O 
    Homem que criou Jesus Cristo
    Robert Ambelain
Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.
Primeira 
      parte
      O grande sonho de Saulo-Paulo
      Os ensinamentos engendram a vaidade... Eclesiastes, 5, 6
      Paulo, o apóstolo tricéfalo
      As lendas dos narradores do tempo passado são lições 
      para o homem de hoje.
      As mil e uma noites. 
Introdução
      Do estudo atento dos Atos dos Apóstolos, das Epístolas de 
      Paulo, dos diversos apócrifos atribuídos a ele, assim como 
      das Homilias Clementinas, as Antigüidades judaicas e a Guerra dos judeus, 
      de Flavio Josefo, em resumo, de todos os textos antigos que nos chegaram 
      sobre ele, desprende-se finalmente uma conclusão, muito desconsoladora 
      para os crentes aos quais lhes apresento: é que o Paulo do Novo Testamento 
      é um personagem simbólico, no qual os escribas anônimos 
      dos séculos IV e V fundiram e amalgamaram literalmente palavras e 
      acontecimentos pertencentes a, pelo menos, três personagens diferentes, 
      dois dos quais foram imaginados a seu desejo, e só um deles foi real.
      Na época em que, por ordem de Constantino, e sob a vigilância 
      de altas autoridades da Igreja, como Eusébio da Cesaréia, 
      unificavam-se os textos evangélicos, que quando eram "conforme" 
      se copiavam de novo em série de cinqüenta* exemplares e a seguir 
      eram enviados a todas as igrejas do Império (sem omitir o confisco 
      dos antigos textos, aos que estes tinham substituído), literalmente 
      se "criou" Cristo, deus encarnado para a salvação 
      dos homens.
      *[Cinqüenta é o número do Pentecostes (pentékostés). 
      Quer dizer, do Espírito Santo. Nossos falsificadores careciam de 
      complexos...]*
      Entretanto, para dar um valor inatacável a esta criação 
      e poder justificá-la, não podiam utilizar "testemunhos 
      apostólicos" habituais. De maneira que se fabricou um personagem 
      novo, mediante a fusão de três personagens antigos. Os textos 
      e os documentos que estes eram, indiscutivelmente, os autores foram refundidos 
      e recompostos. E como eram anteriores aos novos evangelhos "canônicos", 
      contribuíam à este personagem imaginário um reflexo 
      de autenticidade histórica. Nessa época, e ao longo de todos 
      esses séculos, a mão de ferro dos poderes temporários 
      sob as ordens da Igreja, perinde ac cadáver, achava-se sempre disposta 
      a silenciar definitivamente a todo investigador mau pensante.
      Por isso é pelo que monsenhor Ricciotti pode nos dizer, com toda 
      lealdade, em seu Saint Paúl, apotre:
      a) "As fontes que permitem reconstruir a vida de São Paulo se 
      acham em sua integridade no Novo Testamento; fora deste não se encontra 
      virtualmente nada. Os elementos que podem descobrir em alguns outros documentos 
      não só são pouco numerosos mas também, além 
      disso, extremamente duvidosos." (P. 90).
      b) "O ano de nascimento de Paulo não se desprende de nenhum 
      documento..." (P. 149).
      c) "Quanto ao ano do martírio de Paulo, os testemunhos antigos 
      são vagos e discordantes [...] Não se sabe nada a respeito 
      do dia de sua morte..." (P. 671).
      Também o abade Loisy, sem negar formalmente a existência histórica 
      do personagem, concluiu que não pode saber-se nada válido 
      sobre ele. Bruno Bauer e uma boa parte da escola exegética holandesa 
      vão mais longe, e concluem que se tratava de um personagem imaginário 
      ou simbólico.
      Nós, por nossa parte, contentaremo-nos ficando com o homem que nos 
      apresenta o texto dos Atos dos Apóstolos, e passá-lo pela 
      peneira das verificações racionais, deixando às diversas 
      igrejas a responsabilidade da impostura histórica, bem seja total 
      ou parcial, se é que há.
      Para começar, pois, permitiremo-nos expor um certo número 
      de questões.
      Se Saulo-Paulo é judeu, e segundo os historiadores católicos, 
      nascido "nos primeiros anos da era cristã, se não um 
      pouco antes inclusive..." (cf. monsenhor Ricciotti, Saint Paúl, 
      apotre, P. 149), conta aproximadamente uns trinta e cinco anos de idade 
      quando se produz a morte do diácono Estêvão, no ano 
      36 de nossa era. Então se concebe perfeitamente que pudesse:
      a) encontrar-se ao mando de um corpo de polícia (Atos dos Apóstolos, 
      8, 3, e 9, 1);
      b) obter do pontífice de Israel, neste caso Gamaliel, uma ordem que 
      lhe permitisse operar longe de Jerusalém em missão de busca 
      de cristãos (o problema sobre se esta ação era ou não 
      lícita será discutido em outro lugar);
      c) ter aprovado a condenação e execução de Estêvão, 
      em virtude de sua idade e sua função (Atos dos Apóstolos, 
      8, 1, e 22, 20).
      Mas então, no curso desta execução, não pode 
      logicamente ver reduzido seu papel ao de um simples jovem judeu a quem tão 
      somente lhe confia a guarda das vestimentas dos encarregados da lapidação. 
      Porque se é judeu, de uns trinta e cinco anos de idade, há 
      muito que tem a maioridade religiosa e civil em Israel, e portanto deve 
      participar, legalmente, na lapidação, já que se encontra 
      no local (Deuteronômio, 17, 7). Para ele é obrigatório.
      Em caso negativo, é que não é judeu, a não ser 
      idumeu, como demonstraremos mais adiante.
      Por outra parte, se no ano 36 está ao mando de um corpo especial 
      de polícia às ordens do Sanedrim e do pontífice, e 
      se já conta uns trinta e cinco anos de idade, provavelmente exerceu 
      já tal profissão nos anos 34 e 35, quando teve lugar a detenção 
      de Jesus no Monte das Oliveiras. E neste caso, deve ser indevidamente ele 
      quem se achava ao mando do destacamento de soldados que acompanhou à 
      coorte dos veteranos e à tribuna que a dirigia durante o combate 
      final, depois da ocupação do domínio de lerahmeel, 
      onde entrincheiraram Jesus*. Portanto, conhecia este último, participou 
      de sua captura e lhe corresponde parte da responsabilidade de sua morte. 
      E ele, ou Lucas, seu "secretário", ou o escriba anônimo 
      autor dos Atos dos Apóstolos, mentiu ao fazer acreditar que não 
      o tinha visto antes... É mais, neste caso incluso deve proporcionar 
      o corpo de guarda que teria reclamado Sanedrim para a vigilância da 
      tumba de Jesus, e que foi incapaz de assegurá-la. Assim, Saulo-Paulo 
      não ignorava que o cadáver tinha sido roubado, fato cuja prova 
      contribuímos já na obra citada.
      *[Cf. R. AMBELAIN, Jesús o el secreto mortal de los templarios, já 
      citada, p. 239.]
      Além disso, o nascimento de Paulo "nos primeiros anos da era 
      cristã, se não um pouco antes inclusive...", implicaria 
      uma mentira mais por parte do autor dos Atos, ou seja, que não é 
      possível que Saulo-Paulo tivesse sido criado com o Menahem e Herodes, 
      o Tetrarca, como declara o texto dos Atos (13, 1)*, já que Herodes 
      Agripa II nasceu no ano 27 de nossa era, e morreu em Roma no ano 100. E 
      no ano 27 Saulo-Paulo teria já vinte e sete anos...
      *[Op. cit., pág. 302, para a justificação e a exégesis 
      de tal passagem. Este versículo é muito importante.]
      Se agora analisarmos cuidadosamente as Epístolas chamadas "paulinas", 
      delas se desprendem duas facetas diferentes a respeito de seu autor:
      - uma delas nos situa em presença de um helenista, de um partidário 
      da Diáspora, que é cidadão romano, fala e escreve em 
      grego, e se mostra como um implacável adversário dos tabus 
      legais do judaísmo, em especial da circuncisão; chama-se Paulo, 
      em grego Paulos;
      - a outra face é a de um judeu piedoso e de boa raça, procedente 
      da tribo de Benjamim (antigamente uma das duas tribos militares de Israel), 
      e que se chama Saulo, em grego Saulos.
      *[Temos que assinalar que, quando Paulo fala de sua raça, de sua 
      nação, não diz "nossos" nem "os nossos", 
      senão "os judeus". E esta expressão respectiva é 
      a prova de que não era israelita de origem.]
      Cada um destes dois homens tem sua doutrina. O primeiro, formado pela cultura 
      grega, vê Cristo como um ser divino, descendido através dos 
      "céus" intermediário adotando forma humana, morto 
      na cruz, ressuscitado em espírito para assegurar a vitória 
      do Espírito (pneuma) sobre a Matéria (hyiee), e assim contribuir 
      aos homens sua liberação espiritual, longe da servidão 
      de "poderes" intermediários e inferiores.
      No segundo traduzem-se as tradições nazarenas e ebionitas; 
      vê Jesus um homem de carne e osso, nascido de uma mulher da estirpe 
      de David, submetido à Lei, morto na cruz, ressuscitado em carne, 
      e logo deificado.
      O "terceiro homem" será um mago, e nos apresentam como 
      Simão, o Mago.
      Temos aqui três personagens e três doutrinas absolutamente contraditórias. 
      Vamos, pois, abrir o expediente desta investigação sobre "São 
      Paulo, apóstolo dos gentis". E prevenimos de antemão 
      o leitor de que vai de surpresa em surpresa, tal e como já aconteceu 
      também no anterior volume, já citado, referente à Jesus. 
      Porque formularão numerosas interrogações.
      Foi, efetivamente, formulando-se perguntas sobre a identidade de Epafras, 
      companheiro de cativeiro de Paulo (Epístola a Filêmon, 23), 
      como São Jerônimo nos contribuiu o que ele chama a "fábula" 
      (sic) do nascimento de Paulo, então Saulo, na Giscala, na alta Galiléia, 
      e não na Judéia: "Quem é Epafras, o companheiro 
      de cativeiro do Paulo? [...] Nós recolhemos a seguinte fábula 
      [fábula]: Diz-se que os pais do apóstolo Paulo eram da Giscala, 
      na Judéia, e quando a província foi devastada inteiramente 
      pelo exército romano, e os judeus se dispersaram por todo o universo, 
      foram transferidos ao Tarso, em Cilícia. Paulo, então ainda 
      um jovem [adolescente], seguiu a sorte de seus pais". (Cf. Jerônimo, 
      Comentários sobre a Epístola aos Filipenses, XXIII - M. L. 
      XXVI, 617-643.)
      Primeira questão: A deportação dos habitantes da Giscala 
      teve lugar durante a repressão levada a cabo pelo Varus (quem crucificou 
      a dois mil prisioneiros judeus nas colinas dos arredores de Jerusalém), 
      quer dizer nos anos 6 aos 4 antes de nossa era. Agora bem, nos diz que naquela 
      época Paulo era ainda um jovem (adolescente). Assim, teria nascido 
      por volta do ano 21 antes de nossa era, e contaria ao redor de quinze anos 
      quando se produziram esses acontecimentos. Isto parece dificilmente compatível 
      com a cronologia clássica, já que neste caso teria contado 
      57 anos quando se produziu a lapidação de Estêvão, 
      no ano 36 de nossa era. E então, como podem dizer os Atos dos Apóstolos: 
      "E as testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem 
      chamado Saulo" (Atos, 7, 58), se esse "jovem" tinha 57 anos? 
