Considerações acerca das "Considérations sur la France" de Joseph de Maistre
Paulo Miranda



Se porventura indagarmos quem foi Joseph de Maistre a certos católicos conservadores, ouviremos extenso laudatório. De Maistre teria sido, talvez, um dos maiores católicos ultramontanos, ardoroso inimigo da Revolução Francesa, vibrante defensor da Igreja e do Papado.
Eis o rótulo.
Se, não nos contentando com isso, desejarmos passar ao conteúdo, certamente ficaremos perplexos. A leitura das obras do conde saboiano surpreende pela flagrante incongruência entre seu renome de contra-revolucionário e a diametral oposição de muitas de suas teses aos interesses e à doutrina da Igreja.
Mas não é só. Perplexidade talvez ainda mais aguda nos causará a verificação da ingenuidade daqueles que, encantados pelo brilho do invólucro, aceitam cegamente o que ele reveste. Ainda que desse modo se lhes esteja inoculando o pior dos venenos.
Tal é o pensamento que vem à mente de quem estuda as obras de De Maistre, particularmente Considérations sur la France (1795), sobre a qual Veritas oferece hoje a seus leitores um comentário.
Para tanto, valemo-nos da edição da Librairie Catholique Emmanuel Vite, Lyon, 1924.

A honra ou a vida?
Uma pequena introdução de caráter histórico se impõe.
Em 1795, quando foram publicadas pela primeira vez as Considérations sur la France, o movimento católico chouan, que se rebelara contra a Revolução Francesa, sofria terrível derrota na batalha de Quiberon.
Apesar disso, não estava ainda definitivamente vencido. Dois anos mais tarde, Sotin, o terrível ministro da polícia revolucionária, escreveria: "Mantenhai-vos firmes, sobretudo, para que a chouanerie não reerga a cabeça. Se ela reaparecesse hoje, ela mataria a República" (G. de Cadoudal, Georges de Cadoudal et la Chouannerie, Éditions Saint Michel, 1971, pág. 181).
O que faltou para que o pujante movimento contra-revolucionário camponês obtivesse vitória? Não há dúvida de que a história poderia ter tomado rumo diverso se ele tivesse recebido apoio decidido da nobreza francesa, e se não tivesse sido traído por certos elementos do Clero.
No ano de 1797, Georges de Cadoudal, o último dos grandes líderes chouans, viajou à Inglaterra na tentativa de convencer o Conde d'Artois, irmão de Luís XVI, a retornar à França e comandar pessoalmente, com grandes chances de sucesso, uma ofensiva contra-revolucionária.
A gestão de Cadoudal redundaria em total fracasso. Era mais cômodo, para a nobreza, continuar a gozar dos confortos oferecidos pelo exílio e deixar a França à própria sorte.
Indagado por um nobre se ele poderia garantir a vida do Conde d'Artois caso este aceitasse sua proposta, o general chouan foi sincero: "A vida não, mas a honra".
De fato, tal era a opção que se apresentava aos nobres. Cabia arriscar suas vidas lutando pelo restabelecimento da monarquia, ou nada fazer, sacrificando sua honra.
Poucos seguiram o primeiro caminho. Alguns, pelo contrário, chegaram a aderir aos princípios da Revolução que lhes confiscara os bens e forçara o exílio ou condenara à morte: "Eu te asseguro que já sou quase democrata, e estou farta até as orelhas de reis e de imperadores", não temia escrever a princesa Louise de Condé a seu pai (Ghislain de Diesbach, Histoire de l'Émigration, B. Grasset, Paris, 1975, pág. 25).
A maioria dos nobres permaneceu inativa. "Coisa estranha", observa Louis Madelin, "os que se mostravam menos perturbados eram aqueles que, aparentemente, a Revolução atingia com mais crueldade: os nobres. Havia nessas amáveis pessoas um fundo de despreocupação (...). O que mais surpreende, é o fatalismo sereno com o qual as próprias vítimas aceitavam ser aprisionadas" (Louis Madelin, La Révolution, Hachette, Paris, 1933, págs. 114/115).
