RAIMUNDO LÚLIO
UM ÚNICO PENSAMENTO E UM ÚNICO AMOR - Parte II

Fr. Zelator S:::I::: S:::I:::I::: M.: I.:


O novo papa, Bonifacio VIII, deveria ser coroado em Roma a 25 de janeiro de 1295. Para lá parte novamente Lúlio, alegre e infatigável como sempre, e encaminha a Santa Sé uma nova petição. Desta vez, poderá dirigir a sua palavra perante o Sacro-Colégio dos Cardeais. É nesse tempo, do 29 de setembro de 1295 a 1o. de abril do ano seguinte, que escreverá o Arbre de Ciência, extensa enciclopédia organizada sob o símbolo da árvore, que contém inúmeros trechos de grande valor literário.


Nem Celestino V nem seu sucessor, lhe prestam atenção. É então quando, desanimado pelo aparente fracasso de todas as suas tentativas, escreve o Desconhort, talvez sua melhor obra poética. Trata-se de um poema lírico-didático de alto valor psicológico e autobiográfico. Nele, Lúlio nos revelará sua profunda decepção.


De Roma parte novamente para Gênova e de lá para Montpellier, corte do rei de Maiorca. Dirige-se a Paris, onde permanecerá de dezembro de 1297 a julho de 1299 tomando parte na violenta polêmica entre os pensadores católicos e seus adversários, os averroístas árabes. Lúlio redige a Declaratio Raymundi per modum dialogi, onde comenta e refuta as proposições averroistas já condenadas em 1277 por Estevão Tempier. Mas Lúlio, que pensava que a ciência não é o único modo de vencer os que estão errados, desejando convertê-los "por modo de amor", escreve seu Arbre de filosofia d'amor, belíssimo tratado místico de alto valor literário.


Desiludido de Paris, despede-se com o Cant de Ramon, onde mais uma vez o heróico maiorquino conta suas dores com um lirismo deslumbrante.
Contudo deve dizer-se que esses lamentos não significam, de maneira alguma, um arrefecimento ou um abandono de seus propósitos fundamentais. Muito pelo contrário, a partir dessa época Lúlio iniciará o período mais agitado de sua vida. Seus escritos se multiplicarão inexplicavelmente; suas viagens se sucederão com um frenesi incrível. É surpreendente a capacidade de trabalho desse velhinho de barbas brancas que já beira os setenta anos.


Maiorca recebe com alegria seu filósofo viajante. De posse de uma licença do rei, Lúlio doutrina judeus e muçulmanos nas sinagogas e nas mesquitas. Estava escrevendo uma suma filosófica sob o título de Començaments de Philosophia, quando recebe a notícia - com um ano de atraso - da derrota que os tártaros infligiram aos muçulmanos em dezembro de 1299. A cristandade exulta de alegria com a esperança de recuperar o Santo Sepulcro e toda a Palestina. Lúlio não se conteve e embarcou para Chipre nos primeiros meses de 1301. À chegada fica informado de que as notícias foram otimistas demais, porque o triunfo tártaro não fora tão grande e os muçulmanos estavam já reagindo. O que fazer? Sem perda de tempo, Lúlio começa seu trabalho. Prega e disputa sobre a fé cristã com os sarracenos, jacobitas, nestorianos e gregos. Suplica ao rei de Chipre, Henrique II, que convoque oficialmente esses infiéis para uma controvérsia pública e se oferece para visitar o sultão de Babilônia e os reis da Síria e do Egipto para instruí-los na fé católica. Em Famagusta é muito bem recebido pelo Grão-Mestre da Ordem dos Templários, que o hospeda na sua própria casa.


Depois de adentrar-se até a Armênia Inferior, onde contrai uma doença, volta para Gênova e, durante a viagem de navio, escreve o Llibre dels mil proverbis. Em 1303 encontra-se de novo em Gênova traduzindo para o catalão sua Nova Logica. Em outubro o vemos em Montpellier, concluindo o Liber de disputatione fidei et intellectus, diálogo sobre a possibilidade da demonstração dos mistérios da fé. Novamente em Gênova, escreve o Liber de fine ou De expugnatione Terrae Sanctae, a obra mais importante das que então se escreveram sobre o polêmico tema da conquista da Terra Santa.


Numa primeira época, Lúlio afirmava que a evangelização dos infiéis deveria ser essencialmente uma obra do amor, realizada principalmente pela inteligência. Daí seu desejo de propor aos sábios e aos homens de cultura de outras religiões a verdade católica. Iluminar, assim, em primeiro lugar os espíritos a fim de preparar os corações para a infusão da graça. A conversão das almas, pensava Lúlio, não podia ser senão um ato de liberdade. Mais tarde, perante o fracasso de seus esforços pacíficos, aperfeiçoará a sua posição e afirmará que, se o adversário recusar o diálogo, a cristandade terá o direito de o obrigar, pela força, a aceitá-lo. É isso o que nos dirá no seu célebre Liber de fine.
Por esta altura, abril de 1305, a Santa Sé tinha ficado de novo vaga, desde o 7 de julho do ano anterior. Agora a execução dos projetos de Lúlio iria depender, sobretudo, do rei de Catalunha e Aragão, Jaime II, cada vez mais poderoso na cristandade.