      Além disso, neste caso teria morrido aos 88 anos (no 67 de nossa 
      era), coisa dificilmente compatível com sua atividade e suas numerosas 
      viagens. Continuemos.
      Mais adiante, nesse mesmo capítulo, São Jerônimo volta 
      para as palavras de Paulo, e as comenta in extenso: "Sou hebreu, da 
      descendência de Abraham, circunciso do oitavo dia, da linhagem de 
      Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus e fariseu...". 
      (Cf. II. Coríntios, 11, 22, e Filipenses, 3, 5). E Jerônimo 
      observa finalmente:
      "Magis judeum quam Tarsensem...", quer dizer: "Tudo isto 
      demonstra que era mais judeu que tarsiota".
      Segunda questão: por que Paulo experimenta a necessidade de precisar 
      que, "da descendência de Abraham", ele é "da 
      linhagem de Israel"? Porque se, já naquela época (séculos 
      IV e V), em certas esferas eruditas se sabia que ele tinha origens iduméias, 
      e que foi príncipe, da casa dos Herodes, os escribas anônimos 
      que puseram as palavras em sua boca quiseram a todo custo jogar terra sobre 
      o assunto.
      Com efeito, neste caso teria sido também "da descendência 
      de Abraham", mas pela linha de Ismael, o primeiro filho de Abraham, 
      tido por sua escrava Agar, faxineira de sua estéril esposa, Sara, 
      e que foi o tronco da nação árabe. E então não 
      seria judeu, e não podiam atrever-se a insinuar que Jesus tivesse 
      tomado como décimo terceiro apóstolo a um não judeu. 
      Assim que o escriba anônimo que "acerta" o texto primitivo 
      dos Atos no século IV ou V também se empenha a todo custo 
      em fazer desaparecer essa molesta verdade. Desde aí a anormal insistência 
      sobre o caráter hebreu de Paulo, precisão repetida em três 
      ocasiões, e sublinhada além pela indicação da 
      tribo e a seita. Continuemos, e observemos que, em seguida, São Jerônimo 
      se mostrará muito mais categórico referente ao nascimento 
      na Giscala:
      "O apóstolo Paulo*, chamado antes Saulo, deve contar-se além 
      dos doze apóstolos. Era da tribo de Benjamim e da cidade da Císcala, 
      na Judéia. Quando esta foi tomada pelos romanos, emigrou com seus 
      pais ao Tarso, em Cilícia, e logo foi enviado por eles à Jerusalém, 
      para que estudasse ali a Lei, e foi instruído por Gamaliel, homem 
      muito sábio, ao que Lucas recorda". (Cf. Jerônimo, De 
      viris illustribus, M. L. XXIII, 615-646.)
      *["Temos que entender o termo apóstolo no sentido que tinha 
      no judaísmo, antes de adotar um sentido cristão. Para os judeus, 
      um apóstolo era um enviado de Sanedrim de Jerusalém, encargado 
      de perceber o imposto do Templo nas sinagogas da Dispersão, e de 
      exercer um controle sobre sua ortodoxia." (Cf. ROBERT SAHL, Les Mandéens 
      et les origines chrétiennes, p. 135.)]
      Terceira questão: Jerônimo nos precisou mais acima que a população 
      da Giscala foi deportada à Cilícia, e os pais de Paulo, com 
      seu filho ainda adolescente, ao Tarso, mais concretamente. Agora bem, a 
      deportação coletiva da população de uma cidade 
      ou de um povo, a conseqüência de uma repressão romana 
      e (geralmente) por prestar ajuda ou abastecer guerrilheiros zelotes, convertia-os 
      em escravos. Todavia estes não eram necessariamente vendidos em separado 
      a particulares, mas sim, no caso de uma deportação coletiva 
      a um lugar concreto, convertiam-se em "escravos de César", 
      quer dizer do Império. Os servos da Idade Média, os da Rússia 
      czarista até finais do século XIX, ligados a uma terra, sujeitos 
      à serviços e imposto "a vontade", casados segundo 
      desejo da autoridade tutelar, como os deportados à Sibéria, 
      reproduzem bastante bem esse caráter de "escravos de César".
      Entretanto, todo filho de escravos era por sua vez escravo, de maneira que 
      como pôde Paulo, então Saulo, abandonar livremente sua cidade 
      de residência obrigatória, para instalar-se em Jerusalém, 
      "aos pés de Gamaliel" (Atos, 22, 3), em qualidade de estudante? 
      É difícil imaginar aos romanos, por si receosos e inclinados 
      ao castigo fácil, tolerando semelhantes fantasias por parte dos deportados.
      Quando Pompeyo venceu o último rei da dinastia asmonea, Aristóbulo, 
      e o degolou segundo costume ao final de seu "desfile da vitória" 
      em Roma, grande número de prisioneiros judeus dos que figuravam no 
      cortejo foram convertidos em escravos: "Os filhos e as filhas de Israel 
      vivem ali em um cativeiro horrível. Seu pescoço mostra a incisão, 
      marca distintiva no seio das nações". (Cf. Salmos de 
      Salomão, II, 6)*. Esta "incisão", que substituía 
      ao colarinho de ferro de antigamente, o qual obstaculizava o trabalho do 
      escravo, efetuavam-na com um ferro candente; ia do lado esquerdo do pescoço 
      ao direito, e era mais acentuada na nuca, de onde segundo nome pelo que 
      era conhecida: "jugo". Constituía o "sinal do escravo". 
      Os rituais católicos falam ainda do jugo de Cristo, que seria "suave 
      e ligeiro", já que nos primeiros séculos se falava dos 
      "escravos de Cristo". (Cf. Confissão de São Cipriano, 
      16.)
      *[Os Salmos de Salomão são de finais do século 1 antes 
      de nossa era de autores desconhecidos]
      Por outra parte, quando o escriba anônimo faz dizer a Saulo-Paulo 
      que tem a civitas romana por seu nascimento (Atos dos Apóstolos, 
      22, 28), comete um novo engano. Porque ignora que o imperador Augusto precedentemente 
      tinha proibido conferir este privilégio a um liberto (e portanto 
      menos ainda a um escravo) que tivesse levado cadeias. "No que concerne 
      aos escravos, não contente tendo multiplicado os obstáculos 
      para os ter separados da liberdade simples, e muito mais ainda da liberdade 
      completa, ao determinar com minuciosidade o número, a situação 
      e as diferentes categorias daqueles que podiam ser mantidos, acrescentou 
      ainda que jamais nenhum gênero de liberdade poderia conferir a qualidade 
      de cidadão a um escravo que tivesse estado encadeado ou submetido 
      à tortura". (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Augusto, 
      XL.)
      Agora bem, todo deportado levava cadeias durante seu translado (Flavio Josefo, 
      em sua Guerra dos judeus, III, V, precisa que, efetivamente, na equipe regulamentar 
      de todo soldado romano figurava um jogo de cadeias). Por conseguinte, se 
      os pais de Saulo-Paulo, e inclusive ele mesmo, foram deportados da Giscala, 
      na Galiléia, ao Tarso, em Cilícia, levaram os vínculos 
      romanos durante uma viagem de mais de quatrocentos quilômetros, efetuado 
      evidentemente a pé. E portanto é mais duvidoso que os convertessem 
      em civis romanos a sua chegada!
      Quarta questão: Admitindo que Paulo tivesse obtido, com o tempo, 
      os recursos financeiros e a assistência privada (o indispensável 
      amparo administrativo) que lhe permitissem converter-se em liberto, como 
      pôde acabar decapitado, como um cidadão romano, depois de condenado 
      a morte no ano 67 em Roma? Porque os libertos*, pelo mesmo fato de sua condenação 
      a morte, perdiam esta qualidade, e ao voltar convertidos em escravos, eram 
      crucificados. Assim, se Paulo pôde converter-se em liberto, não 
      morreu pela espada a não ser, segundo os termos da lei romana, crucificado. 
      Mas se realmente foi decapitado, isso significa que jamais foi deportado 
      ao Tarso, e que não descendia de deportados. E então se expõe 
      o problema de suas verdadeiras origens, e também o porquê desse 
      mascaramento por parte dos escribas anônimos do século IV.
      *[Trata-se aqui de libertos ordinários, que não são 
      cidadãos romanos.]
      Os libertos ordinários culpados de um crime voltavam a cair na escravidão, 
      e então eram submetidos aos castigos reservados aos escravos. Existiam 
      duas categorias de libertos:
      a) aqueles aos que seu amo libertou pela vingança, quer dizer diante 
      de um pretor ou um pró-cônsul, quem tocava então ao 
      escravo ao que terá que alforriar com uma varinha denominada vingança. 
      Estes ficavam realmente liberados;
      b) os que não tinham sido liberados mas sim pela simples decisão 
      de seu dono, que ficavam então sujeitos por um último elo 
      jurídico à escravidão.
      Trata-se de sutilezas da lei romana que nos contribui com Tácito 
      em seus Anais, XIII, XXVII e XXXII.
      E, com efeito, contrariamente ao que se afirma freqüentemente, o liberto 
      não gozava ipso facto da cidadania romana! Como vamos acreditar que 
      um escravo obscuro e iletrado, liberado por um ato de reconhecimento ou 
      por pura benevolência por parte de seu amo, convertia-se em cidadão 
      romano, enquanto que príncipes estrangeiros, vassalos de Roma, não 
      o eram?
      Além disso, os civis romanos não podiam ser nem espancado, 
      nem açoitado, nem crucificado, nem submetido a escravidão. 
      A lex Valeria do ano 509 antes de nossa era proibia já golpear a 
      um cidadão romano sem uma decisão popular prévia e 
      decisiva, e a lex Porcia, do ano 248 também antes de Cristo, não 
      permitia usar os açoites em nenhum caso.
      Agora bem, os libertos comuns condenados a morte eram crucificados, porque 
      recaíam na escravidão pelo mesmo fato de ter sido condenados. 
      Tácito nos conta isso em seus Anais (XIII, XXVI): sua alforria era 
      sempre condicional, e o amo ofendido por um deles tinha sempre o direito 
      legal de relegá-lo "além da centésima milha, nas 
      bordas da Campanhia". Por outra parte, relata-nos casos de crucificação 
      de libertos. Nada disso poderia aplicar-se caso a alforria inicial comprometesse 
      a cidadania romana; é perfeitamente evidente. Mas se um deles, além 
      de sua liberação da escravidão, beneficiava-se ulteriormente 
      de tal privilégio, como os libertos célebres, os Narcisos 
      e os Palantes, então gozava deste com todas as vantagens secundárias 
      enumeradas acima.
      *[Cf. TÁCITO, Anales, XIII, XXXII. Em caso de assassinato do amo 
      por parte de seus escravos, todos os escravos e todos os libertos eram crucificados.]
      Por conseguinte, admitindo que o pai de Saulo-Paulo, ou que ele mesmo, tivesse 
      a sorte de passar de "escravo de César" deportado ao Tarso 
      a homem livre, isso não significa que fora cidadão romano.
      De modo que se Paulo foi realmente de Tarso, em Cilícia, e neste 
      caso, antigo deportado e escravo, filho de deportados e escravos, não 
      pôde ser decapitado, a não ser simplesmente crucificado.
      Segundo a lei romana, o filho seguia a sorte do "ventre que lhe levara". 
      Assim, o filho de uma mulher livre e de um escravo nascia livre. O filho 
      de um homem livre e de uma escrava nascia escravo.
      *[No obstante, a lex Minucia estipulava que o filho de uma romana e de um 
      estrangeiro (peregrinos) seguia a condição de seu pai. Sem 
      dúvida quando a concepção e o nascimento ocorria em 
      lugar estrangeiro.]