Contudo, a consciência provavelmente pesava a muitos. Afinal, saber que pobres camponeses davam suas vidas pela causa da Igreja e do Trono, e, diante disso, cruzar os braços, não era atitude que se pudesse suportar por muito tempo. A Revolução corria o risco, portanto, de que tais nobres, despertos de seu torpor, se dispusessem a lutar.
Portanto, a República tinha dois inimigos a combater: os chouans e a consciência dos nobres.
Quanto aos primeiros, era preciso "metralhar sem escrúpulo, prender à primeira suspeita concebida e fazê-los desaparecer", como recomendava Sotin a seus comandados.
Em relação aos nobres emigrados, o método podia ser mais suave. Bastava encontrar uma fórmula que lhes apaziguasse as consciências, mantendo-os na doce inatividade. Encontrar uma saída pretensamente católica que os fizesse crer na legitimidade de seu ócio. Que lhes permitisse, enfim, conciliar vida e honra.
Dos chouans daria conta o exército revolucionário. A segunda tarefa, mais sutil e talvez ainda mais nefasta, seria em grande parte cumprida por um insuspeito contra-revolucionário: o conde Joseph de Maistre.
A "Divindade" conduz a revolução satânica
"Há na revolução francesa um caráter satânico que a distingue de tudo o que já foi visto e talvez de tudo o que se verá" (Cons., pág. 55).
A frase tornou-se célebre, e bastou para consagrar as Considérations sur la France como obra contra-revolucionária.
Se a revolução francesa era satânica, qual a atitude normal do católico diante dela? O combate, naturalmente.
Engano. A lógica de De Maistre não condiz com a lógica comum. Segundo ele, combater a revolução era contrariar os planos da Providência, conforme veremos adiante.
Para o conde, havia na revolução "uma força avassaladora que faz curvarem todos os obstáculos"; ela "conduz os homens, mais do que os homens a conduzem" (Cons., pág. 4).
Eis como ele desenvolve sua tese: "Os próprios celerados que pareciam conduzir a revolução dela tomaram parte apenas como simples instrumentos". Robespierre, Collot ou Barrère "não pensaram em estabelecer o governo revolucionário e o regime do terror; eles foram conduzidos a isso insensivelmente pelas circunstâncias, e jamais se tornará a ver algo semelhante" (Cons., pág. 5). Tudo deu certo para eles, "porque eles eram apenas os instrumentos de uma força que conhecia mais do que eles" (Cons., pág. 6).
Mas o que seria essa "força avassaladora", da qual os líderes da revolução eram simples instrumentos? Certamente - pensará o leitor - a força satânica a que se refere De Maistre.
Novo engano. "Diz-se muito bem, quando se afirma que ela (a revolução) caminha sozinha: essa frase significa que jamais a Divindade se mostrou de uma maneira tão clara em nenhum acontecimento humano. Se ela emprega os instrumentos mais vis, é porque ela pune para regenerar" (Cons., pág. 7 - grifo nosso).
Portanto é essa "Divindade" que conduz essa revolução de caráter satânico, empregando instrumentos vis - os próceres revolucionários.
Esse é apenas o primeiro de uma série de paradoxos que infestam a obra.
O jacobinismo, "único meio de salvar a França"
Se a revolução era o meio de atuação da "Divindade", combatê-la seria contrariar o próprio Deus. Tal é a conclusão que se impõe, e De Maistre não hesita em confirmá-la: foi a Providência quem impediu o triunfo das forças contra-revolucionárias, cuja vitória teria conseqüências funestas.
Com ele a palavra:
"Se apenas a força tivesse operado aquilo que se chama a contra-revolução e recolocado o rei sobre o trono, não teria havido meio de fazer justiça" (Cons., pág. 13).
