitavo pecado capital: a tristeza.
De fato, o próprio arrependimento para o verdadeiro cristão não
é uma tristeza, é um consolo, uma alegria e um triunfo. "Queria
o mal e não o quero mais, estava morto e estou vivo. O pai do filho pródigo
matou o novilho gordo porque seu filho voltou, que pode fazer o filho pródigo?
Chorar, um pouco de confusão, mas sobretudo de alegria!
Existe apenas uma coisa triste no mundo, é a loucura e o pecado. Visto
que estamos livres, riamos e gritemos de alegria, pois estamos salvos e todos
os mortos que nos amam regozijam-se no céu! Todos trazemos em nós
um princípio de morte e um princípio de imortalidade. A morte
é a besta, e a besta sempre produz a tolice. Deus não ama os tolos,
pois seu espírito divino denomina-se espírito de inteligência.
A tolice expia pela dor e escravidão. O bastão é feito
para as bestas.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
139
Um sofrimento é sempre uma advertência, tanto pior para o que não
sabe compreender. Quando a natureza puxa a corda é porque estamos andando
de lado, quando bate é porque o perigo urge. Ai, então, de quem
não reflete!
Quando estamos maduros para a morte, deixamos a vida sem pesar e nada nos faria
retornar; mas quando a morte é prematura a alma lamenta a perda da vida,
e um taumaturgo hábil poderia chamá-la de volta ao corpo. Os livros
sagrados indicam-nos o procedimento que se deve, então, adotar. O profeta
Elias e o apóstolo São Paulo empregaram-nos com sucesso. Trata-se
de magnetizar o defunto colocando os pés sobre seus pés, as mãos
sobre suas mãos, a boca sobre sua boca, depois reunir toda a vontade
e chamar a si longamente a alma evadida com todas as benevolências e carinhos
mentais de que se é capaz. Se o operador inspira à alma defunta
muita afeição, ou um grande respeito, se no pensamento que lhe
comunica magneticamente o taumaturgo pode persuadi-la de que a vida lhe é
ainda necessária e que dias felizes lhe estão ainda prometidos
aqui embaixo, ela certamente retomará, e para os homens de ciência
vulgar a morte aparente terá sido apenas uma letargia.
Foi após uma letargia semelhante que Guilherme Postel, chamado de volta
à vida pelos cuidados da mãe Joana, reapareceu com uma juventude
nova e passou a chamar-se Postel, o Ressuscitado, Postellus restitutus.
No ano de 1799, havia no subúrbio de Santo Antônio, em Paris, um
ferrador que se fazia passar por adepto da ciência hermética, chamava-se
Leriche e passava por ter operado, pela medicina universal, curas milagrosas
e até mesmo ressurreições. Uma dançarina da ópera,
que acreditava nele, um dia foi procurá-lo em lágrimas e disse-lhe
que seu amante morrera. O senhor Leriche acompanhou-a à casa mortuária.
Quando entrava, uma pessoa que saía disse-lhe: "É inútil
o senhor subir, ele morreu há seis horas." "Não importa",
disse o ferrador, "já que eu vim, vou vê-lo." Subiu,
encontrou um cadáver com o corpo todo gelado, exceto na cavidade do estômago,
onde ele acreditou sentir ainda um pouco de calor. Mandou acender um grande
fogo, operou fricções em todo o corpo com toalhas quentes, esfregou-o
com medicina universal diluída em álcool (sua pretensa medicina
universal devia ser um pó mercurial análogo ao quermes das farmácias),
enquanto isso a amante do morto chorava e chamava-o à vida com as mais
ternas palavras. Após uma hora e meia de semelhantes cuidados, Leriche
pôs um espelho diante do rosto do paciente e achou-o levemente embaçado.
Os cuidados foram redobrados e logo houve um sinal de vida mais acentuado; colocaram-no,
então, num leito bem aquecido e poucas horas depois ele retomara inteiramente
à vida. Esse ressuscitado chamava-se Candy, viveu, desde então,
sem nunca adoecer. Em 1845, vivia ainda e morava na praça Chevalier-du-Guet,
n° 6. Contava sua ressurreição a quem quisesse ouvir, e provocava
o riso dos médicos e dos membros do conselho profissional de seu bairro.
O bom homem consolava-se à maneira de Galileu e respondia-lhes: "Oh!
riam o quanto quiserem. Tudo o que sei é que o médico-legista
tinha vindo, que a inumação estava permitida, que dezoito horas
mais tarde iam me enterrar e que aqui estou."
Capítulo III
O grande arcano da morte
Entristecemo-nos com freqüência ao pensar que a mais bela vida deve
terminar, e a aproximação deste terrível desconhecido a
que se denomina morte faz com que nos enfastiemos com todas as alegrias da existência.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
140
Por que nascer, se se deve viver tão pouco? Por que educar com tantos
cuidados crianças que morrerão? Eis o que pergunta a ignorância
humana em suas mais freqüentes e mais tristes dúvidas. Eis também
o que vagamente se pode perguntar o embrião humano ao aproximar-se o
nascimento que vai lançá-lo num mundo desconhecido, despojando-o
de seu invólucro protetor. Estudemos o mistério do nascimento
e teremos a chave do grande arcano da morte. Lançado pelas leis da natureza
no ventre de uma mulher, o espírito encarnado acorda aí lentamente,
e com esforço cria em si órgãos indispensáveis mais
tarde, mas que, à medida que crescem, aumentam seu mal-estar na situação
presente. O tempo mais feliz da vida do embrião é aquele em que,
sob a simples forma de uma crisálida, estende à sua volta a membrana
que lhe serve de abrigo e que nada com ele num fluido nutriente e conservador.