      Este princípio imprescritível do direito romano condicionou, 
      como se vê, a sorte de Paulo.
      Quinta questão: Admitindo que Paulo se converteu no máximo 
      em um liberto, quando e como pôde chegar a ser cidadão romano, 
      título que o Paulo dos Atos está não pouco orgulhoso, 
      se dermos crédito a seus anônimos redatores? Voltaire, quem 
      possuía uma grande erudição, diz-nos o seguinte a este 
      respeito: "Era Paulo cidadão romano, como ele presume? Se procedia 
      de Tarso, em Cilícia, Tarso não foi colônia romana até 
      cem anos mais tarde! Todos os peritos em história antiga estão 
      de acordo neste ponto. Se era da pequena cidade ou aldeia da Giscala, como 
      acreditou São Jerônimo, esta cidade se achava na Galiléia, 
      é seguro que os galileus não eram cidadãos romanos!..." 
      (Cf. Voltaire, Dicionário Filosófico, voz "Paulo".)
      Porque esta deportação, verdadeiro cativeiro localizado, testemunha-a 
      ainda Focio, sábio exegeta do século IX, que foi patriarca 
      de Constantinopla: "Paulo [...] por seus antepassados carnais, tinha 
      como pátria Giscala (atualmente é uma aldeia da Judéia, 
      mas antigamente foi uma pequena cidade) [...] Quando teve lugar a conquista 
      romana, seus pais, igual a maioria dos demais habitantes, foram conduzidos 
      em cautividad ao Tarso". (Cf. Focio, Ad amphilocium, CXVI.)
      Observemos, de passagem, que os autores antigos situavam Giscala na Judéia, 
      já que confundiam esta com a Palestina em geral. Em realidade, Giscala 
      se encontrava na alta Galiléia.
      Por último, Epífano, refutando a tese dos ebionitas (uma das 
      primeiras seitas cristãs, junto com os nazarenos), quem afirmava 
      que "o homem de Tarso (sic) não era judeu de origem, a não 
      ser filho de partidários", diz-nos que: "O apóstolo 
      Paulo, embora nascido em Tarso, não era em modo algum alheio à 
      raça judia". (Cf. Epífano, Contra Haereses, Panarion, 
      XXX.)
      Aqui Epífano chega muito longe, como veremos a seguir. Já 
      o simples fato de reconhecer que tinha nascido em Tarso era fazer dele um 
      judeu da Diáspora.
      Sexta questão: Os Atos dos Apóstolos nos dizem que a conversão 
      de Saulo-Paulo teve lugar no caminho que levava de Jerusalém a Damasco: 
      "Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos 
      do Senhor, chegou-se ao supremo sacerdote pedindo-lhe carta de recomendação 
      para as sinagogas de Damasco, a fim de que, se ali achava quem seguisse 
      este caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém."
      Quando estava a caminho, aconteceu que, ao aproximar-se de Damasco, viu-se 
      de repente rodeado de uma luz fulgurante, do céu; e ao cair em terra 
      ouviu uma voz que dizia: "Saulo, Saulo, por que me persegue?". 
      Ele respondeu: "Quem é, Senhor?"." (Atos, 9, 1-5.)
      Tomemos agora a Confissão de São Cipriano. Cipriano, bispo 
      de Cartago, morto no ano 240 durante a perseguição do Decio 
      (foi decapitado), foi objeto em finais do século IV de um panegírico, 
      redigido em forma de trilogia: Conversão, Confissão, Martírio. 
      Vejamos o que lemos na Confissão: "Então Eusébio 
      disse: "O apóstolo de Cristo chamado Paulo sem dúvida 
      não foi um mago", mas encontrava-se também entre os mais 
      ardentes perseguidores dos escravos de Cristo. Consentiu a morte de Estêvão. 
      Além disso, com ordens escritas do governador, expulsou de seu país 
      e de todo o território da cidade àqueles que, em Damasco, 
      adoravam a Cristo. Mas se converteu e passou a ser seu instrumento de eleição, 
      como ele mesmo confessou: "obtive a misericórdia de Cristo porque 
      eu tinha obrado por ignorância". E nos Atos dos Apóstolos 
      está escrito que muitos daqueles que tinham praticado as más 
      artes, depois de queimar seus livros de magia, entregaram-se a Cristo". 
      (Cf. Cipriano, Confissão, 16.)
      Esta nova alusão às artes mágicas é muito importante: 
      voltaremos para ela quando tratarmos o problema de Simão de Samaria 
      e Saulo-Paulo, ambos adversários de Simão-Pedro. Porque não 
      deixa de ser estranho que Cipriano e depois Eusébio tivessem relacionado 
      discretamente Saulo com a magia...
      Por outra parte, nos Atos dos Apóstolos lemos que era o supremo sacerdote 
      quem tinha entregue ao Paulo as cartas para sua missão. Na Confissão 
      quem o faz é o governador, e este termo, nos textos do Novo Testamento, 
      é sinônimo de procurador. A diferença é importante, 
      pois permite precisar a autoridade judicial da que dependia realmente Paulo. 
      Nos Atos é o judaísmo. Na Confissão é a dos 
      ocupantes romanos. Como explicar esta diferença? É Paulo o 
      chefe de um policial "paralelo" ao serviço de Roma, ou 
      está ao mando, como estrategista do Templo, dos elementos da tropa 
      levítica?
      Sétima questão: Além disso, nos Atos a conversão 
      se produz "no caminho de Damasco". (A expressão permaneceu 
      como sinônimo de conversão em geral.) E na Confissão 
      tem lugar muito depois da operação da polícia montada, 
      dirigida e executada por Paulo.
      Agora bem, o texto da citada Confissão foi redigido por volta de 
      360-370, embora os manuscritos que chegaram até nós são 
      muito posteriores. E esse texto cita os Atos dos Apóstolos, já 
      o vimos; portanto, estes existiam já naquela época. Mas como 
      explicar esta diferença considerável no relato da conversão 
      do Paulo? Foi Paulo objeto dessa extraordinária "audição" 
      antes de penetrar na cidade de Damasco para efetuar ali uma rede de cristãos, 
      ou sua conversão foi posterior a tal operação?
      A resposta é fácil. Nos anos 360-370, época da redação 
      da Confissão, existe já uma versão dos Atos dos Apóstolos 
      em mãos das comunidades cristãs. Todavia, é muito diferente 
      da nossa de hoje, já que os escribas anônimos dos séculos 
      IV e V ainda não tinham praticado seus inumeráveis concertos. 
      Quanto à passagem da Confissão de São Cipriano chamado 
      antes, é de supor que devia ser de acordo com o correspondente dos 
      Atos dos Apóstolos da época, já que, ao estar muito 
      difundida e ser muito apreciada nas igrejas orientais, se contradissesse 
      aos Atos, a Confissão não teria sido tolerada pelos bispos 
      destas igrejas.
      Oitava questão: Agora chegamos em torno do problema referente à 
      natureza das relações de Paulo com os grandes de seu mundo, 
      e sobretudo ao de sua cidadania romana.
      Se era um obscuro judeu, filho de deportados que passaram a ser escravos 
      do Império, e escravo também ele mesmo, ao menos durante um 
      tempo (caso sua ulterior alforria), como lhe reconhecer a qualidade de cidadão 
      romano, qualidade que deixa estupefato ao tribuno das coortes Claudio Lisias, 
      governador da cidadela Antonia, em Jerusalém?: "O tribuno aproximou 
      e disse: "me diga, você é romano?". Ele respondeu: 
      "Sim". Acrescentou o tribuno: "Mas se me custou uma forte 
      soma adquirir esta cidadania!". Paulo replicou: "Eu a possuo de 
      nascimento"". (Atos, 22, 27-28.)
      Tendo em conta o que vimos precedentemente (e no momento), aqui alguém 
      mente. Ou é Paulo, ou o escriba anônimo que redigiu essa passagem 
      dos Atos. Porque se Paulo for realmente cidadão romano, compreenderemos 
      com facilidade o que logo seguirá, e esse privilégio se explicará 
      como corolário da verdadeira origem de Paulo. Mas se for simplesmente 
      um obscuro judeu, tudo o que seguirá será falso, já 
      que, nesta hipótese, não há nenhuma plausibilidade 
      nesses episódios da vida de nosso personagem.
      Em matéria de herança, a lei romana exigia a busca da condição 
      do defunto: se era homem livre, liberto ou escravo; e nisso demorava-se 
      um período de tempo bastante longo. Calistrato parece dizer que se 
      tratava de um prazo de uns cinco anos. Porque o escravo não herdava 
      de seus progenitores. Paulo, deportado e portanto escravo, filho de deportados 
      escravos, não podia em modo algum herdar de seus pais a qualidade 
      de cidadão romano que eles mesmos não podiam possuir! Este 
      prazo de investigação sobre as origens de um defunto foi reduzido 
      por Tito depois do ano 80 de nossa era. (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: 
      Tito, VIII.) Na época de Paulo era ainda muito longo, o que sublinha 
      a importância da conclusão legal em matéria de herança.
      *[NOTA: Giscala chama-se atualmente Gush Halav (em árabe: El-Ysch). 
      Está situada uns quatro quilómetros, aproximadamente, da fronteira 
      do Líbano, ao noroeste do lago Tiberíades, em Galiléia.]
      2- Os estranhos protetores de Paulo
      Na adversidade de nossos melhores amigos encontramos algo que não 
      nos desagrada.
      La ROCHEFOUCAULD, Máximes
      Nos Atos dos Apóstolos lemos o seguinte: "Havia na igreja de 
      Antióqua profetas e doutores. Entre eles estavam Bernabé e 
      Simão, chamado Niger, Lucio de Cirene, Menahem, irmão de leite 
      do tetrarca Herodes, e Saulo". (Atos, 13, 1.)*
      *[Convém fazer uma pregunta: Quem é este Simão, apodado 
      Niger? É o mesmo personagem que o chefe zelote de mesmo nome, citado 
      em Guerra dos judeus de Flavio Josefo e que se viu mesclado nos acontecimentos 
      de Jerusalém no ano 64? É muito provável, pois o cardeal 
      Jean Deniélou, em sua Théologie du Judéo-Christianisme, 
      observa que: "... parece que aqui a palavra galileus é outro 
      termo para designar os zelotes..." (op. cit., p. 84), e "... parece 
      que a Galiléia foi um dos focos principais do zelotismo..." 
      (op. cit., p. 84). Agora bem, todavia no século IV, abaixo de Juliano 
      o Apóstata, o termo galiléia servia em linguagem corrente 
      para designar aos cristãos (JULIO CÉSAR, Cartas). O historiador 
      protestante Osear Cullmann observa em sua obra Dieu et César que 
      "Os galileus mencionados em Lucas, 13, 1, associamos com os zelotes". 
      Não pode estar mais claro!]
      Este Menahem é de linha davídica e real. É neto de 
      Judas de Gamala, bisneto de Ezequias, sobrinho de Jesus, neto de Maria, 
      primo do defunto Judas Iscariote, de triste memória. É ele 
      quem levantará o estandarte de uma nova rebelião judia no 
      ano 64, sob o procurador Gessio Floro. Agora bem, nos manuscritos antigos 
      não há nem maiúsculas nem minúsculas, não 
      há pontos e à parte, não há nenhuma pontuação. 
      Nossas divisões em capítulos e em versículos são 
      desconhecidas. Quer dizer, que o redator antigo está obrigado a compor 
      sua frase de tal forma que não subsista nela nenhum equívoco. 
