Da Emanação, Da Criação e dos Números.
Louis Claude de Saint Martin - O filosofo Desconhecido


Alegria, paz, saúde àquele que me ouve:
Meus irmãos,
Com o auxílio do Eterno, vou procurar vos falar dos princípios que são a base fundamental de nossa Ordem e que, reunidos em um corpo, poderão constituir um curso de física temporal passiva e de física espiritual eterna.

O primeiro princípio da ciência que cultivamos é o desejo. Em nenhuma arte temporal, nenhum operário jamais venceu, sem uma assiduidade, um trabalho e uma continuidade de esforços para chegar a conhecer as diferentes partes da arte que se propõe a abraçar. Seria, portanto, inútil pensar que se pode chegar à sabedoria sem desejo, visto que a base fundamental dessa sabedoria não é senão o desejo de conhecê-la, que faz vencer todos os obstáculos que se apresentam para bloquear a saída, e não deve parecer surpreendente que esse desejo seja necessário, uma vez que é positivamente o pensamento contrário a esse desejo que afasta todos aqueles que procuram entrar para esse conhecimento.

Ora, é necessário, para ali chegar, trilhar o caminho em razão do afastamento de onde nos encontramos. Aquele que crê aí ter chegado está ainda bem longe; e outro crê estar longe mas não tem senão um passo a dar: o que deve fazer ver que o primeiro passo que se deve dar, deve ser na senda da humildade, da paciência e da caridade. As virtudes são tão necessárias em nossa Ordem que não se pode nela fazer nenhum progresso senão quando se avança nessas virtudes.

Mas poder-me-iam, talvez, perguntar que ligação existe entre as virtudes e as ciências? Esta instrução será empregada para demonstrar essa necessidade.
O Ser, existindo necessariamente por si próprio, Eterno criador e conservador de todo ser, emana de sua imensidade Divina, antes do "tempo", seres livres para sua grande glória. Ele lhes deu uma lei, um preceito e um mandamento sobre os quais foi fundamentada sua emanação. Esses espíritos eram livres e não se pode considerá-los de outro modo sem destruir suas personalidades distintas.

Eles vieram a prevaricar. Qual foi a prevaricação? Sem entrar em todos os detalhes, responderei que o primeiro crime foi a desobediência. Sendo livres, conceberam por sua plena e inteira liberdade um pensamento contrário à lei, ao preceito e ao mandamento do Eterno. Para melhor dar uma idéia dessa desobediência, suponha uma sentinela que se coloque de guarda, a quem se diz de observar os diferentes pontos de sua caserna: esse sentinela é livre e não tem necessidade para que ninguém venha lhe forçar a ficar ou a sair. Por sua própria vontade, ela deixa seu posto e desampara todos os pontos de sua caserna, mas a sentinela é tomada e lhe quebram a cabeça. Eis uma idéia da prevaricação dos primeiros espíritos. A prevaricação foi ter desobedecido à lei, ao preceito e mandamento que lhes haviam sido dados desde a emanação, e de ter concebido um pensamento contrário àquele do Eterno.

Desde então, a comunicação que tinham com o Eterno foi rompida. Deus criara o espaço, no qual os precipitou. Mas de que se serviu Ele para expulsá-los de sua corte Divina? Serviu-se dos espíritos de sua natureza que haviam sido emanados no mesmo instante que os outros, e que também conceberam bem o pensamento maldoso, uma vez que receberam a mancha, mas que fizeram uso diferente de seu livre arbítrio, ficando inviolavelmente presos às leis, preceitos e mandamentos do Eterno. O que prova bem demonstrativamente que os primeiros espíritos conceberam seu pensamento de prevaricação por sua plena e inteira liberdade, e é a fidelidade desses últimos que, sem ter nem mais nem menos faculdades que esses prevaricadores, fizeram bom uso de seu livre arbítrio, rejeitando o mau pensamento que lhes foi apresentado pelos prevaricadores e serviram-se de instrumentos da justiça que Deus lançou sobre àqueles desde o instante de sua prevaricação. É desse combate que fala a Escritura quando diz que Miguel, e seus anjos combatiam contra os demônios e seus anjos, e que Miguel tendo sido vencedor, os precipitou fora do paraíso Divino no espaço que acabava de ser criado.