Ele é, então, livre e impassível, vive da vida universal
e recebe o cunho das lembranças da natureza que determinarão,
mais tarde, a configuração de seu corpo e a forma dos traços
de seu rosto. Essa idade feliz poderia chamar-se a infância do embrião.
A seguir vem a adolescência, a forma humana torna-se distinta e o sexo
determina-se, um movimento opera-se no ovo materno semelhante aos vagos devaneios
da idade que sucede à infância. A placenta, que é o corpo
externo e real do feto, sente germinar em si algo de desconhecido que já
tende a escapar-se, rompendo-a. A criança, então, entra mais distintamente
na vida dos sonhos, seu cérebro, invertido como um espelho de sua mãe,
reproduz com tanta força as imaginações desta, que comunica
sua forma aos próprios membros. Sua mãe, então, é
para ele o que Deus é para nós, é uma providência
desconhecida, invisível, a que ele aspira a ponto de identificar-se em
tudo com o que ela admira. Está preso a ela, vive através dela
e não a vê, nem mesmo pode compreendê-la, e se pudesse filosofar
talvez negasse a existência pessoal e a inteligência dessa mãe
que para ele ainda é apenas uma prisão fatal e um aparelho conservador.
Pouco a pouco, no entanto, essa sujeição incomoda-o, agita-se,
atormenta-se, sofre, sente que sua vida vai terminar. Chega uma hora de angústia
e convulsão, seus liames desprendem-se, sente que vai cair no abismo
do desconhecido. Está feito, ele cai, uma sensação dolorosa
oprime-o, um frio estranho invade-o, solta um último suspiro que se transforma
num primeiro grito; morreu para a vida embrionária, nasceu para a vida
humana!
Na vida embrionária, parecia-lhe que a placenta era seu corpo, e de fato
era seu corpo especial embrionário, corpo inútil para uma outra
vida e que deve ser rejeitado como uma imundície no instante do nascimento.
Nosso corpo na vida humana é como um segundo invólucro inútil
para a terceira vida e é por isso que o rejeitamos no instante de nosso
segundo nascimento.
A vida humana comparada à vida celeste é um verdadeiro embrionato.
Quando as más paixões nos matam, a natureza aborta e nascemos
antes do tempo para a eternidade, o que nos expõe à dissolução
terrível a que São João chama segunda morte.
Segundo a tradição constante dos extáticos, os abortos
da vida humana permanecem nadando na atmosfera terrestre que eles não
podem ultrapassar e que aos poucos os absorve e os afoga. Têm a forma
humana, mas sempre imperfeita e truncada: a um falta a mão, a outro um
braço, este já tem só o tronco, este último é
uma cabeça pálida que rola. O que os impediu de subirem ao céu
foi um ferimento recebido durante a vida humana, ferimento moral que causou
uma disformidade física e, por esse ferimento, pouco a pouco toda sua
existência se vai. Logo, sua alma imortal ficará nua e, para esconder
sua vergonha criando a qualquer preço um novo véu, será
obrigada a arrastar-se nas trevas exteriores e a atravessar lentamente o mar
morto, isto é, as águas adormecidas do antigo caos.
Essas almas feridas são as larvas do segundo embrionato, alimentam seu
corpo aéreo com o vapor do
sangue propagado e temem a ponta das espadas. Freqüentemente ligam-se aos
homens viciados e
vivem de sua vida como o embrião vive no seio da mãe; podem, então,
tomar as mais horríveis
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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formas para representar os desejos desenfreados dos que as alimentam, e são
elas que aparecem sob a forma de demônios aos miseráveis operadores
das obras sem nome da magia negra. Essas larvas temem a luz, sobretudo a luz
dos espíritos. Um clarão de inteligência basta para fulminá-las
e precipitá-las nesse mar morto que não se deve confundir com
o lago Asfaltite, na Palestina. Tudo o que aqui revelamos pertence à
tradição hipotética dos videntes e só pode ser afirmado
diante da ciência em nome dessa filosofia excepcional que Paracelso chamava
a filosofia da sagacidade, philosophia sagax.
Capítulo IV
O grande arcano dos arcanos
O grande arcano, isto é, o segredo indizível inexplicável,
é a ciência absoluta do bem e do mal.
"Quando tiverdes comido o fruto desta árvore, sereis como deuses",
diz a serpente.
"Se comerdes, morrereis", responde a sabedoria divina.
Assim, o bem e o mal frutificam numa mesma árvore e brotam de uma mesma
raiz.
O bem personificado é Deus.