      E a do texto que segue não permite nenhuma dúvida, em seu 
      grego clássico: "Manahn te Hródon toú Tetraárkon 
      súntrophos kaí Saúlos".
      Assim, esse Menahem foi "criado com o Herodes, o Tetrarca, e Saulo", 
      o que demonstra, silogismo inatacável tendo em conta a construção 
      mesma do texto grego, que Saulo foi também "criado com Herodes, 
      o Tetrarca, e Menahem".
      A primeira vista este fato parece inverossímil. O neto do rebelde 
      que revoltou a Galiléia contra Arquelao, filho e sucessor de Herodes, 
      o Grande, no ano 6 antes de nossa era, criado com o neto e o sobrinho neto 
      deste último...
      Entretanto, parecerá menos surpreendente se recordarmos uma tradição, 
      recolhida por Daniel Massé ao longo de suas investigações, 
      que afirma que certas alianças matrimoniais tinham aproximado das 
      famílias davídica e herodiana (infra, P. 68). Além 
      disso, Menahem pôde ter sido criado com Herodes Agripa II e Saulo-bar-Antípater 
      como um refém discreto. Quando o imperador Claudio fez de Herodes 
      Agripa I, no ano 41 de nossa era, o rei da Judéia e de Samaria, "chamou" 
      a seu filho, futuro Herodes Agripa II, a Roma, a seu lado. Discreta maneira 
      de fazer que seu pai permanecesse como dócil vassalo de Roma... E 
      provavelmente isso aconteceu com Menahem. Além disso, economizava 
      uma estrita vigilância por parte das autoridades romanas, sempre dispostas 
      a fazer executar aos "filhos de David" ao mínimo alarme, 
      como conta Eusébio de Cesaréia. (Cf. Eusébio de Cesaréia, 
      História eclesiástica, III, XII, XIX, XXV, XXXII.)
      Um último detalhe reforça esta hipótese. Quando Pilatoss 
      se inteirou de que Jesus era galileu de nascimento, mandou-o comparecer 
      ante Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e Perea (Lucas, 23, 6-12). 
      O procurador esperava que Herodes assumiria a responsabilidade de fazer 
      desaparecer Jesus, posto que este se proclamava "rei dos judeus", 
      e por conseguinte era rival de Herodes Antipas. Recordava, sem dúvida, 
      o rumor público, também referente à Jesus: "Sai 
      e vai-se embora daqui, porque Herodes Antipas quer te matar" (Lucas, 
      13, 31). Assassinato que seria discreto, evidentemente, e que nada oficial 
      poderia relacionar com a mão deste último.
      Mas não aconteceu nada disso. Herodes Antipas contentou-se burlando 
      Jesus, trocou suas roupas, provavelmente já em farrapos depois do 
      combate das Oliveiras e de sua captura, por "uma roupagem reluzente 
      e o remeteu ao Pilatos" (Lucas, 23, 11). E estas roupas, que os historiadores 
      da Igreja estimam que eram brancas, eram as que naquela época revestiam 
      os tribunos militares antes do combate, ou as que levavam em Roma os candidatos 
      que pretendiam subir a uma elevada função pública. 
      Portanto não havia nada de infamante no pensamento de Herodes Antipas; 
      devolvia ao Pilatos um candidato à realeza judia, restituindo-lhe 
      as vestimentas que autentificavam sua pretensão; reconhecia, portanto, 
      o valor desta. Mas ao mesmo tempo recusava condená-lo a morte ou 
      encarcerá-lo; pelo contrário, dava ao Pilatos um testemunho 
      que permitia a este último mandar executar Jesus, em função 
      desta mesma pretensão. Com esta atitude, Herodes Antipas, idumeu 
      de nascimento, quer dizer árabe, aplicava o velho provérbio 
      dessas regiões: "A mão que não pode cortar hoje, 
      beija-a". Hábil astúcia por parte desse beduíno 
      supersticioso, que não queria confrontar a vingança póstuma 
      daquele mago que era a seus olhos Jesus, nem a outra, mais tangível 
      ainda, da população judia fiel aos "filhos de David".
      Assim, não há nada extraordinário no fato de que Menahem, 
      neto de Judas da Galiléia e de Maria, sua esposa, e sobrinho de Jesus, 
      fora criado com Herodes Agripa II e Saulo-bar-Antípater. Mas isto 
      descarta definitivamente a lenda de um Saulo judeu de origem e nascido em 
      Tarso.
      Porque não deixaria de ser bem estranho que um obscuro judeu passasse 
      sua infância em companhia de pequenos príncipes, e é 
      mais evidente que isto não aconteceu em Tarso, já que é 
      impensável imaginar que os príncipes herodianos dessem a criar 
      seus filhos na Ásia Menor e em Cilícia, que era província 
      de deportação. De fato, os três meninos foram criados 
      no Tiberíades e na Cesaréia Marítima. Entretanto, a 
      presença de Menahem, da linha davídica, entre dois membros 
      da linha herodiana, reforça a tese de Daniel Massé, segundo 
      a qual a quinta esposa de Herodes o Grande, Cleópatra de Jerusalém, 
      era viúva de um "filho de David", e parente de Maria, a 
      mãe de Jesus.
      Na Antióquia -nos encontramos agora nos anos 45-46 de nossa era, 
      e Jesus faz uns dez anos que morreu-, Menahem e Saulo, que foram criados 
      juntos, continuam com relação, e tendo em conta o que prepara 
      Menahem, quer dizer a enésima revolução judia, achamo-nos 
      em pleno coração zelote nessa bendita "igreja" da 
      Antióquia, e nossos "profetas" e nossos "doutores" 
      são em realidade agitadores e doutrinários, herdeiros espirituais 
      de Judas de Gamala e de seu associado, o cohén Saddoc.
      Recordemos que, nessa quarta seita descrita por Flavio Josefo em suas Antigüidades 
      judaicas (XVIII, 1), a política nacionalista, herdada da tradição 
      macabéia, está estreitamente associada à mística 
      religiosa, herdada da tradição essênia. Os zelotes, 
      não o esqueçamos, estavam constituídos pela fração 
      extremista dos essênios, que depois da ruptura definitiva se agravou 
      ainda mais ao rechaçar grande parte de suas regras mais rígidas: 
      não beber vinho, não admitir os sacrifícios de animais, 
      observar uma limpeza corporal absoluta e, sobretudo, não cometer 
      atos de "banditismo", termo de grande importância em seu 
      juramento de entrada. Coisa da que os zelotes não se privavam absolutamente.
      Porém, entendamo-nos bem. Quando citamos ao essenismo como crisol 
      inicial onde se elaborou a doutrina zelote difundida por Judas de Gamala 
      e o cohén Saddoc, não se trata de afirmar que um belo dia 
      centenas de sicários saíram das comunidades essênias, 
      mas somente os doutrinários primitivos. Ignoramos seus nomes. Com 
      toda segurança foram anteriores a nossa era. Entretanto, existe um 
      romantismo sem nenhum fundamento histórico em torno dos essênios, 
      e o público em geral relaciona facilmente com eles algo, geralmente 
      apoiando-se em fontes da mais extremada fantasia.
      Millar Burrows, chefe do departamento de Línguas e Literaturas do 
      Oriente Próximo da universidade de Yale, e duas vezes diretor da 
      Escola Norte-americana de Investigações Orientais, em Jerusalém, 
      e A. Dupont-Sommer, catedrático da Sorbone e chefe de estudos na 
      Escola de Estudos Superiores, ambos os especialistas em manuscritos do mar 
      Morto, atêm-se a esta opinião. Flavio Josefo, em sua Guerra 
      dos judeus, fala-nos de sua admiração pelo heroísmo 
      desdobrado pelos essênios na guerra nacional contra os romanos, e 
      os manuscritos do mar Morto atribuídos a tais essênios descrevem 
      rituais de uma estratégia militar onde as técnicas de combate 
      derivam de uma doutrina mística. Vejamos algo que confirma o que 
      Flavio Josefo nos diz no segundo livro de sua Guerra dos judeus, no capítulo 
      XII: "A guerra que sustentamos contra os romanos vê-se de mil 
      maneiras distintas que seu valor é invencível". E o manuscrito 
      eslavo da mesma obra precisa que esses mesmos essênios "quando 
      viajam nunca esquecem de levar consigo suas armas, por causa dos bandidos". 
      Como vemos, não são mansos cordeiros, como certos mistificadores 
      queriam nos fazer acreditar. É mais, em finais do século II 
      (por volta do 190), Hipólito de Roma, no livro IX de seus Philosophumena, 
      diz-nos o seguinte em relação aos essênios: "Os 
      essênios dividem-se em quatro classes, segundo sua antigüidade 
      na seita e seu zelo para a observação da Lei. Alguns se negam 
      a levar consigo dinheiro ou a franquear uma porta de cidade, com o pretexto 
      de que as moedas ou as portas estão adornadas com imagens. Outros, 
      chamados zelotes ou sicários, chegam inclusive a degolar em lugares 
      apartados a todos aqueles que blasfemam da Lei, a menos que estes consintam 
      em fazer-se circuncidar. A maioria dos essênios são muito idosos, 
      muitos alcançam inclusive os cem anos de idade. Esta longevidade 
      atribuem a sua piedade, sua sobriedade e sua continência. Contudo, 
      desafiam valorosamente à morte quando se trata de defender a Lei".
      Esta longa passagem demonstra com claridade que uma fração 
      essênia tinha constituído a seita dos zeladores (ou zelotes 
      em grego, e k-Naim em hebreu), mais conhecido pelo nome de sicários 
      ou zelotes, que esta seita levava a cabo um combate armado contra os incircuncisos 
      (romanos e idumeus) e que não vacilava em suprimir a seus adversários 
      degolando-os com a sicca, método do que nos informa Flavio Josefo 
      (cf. Guerra dos judeus, II, V, manuscrito eslavo).
      Voltando para Paulo, temos que recordar -pois é muito importante- 
      que foi criado em sua infância com Menahem, neto de Judas da Gamala, 
      sobrinho de Jesus, e que no ano 44, na Antióquia, formava parte do 
      mesmo cenáculo zelote que este. E ambos foram os "irmãos 
      de leite" de Herodes o Tetrarca. Tudo isto é muito estranho 
      para um obscuro judeu, reconheçamo-lo, mas sobretudo descarta a lenda 
      da infância em Tarso, em Cilícia.
      Por outra parte, em 52-53 Paulo está em Corinto. Conta uns trinta 
      anos de idade. Os judeus de estrita observância, fartos da propaganda 
      herética e cismática que não cessa de fazer em suas 
      sinagogas, querem encarcerá-lo. Mas, sem esperar que Paulo abrisse 
      a boca para justificar-se, Galión, irmão de Seneca (preceptor 
      e logo conselheiro do Nero César, e deste modo um dos homens mais 
      poderosos do Império), pró-cônsul da província 
      da Acaia e residente nessa mesma cidade de Corinto, rechaça a queixa 
      dos judeus e os faz expulsar do pretorio manu militari, embora logo lhes 
      permite linchar à Sostenes, chefe da sinagoga local, convertido por 
      Paulo à nova forma de messianismo místico (Atos, 18, 12-17).
      Afortunado Paulo, pois basta-lhe ser reconhecido pelo pró-cônsul 
      da Acaia, "amigo de César", para ver varrer a seus adversários 
      pelo guarda pró-consular, e isso sem abrir a boca sequer. Afortunado 
      judeu obscuro...
      Porque esse Galión, "amicus Caesaris", não é 
      um simples funcionário. Uma inscrição ligeiramente 
      mutilada, descoberta em Delfos em 1905, reproduz uma carta do imperador 
      Claudio dirigida aos habitantes dessa cidade, e datada antes de julho do 
      ano 805 em Roma, quer dizer no ano 52 de nossa era. Ali fala de Junius Gallio, 
      meu amigo, pró-cônsul da Acaia".
