A diferença entre uns e outros
Extrato do Quadro Natural das Relações Existentes Entre Deus, o Homem e o Universo
Louis-Claude de Saint-Martin


A diferença entre uns e outros é a mesma que há entre a realidade dos Seres com uma existência verdadeira e indelével e a aparência dos que têm uma vida independente e secundária. Assim, o homem, ligado a essa verdade, participava, embora de maneira passiva, em todos os fatos da verdade. Desligado da árvore universal, sua árvore geratriz, e vendo-se precipitado numa região inferior para aí experimentar uma vida intelectual vegetativa, o homem, se chega a conquistar luzes e a manifestar as virtudes e as faculdades análogas à sua verdadeira natureza, realiza e representa por si mesmo aquilo que o seu Princípio já lhe colocara diante dos olhos: recuperar a visão de uma parte dos objetos que haviam estado em sua presença, reunir-se aos Seres com os quais havia habitado; e descobrir novamente, de maneira mais intuitiva e mais ativa, coisas que haviam existido para ele, nele e ao redor dele. Eis por que não se pode dizer antecipadamente que os Seres criados e emanados na região temporal - e, conseqüentemente, o homem - trabalhem na mesma obra, que é recuperar a semelhança com seu Princípio, ou seja: crescer sem parar até chegarem ao ponto de produzir frutos, assim como o Princípio produziu os seus nos homens. Eis também o motivo pelo qual, tendo o homem a reminiscência da luz e da verdade, se prova que ele descende da morada da luz e da verdade. Vamos agora retornar ao nosso assunto, declarando novamente que o homem nasceu para ser a chave de código universal, o símbolo vivo e o quadro real de um Ser infinito. Ele nasceu para provar a todos os Seres que existe um Deus necessário, luminoso, bom, justo, santo, poderoso, eterno, forte, sempre pronto a revivificar aqueles que o amam e sempre terrível para com os que querem combatê-lo e ignorá-lo. Feliz seria o homem, se apenas houvesse anunciado Deus manifestando-lhe os poderes, e não os usurpando! E não fiquemos nem um pouco espantados ao vermos o homem trazer uma marca como essa. As faculdades do Ser necessário são infinitas como ele e, visto que ele colocou sobre nós a expressão do número delas, é necessário termos em nós os traços de sua universalidade. Quanto ao temor de depreciar esse Princípio supremo fazendo remontar até ele a nossa origem, temos, em nossa própria emanação, com que nos preservar, já que todas as criações são inferiores ao seu Princípio gerador, já que somos apenas a expressão das Faculdades divinas e do Número divino, e de modo algum a própria natureza das faculdades e do Número que é o caráter próprio e distintivo da Divindade. Isso deve tranqüilizar-nos sobre a grandeza exclusiva do Princípio supremo e de sua glória. A qualquer ponto que subamos, ele estará eterna e infinitamente acima de nós, como acima de todos os Seres. "Enobrecer assim a nossa própria essência é honrá-la, porque não podemos elevar-nos um grau sem nos elevarmos, ao mesmo tempo, a uma relação quádrupla. Toda ação, assim como todo movimento e progressão, é quaternária e só podemos mover-nos segundo a imutabilidade de suas leis. E se descendemos da Divindade, se ela é o princípio imediato de nossa existência, quanto mais dela nos aproximar-mos, mais a ampliaremos aos olhos de todos os Seres, visto que então fazemos ressaltar ainda mais o brilho de suas Potências e de sua superioridade." Creríamos mesmo ter prestado um serviço essencial aos homens se pudéssemos fazer com que eles dirigissem o olhar para verdades tão sublimes. Contemplar tais objetos é o verdadeiro meio de nos humilharmos aos nossos próprios olhos, porque, que comparamos sua força e sua grandeza, a nós mesmos somos obrigados a permanecer em profundo estado de inferioridade. É por isso que é bom lançar sempre os olhos sobre a ciência para não nos persuadirmos de que sabemos alguma coisa; sobre a justiça, para não crermos que somos irrepreensíveis; sobre as virtudes, para não pensarmos que as possuímos. Pois, em geral, o homem só vive na quietude e só se contenta consigo mesmo quando não encara os objetos acima de si. E se quisermos preservar-nos de todas as ilusões, sobretudo das seduções do orgulho, pelas quais o homem é tantas vezes reduzido, não tomemos jamais os homens, mas sempre Deus como nosso termo de comparação. Quando nos elevarmos a esse Princípio supremo, sem o qual a própria Verdade não existiria, veremos que as Faculdades devem ser reais, fixas, positivas, isto é: constituídas por sua própria essência. Isso as subtrairia para sempre a qualquer destruição, pois é nelas somente que reside sua lei, assim como o caminho que leva ao santuário de sua existência. De fato, como o Ser é a fonte primeira de todos os poderes, como se conceberia um poder que não fosse ele? Por onde, por quem, como poderia ele ser