O mal personificado é o diabo.
Saber o segredo ou a ciência de Deus é ser Deus.
Saber o segredo ou a ciência do diabo é ser o diabo.
Querer ser ao mesmo tempo Deus e diabo é absorver em si a antinomia mais
absoluta, as duas forças contrárias mais tensas; é querer
abrigar um antagonismo infinito. É beber um veneno que apagaria os sóis
e que consumiria mundos.
É vestir a túnica devorante de Dejanira.
É votar-se à mais pronta e mais terrível de todas as mortes.
Ai daquele que quer saber demais! Pois se a ciência excessiva e temerária
não o matar o tornará louco!
Comer o fruto da árvore da ciência do bem e do mal é associar
o mal ao bem e assimilá-los um ao outro.
É cobrir com a máscara de Tífon o rosto irradiante de Osíris.
É erguer o véu sagrado de Ísis, é profanar o santuário.
A Chave dos Grandes Mistérios - Eliphas Levi
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O temerário que ousa olhar o sol sem sombra torna-se cego e, então,
para ele o sol é negro!
É proibido contarmos mais, terminaremos nossa revelação
pela figura de três pentáculos. Essas três estrelas dizem
o bastante, pode-se compará-las àquelas que desenhamos no início
de nossa história da magia, e reunindo as quatro será possível
chegar a entrever o grande arcano dos arcanos.
Primeiro Pantáculo, a estrela branca
Agora, para completar nossa obra, resta-nos dar a grande chave de Guilherme
Postel. Essa chave é a do tarô. Vêem-se aí os quatro
naipes, paus, copas, espada, ouros ou círculo, que correspondem aos quatro
pontos cardeais do céu e aos quatro animais ou signos simbólicos,
os números e as letras dispostos em círculo, depois os sete signos
planetários com a indicação de sua tríplice repetição
expressa nas três cores, para significar o mundo natural, o mundo humano
e o mundo divino, cujos emblemas hieroglíficos compõem os vinte
e um grandes trunfos de nosso jogo atual de tarô.
No centro do anel, vê-se o duplo triângulo formando a estrela ou
selo de Salomão, é o ternário religioso e metafísico
análogo ao ternário natural da geração universal
na substância equilibrada.
c
s
t
n h v k t n h k t
a
h
,
n h v k t s n t h u
s u t h t h u s u t h t h
Em volta do triângulo está a cruz que divide o círculo em
quatro partes iguais, assim os símbolos da religião reúnem-se
às linhas da geometria, a fé completa a ciência e a ciência
dá a razão da fé. Com o auxílio dessa chave pode-se
compreender o simbolismo universal do antigo mundo e comprovar suas surpreendentes
analogias com nossos dogmas. Reconhecer-se-á assim que a revelação
divina é permanente na natureza e na humanidade; sentir-se-á que
o cristianismo não trouxe senão a luz e o calor ao templo universal
ao fazer descer nele o espírito de caridade que é a vida do próprio
Deus.
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EPÍLOGO
Graças vos sejam dadas, meu Deus, porque vós me chamasses a essa
admirável luz. Sois a inteligência suprema e a vida absoluta desses
números e dessas forças que vos obedecem para povoar o infinito
com uma criação inesgotável. As matemáticas vos
provam, as harmonias vos cantam, as formas passam e vos adoram!
Abraão conheceu-vos, Hermes adivinhou-vos, Pitágoras calculou
vossos movimentos, Platão aspirava a vós em tolos os sonhos de
seu gênio; mas um único iniciador, um único sábio
vos revelou aos filhos da terra, um único pôde dizer de vós:
Meu pai e eu somos apenas um; glória seja, pois, para ele, pois que toda
sua glória é para vós!
Pai, vós o sabeis, aquele que escreve estas linhas muito lutou e sofreu;
suportou a pobreza, a calúnia, a proscrição odiosa, a prisão,
o abandono dos que amava, e, no entanto, nunca se julgou infeliz, porque restava-lhe
por consolo a verdade e a justiça!
Vós sois o único santo, Deus dos corações verdadeiros
e das almas justas, e sabeis se algum dia acreditei estar puro diante de vós;
fui como todos os homens o joguete das paixões humanas, depois venci-as,
ou antes, venceste-as em mim, e destes-me, para que aí repousasse, a
paz profunda dos que buscam e ambicionam a vós somente.
Amo a humanidade porque os homens, enquanto não são insensatos,
nunca são maus a não ser por erro ou fraqueza. Amam naturalmente
o bem e é por esse amor, que lhes destes como um sustentáculo
em meio a suas provações, que devem ser reconduzidos cedo ou tarde
ao culto da justiça pelo amor da verdade.
Que meus livros vão agora onde Vossa Providência os enviar. Se
contiverem as palavras de vossa sabedoria, serão mais fortes que o esquecimento,
se ao contrário contiverem apenas erros, sei ao menos que meu amor pela
justiça e pela verdade lhes sobreviverá, e que assim a imortalidade
não pode deixar de recolher as aspirações e os votos de
minha alma que criastes imortal!
Eliphas Levi
FIM
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