      Assim, o inesperado protetor de Paulo em Corinto goza, além disso, 
      do título invejado em todo o Império romano: amigo de César. 
      Não é nada mais que a proteção de um "amicus 
      Caesaris"...
      Entretanto, embora beneficiário de estranhas e misteriosas proteções, 
      Paulo não terminou com os judeus de estrita observância. No 
      ano 58, em Jerusalém, os levitas de guarda no Templo se apoderam 
      dele, acusando-o de ter profanado o santuário ao ter introduzido 
      nele a um "não judeu", Trófimo de Éfeso (Atos, 
      caps. 21, 22 e 23). A menos que se tratasse dele mesmo, "não 
      judeu" que tinha penetrado imprudentemente em lugares proibidos aos 
      gentis.
      Quando se dispunham a lapidá-lo, Claudio Lisias, tribuno das coortes 
      e governador da Antonia, a cidadela vizinha ao Templo, ao inteirar-se do 
      que acontecia foi em pessoa, com "vários centuriões e 
      seus soldados" (portanto várias centúrias de legionários) 
      para deter Paulo e encarcerá-lo. E o tal Paulo se dá a conhecer. 
      Troca à vista. O tribuno Lisias o mandou desatar (mas estava preso?; 
      podemos pô-lo em dúvida), e lhe autorizou a admoestar longamente 
      à enfurecida multidão judia, sob o amparo dos legionários. 
      Logo conduziram-lhe ao interior da Antonia, livre de ataduras e fora de 
      qualquer tipo de calabouço.
      Foi então quando seu sobrinho, ao ser informado na cidade de que 
      entre os zelotes se tramava um complô para assassiná-lo, acudiu 
      livremente a advertir a seu tio. "Paulo chamou um dos centuriões 
      e lhe disse: "Conduz este jovem ante o tribuno, porque tem algo a comunicar". 
      O centurião o levou ante o tribuno." (Atos, 23, 16 18.)
      Observemos que Paulo recebe com toda liberdade a quem quer, que dá 
      ordens a um centurião, grau equivalente ao de capitão, e que 
      este, docilmente, sem resmungar, executa-as e, na hora do jantar, vai incomodar 
      ao tribuno das coortes, magistrado militar com classe de cônsul. Os 
      veteranos (membros de uma coorte em uma legião romana) não 
      deviam dar crédito a seus olhos.
      E aqui temos ao sobrinho de Paulo pondo ao tribuno Lisias à corrente 
      do complô tramado contra a vida de seu tio. O tribuno não se 
      surpreende nem por um instante da audácia de Paulo, e dá ao 
      sobrinho a ordem formal de observar um segredo absoluto. Continuemos com 
      a leitura dos Atos: "Logo chamou dois de seus centuriões e lhes 
      disse:
      "Tenham preparados para a terceira hora da noite duzentos soldados, 
      setenta cavaleiros e duzentos arqueiros, e preparem cavalgaduras para Paulo, 
      para que seja conduzido são e salvo ante o governador Félix, 
      na Cesaréia"." (Atos, 23, 23-24).

 
      Jerusalém em princípios de nossa era
      Cesaréia, cidade proibida para os judeus...
      Assim, o tribuno das coortes, tão dócil como seu centurião 
      ante Paulo e seu sobrinho, adota todas as medidas necessárias para 
      proteger a preciosa vida de um obscuro judeu, e para isso não vacila 
      em lhe proporcionar o equivalente de uma escolta quase real: 200 veteranos 
      das coortes, 200 arqueiros e 70 legionários a cavalo, quer dizer 
      470 soldados, a fim de pô-lo sob a máxima proteção 
      da autoridade ocupante, a de Antonius Félix, procurador romano da 
      Judéia.
      Este homem é o afortunado marido da Drusila, princesa Iduméia, 
      bisneta de Herodes, o Grande, irmã do rei Agripa e, com sua irmã 
      Berenice, uma das mais formosas mulheres da aristocracia daquela época. 
      E a fim de assegurar à Paulo uma viagem sem tropeços, toma 
      a precaução de levar para ele vários cavalos. Afortunado 
      judeu obscuro! E não seguirá à coluna conforme é 
      habitual: a pé, com as mãos atadas à cauda de um cavalo...
      Aqui volta a expor um enigma. Porque, para ir de Jerusalém a Cesaréia 
      Marítima, os 70 legionários a cavalo não dispõem 
      de um arreio cada um, seu cavalo de sempre. Então por que o tribuno 
      Lisias manda preparar para Paulo vários cavalos? Voltemos para texto 
      dos Atos dos Apóstolos: "Ao cabo destes dias, feitos nossos 
      preparativos de viagem, subimos a Jerusalém. Acompanharam-nos alguns 
      discípulos da Cesaréia, que conduziram a casa de um tal Mnason, 
      certo cipriota antigo discípulo, aonde nos alojamos" (Atos, 
      21, 15-16).
      Primeira constatação, Saulo-Paulo, que se diz que passou sua 
      juventude "aos pés de Gamaliel", o supremo sacerdote, e 
      em Jerusalém não conhece ninguém ali. E têm que 
      ser um dos discípulos da Cesaréia quem se ocupe de hospedá-lo, 
      a ele e a seu séquito.
      Segunda constatação, os manuscritos gregos originais nos dizem 
      literalmente: "um antigo discípulo". Antigo? Mas de que 
      escola e de que corrente? Provavelmente um helenista que antigamente se 
      encontrava na Antioquia e que tinha abandonado Jerusalém por causa 
      das perseguições produzidas depois da morte de Estêvão 
      (cf. Atos, 11, 19-20).
      Terceira constatação, os cavalos previstos exclusivamente 
      para Paulo destinam-se a levar seus equipamentos. Colocar-lhes-ão 
      selas, com um cesto em cada flanco; e os famosos livros e pergaminhos, sem 
      omitir o misterioso manto sobre o qual voltaremos a falar, citados na Segunda 
      Epístola ao Timóteo (4, 13), com tudo o que está acostumado 
      a levar consigo um viajante, tudo isso seguirá Paulo até sua 
      nova residência. Quanta solicitude por parte de um tribuno das coortes 
      para com um judeu qualquer, terá que ver! Nem que fosse cidadão 
      romano, pois destes já havia naquela época milhões, 
      dispersos por todo o Império. Resulta difícil imaginar ao 
      tribuno das coortes, magistrado com categoria de cônsul, prodigalizando-se 
      desta guisa com cada um deles... Afinal de contas a Antonia não era 
      uma agência de viagens, aberta a todo indivíduo do Império 
      que argüira sua qualidade de civis romanus.
      A menos que, tendo em conta o que o leitor sem dúvida começa 
      a suspeitar, Claudio Lisias aplicasse ali já, antecipadamente, o 
      famoso refrão da Restauração: "Onde pode um encontrar-se 
      melhor que no seio de sua própria família?". (Cf. Marmontel, 
      Lucilo.)
      O pequeno exército que escolta Paulo sairá, pois, de noite, 
      à terceira hora (ou seja, às nove da noite), da Cidade Santa, 
      e empreenderá ordenadamente o caminho até o Antipatrix, cidade 
      fundada antigamente por Herodes, o Grande, situada a uns sessenta quilômetros 
      de Jerusalém, e a uns quarenta e seis da Cesaréia. Ali fará 
      alto, e à manhã seguinte a tropa da pé retornará 
      a Jerusalém, deixando que os setenta legionários à 
      cavalo escoltem Paulo até Cesaréia Marítima.
      Aqui temos, pois, nosso Paulo em lugar seguro, junto ao procurador Antonio 
      Félix. Este era um liberto, irmão de outro liberto célebre, 
      Palante, favorito de Agripina e ministro de Nero César. Este Félix, 
      ambicioso, brutal e dissoluto, gozava, conforme nos diz Tácito, "de 
      um poder quase principesco com uma alma de escravo". Era de fato, com 
      todo seu horror, o protótipo do arrivista.
      Na Cesaréia não encerram Paulo em um calabouço, claro 
      está, mas sim alojam-no "em pretorio de Herodes", sob o 
      amparo de um guarda. (O palácio construído antigamente pelo 
      Herodes o Grande se converteu, conforme era costume entre os romanos, na 
      residência oficial do procurador; por isso recebia o nome de pretorio, 
      lugar onde se repartia a justiça.)
      Cinco dias mais tarde, o supremo sacerdote Ananías foi com alguns 
      sanedritas e um advogado romano, um tal Tértulo, a Cesaréia, 
      e compareceu ante Félix. Este mandou chamar com toda cortesia Paulo, 
      e lhe cedeu a palavra, depois das acusações que formulasse 
      contra ele Tértulo. Este último tampouco andava pelos ramos, 
      pois segundo ele:
      "Achamos que este homem é uma peste, que excita a rebelião 
      a todos os judeus do mundo inteiro, que é além disso chefe 
      principal da seita dos nazarenos!" (Atos, 24, 5).
      Como vemos, no ano 58 não se falava já de Simão-Pedro 
      ou de Jacobo-Santiago como de chefes do messianismo. E com razão, 
      já que Tibério Alexandre, procurador de Roma, tinha-os feito 
      crucificar no ano 47 em Jerusalém, "como filhos de Judas da 
      Gamala".
      *[ Cf. FLAVIO JOSEFO, Antigüidades judaicas, XX, v, 2.]
      Paulo respondeu durante longo tempo à acusação de Tértulo, 
      e Félix, habilmente, postergou sua decisão a uma data posterior, 
      sem determiná-la concretamente. Logo: "Mandou ao centurião 
      que lhe custodiasse, embora lhe deixando certa liberdade e permitindo que 
      os seus lhe assistissem". (Atos, 24, 22-23.)
      Entretanto, quem eram os seus?
      Alguns dias mais tarde, Félix vai visitar Paulo, acompanhado de sua 
      esposa Drusila, e ali Paulo terá toda a margem que goste de discutir, 
      de maneira muito mundana, tanto com ela como com seu marido, sobre os temas 
      que lhe interessavam. E esse procurador, escandalosamente enriquecido, tanto 
      pelas exações cometidas no uso de suas funções 
      como por seu rico e adulador matrimônio, esse procurador ambicioso 
      adulará Paulo durante dois anos, conservando-o sob sua proteção, 
      já que: "Esperava que Paulo lhe desse dinheiro. Por isso lhe 
      mandava chamar muitas vezes para conversar com ele" (Atos, 24, 26.) 
      De maneira que esse "obscuro judeu" é bastante rico por 
      si mesmo, por seus segredos ou por sua família para fazer conceber 
      esperanças em um tímido procurador! Coisa que resulta simplesmente 
      incrível quando a gente pensa nos costumes da época e nos 
      métodos dos procuradores romanos. Caso se tratasse de um resgate, 
      a permanência no fundo de um tenebroso calabouço, encadeado 
      aos muros, com pão e água reduzidos ao mais estrito mínimo, 
      teria sido uma medida mais que suficiente para abrandar ao detido mais avaro. 
      Mas não se produz nada disso. Antonio Félix, que tem o direito 
      de vida ou morte mais total por mérito de suas funções, 
      está transbordante de considerações para com esse misterioso 
      agitador*.
      *[É bem possível que Félix, conhecia Saulo-Paulo como 
      mago (como logo veremos), supôs que era também alquimista. 
