O Espírito de caridade atravessando as épocas
Respostas a todas as objeções contra a fé

Eliphas Levy


Explicação clara e universal dos pontos essenciais da doutrina A catolicidade necessária Recapitulação e síntese universal em duas palavras que fazem apenas uma, o espírito de caridade.
Vencer a rudeza na procura das satisfações naturais é a obra de uma boa educação. Vencer os atrativos do prazer e sacrificá-lo ao dever é todo o mérito da honra. Vencer a apreensão da dor e mesmo da morte para obedecer à honra é o heroísmo, é a perfeição humana. Chega-se a esta perfeição por uma educação progressiva da vontade. O ascetismo era o aprendizado do martírio: não se morre como Curtius quando se viveu como Natta. - Para inclinar-se assim à perfeição, é preciso amá-la, - O amor da perfeição é o espírito de caridade. As expiações são as retomadas de uma educação defeituosa; feliz aquele que sabe reconhecê-las e aceitá-las! Expiar é comer depois da sobremesa o sal que não se havia misturado aos alimentos. Um homem bem educado não é nem corrupto, nem bêbado, nem glutão. Um homem de honra pratica severamente a moral humana; um cristão só professa o desprendimento e a caridade que é o heroísmo de todas as virtudes. O homem saindo das mãos da natureza não é bom, como pretedeu Rousseau ele tem o instinto do egoísmo, e suas paixões ao se desenvolverem logo farão dele um animal feroz. A sociedade, fazendo-o temer suas punições, ensinar-lhe-á antes a hipocrisia e a vileza, e não conseguirá formar-lhe a virtude se a religião não intervier; e é o que acontece com todos os homens verdadeiramente virtuosos. O sentimento de honra e de dever é um sentimento religioso. Sem uma fé real no próprio princípio da honra e do dever seria suficiente parecer honesto e iludir a lei para viver tranqüilo, e não haveria outros virtuosos além dos tolos. É nesse sentido que não existe realmente probidade sem religião. O amor ao belo, ao bom, ao honesto, é natural; é um dom que deve ser desenvolvido pela educação e vivificado pela fé religiosa. Tudo é confusão de palavras. Produzimos um Deus de fantasia que achamos absurdo, e acabamos por declarar que Deus não é. Chamam-se católicos os fariseus modernos, e conclui-se daí que o catolicismo é apenas ostentação e hipocrisia. Tomam-se os hipócritas por devotos e confundem-se depois facilmente os verdadeiros devotos com os hipócritas. - Encontra-se por acaso um mau sacerdote, e rompe-se por isso com todo o clero. É justo tudo isso, há nisso tudo uma sombra de lógica e de razão? Ninguém ataca a verdadeira religião, a verdadeira piedade, o verdadeiro Deus, mas todo mundo luta contra moinhos de vento. Só conhecemos Deus pelo espírito de Jesus Cristo que é o espírito de caridade manifestado pelos seus ensinamentos e por suas obras; nisso consiste toda a revelação, evidentemente divina, assim como a caridade é divina. A ciência contesta os milagres e discute as profecias, mas há alguma coisa mais forte que a ciência e mais maravilhosa que os milagres: é a caridade. (Ver o texto de São Paulo.) O espírito de Jesus Cristo está sempre vivo na terra, senão tudo morreria; e onde se encontra o espírito de Jesus Cristo, Deus está presente, diligente, e de algum modo visível. Aquele que, sem crer em Jesus Cristo, pronuncia a palavra Deus, não sabe certamente o que diz. Não há nenhum artigo de fé referente ao diabo. Tudo o que se diz sobre ele é da crença e da tradição. O diabo é o espírito oposto ao de Deus, eis o princípio. Que esse infeliz espírito existe, os erros e os crimes dos homens o demonstram bem. Representa-se o diabo disforme, ainda que um espírito não tenha formas, para fazer compreender 62 que é o espírito de desordem. Ele é eternamente acusado porque o mal é sempre inconciliável com o bem. Dizer que Deus é impessoal, é tirar toda idéia possível da inteligência. Fazê-lo impessoal seria fazer algo de limitado e de incompleto. - Ele é formado por três pessoas, para ser um em muitos e tudo em todos. O arianismo procurava fazer de Jesus