Para argumentar, o autor arquiteta uma hipótese:
"Transportemo-nos à época mais terrível da revolução; suponhamos que, sob o governo do comitê infernal, o exército, por uma súbita metamorfose, se tornasse de repente realista; suponhamos que ele convocasse suas assembléias primárias e que nomeasse livremente os homens mais esclarecidos e estimáveis para lhe traçar a rota a ser seguida nessa situação difícil; suponhamos, enfim, que um desses eleitos do exército se erguesse e dissesse: 'Bravos e fiéis guerreiros, há circunstâncias em que toda a sabedoria humana se reduz a escolher entre diferentes males. É duro, sem dúvida, combater em favor do comitê de salvação pública, mas haveria algo ainda mais fatal: seria voltar nossas armas contra ele. No instante em que o exército se imiscuir na política, o Estado será dissolvido, e os inimigos da França, aproveitando esse momento de dissolução, a penetrarão e dividirão. Não é para o momento atual que nós devemos agir, mas para a continuação dos tempos: trata-se sobretudo de manter a integridade da França, e nós somente podemos fazê-lo combatendo em favor do governo, qualquer que seja ele" (Cons., págs. 16 e 17).
Como - perguntamos - deveria ser recebida tal proposta pelos católicos contra-revolucionários? Poderiam tais sofismas encontrar guarida? Afinal, já não estava dividida a França pela revolução, se não em seu território, em seu povo e em sua Fé? Poderiam os católicos, a pretexto de manter aquela artificial integridade territorial, juntar suas forças às do governo assassino, que derrubara Igreja e trono, inundando de sangue o solo francês?
Não. Sem dúvida, o autor de tal discurso seria repelido pelos católicos não acovardados como vil traidor.
Não é o que pensava De Maistre: "Esse homem", diz ele, "teria falado como grande filósofo" (Cons., pág. 17). E ele continua: "Se pensarmos bem, veremos que, uma vez estabelecido o movimento revolucionário, a França e a monarquia somente poderiam ser salvas pelo jacobinismo" (Cons., pág. 17). O poder revolucionário, em sua visão, "era ao mesmo tempo um castigo terrível para os franceses e o único meio de salvar a França" (Cons.,pág. 18).
A História, como já era previsível, negou-lhe razão. Tragicamente.
De Maistre, a pretexto de patriotismo, não poupa os contra-revolucionários:
"O que pediam os realistas, quando pediam uma contra-revolução tal como eles a imaginavam, quer dizer, feita bruscamente e pela força? Eles pediam a conquista da França, e portanto sua divisão, o aniquilamento de sua influência e o aviltamento de seu rei, ou seja, massacres talvez de três séculos, como conseqüência infalível de uma tal ruptura de equilíbrio" (Cons., pág. 18).
Linhas escritas por um falso contra-revolucionário, não apenas contra nobres, mas também contra camponeses católicos que, nada possuindo além de sua Fé, tomaram rudes armas para, desordenadamente, defender a Igreja e o Trono. Linhas que, a pretexto de falso patriotismo, apaziguavam consciências de omissos. Linhas assassinas, responsáveis pelo massacre de milhares de católicos franceses.
Bons frutos da má árvore
O otimismo de De Maistre não conhece limites. Profeticamente, o conde vislumbra resultados maravilhosos da revolução satânica. Para demonstrá-las, ele não hesita lançar mão de paradoxos, por mais irrazoáveis que sejam.
Aliás, ele não deixa de advertir quanto a isso: "Povo francês, não escute os raciocinadores; raciocina-se demais na França, e o raciocínio está banindo dela a razão. Entrega-te sem temor e sem reservas ao instinto infalível de tua consciência" (Cons., pág. 111).
Vê-se bem que De Maistre seguia à risca seu próprio conselho, entregando-se a esse estranho "instinto infalível".