      Era o normal! E a capital da alquimia antiga, Alexandria do Egito, estava 
      acerca de Judéia] 
      Passaram dois anos, que cobriram o fim da procura de Félix, e este 
      é substituído por Pórcio Festo, no ano 60. Esperando 
      então que desaparecesse a proteção de que gozava Paulo, 
      e confiando em enganar facilmente ao novo procurador, os judeus de Jerusalém 
      pedem a este que faça chegar Paulo à essa cidade para que 
      seja por fim julgado. Como se vê, os meses passaram, mas o Sanedrim 
      não esqueceu a importância do assunto. E conforme nos dizem 
      os Atos (25, 3), "preparavam uma emboscada para lhe matar no caminho".
      Pelo visto Pórcio Festo foi posto à corrente por seu predecessor, 
      antes da partida deste, já que suspeita o que preparam os judeus, 
      e lhes declara que Paulo permanecerá na Cesaréia, e que só 
      escutará alguns dos principais dentre eles se tiverem algo que dizer 
      sobre o particular. E assim se faz. É então quando Paulo, 
      que evidentemente não ignora que vão soltá-lo sem dificuldades, 
      mas que desse modo submeter-se-á à ameaça de uma emboscada 
      imprevisível, tem idéia de conseguir que lhe autorizem ir 
      à Roma, às custas de Roma e sob a proteção de 
      Roma.
      Para isso basta-lhe com o "Cesare apello", quer dizer solicitando 
      que lhe enviem "ante o César". Aqui a vitória é 
      dupla.
      Com efeito, ao declinar Pórcio Festo sua competência, Paulo 
      já não podia escapar ao processo ante o Sanedrim se não 
      era reclamando o privilégio, reservado exclusivamente aos cidadãos 
      romanos, de poder fazer-se julgar, em causa criminal, pelo tribunal imperial 
      com sede em Roma.
      E isto nos demonstra dois fatos notáveis:
      a) nosso "obscuro judeu" é realmente cidadão romano, 
      o qual sublinha tudo o que estabelecemos anteriormente contra a deportação 
      ao Tarso e seu nascimento de pais judeus, originários da Giscala, 
      já que declarar tudo isto em falso implicava a morte por decapitação;
      b) trata-se, efetivamente, de um caso de agitação política, 
      oculta sob um aspecto externamente religioso, como sublinhavam os membros 
      do Sanedrim, já que a lei Julia qualificava de "crime majestatis" 
      tudo o que constituíra, de perto ou de longe, "um atentado contra 
      o povo romano ou a ordem pública", e declarava culpado deste 
      crime a "quem quer que, com a ajuda de homens armados, conspire contra 
      a república, ou pelo qual nasçam rebeliões".
      Por outra parte, se Paulo era de fato um "não judeu" de 
      origem (e o demonstraremos logo), se foi circunciso de adulto, podia ser 
      açoitado segundo os termos das leis romanas em caso de que esta circuncisão 
      tivesse sido efetuada a pedido dela, depois de ter sido admitido à 
      cidadania romana.
      As leis do Império não proibiam um cidadão romano sua 
      conversão ao judaísmo, mas não aceitavam todas suas 
      conseqüências. Se um partidário se achava frente a uma 
      das obrigações das que os judeus de raça estavam dispensados 
      (como o serviço militar, por exemplo), não estava coberto 
      pelo privilégio judaico. Tampouco podia recusar participar do culto 
      aos deuses do Império sem correr o risco de ser acusado de ateísmo. 
      E por este motivo uma mulher podia sempre sofrer a acusação 
      de impiedade para as divindades de sua casa original. Sob o Tibério 
      César, uma tal Fulvia foi julgada deste delito por seu marido Taciturno 
      (cf. Jean Juster, Les Juifs dans l'Empire romain, leur condition juridique, 
      économique et socíale). Sob o Nero, Pomponia Graecina foi 
      também submetida a um tribunal doméstico, acusada de superstitio 
      externa, superstição estrangeira (cf. Tácito, Anais, 
      XIII, 32). Por último, uma severa lei, a Lex Cornelia de sicariis 
      et veneficis, castigava a castração, e sempre se podia identificar 
      a circuncisão com uma variedade de castração, tendo 
      em conta suas repercussões fisiológicas no campo sexual. E 
      assim se fez sob o reinado do Adriano (cf. Espartiano, História do 
      imperador Adriano, XIV, 2).
      Sem lugar a dúvidas. Paulo não ignorava nada de tudo isto, 
      e em caso necessário sempre podia haver alguém que lhe delatasse 
      ante a autoridade ocupante. Agora bem, em Roma, ante o tribunal imperial, 
      Paulo sabe que gozará do influente amparo da Séneca, irmão 
      do pró-cônsul Galión, quem tão misteriosamente 
      o protegeu em Corinto. E põe todo seu interesse em ser conduzido 
      à capital do Império. Quem, naquela época, não 
      acariciaria semelhante sonho?
      Sem dúvida Paulo dispõe dos meios materiais. Se o procurador 
      Antonio Félix esperou longo tempo a que tal Paulo lhe recompensasse 
      economicamente por seus favores, é que sabia que nosso homem estava 
      em condições de poder fazê-lo.
      Mas oficialmente, desde sua circuncisão (e logo veremos em que ocasião 
      teve lugar). Paulo é judeu. E isso não pode negá-lo, 
      já que desde aquele momento leva impressa a marca em sua carne.
      Agora bem, no ano 19 de nossa era Tibério expulsou os judeus da Itália, 
      excetuando tão somente àqueles que abjurassem em um prazo 
      de tempo determinado. (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, 
      III, 5. Tácito, Anais, II, 85. Suetonio, Vida dos doze Césares: 
      Tibério, 36.)
      Depois o imperador Claudio tinha reiterado, por sua vez, a mesma ordem de 
      expulsão no ano 50. Paulo Orosio, historiador eclesiástico 
      do século IV, diz-nos o seguinte: "Nesse mesmo ano, nono de 
      Claudio, Flavio Josefo conta que os judeus foram expulsos de Roma, por inspiração 
      do ministro Sejuán". (Paulo Orosio, História adversus 
      pagãs, Claudius Cesar.) Não obstante, aconselhamos ao leitor 
      que não procure este episódio do nono ano de reinado do Claudio 
      no Flavio Josefo, já que toda uma parte de suas Antigüidades 
      judaicas referente ao reinado de tal imperador foi censurada pelos monges 
      copistas. Este fato o encontrará unicamente no Suetonio, Vida dos 
      doze Césares: Claudio, XXV, embora sem assinalar a época exata: 
      "Como os judeus se revoltavam continuamente, instigados por um tal 
      Chrestos, expulsou-os de Roma".
      Trata-se, com toda evidência, de judeus messianistas que passaram 
      ao cristianismo, e esse Chrestos é, de fato, o Christos, a quem Suetonio 
      crê ainda vivo, confundindo ressurreição e vida normal. 
      E é que, efetivamente, os escritores profanos dos dois primeiros 
      séculos de nossa era escreviam com regularidade Chrestus e Chrestiani, 
      como observa acertadamente Henri Ailloud em sua tradução de 
      Suetonio, em lugar de Christus e Christiani.
      Por conseguinte, na Itália, e mais concretamente em Roma, os únicos 
      judeus que podem residir são os que se acham em estado de escravidão. 
      A eleição do "Cesare apello" é, por conseguinte, 
      um golpe de mão magistral por parte de Saulo-Paulo.
      Por último, e como coroação a essas relações 
      e esses aduladores amparos, resulta que depois de Félix e Drusila, 
      acodem a Cesaréia Marítima o rei Herodes Agripa II e a princesa 
      Berenice, sua irmã, quem, depois de ter enviuvado de Herodes de Caléis, 
      vive incestuosamente com ele. Ambos são irmãos de Drusila 
      e, portanto, cunhados do procurador Félix. As duas mulheres são 
      célebres por sua beleza. A família está, pois, completa, 
      e podemos supor que foi Paulo o motivo desta reunião. Curiosidade? 
      Indubitavelmente, mas também há outro motivo, que logo conheceremos. 
      O tom das conversações é bastante amistoso, e a chegada 
      do casal real causou sensação: "Assim no dia seguinte 
      chegaram Agripa e Berenice com grande pompa, e entraram na sala da audiência, 
      rodeados dos tribunos e dos personagens de mais relevo da cidade". 
      (Atos, 25, 23.) 
      Esses tribunos eram cinco, e cada um deles estava ao mando de uma das cinco 
      coortes de veteranos estabelecidos em Cesaréia. Quanto interesse 
      e quanta preocupação por esse suposto "tarsiota", 
      antigo deportado, antigo escravo do Império!
      Nota: Sobre a importância do número de cidadãos romanos 
      no Império, assinalemos que os veteranos legionários, que 
      tinham abandonado sua coorte para retirar-se, recebiam um título 
      com o reconhecimento do povo romano, título que recebia o nome de 
      honesta missio. Implicava um certo número de privilégios diversos, 
      entre os quais se achava o da cidadania romana, se o veterano não 
      a possuía já com antecedência, adquirida por algum ato 
      de guerra. Quer dizer, que a qualidade de civis romanus, com a que se arma 
      tanto exagero em torno de Saulo-Paulo, não era em si nada extraordinário.
      3 - A viagem à Roma
      Roma [...] Lugar onde conflui e encontra numerosa clientela tudo que de 
      espantoso e vergonhoso há no mundo.
      TÁCITO, Anais, XV, XLIV
      A viagem de Paulo à Roma se efetuou sob os melhores auspícios, 
      como todo o anterior. Foi crédulo ao centurião Julio, da coorte 
      da 7.a Augusta, legião composta por mercenários sírios 
      e a que, por esse motivo, denominava-se Legião síria. Com 
      eles se embarcou Aristarco, um macedônio nascido na Tessalonica que 
      devia ser já um colaborador de Paulo, dado que mais tarde será 
      seu companheiro de cativeiro. E também havia outros prisioneiros, 
      estes autênticos, que eram ou guerrilheiros zelotes, ou criminosos 
      de direito comum, destinados aos cruéis jogos circenses ou a suas 
      feras.
      Assim, a Navem Adramyttium levantou âncoras e abandonou Cesaréia 
      em princípios do outono do ano 60, para fazer escala à manhã 
      seguinte em Sidon, Fenícia. O centurião Julio, evidentemente 
      cumprindo ordens recebidas antes, deixou Paulo em liberdade para que fosse 
      visitar "seus amigos e receber seus bons ofícios". Como 
      vemos, os favores continuam.
      Economizaremos ao leitor as peripécias que acompanharam à 
      viagem de Paulo, tendo em conta de que a navegação marítima 
      não era coisa fácil naquela época. Poderá encontrá-las 
      nos Atos dos Apóstolos, de 27, 1, a 28, 16.
      Por fim temos Paulo desembarcado em Puzolo, no golfo de Nápoles. 
      E os gracejos dos escribas anônimos dos séculos IV e V vão 
      continuar. Julgue-se: "Onde encontramos irmãos, que nos rogaram 
      que permanecêssemos com eles sete dias. E assim foi como chegamos 
      a Roma. Os irmãos desta cidade, informados de nossa chegada, vieram 
      a nós até o Foro de Apio e às Três Tavernas. 
      Paulo, ao vê-los, deu graças a Deus e recobrou ânimo. 
      Quando entramos em Roma, permitiram ao Paulo morar em casa própria, 
      com o soldado que lhe custodiava". (Atos, 28, 13-16.)