Não existia ainda o tempo, que não é senão a sucessão ou a revolução dos diferentes corpos. Não havia ali então matéria sutil ou grosseira, não existia senão espíritos puros e simples: espíritos bons no paraíso Divino e espíritos maus no espaço. Desde então, Deus concebeu em sua imaginação pensante criar este universo com formas materiais e passivo para servir de limites e de barreira às operações maldosas dos demônios. Ele emancipou por essa causa os espíritos ternários do eixo "fogo central", que vieram fechar o círculo do espaço no qual os espíritos perversos estavam encerrados, e concebeu em Sua imaginação pensante Divina a criação do corpo principal do chefe deste universo, tanto espiritual Divino como temporal passivo, da forma triangular eqüilátera. Esse triângulo eqüilátero e considerado entre todos os povos da terra como contendo em si a imagem aparente que o Eterno havia concebido em sua imaginação para a criação do chefe deste universo; esse triângulo, repito, nos é ainda representado nas igrejas com quatro caracteres inefáveis dos quais darei a explicação na seqüência.

Deus manifestou de seu pensamento criativo os espíritos do eixo fogo central por esse mesmo triângulo eqüilátero, no centro do qual estava contido seu verbo ternário criativo.

Esses espíritos tendo inato em si, desde seu princípio de emanação, a faculdade de extrair de seu seio as três essências espirituais que ali estavam. Saíram, então, deles mesmos essas três essências para operar esse verbo do Eterno. Perguntar-se-á o que era esse verbo? Direi que esse verbo continha em si o plano, a execução e a operação deste universo. Em conseqüência, esses espíritos do eixo começaram a executá-lo, tirando de seu seio essas três essências que ali estavam. Essas três essências eram, em seu princípio, a matéria em sua indiferença, porque não tinham ainda sido trabalhadas por esses mesmos espíritos, mas eram distintas. Elas estavam, pois, segundo a linguagem da Escritura, sem forma, ou em sua indiferença, e vazias porque a vida passiva não havia podido ser inserida nas formas, visto que ela ainda não existia. Esse vazio deve ser compreendido como a privação do princípio de movimento necessário a todos os corpos deste universo.

Antes de ir adiante, devo falar do princípio fundamental de toda emanação e de toda criação, que é o número. Os sábios de todos os tempos reconheceram que não poderia haver nenhum conhecimento seguro, seja da parte espiritual Divina, seja da parte universal geral terrestre, seja das particulares, sem a ciência dos números, uma vez que é por esses números que o Eterno fez todos os seus planos de emanação e de criação. O número, sendo co-eterno à Divindade, já que, por toda a eternidade, Deus é, o número, tem pois estado em toda a eternidade nele, visto que Deus tem seu número. Porque, se Deus havia podido criar o número, pareceria que ele havia podido criar a si mesmo, o que é impossível, porque nada subsiste sem o número. Ora, Deus sendo o Ser necessário, existindo por si mesmo, conteve, pois, toda a eternidade, todo número. Ele dotou todos os espíritos segundo sua infinita sabedoria e ação eterna. Nenhuma de suas obras saiu de suas mãos sem ser marcada com esse selo: tanto os espíritos emanados como a criação deste universo, tudo tem seu número. Ora, segue-se demonstrativamente que o conhecimento de todas as obras de Deus está oculto no conhecimento dos números. Aí está, pois, meus irmãos, onde devemos procurar admirar as obras do Eterno, não no sentido de nossa forma aparente passiva, mas no sentido de nosso entendimento espiritual Divino e eterno.

Por toda a eternidade, Deus foi um, ou I . Essa unidade nos faz ver a Divindade, uma vez que ela é o princípio de toda a criação; e o círculo que o fecha, contendo em si a unidade, contém tudo o que dele precedeu. Os primeiros espíritos emanados tinham, pois, seu número, os superiores 10, os maiores 8, os inferiores 7 e os menores 4. Seu número, antes de sua prevaricação, era mais forte do que aqueles que damos vulgarmente aos querubins, serafins e arcanjos, que não haviam ainda sido emanados.