Entre os excelentes resultados da revolução, o ultramontano conde vislumbra o ecumenismo:
"Era necessário, provavelmente, que os padres franceses fossem mostrados às nações estrangeiras; eles viveram entre nações protestantes, e essa aproximação diminuiu muito os ódios e preconceitos. A emigração considerável do clero, e particularmente dos bispos franceses, para a Inglaterra, me parece sobretudo uma época notável. Seguramente, ter-se-ão pronunciado palavras de paz! Seguramente, ter-se-ão formado projetos de aproximação durante essa reunião extraordinária! Ainda que não se tenha senão desejado em conjunto, isso já seria muito" (Cons., págs. 22/23).
Comovente, sem dúvida. Com essa demagogia, nosso tradicionalista poderia ser, hoje, presidente do Conselho Mundial das Igrejas.
Mas o ecumenismo é apenas uma das conseqüências benéficas da revolução descobertas por De Maistre:
"Todos os monstros que a revolução concebeu trabalharam apenas, segundo as aparências, em favor da realeza. Através deles, o brilho das vitórias forçou a admiração do universo, e envolveu o nome francês de uma glória da qual os crimes da revolução não puderam despojar inteiramente; por eles, o rei voltará ao trono com todo seu brilho e todo o seu poder, talvez mesmo com um acréscimo de poder" (Cons.,pág. 19).
"Qui habitat in coelis irridebit eos". A história demonstra o ridículo dessas palavras.
Entusiasmado, De Maistre prodigaliza sua estranha lógica:
"Se desejarmos conhecer o resultado provável da revolução francesa, basta examinar em que todas (as facções revolucionárias) desejaram o aviltamento, a própria destruição do cristianismo universal e da monarquia; de onde se deduz que todos os seus esforços redundarão apenas na exaltação do cristianismo e da monarquia" (Cons., pág. 117, o estranho destaque é do original).
Eis a árvore má a produzir bons frutos!
Que fazer? Nada fazer.
Ante tão belas perspectivas, que atitude tomar?
De Maistre responde: "Essa mesma idéia, que tudo se faz em vantagem da monarquia francesa, me convence de que qualquer revolução realista é impossível antes da paz; pois o restabelecimento da realeza deteria subitamente todos os recursos do Estado" ( p. 19). "Entretanto, parece sempre mais vantajoso para a França e para a monarquia que a paz, e uma paz gloriosa para os franceses, se faça pela república" (p.20).
Assim, De Maistre aconselha a nobreza a esperar a "paz gloriosa pela república". Enquanto isso, devia ela, segundo suas palavras, "curvar a cabeça e resignar-se. Um dia ela deverá abraçar de bom grado filhos que ela não carregou em seu seio; esperando, ela não deve mais fazer esforços exteriores; talvez mesmo fosse desejável que jamais a tivessem visto em uma atitude ameaçadora" (p. 151).
Nada mais cômodo.
Assim pensava Joseph de Maistre. Surpreende que, passados dois séculos, continue ele a gozar do renome de grande católico contra-revolucionário.
À sua revelia, é preciso reconhecer, pois ele se afirma "estranho a todos os sistemas, a todos os partidos, a todos os ódios, por caráter, por reflexão, por posição" (p. 183).
Essa derradeira mentira talvez seja a maior contida na obra. Pois por detrás da falsa neutralidade de De Maistre, ou de seu falso prestígio de católico contra-revolucionário, existia, sim, um sistema e um partido. E existia, sim, muito ódio.
O mesmo sistema, o mesmo partido e o mesmo ódio que levaram, mais tarde, o mundo a assistir impassível à gradual descristianização dos povos. Que não permitiu houvesse uma forte reação contra-revolucionária entre os católicos, a pretexto de não dividi-los. Que tem auxiliado a caminhada revolucionária até nossos dias, acalentando a inanição e a pusilanimidade de muitos daqueles que deveriam ser seus maiores opositores
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