      Estamos, pois, obrigados a admitir que em Puzolo o centurião Julio 
      foi convidado pelos irmãos, e que ele, oficial romano encarregado 
      de uma missão, aceitou permanecer uma semana inteira em um lugar 
      infestado de judeus messianistas, e por conseguinte suspeitos. E por que 
      prodígio se encontravam na Itália? Os decretos de Tibério 
      e de Claudio não foram derrogados em nenhum momento. De maneira que 
      se tratava de judeus escravos. E estão eles em condições 
      de oferecer convites para uma semana? E pode um legionário romano 
      arriscar-se em semelhante ambiente? Incrível!
      A seguir outros judeus, desta vez romanos, vêm ao encontro de Paulo, 
      e nada menos que até o Foro de Apio, na via Apia, quer dizer a 64 
      quilômetros de Roma. Outros vão só até Três 
      Tavernas, que está a 49 quilômetros da capital. Ida e volta 
      representam perto de 134 quilômetros para os primeiros, e perto de 
      100 quilômetros para os segundos. Uma grande honra para um obscuro 
      judeu. Além disso, esses judeus escravos dispõem de muita 
      liberdade. Continuemos formulando uma pergunta: como podem existir já 
      "irmãos", quer dizer cristãos, em Roma, se alguns 
      versículos mais tarde nos Atos dos Apóstolos nos dizem o contrário?: 
      "Ao cabo de três dias convocou aos judeus principais. Quando 
      reunidos disse-lhes: Irmãos, sem ter feito nada contra nosso povo 
      nem contra os costumes de nossos pais, fui detento em Jerusalém e 
      entregue aos romanos. Depois de me interrogarem, estes quiseram me pôr 
      em liberdade porque não havia nada contra mim que merecesse a morte. 
      Mas como os judeus se opunham, vi-me obrigado a apelar ao César, 
      embora sem querer acusar de nada a minha nação. Por isso quis 
      lhes ver e lhes falar, pois só pela esperança de Israel levo 
      estas cadeias. Eles lhe responderam: Nós não recebemos da 
      Judéia nenhuma carta a seu respeito, nem nenhum dos irmãos 
      que tenham chegado aqui nos comunicou ou falou nada de mau. Mas queríamos 
      ouvir de sua boca o que você pensa, pois a respeito dessa seita nos 
      é conhecido que em todas partes a contradiz". (Atos, 28, 17-22.)
      Expomos já um certo número de observações, muito 
      embaraçosas para nossos anônimos redatores dos Atos:
      a) Paulo, prisioneiro, tem a possibilidade e a autoridade suficiente para 
      permitir-se convocar aos judeus mais notáveis. É surpreendente;
      b) chama-os irmãos, igual àqueles que foram ao seu encontro 
      em Três Tavernas e no Foro de Apio; portanto não estabelece 
      diferenças entre eles, o que prova que são os mesmos;
      c) não fala de uma religião nova a esses notáveis, 
      mas sim de uma esperança, própria de Israel. E que esperança, 
      a não ser a do fim do jugo romano? Esta esperança é 
      o imóvel messianismo;
      d) Paulo não leva nenhum tipo de cadeias, está simplesmente 
      obrigado, quando se desagradar à cidade, a levar uma cadeia curta, 
      que une seu pulso direito ao pulso esquerdo do legionário que o custodia, 
      enquanto dura tal deslocamento. Em sua casa, em sua residência romana, 
      está livre de ataduras. Esse é o costume na "custódia 
      militaris", espécie de cativeiro sob palavra e honorífico;
      e) os irmãos "chegados" a Roma e dos que falam os judeus 
      notáveis não são os cristãos, já que 
      imediatamente depois os citados notáveis declaram não saber 
      nada do novo partido ao qual pertence Paulo, e só sabem que em todas 
      partes encontra oposição. E esses irmãos são 
      forçosamente judeus, já que estão em contato imediato 
      com os outros. Portanto não há cristãos em Roma nesse 
      momento, ao menos no sentido que damos agora a tal termo, à parte 
      os que encontraremos no palácio de Salomé II, rainha da Armênia;
      f) por último, não se trata de uma religião nova, mas 
      sim de um partido. São Jerônimo, em seu Vulgata latina, utiliza 
      o termo seita, que significa tanto uma facção política 
      como um partido ou uma seita religiosa. Os manuscritos gregos mais antigos 
      utilizam a palavra airesis, que significa deste modo seita, partido, facção, 
      com o sentido de heresia (que se desprende dela), e isso em todos os campos, 
      tanto político como religioso. Por conseguinte não é 
      muito fácil precisar o que nesse debate se subentende por tal termo.
      Ao chegar em Puzolo, por Três Tavernas, Paulo passou por Velletri 
      e atravessar os Montes Albanos, do alto dos quais contemplou pela primeira 
      vez Roma, capital do Império romano.
      Ao descender dos Montes Albanos pela via Apia, penetrou na cidade pela Porta 
      Capena, situada então aproximadamente na convocação 
      da atual Porta de São Sebastião. Segundo um pequeno número 
      de manuscritos, o centurião Julio entregou Paulo e aos outros prisioneiros 
      ao oficial que devia recebê-los. Este homem devia ser o praefectus 
      castrorum, que provavelmente estava ao mando do acampamento dos milites 
      peregrini ou castra peregrinorum, o que nós chamaríamos "acampamento 
      das tropas de passagem" em linguagem militar moderna.
      Imediatamente depois foi transferido ao Castro pretorio, acampamento principal 
      dos pretorianos, não longe da Via Nomentana, e por último 
      foi entregue ao oficial que representava ao prefeito do pretorio. E ali 
      encontramos ainda uma nova surpresa.
      Este cargo ocupava então Afranio Burro, e, Oh azar! Casualmente era 
      grande amigo de Lucio Anneo Séneca e, com este, conselheiro de Nero 
      César, depois de ter sido ambos seus preceptores. O leitor convirá 
      conosco que o "azar" faz bem as coisas. Afranio Burro era estóico, 
      e portanto admirador do sistema filosófico baseado em Zenón 
      de Citium, a finais do século IV antes de nossa era. E Séneca 
      era também estóico.
      Pois bem, o elogium, quer dizer o relatório de Pórcio Festo 
      sobre esse civis romanus que era Paulo, não podia ser mais favorável; 
      o comportamento do procurador, do rei Agripa e da princesa Berenice para 
      com nosso homem faziam-no prever. As conclusões verbais destes personagens 
      também. Festo, interrompendo Paulo, diz-lhe amigavelmente: "Você 
      delira, Paulo! As muitas letras lhe tornaram louco", e o rei Agripa 
      brinca com ele, e declara: "Pouco mais, e me persuade de que me faça 
      cristão" (Atos, 26, 24-28).
      Ambos lamentam sinceramente que Paulo faça o "Cesare apello", 
      já que, conforme declara o rei Agripa ao Festo: "Poderia colocá-lo 
      em liberdade, se não tivesse apelado ao César". (Atos, 
      26, 32.) Não suspeitam que Paulo tem seu plano, bem estabelecido, 
      longo tempo maturado, e que aponta em realidade a conseguir chegar à 
      capital do Império, se considerarmos o que sabe dos projetos de Menahem, 
      desde que tiveram lugar seus conciliábulos na Antioquia, e que não 
      ignora que se fixou já uma data para sua realização. 
      Coisa que logo constataremos, ao resplendor das chamas de Roma...
      Voltando para elogium de Pórcio Festo, tal relatório se perdeu 
      no naufrágio que sofreram durante a travessia, mar adentro, frente 
      às costas de Malte. Mas é um detalhe que carece de importância, 
      já que o centurião Julio, ao ver-se privado de tão 
      capital documento, o substituiria facilmente pela exposição 
      detalhada das instruções recebidas da boca do procurador Festo 
      antes de sua partida; e a benevolência que estava encarregado de manifestar 
      para com seu prisioneiro em todas as circunstâncias advogava inequivocamente 
      em favor deste último. Tanto mais que Paulo, em sua Epístola 
      aos Romanos, já tinha tomado por sua conta a dianteira. Julgue-se!
      Quando estava em Corinto, onde como se viu recebeu amparo -e com quanta 
      prontidão- do pró-cônsul Galión durante o inverno 
      de 51-53, vários anos antes desta data já tinha redigido e 
      expedido a famosa carta aos "irmãos" de Roma (o que prova 
      que já tinha disposto seu plano, bem maturado). Agora já sabe 
      a que porta chamar, sabe de antemão que proteções eventuais 
      lhe esperam ali. Basta lendo atentamente as saudações finais: 
      "Saúdem os da casa de Aristóbulo, saúdem o Herodião, 
      meu parente. Saúdem os da casa de Narciso, que estão no Senhor." 
      (Cf. Paulo, Epístola aos Romanos, 16, 10-12.)
      Quais são os da "casa do Aristóbulo"? Quem é 
      "Herodião, meu parente"? Quais são os "da casa 
      de Narciso"? Em definitivo, protetores tão poderosos como os 
      que já tinha encontrado em Jerusalém e na Cesaréia. 
      E é evidente que em Corinto, Galión, irmão da Séneca, 
      tinha-lhe orientado sobre o interesse que tinha para ele que fora a Roma; 
      e ao chegar ali, Paulo é recebido, sempre por mediação 
      de Galión, pelo Afranio Burro, prefeito do pretorio, amigo da Séneca 
      e, como dissemos, conselheiro e ex-preceptor de Nero César, como 
      aquele. É óbvio que os crentes verão nisso um milagre 
      a mais, a mão da Providência, mas o historiador lúcido 
      o que vê é simplesmente um plano bem organizado.
      Com efeito, "os da casa de Aristóbulo" são os servidores 
      de Aristóbulo III, favorito de Nero, que no ano 54 recebeu deste 
      o reino da Pequena Armênia; logo, no ano 60, uma parte da Grande Armênia, 
      e por último, no 70, receberá o reino de Caléis. É 
      o segundo marido de Salomé II, neta de Herodes, o Grande, e amiga 
      de Jesus, a quem ajudou com seus denários na campanha anti-romana, 
      e de quem o Evangelho conforme Tomás relata estas assombrosas palavras: 
      "Salomé disse: "E você quem é, homem? De quem 
      saiu para meter-se em minha cama e comer em minha mesa?" E Jesus disse-lhe: 
      "Eu sou aquele que se produziu daquele que é seu igual. Deram-me 
      o que é de meu Pai". E Salomé respondeu: "Sou sua 
      discípula!".". (Evangelho de Tomás, LXV, manuscrito 
      copto do século IV, descoberto em Khenoboskion, no Alto Egito, em 
      1947, tradução de Jean Doure, Pión, Paris, 1959.) [Cf. 
      Jesús o el secreto mortal de los templarios, p. 295.]
      Desse novo matrimônio, Salomé II e Aristóbulo III tiveram 
      três filhos, três varões: Herodes, Agripa e Aristóbulo. 
      Herodião (o "pequeno Herodes") é seu filho maior. 
      E se Paulo (ainda Saulo) declara-se parente dele, é que o é 
      deste modo de Aristóbulo III e de Salomé II. E efetivamente, 
      como logo veremos, eram primos! De maneira que estamos muito longe do "obscuro 
      judeu", o leitor terá que reconhecê-lo.
      Os da "casa de Narciso" são aqueles que, ingressaram à 
      nova ideologia, são libertos ou escravos na mansão principal 
      de um dos favoritos de Claudio César. Esse Narciso, Claudii Narcissus 
      libertas em seu nome latino, quer dizer "Claudio Narciso, o liberto" 
      (tomava o nome do antigo amo que os escravisara), à morte de Claudio 
      César e ao advento de Nero, no ano 54, caiu em total desgraça, 
      coisa que foi fatal: "Sem mais demora. Narciso, liberto de Claudio, 
      cujas questões com Agripina já relatei, é empurrado 
      à morte em um encarceramento rigoroso e sujeito a violência, 
      com grande pesar de Nero, cujos vícios, ainda secretos, acomodavam-se 
      maravilhosamente a sua avareza e sua prodigalidade". (Tácito, 
      Anais, XIII, 1.)