Cristo um ídolo vivo, uma espécie de subdeus; - o monoteísmo aniquilava nele a humanidade. Duas naturezas distintas em Jesus Cristo, mas não duas pessoas; duas naturezas são em todos nós, espiritual e corporal; - duas pessoas seria um conflito. A religião é um conjunto de assistências organizadas para ajudar os homens a viver segundo a sabedoria. A unidade de religião só se pode estabelecer pelo espírito de caridade. Isso será a comunhão universal dos homens, e no momento em que o espírito de caridade tiver triunfado, no seio da própria Igreja, sobre todos os vícios que lhe fazem guerra, ele se espalhará no mundo inteiro que o chama e que tem sede dele. Os mártires dos primeiros séculos manifestaram o espírito de caridade pela coragem nos suplícios; as testemunhas da renovação da fé deverão por sua vez passar pela sua prova, pela abnegação, pela pobreza, pela resignação às calúnias, ao desprezo, aos abandonos, e freqüentemente pelas mais imerecidas e cruéis perseguições. Se podemos conhecer o bem e praticá-lo ao fazer uma idéia justa de Deus, se só podemos conhecer Deus por Jesus Cristo, e Jesus Cristo por sua Igreja, é rigorosamente correto dizer: fora da Igreja não há salvação. Mas a Igreja é universal, isto é, estende a influência de suas graças e o poder de suas preces sobre todos aqueles que lhe pertencem pela boa vontade, pela retidão do coração e dos desejos. Sobre todos aqueles que seriam dela, se pudessem conhecê-la, não há um batismo de desejo? e a luz da verdade tem sempre um longo caminho a fazer para iluminar uma alma e tocar um coração? Antes da vinda de Jesus Cristo, todos aqueles que desejavam a verdadeira luz acreditavam implicitamente nele. A alma da Igreja é mais extensa que seu corpo, ela preenche o mundo e atrai sobre ela tudo o que é de boa fé e de bons costumes. Rousseau riu dos anjos missionários de São Tomás, porque não era digno de sentir tudo o que há de fé e de caridade nesse pensamento; é belo pensar que se mais de quatrocentos ou quinhentos milhões de nossos irmãos ignoram a verdadeira religião, um número incalculável entra moribundo no seio da verdadeira Igreja, instituído e batizado pelos anjos! Os protestantes não têm mais razão de ser, nem mesmo aparente. Contra o que de fato eles protestam? Contra abusos que jamais existiram ou que não existem mais? Contra perseguições que cessaram? - Não, mas protestam contra a unidade hierárquica que sanciona as leis da Igreja. - Protestam sem o saber contra o espírito de caridade.
O espírito nacional dos judeus os censura muito por essa união que é a alma da Igreja, e eles serão a força do santuário quando tiverem compreendido:
Que os cristãos não adoram três deuses;
Que não atribuem à natureza humana as honras divinas;
Que não destroem a lei de Moisés, mas que a cumprem;
Que o Messias chegou, e que é nosso Senhor Jesus Cristo,
Jesus Cristo, mostrando-se a nós, mostrou-nos também seu pai; Deus tornou-se visível, evidente, palpável. A Igreja, mostrando-se a nós, deve também nos mostrar seu chefe visivelmente sucessor de Jesus Cristo, e animado do mesmo espírito. (Objeção dos maus papas fácil de resolver: houve maus homens no trono de São Pedro, nunca houve maus papas.) O espírito de caridade é uma verdade, porque é uma luz, um calor e uma força. O sobrenatural visível é o espírito de caridade; os verdadeiros milagres, os milagres incontestáveis, são aqueles do espírito de caridade. O espírito de caridade dá à vida uma plenitude e um júbilo bem superiores a todos os prazeres da vida. Assim, Deus é visível aos homens, a verdadeira religião é evidente e não tem mesmo necessidade de ser demonstrada. O dever é claramente traçado, e fácil de seguir em todas as condições da vida. Não é verdade que o mundo esteja sem religião; a sociedade é mais católica do que se pensa: todo mundo adora, deseja e espera o espírito de caridade. Quanto maiores são as misérias, mais a renovação por esse espírito está próxima. Ninguém amou o sofrimento pelo próprio sofrimento, nem mesmo Jesus