Assim sendo, uma vez eleito Clemente V, primeiro papa de Avinhão, no dia 5 de junho, o paciente Lúlio parte para Barcelona e entusiasma seu rei com os projetos de uma nova cruzada em Andaluzia. Acompanha-o a Montpellier, onde ambos se encontram com o novo papa, que ia a caminho de Lyon para ser coroado. Mais tarde, sobe também a Lyon para convencer o próprio papa. Lá começará sua Ars generalis et ultima, um dos resumos mais interessantes e completos daquela Art abreujada d'atrobar veritat, dos longínquos tempos de Randa.
Mais uma vez, o papa e seus cardeais não lhe prestam muita atenção e Lúlio, após uma terceira visita a Paris e uma estada de quase dois anos na sua terra natal, embarca para Bugia, na Argélia.


Perante o espanto de todos, Lúlio, desejoso de execrar as heresias, começa a gritar pelas ruas da cidade que a lei de Maomé é falsa e enganosa e que se dispõe a prová-lo. O grande mufi da cidade, autoridade religiosa e judiciária, o interpela e se estabelece entre os dois uma profunda discussão filosófico-teológica. Lúlio, usando a máxima bonum est diffusivum sui (é próprio da natureza do bem difundir-se), argumenta que não há contradição em pensar que Deus Pai, a bondade por excelência, gere da sua bondade o Filho igualmente bom e que de ambos proceda o Espírito Santo. Seu adversário, estupefato com tal argumentação - que, afinal, destruia a idéia averroísta da criação eterna do mundo -, não sabendo o que replicar, dá ordens para que se conduza imediatamente Lúlio à prisão, mas promulga um decreto proibindo atentar contra a sua vida, dado que a multidão muçulmana esperava-o fora, para linchá-lo.


Lúlio, permaneceu uns seis meses na cadeia, mas continua lutando, e o faz porque tem fé. Lá mesmo começa a escrever a Disputatio Raymundi et Hamar Sarraceni, que contém o eco de suas controvérsias religiosas. O rei Halid I, mandou expulsar Lúlio, que teve de embarcar à força num navio que se dirigia a Gênova. Como final dessa odisséia, o navio naufragou perto de Pisa, morrendo inclusive alguns passageiros. Lúlio salvou-se, mas perderam-se todos seus pertences, inclusive a biblioteca. Parece que, muito prudentemente, possuía mais de um exemplar de suas obras, ou que, ao menos, não as carregava todas nas suas agitadas viagens. Certamente teria seu acervo distribuído por Montpellier, Maiorca e talvez também Gênova, locais onde trabalhava e divulgava as cópias de seus escritos.
Chegado a Pisa, reescreve a obra começada e perdida no naufrágio e termina também a Ars generalis et ultima, que começara em Lyon.
A cidade de Pisa interessa-se muito por estes planos de cruzada e o seu Conselho escreve ao papa Clemente V. Gênova também oferece-lhe uma ajuda de vinte e cinco mil florins pela causa da Terra Santa. O rei Jaime II, em Montpellier, fará o mesmo. Lúlio, bem disposto por esses apoios de última hora, dirige ao papa seu novo livro De acquisitione Terrae Sanctae, onde expõe mais um ousado projeto: a conquista de Constantinopla, para acabar com o cisma grego.


Uma vez mais, tudo malogrou. Lúlio, todavia, não se furtando à sua obrigação, parte decidido para Paris onde, apesar de sua idade avançada, sua atividade aumentará cada vez mais. Retoma a luta contra os averroístas e suas súplicas aos grandes em favor da Terra Santa. Ao todo escreverá umas trinta obras breves, entre as quais destaca-se o Liber de natali parvuli pueri Iesu, com temas natalinos, e o Liber lamentationis philosophiae, onde, na presença do rei Felipe, o Belo, a Filosofia se lamenta de que os averroístas a tenham separado da Teologia.
De acordo com a tradição, foi no fim dessa temporada de Paris(5) que Lúlio obteve uma declaração de quarenta mestres e bachalerandos em Artes e Medicina atestando que o método lógico de sua Ars brevis não continha nada contrário à fé católica. As aulas dadas em Paris, portanto, não foram infrutuosas, embora seus numerosos escritos anti-averroístas não tenham conseguido obter a condenação oficial dos erros dessa filosofia.