Deter-me-ei um pouco a considerar o estado do universo dos espíritos antes de sua prevaricação. Toda a corte da Divindade gozava da mais perfeita paz, nenhuma suspeita de mal existia uma vez que a possibilidade do mal jamais existiu na Divindade: todo ser saiu puro, santo e sem mancha de Seu seio. De onde, pois, veio o mal? O mal não tomou seu princípio senão no pensamento que o chefe demoníaco, que estava livre, concebia dele mesmo, oposto à lei, ao preceito e ao mandamento do Eterno; não que o demônio seja o próprio mal, visto que, se ele mudar desde hoje seu pensamento mau, sua ação mudará também e desde esse instante, não existirá mais o mal em toda a extensão do universo. O mal, repito, não teve seu nascimento senão no pensamento do demônio oposto àquele da Divindade, pensamento que ele concebeu de seu puro livre-arbítrio e pelo qual separou-se da Divindade; o que originou o binário, número da confusão, como tendo desejado existir independentemente da Divindade ou Criador todo-poderoso.

Deus manifestou sua justiça contra esse espírito perverso, precipitando-o com seus aderentes da corte Divina no círculo do universo; o espaço tendo sido primeiramente criado após sua prevaricação, e tendo sido fechado pelos espíritos do eixo do fogo central, que foram emancipados ao mesmo tempo. É o que quer dizer o salmo: "Non accedet ad te malum" o mal não se aproximará de ti", pela barreira que formam esses espíritos do eixo nas operações maldosas dos demônios. Uma vez que os espíritos do eixo do fogo central receberam o verbo do Eterno, saíram de seu seio as três essências espirituais que ali estavam inatas desde a sua emancipação, e eles modificaram essa matéria em sua indiferença, distinguindo essas essências de maneira que pudessem reter a impressão. Esse trabalho dos espíritos do eixo forma uma distinção das três essências que, em seu lugar nas essências, tudo teve forma, e os diferentes corpos foram criados; e desde que os corpos tiveram forma, os espíritos do eixo inseriram em cada um deles um veículo de seu fogo espiritual, que é o princípio da vida de todos os corpos.

Perguntar-me-ão, talvez, onde residiam todas essas matérias antes do ordenamento que se denomina vulgarmente o caos, e que denominamos a matéria. Responderei que essa matéria sem forma e vazia em sua indiferença, residia no matraz filosófico

O trabalho de todos os diferentes espíritos do eixo do fogo central foi conduzido pela sabedoria do Eterno que a Escritura santa nos representa movendo-se sobre as águas. Ora, nada nos representa melhor a matéria em sua indiferença que uma água sem curso e sem movimento. Era sobre esse princípio das essências que o espírito duplamente forte do Eterno conduzia, dirigia e fixava os limites a todos os diferentes seres deste universo, e conduzia toda espécie de operação de trabalho dos espíritos, fatores operantes ou fabricantes do eixo do fogo central, ou fogo incriado. É essa sabedoria que caminhava diante do Eterno e que aplaudia por santos transportes cada pensamento Divino que o Eterno manifestava pela criação deste universo dizendo:

"Estou em ti e em tuas obras, Criador todo-poderoso, como tu estás em mim e nas minhas obras. Aquele que virá após instruirá tua criatura do culto do qual deves ser servido." O trabalho dos diferentes espíritos do eixo se opera ainda sobre esta superfície e se operará até o fim dos séculos, tal como operaram no princípio para a criação de todos os corpos deste universo; o que farei ver claramente na seqüência destas instruções.

No momento, contentar-me-ei em dar a explicação da figura t representando a Divindade. Essa letra hebraica representa um nome inefável da Divindade. É o motivo pelo qual os Judeus jamais pronunciaram, por respeito, esse nome, essa letra; aleph, pronúncia que lhe deram, não sendo a verdadeira. c, beth, segunda característica, representa a ação direta da Divindade; d, guimel, representa o Espírito Santo conduzindo a operação dos espíritos do eixo; s, daleth, representa o verbo ternário do Eterno, pelo qual ele manifesta aos espíritos do eixo seu imenso pensamento pela criação deste universo.