Cristo; ama-se o sofrimento pela caridade, cujos méritos e júbilos obtêm-se a esse preço. Se querem tomar tua veste, abandona também teu manto. O Mestre disse isso aos indivíduos, não à sociedade; a propriedade é um princípio, e as sociedades são guardiãs dos princípios sob pena de morte. O cristão Mastai deve se deixar despojar, mas o papa Pio IX não deve permitir que se despoje a Igreja. - Fazei concessões, ou vos tomarão tudo, dizse ao soberano pontífice. Non possumus, responde o papa, e dizendo isso é um princípio que ele defende; ele sabe que se expõe a perder tudo e persiste. Não é correto sacrificar o espiritual pelo temporal. A justiça é eterna, e o papa defende a justiça. Teria sido mais proveitoso morrer no seu trono dizendo non possumus do que deixar correr o sangue (para não dizer mais) de Perouse e de Castelfidardo. Mas todos os homens cometem faltas, e os papas também são homens. Certas parábolas do Evangelho não parecem concluídas, a do filho pródigo, por exemplo. Ei-lo de volta à casa de seu pai, e matam o novilho gordo para festejá-lo; mas ele não tem mais nada, e seu pai, que dividiu bens entre os dois filhos, não tem mais nada para dar ao pródigo. O que acontecerá? O irmão sábio emprestará ao pródigo arrependido; este último trabalhará e fará por merecer, voltará a ser rico graças a seu irmão e a seu próprio esforço; eis o que Jesus Cristo não quis dizer, sem dúvida porque ainda não era tempo. Um homem é retirado da sala do festim porque não tem veste nupcial; mas se um dos convidados sai e lhe dá a sua, não poderia ele entrar? E o pai 63 de família deixará à porta aquele que terá sido generoso? Creio, ao contrário, que ele próprio dará uma de suas vestes ao convidado caridoso. Eis uma dessas coisas que se podem esperar, mas que não se devem ensinar. Se os espíritos do outro mundo podem se comunicar com os homens deste mundo, por que não o têm feito sempre? Por que um Cristo? Por que uma Igreja? Por que concílios? Por que nossos trabalhos? Por que nossas ciências? Por que nossa razão? Mas sabemos que houve em todos os tempos visionários e impostores; todos os heresiarcas acreditavam-se inspirados. Lutero conversava familiarmente com o diabo, e esse diabo de Lutero era um teólogo manhoso e brutal como seu mestre. O que resultou de tudo isso? Confusão, anarquia e definitivamente ceticismo ou demência. As mesmas causas produzirão sempre os mesmos efeitos. Reconhece-se a árvore pelos seus frutos. Se um anjo de Deus, dizia São Paulo, vos anunciar um outro evangelho que não aquele que vos foi anunciado, que seja excomungado! Não se reflete suficientemente sobre a profundidade dessa parábola. Se o próprio Deus, com efeito, pudesse perturbar a ordem que ele mesmo estabeleceu, tudo recairia numa confusão, e o próprio Deus não seria mais Deus. Enquanto houver abusos na Igreja legítima, os protestantes terão uma razão para existir; mas se os abusos forem suprimidos, o protesto cairá por si mesmo. Quando os judeus puderem compreender que adoramos Deus em Jesus Cristo, e não Jesus Cristo no lugar de Deus, lembrarão que Jesus Cristo foi o mais santo dos judeus, e serão cristãos como nós, e seremos judeus como eles. Quando os filhos forem tão experientes como os pais, quando os homens nascerem todos sábios e todos formados, quando não houver mais espíritos fracos e incompletos, a hierarquia, não mais existindo na natureza, deixará de ser necessária na Igreja. A liberdade de consciência será então somente uma verdade, e poder-se-á dispensar os padres e o papa. Mas qual é pois o pai de família que, sem ser um monstro, permitiria que seus filhos se envenenassem sob pretexto de serem livres? Não, não é livre aquele que, entregue a si mesmo, faz necessariamente o mal. Não impedir, mesmo pela força, um louco de suicidar-se, é ser mesmo um assassino. Sabeis qual é o crime dos cristãos de nossos dias? É o de não serem suficientemente cristãos. O dos católicos é igualmente o de não serem suficientemente católicos. Os verdadeiros protestantes devem