Por essa época anunciava-se já o início do Concílio de Vienne (out.1311 - maio 1312). Mais uma vez cheio de esperança, para lá se dirige e, pelo caminho, escreve seu poema Lo consili, com mil e duzentos versos, e sua Disputatio clerici et Raymundi phantastici na qual resume assim a sua vida: "Trabalhei durante quarenta e cinco anos incitando os governantes da Igreja e os príncipes cristãos ao bem público. Agora sou velho, sou pobre; mas persevero no mesmo propósito, e com a graça de Deus, nele me manterei até a morte".
O concílio, pelo menos, atende desta vez alguns dos seus pedidos. Decreta que os cavaleiros sanjoanistas promovam a cruzada e erige as cátedras de árabe, grego, hebraico e caldeu nas quatro grandes universidades de Paris, Oxford, Bolonha e Salamanca.
De volta do concílio, retira-se de novo a Maiorca, mas não precisamente para descansar. Encontra tempo para escrever diversos opúsculos, um manual de pregação, uma compilação de 150 sermões e três escritos apologéticos. A princípios de 1313, já com mais de oitenta anos, embarca para a Sicília e durante a viagem inicia a De compediosa contemplatione, que terminará em Messina.
Na primavera de 1314, esse "varão de desejos"(6) retorna à sua ilha e de lá embarca na nau que o levará outra vez às costas da Barbária. Acompanham-no ao cais os grandes da cidade, uma multidão de amigos e dois franciscanos. Volta às mesmas terras onde, oito anos antes, foi maltratado e encarcerado. Mas Lúlio não teme a morte; tem seus argumentos e, sobretudo, o amor do seu Amado.
Em Tunis, redige o Ars Consilii e mais quinze opúsculos de controvérsia, e prega nas vias públicas. De lá dirigiu-se a Bugia onde a multidão alvoroçada o apedreja e o deixa meio morto, abandonado nas ruas. O exame médico de seus restos mortais feito em 5 de dezembro de 1611, com vistas ao processo de sua canonização, constatou o fato. Recolhido por uns genoveses que se dirigiam à Europa, Lúlio, todavia, morre em pleno Mediterrâneo, perto das costas de sua querida Maiorca, já nos inícios de 1316.


Quanto custa entender uma vida como a que acabamos de conhecer! Os homens, acostumados a pensar tudo quanto passa pela sua mente e a deixar que o seu coração se impressione pelas circunstâncias variáveis da vida, tendem a complicar demais as coisas. Somos a própria instabilidade. Se não nos corrigimos, corremos o risco de transformar nossa vida numa contradição. As vidas dos grandes homens, ao contrário - como a de Lúlio - são simples: neles é como se existisse um único pensamento, sempre idêntico, querendo abranger todas as verdades; e uma única intenção, extraordinariamente pura, ordenando toda a vida para o Bem. Lúlio, ao longo dos anos, esforçou-se por purificar sua sabedoria a fim de que, limpa de todo erro ou ignorância, unificasse, num simples olhar, toda a verdade cognoscível. Ao mesmo tempo, seus inúmeros trabalhos, lutas e afãs, parecendo multidão, na realidade refletem apenas uma só coisa: um amor puro e empenhado, Lúlio foi um homem simples que viveu de um único pensamento e de um único amor(7).


Notas
(1) É difícil precisar o ano em que ocorreu o nascimento de Lúlio. Existem duas hipóteses: 1232 ou 1235. No lugar onde a tradição situa a casa onde nasceu encontra-se uma placa indicando o ano de 1232. Cf. ALL pág.58 nota 2.
(2) Em 1311 Lúlio, quando lhe restavam ainda quatro ou cinco anos de vida e númerosas obras para compor, ditou aos cartuxos de Vauvert (na época nas proximidades de Paris, hoje palácio e parque de Luxemburgo), um documento excepcional. Trata-se da Vita Coetanea, uma autêntica autobiografia que nos revela, com grande riqueza psicológica, o caráter e o temperamento do filósofo de Maiorca.
Nesta narrativa de sua vida utilizaremos a segunda tradução da Vita Coetanea feita por Ramón Sugranyes de Franch sobre o novo texto dela editado por Hermogenes Horada, no volume VIII da Opera latina de R. Lúlio, publicada em Turnhout, em 1980, e apresentada no Colóquio sobre Raymundo Lúlio organizado pela Universidade de Friburgo em 1984, e o erudito trabalho de E. Longpré, Lulle Raymond (Le bienheureux), no Dictionnaire de théologie catholique, IX, Paris, 1926. col. 1072-1141.
(3) Llibre de contemplació, Cap. XXXVII n. 26. Cf. OE vol. II pág. 177.
(4) Blanquerna, Cap. 77 Cf. OE pág. 224.
(5) Até o momento ainda não apareceram documentos conclusivos que provem que Lúlio tivesse recebido o hábito de alguma ordem terceira. Louis Sala-Molins mostra que os franciscanos de Paris, onde Lúlio lecionou em 1311, não contavam o filósofo maiorquino como um deles, e nem o próprio Lúlio nessa época se considerava franciscano. O mais razoável, opina Sala-Molins, é acreditar que a iconografia posterior o "franciscanizou" à força. Cf.Louis Sala-Molins, Raymond Lulle, Aubier Montaigne, 1967, pág. 29, nota 28 e pág. 42, nota 60.
(6) Cf. Profecia de Daniel, 9,23.
(7) O papa Pio IX concedeu a Lúlio, em 1847, culto próprio e as honras de Bem-aventurado. Cf. Llorca, Garcia Villoslada, Montalbán, Historia de la Iglesia Católica, BAC, Madrid 1963, tomo II, pág. 817.