Os três glóbulos que estão no matraz filosófico representam o princípio das essências, ou a matéria em sua indiferença. Ainda que se considere o Mercúrio como sendo o princípio das três essências, não se deve dar a ele, no entanto, uma unidade absoluta, uma vez que não pertencia à Divindade, ou aos espíritos superiores 10, e a nenhuma essência. Assim, essa unidade que se dá a Mercúrio é ternária, e representa as três essências em sua indiferença, em aspecto umas com as outras, sem movimento, sem formas; porque elas não haviam sido trabalhadas, modificadas e operadas pela imensidade dos espíritos agentes, fatores ou operantes do eixo fogo central. Denominamo-os eixo fogo central porque eles são aderentes à corte da Divindade e eternos.

Poder-me-iam, talvez, perguntar porque Deus, tendo previsto o pensamento maldoso dos demônios não os conteve nos limites que lhes estavam prescritos? Responderei a essa objeção dizendo que Deus é imutável em seus decretos, seja a respeito do que aprova ou condena sua criatura e que ele não toma nenhuma parte nas causas segundas, tendo fundamentado todo ser sobre leis invariáveis, e a primeira dessas leis é a liberdade. Ora, Deus não pode destruir, em qualquer espírito que seja, seu pensamento sem destruir sua liberdade; se ele destruísse sua liberdade, destruiria a lei que deu a esse espírito desde sua emanação. Ora, a imutabilidade de Deus sendo irrevogável, ele não pode ter de maneira alguma conhecimento do uso que fará de seu livre-arbítrio todo ser livre. Porque, se a Divindade tivesse tido conhecimento pareceria que ela teria permitido o mal, o que é impossível. Deus, sendo necessariamente bom, não pode emanar senão seres como ele, mas distintos em sua personalidade e livres.

Ora, Deus não teria podido destruir, mesmo quando tivesse tido conhecimento desse pensamento nesses espíritos, sem destruir os atributos e a manifestação de sua glória e de sua justiça: de sua glória para com os espíritos fiéis, e de sua justiça para com os espíritos perversos. Estejamos, pois, bem convencidos, meus irmãos, de que o Eterno não previu jamais o que não existia efetivamente no pensamento de um ser livre. Porque, se ele pudesse prever o uso de seu livre arbítrio, esse espírito, desde esse instante, cessaria de ser livre. Mas o que a Divindade concebe perfeitamente, é o uso que faz qualquer espírito de seu livre arbítrio. Desde o instante em que esse espírito concebe seu pensamento, seja bom, seja ruim, ele é lido e julgado pela Divindade. O que lhe dá o nome de Deus vingador e remunerador: vingador do ultraje feito à sua lei, e remunerador do bom uso dessa lei para sua maior glória.

Vejamos, portanto, bem, meus irmãos, que o princípio ou a origem do mal veio do orgulho. Ora, por uma seqüência necessária, o princípio de todo o bem deve ser a humildade, a paciência e a caridade: a paciência pela necessidade de suportar as fadigas de uma penosa viagem, e a caridade pela necessidade absoluta de suportarmos os erros de nossos semelhantes e de procurarmos corrigi-los tornando-os bons. Essa virtude é tão necessária que uma companhia de perversos não subsistiria vinte e quatro horas se estivesse inteiramente privada dessa virtude. Essa virtude em sua perfeição faz a reunião de todas as outras, visto que é a que mais se aproxima da Divindade. É, pois, meus irmãos, pela prática constante dessas virtudes que nossa união será durável, e que engendrará inúmeros frutos de inteligência, de conhecimento e de sapiência. Estabelecendo uma correspondência mais estreita entre os irmãos uns com os outros, ela tornará comuns os conhecimentos particulares de cada um, e produzirá assim a unidade, que é a base da Ordem.

Felicito-me, meus irmãos, pelo Eterno ter-me dado a graça de vos falar. Estejais bem seguro de meu zelo, de minha afeição e de meu desejo sincero para o bem geral deste oriente.
A graça que vos peço é de aqui colocar cada um o mesmo zelo, e Deus secundará nossos propósitos.