vencido ou alterado se todos os Seres saíram de seu seio mediata ou imediatamente e se possuem somente as faculdades ou poderes reais dados por ele? Seria então preciso supor que ele poderia atacar a si mesmo. Outras provas nos demonstram que nenhum Ser pode, e jamais poderá, intentar coisa alguma contra Deus. Se alguém declarar-se seu inimigo, para vencê-lo basta que ele o deixe em suas próprias trevas. Aqueles que o querem atacar tornam-se cegos apenas pelo fato de o quererem atacar. Assim, por esse próprio fato, todos os seus esforços tornam-se sem êxito e as suas forças ficam anuladas ou impotentes, já que eles não vêm por onde devem dirigi-las. Mas, para que o primeiro homem pudesse manifestar esse Ser majestoso e invencível, para que pudesse servir de símbolo da Divindade suprema, ele precisaria da liberdade de ver e contemplar os direitos reais, fixos e positivos que nela existem. Precisaria de um título que lhe desse entrada em seu Templo para gozar do espetáculo de sua grandeza. Sem isso, como teria podido representar com exatidão o menor traço de tal grandeza? E, se o houvesse representado de maneira imperfeita, como é que aqueles que tinham perdido de vista o Ser supremo teriam sido culpados por continuarem a ignorá-lo? Mas se na qualidade de Ser livre o homem pôde deixar de apresentar-se no Templo com a humildade do Levita, querer colocar a Vítima no lugar do Sacrificador e o Sacerdote no lugar do Deus a quem ele servia, então a entrada do Templo teve de ser-lhe fechada, já que ele para ela trazia e nela vinha buscar outra luz além daquela que, sozinha, preenchia-lhe toda a imensidade. Nada mais foi preciso para fazê-lo perder, ao mesmo tempo, o conhecimento e a visão das belezas do Templo, já que só podia vê-las na própria morada delas, na qual ele mesmo se proibira entrar. Ele se gabou de encontrar a luz em outro lugar diferente do Ser, que era seu santuário e lar, e a única que podia fazê-lo nesse santuário. Acreditou que poderia consegui-la por uma outra via que não fosse ela própria. Em suma, acreditou que em dois Seres se poderiam encontrar, ao mesmo tempo, faculdades fixas e positivas. Deixou de fixar a visão naquele em que elas viviam com toda força e brilho para dirigi-la a um outro Ser, do qual ousou pensar que receberia os mesmos socorros. Esse erro, ou antes, esse crime insensato, em vez de assegurar ao homem a morada da paz e da luz, precipitou-o no abismo da confusão e das trevas - e isso sem que o Princípio eterno da vida precisasse fazer o menor uso de suas Potências para aumentar o desastre. Sendo ele a ventura por essência e a única fonte da felicidade de todos os Seres, agiria contra sua própria lei se os afastasse de um brilho adequado a torná-los felizes. Como, por sua natureza, ele só pode ser bem, paz e deleite, produziria coisas que o Ser perfeito não deve conhecer - o que demonstra que ele não é, nem pode ser, o autor de nossos sofrimentos. se enviasse males, desordens e privações Pelo contrário, veremos, na seqüência desta obra, que não há nenhum dos Poderes dessa mão benigna que ela não tenha empregado e que não empregue para nos consolar. Aprenderemos a conhecer que, se as virtudes desse Agente supremo vêm combatendo sem tréguas desde a origem das coisas, é a nosso favor, e não contra nós. Veremos a diferença entre esse Ser e nós: quando fazemos o mal, somos nós os seus autores e algumas vezes cometemos a injustiça de imputá-lo a esse Ser. Entretanto, ao fazermos o bem, é ele quem faz o bem em nós, e para nós. E depois de tê-lo feito em nós e para nós, ainda nos recompensa por isso, como se nós mesmos o houvéssemos praticado. Por fim veremos que se, para satisfazer às suas verdadeiras necessidades, o homem desse a atenção que dá às necessidades imaginárias, obteria bem mais cedo o objeto de seus desejos; "e se me for permitido dizer a razão disso, verdade é que o Bem e o Mal nos perseguem, mas o primeiro nos persegue com quatro forças, enquanto o segundo só nos persegue com duas. Ora, como o homem deve ter também quatro forças, vê-se quão celeremente se daria a união se ele caminhasse sem se deter na direção daquele que tem o mesmo número". O Ser divino o único Princípio da luz e da verdade; somente ele possui as faculdades fixas e positivas, nas quais reside exclusivamente a vida real e essencial. Logo que o homem buscou essas faculdades em outro Ser, acabou, necessariamente, por perdê-las de vista, encontrando apenas o simulacro de todas as virtudes. Assim, quando o homem deixou de ler na verdade, só encontrou em torno de si a incerteza e o erro. Quando abandonou a única morada do que é fixo e real, teve de entrar numa região nova que, por suas ilusões e seu nada, era em tudo oposta àquela que acabara de deixar. Foi preciso que essa região nova lhe mostrasse em aparência, pela multiplicidade de suas leis e ações, uma