julgar-se mais cristãos e mais católicos que o papa. Eles são então arquipapistas, ou não são nada. O homem não pode abster-se da autoridade, e quem julga abaixo da razão fraca consultar a Igreja, irá seriamente consultar sua mesa ou seu chapéu. O espiritismo é uma fotografia das idéias correntes. Os livros de Allan Kardec estão repletos de saint-simonismo, de swedenborgismo e de mormonismo; mas é menos sábio que Saint-Simon, menos elevado que Swedenborg, menos lógico que Joë Smith. Teríamos então que acreditar que ainda se envelhece após a morte e que se lançam sobre a terra as caducidades do além-túmulo. Que triste perspectiva para os grandes homens! Que infelicidade para os vivos! Bela e santa monarquia do céu, Jesus homem-Deus, e Maria mãe de Deus! Anjos de frei Angélico, santos da lenda dourada, virgens do paraíso de Dante, quanto sois superiores, mais poéticos, mais belos que os espectros de Cahaguet e as larvas errantes de Allan Kardec! Dogma severo e incorruptível, bela e santa caridade que distribuem os eleitos na escala de ouro da hierarquia, doutrina profunda cheia de luz para a doçura do espírito e cheia de trevas para o orgulho, sol de glória e de justiça, os homens não mais vos vêem porque têm os olhos doentes. Que eles voltem à razão, e retomarão à fé, porque a fé e a verdadeira razão são irmãs, e ambas são filhas queridas de Deus. Infeliz aquele que não as distingue, mas três vezes pior aquele que as quer separar! Estamos às vésperas de uma transformação religiosa, disse o conde de Maistre e todos o sabem; mas qual seria esta transformação? A ciência e a fé bem nos dizem que será a passagem da análise à síntese, do cristianismo ao messianismo, do catolicismo cego ao catolicismo esclarecido. Será a reconciliação da razão judaica com a fé cristã: o retorno aos estudos cabalísticos preparará o grande acontecimento profetizado pelos apóstolos e esperado universalmente por todos os pais da Igreja. Os mais esclarecidos judeus, os que conheciam e que estudaram o Zohar, esperam essa reconciliação. Franck, em seu livro sobre a Cabala, fala de uma escola de Zoharistas em que quase todos se fizeram cristãos, mas, acrescenta ele, consideravam o cristianismo atual apenas como uma transição necessária do antigo dogma de Moisés a uma síntese religiosa universal. Esta síntese, todas as inteligências elevadas de nosso tempo a pressentiram. Goethe a sonhou magnificamente; Lamennais queria torná-la aceita pela Igreja oficial; Chateaubriand a deixa adivinhar sob os véus de poesia com os quais cobre a sacerdotisa de Homero, a cristã Cymodocée. Michelet a canta em prosa ritmada na Bíblia da humanidade, mas sente-se nele o filho de Voltaire indisposto contra o cristianismo pelas barbaridades teológicas da Idade Média. De qualquer maneira, a síntese se faz. Michelet explica os símbolos da índia, da Pérsia e da Grécia, mas compreende menos os da Roma cristã, talvez porque a própria Roma cristã tinha acabado por não mais compreendê-los. O espírito que inspirava os evangelhos apócrifos perderam-se com os mistérios do gnosticismo, e a crítica eclesiástica moderna, tiranizada pela fria e rigorosa razão protestante, preferiu mutilar as lendas ou apagá-las a procurar o seu significado alegórico. Encontramos uma entre os pequenos livros da biblioteca azul, e esta lenda, evidentemente antiga, parece remontar à época dos evangelhos gnósticos; ela é repleta de alegorias comoventes e de nomes que vêm do grego. É a lenda de Santa Ana, mãe da santa Virgem;
Ana, cujo nome significa a graciosa ou a graça. Seu nascimento é anunciado por um ancião chamado Archos, nome que significa o princípio ou o começo; ela nasceu de uma senhora chamada Emerantiana, ou a dama de nossos dias. Sua lenda é uma verdadeira epopéia alegórica, e a 64 colocamos aqui como complemento de nosso trabalho sobre os evangelhos apócrifos, e como uma peça justificativa em favor de nossa opinião sobre o gênio das primeiras épocas cristãs e sobre a significação filosófica de nossos livros sagrados.