outra unidade além da unidade do Ser simples e outras verdades além da sua. Foi preciso que o novo apoio sobre o qual ele repousou lhe apresentasse um quadro fictício das faculdades e propriedades desse Ser simples sem que, no entanto, ele tivesse alguma delas. "E aqui já temos uma explicação dos números quatro e nove, que teriam podido estorvar a Obra já citada. Ao passar de quatro para nove, o homem extraviou-se. Isso quer dizer que ele deixou o centro das verdades fixas e positivas encontradas no número quatro, na qualidade de fonte e correspondência de tudo o que existe; na qualidade ainda, mesmo em nossa degradação, do número universal de nossas medidas e da marcha dos Astros. Verdade divina, da qual os homens dos últimos séculos fizeram a mais feliz aplicação para determinar as leis dos movimentos celestes, embora fossem conduzidos a essa imortal descoberta unicamente pela força de suas observações e pela chama das ciências naturais. Ou seja: o homem uniu-se ao número nove das coisas passageiras e sensíveis, cujo nada e vazio estão escritos na mesma forma circular ou nonária, a eles designada, e que mantém o homem como que iludido pelas aparências." São esses os direitos que as coisas da região temporal têm hoje sobre o homem. Como cada um dos Seres que a compõem é completo e inteiro na sua espécie, os olhos desse homem infeliz permanecem fixos nos objetos que realmente representam a unidade, porém somente por imagens bem falsas e defeituosas. Como são formadas por agrupamentos, podem ser vistas pelos nossos olhos de matéria e são necessariamente compostas, visto que nossos olhos materiais também são compostos e que só existe relação entre os Seres da mesma natureza. Enquanto permanece na região temporal, o homem fica assim reduzido a perceber apenas unidades aparentes. Isso quer dizer que ele hoje só conhece pesos, medidas e números relativos em vez dos pesos, medidas e números fixos que empregava em seu lugar de origem. Disso ele tem prova nas experiências mais comuns: ser-lhe-ia totalmente impossível fixar uma porção de matéria igual em peso, número e medida a uma outra porção, visto que precisaria conhecer o peso, o número e a medida fixa da primeira, mas que ele deixou a morada de tudo o que é fixo. Todavia, essas coisas sensíveis, aparentes e nulas para o espírito do homem têm uma realidade análoga ao seu Ser sensível e material. A Sabedoria é tão fecunda que estabeleceu proporções tanto nas virtudes quanto nas realidades, com relação a cada classe de suas criações. Eis por que existe uma conveniência, e até mesmo uma lei insuperável, vinculada ao curso das coisas sensíveis, sem a qual sua ação, embora passageira e temporal, jamais teria o menor efeito. Assim, para os corpos é verdade que os corpos existem, nutrem-se, chocam-se, tocamse, comunicam-se e que há uma permuta indispensável entre todas as substâncias da Natureza material. Mas também isso só é verdadeiro para o corpo, pois se as ações materiais nada operam de análogo à verdadeira natureza do homem, elas, de certo modo, são ou poderiam ser-lhe, estranhas quando ele quiser usar essas forças e aproximar-se de seu elemento natural. A matéria é verdadeira para a matéria e jamais o será para o espírito. Distinção importante com a qual há muito tempo já teriam cessado as disputas entre aqueles que pretenderam ser a matéria apenas aparente e os que pretenderam ser ela real. "Se as coisas corporais e sensíveis nada são para o Ser intelectual do homem, vemos como se deve apreciar aquilo a que chamamos morte e a impressão que ela pode produzir no homem judicioso, em nada identificado com as ilusões das substâncias corruptíveis. Embora verdadeiro para os outros corpos, o corpo do homem não tem, como eles, realidade alguma para a inteligência que, quando muito, deve perceber que está dele separada. E de fato, quando ela o deixa, deixa apenas uma aparência ou, melhor dizendo, nada deixa." Pelo contrário, tudo nos declara que ela deve ganhar em lugar de perder. Prestando um pouco de atenção, só podemos sentir respeito por aqueles que a lei liberta das amarras corporais, porquanto então há uma ilusão a menos entre eles e o verdadeiro. À falta dessa útil reflexão, os homens crêem que é a morte que os aterroriza, ao passo que não é dela, mas da vida que eles sentem medo. Se a ilusão das coisas temporais não bastasse para nos demonstrar a diferença entre o estado atual do homem e seu estado primitivo, seria preciso lançarmos os olhos sobre o próprio homem, pois tanto é verdade que o estudo do homem nos fez descobrir em nós relações com o Primeiro de todos os Princípios e vestígios de uma origem gloriosa, quanto deixa perceber no homem uma horrível degradação. Para nos convencermos disso, basta apenas nos confrontarmos com o Princípio cujas Faculdades e virtudes deveríamos, por nossa natureza, representar.