      Com grande rapidez Paulo contará com filiados no próprio palácio 
      de Nero, e estes se acharão no ano 64, durante o incêndio de 
      Roma, em situação de sustentar a fábula de que Nero 
      compunha um poema sobre o incêndio de Tróia enquanto contemplava 
      as chamas que devoravam seu capital. Porque esta fábula será 
      a única explicação dada pelos verdadeiros incendiários, 
      como logo veremos. Em realidade Nero encontrava-se em Antium, sua cidade 
      natal, quando se produziu o incêndio, e a notícia não 
      lhe chegou até o quarto dia; então cobriu em poucas horas 
      os 50 Km que separam essa cidade de Roma, queimando etapas. Imediatamente 
      adotou todas as medidas para ajudar aos sinistrados, fazendo distribuir 
      mantimentos e lhes abrindo as portas de todas suas mansões e jardins.
      Voltando para os afiliados (íamos dizer aos cúmplices) que 
      rapidamente terá Paulo no palácio de Nero César, citaremos 
      simplesmente a Epístola aos Filipenses, redigida no ano 63, que precedeu 
      ao incêndio de Roma: "Eles saúdam os irmãos que 
      estão comigo. Eles saúdam todos os Santos, e principalmente 
      os da casa de César". (Paulo, Filipenses, 4, 22.)
      Mas não pense que nosso homem só tinha contatos com escravos 
      ou libertos de classe inferior. Já vimos que em Corinto se beneficiou 
      instantaneamente, sem ter aberto a boca sequer, do amparo dos pretorianos 
      do governador da Acaia, Galión. Vimos como o acolhiam em Roma Afranio 
      Burro, prefeito do pretorio, amigo de Séneca, de quem era irmão 
      Galión. Não duvidaremos em afirmar que, em Roma, estaria efetivamente 
      em contato com o próprio Séneca. Continua sendo uma prova 
      bastante válida destas relações a correspondência 
      apócrifa que lhes atribui. Conservam-se quatorze cartas, oito delas 
      de Séneca ao Paulo, e seis de Paulo a Séneca. São apócrifas, 
      onde se constata por sua composição, sua trivialidade, e também 
      pelo fato de que o falsificador imaginou que as cartas dos dois correspondentes 
      se achavam milagrosamente, reunidas. Pois bem, na realidade cotidiana as 
      duas partes de uma correspondência, envios e respostas, estão 
      sempre separadas, ou inclusive dispersas, a causa do próprio afastamento 
      de seus recíprocos destinatários.
      De todo modo, a existência de uma correspondência apócrifa 
      dá para aceitar que existia uma correspondência autêntica. 
      Que esta última se perdesse ou fosse destruída, que as cartas 
      de Paulo à Séneca fossem confiscadas durante o processo deste 
      último, envolto na conspiração do Pisón no ano 
      66 (Caio Calpurnio Pisón, quem conspirou contra Nero e morreu no 
      ano 65), é um fato plausível, ou inclusive provável. 
      Do mesmo modo, que as de Séneca ao Paulo foram confiscadas quando 
      este foi detido em Troas, à entrada dos Dardanelos, no ano 66, ou 
      que resultassem destruídas durante o incêndio de Roma, no 64, 
      é também outro fato plausível.
      De qualquer maneira, não pode esquecer-se que São Jerônimo 
      faz alusão a uma correspondência entre esses dois homens, e 
      que a considera autêntica. Se se tratava ou não do mesmo lote 
      de cartas é um mistério que não podemos esclarecer 
      no estado atual de nossa documentação.
      Vejamos o que diz São Jerônimo no ano 362: "Lucius Annaeus 
      Séneca [...] Eu não o situaria na lista dos autores cristãos 
      se não incitassem a isso essas cartas, lidas por tão grande 
      número de gente, de Paulo à Séneca, e reciprocamente. 
      Nessas cartas, tal mestre de Nero, o homem mais poderoso de seu tempo, declara 
      que desejaria ocupar entre a sua a classe que ocupa Paulo entre os cristãos. 
      Foi condenado a morte por Nero dois anos antes de que Pedro e Paulo recebessem 
      a coroa do martírio". (Cf. Jerônimo, De viris illustribus 
      XII...)
      O mesmo temos em São Agustín. Em uma carta escrita no ano 
      414, quer dizer vinte anos depois de São Jerônimo, ao Macedônios, 
      declara: "Com razão Séneca, que viveu em tempos dos apóstolos, 
      e de quem inclusive se lêem as cartas que dirigiu a São Paulo, 
      exclama: Esse, que odeia a todo mundo, que odeia aos malvados...".
      Lipsius, quando cita ao pseudo-Linus, confirma a sua vez a existência 
      de uma correspondência entre Paulo e Séneca: "O próprio 
      preceptor do imperador, ao ver em Paulo uma ciência divina, trava 
      com ele uma amizade tão forte que não podia passar sem sua 
      conversação. De maneira que, quando não tinha a possibilidade 
      de conversar com ele cara a cara, enviava-lhe e recebia freqüentes 
      cartas". (Cf. Lipsius, Acta apostolorum apocrypha, tomo I.)
      Concluamos, pois, que existiu uma correspondência entre Paulo e Séneca, 
      mas que não chegou até nós. E se Paulo contava com 
      filiados dentro da "casa de César", devia ir ali com freqüência, 
      a fim de conversar com eles, e o amparo de Galión, assim como de 
      Afranio Burro, implicam a de Séneca, é evidente. Lipsius não 
      inventa nada.
      E agora podemos abordar a última questão: Quem era Paulo em 
      realidade? A resposta não é singela, embora da mais surpreendente.
      Ao começo deste estudo sobre "o homem de Tarso", aplicamo-lhe 
      o qualificativo de "tricéfalo". E com efeito, os escribas 
      dos séculos IV e V amalgamaram palavras, fatos e acontecimentos correspondentes 
      à três existências distintas, à três personagens 
      completamente estranhos uns aos outros.
      Se o "príncipe dos Apóstolos", Simão-Pedro, 
      não pôs jamais os pés em Roma, se não morreu 
      ali com Paulo durante a primeira perseguição contra o cristianismo, 
      não obstante é inegável que existiu. E sua crucificação 
      em Jerusalém no ano 47, junto com seu irmão Jacobo-Santiago, 
      em sua qualidade de "filhos de Judas da Gamala", por ordem de 
      Tibério Alexandre, procurador da Judéia, prova-o sobradamente. 
      [Cf. Jesús o el secreto mortal de los templarios, pp. 88-89.]
      Não podemos dizer o mesmo de Paulo, salvo se se busca, no referente 
      a seu fim terrestre, o dos três personagens que o compõem. 
      E não é fácil, reconheçamo-lo. É bastante 
      singelo demonstrar esta "composição" última, 
      ao menos no que diz respeito à dois de seus "componentes". 
      E para o terceiro, aí está a História.
      4- Um príncipe herodiano chamado Shaul
      Afortunado aquele que não lhes conhece apenas, e mais afortunado 
      aquele que não tem nada que ver!
      VOITURE, Poésies, os príncipes
      Já o vimos, estamos forçados a rechaçar a cidade de 
      Tarso, por não ter desempenhado nenhum papel na vida de nosso personagem. 
      Sabemos que fugiu de Damasco de noite, em um cesto grande (Atos, 9, 25). 
      Mas Paulo não responsabiliza por isso os judeus, ele mesmo os descarta: 
      "Em Damasco, o governador do rei Aretas pôs guardas na cidade 
      dos damascenos para me prender. Mas desceram-me por uma janela, em uma cesta, 
      muralha abaixo, e assim escapei de suas mãos". (Paulo, II Coríntios, 
      11, 32.)
      Nessa época Damasco pertencia, em efeito, ao Aretas IV, rei da Arábia 
      nabatea. No ano 36 de nossa era Tibério César tinha empreendido 
      inutilmente uma campanha contra esse soberano. Ao ano seguinte, por conseguinte 
      em 37, Calígula sucedeu à Tibério, e segundo bom número 
      de historiadores sérios, cedeu Damasco ao rei Aretas, em testemunho 
      de uma paz livremente consentida. Esta hipótese vem confirmada pelo 
      fato de que, apesar de que existem moedas damascenas com a efígie 
      gravada de Tibério, não há nenhuma com a imagem de 
      Calígula ou de seu sucessor Claudio.
      Sobre o motivo de tal tentativa de captura de Paulo pelos guardas do etnarca 
      do Aretas IV teremos ocasião de voltar.
      Seja como for, o apelido de tarsiota dado ao Paulo tem sua origem simplesmente 
      no meio que utilizou para sua fuga. Porque em grego tarsos significa "Nasa, 
      cesto, cesta". Saulo de Tarso significa, em realidade, "Saulo 
      do cesto", apelido humorístico. Coisa que já faziam pressagiar 
      as afirmações contraditórias sobre seu nascimento em 
      Giscala, na alta Galiléia.
      Mas então quem é Paulo? Voltemos para os Atos dos Apóstolos:
      "Eles, gritando em vozes altas, tamparam os ouvidos e todos eles se 
      jogaram sobre Estêvão, arrastaram-no fora da cidade e apedrejaram-no. 
      As testemunhas depositaram seus mantos aos pés de um jovem chamado 
      Saulo. E enquanto lhe apedrejavam, Estêvão orava, e dizia: 
      Senhor Jesus, recebe meu espírito..." (Atos, 7, 57-59.)
      "Saulo tinha aprovado a morte de Estêvão..." (Atos, 
      7, 60.)
      "Ao Estêvão alguns homens piedosos levaram-no para enterrar 
      e fizeram sobre ele grande luto. Pelo contrário, Saulo devastava 
      a Igreja, e entrando nas casas, arrastava homens e mulheres e os fazia encarcerar..." 
      (Atos, 8, 2-3.)
      "Saulo, respirando ainda ameaças de morte contra os discípulos 
      do Senhor, chegou-se ao supremo sacerdote lhe pedindo cartas de recomendação 
      para as sinagogas de Damasco, a fim de que, ali achava quem seguisse esse 
      caminho, homens ou mulheres, tivesse-os atados a Jerusalém..." 
      (Atos, 9, 1-2.)
      Esses quatro extratos dos Atos dos Apóstolos não constituem, 
      como se vê, e em boa lógica, a não ser um amálgama 
      de contradições.
      Vejamos alguns detalhes sobre a lapidação judicial em Israel: 
      À quatro cotos (42 cm) do lugar do suplício retiravam do condenado 
      suas vestimentas, à exceção de uma só, que o 
      tampasse a frente, se era um homem, e a frente e por detrás se era 
      uma mulher. Esta é a opinião do rabino Judá, mas os 
      rabinos declaram que tanto ao homem como à mulher lhes devia lapidar 
      nus. A altura da convocação era a de duas alturas de homem. 
      Uma das testemunhas (acusador) derrubava o condenado, de maneira que ficasse 
      sobre os calcanhares; se dava a volta, a testemunha o devolvia à 
      posição desejada. Se por causa desta queda morria, a Lei se 
      considerava satisfeita. Senão, a segunda testemunha (acusador), agarrava 
      a pedra e lançava apontando ao coração. Esta "primeira 
      pedra" (veja-se João, 8, 7) devia ser suficientemente pesada 
      como para que fossem necessários dois homens (as duas testemunhas 
      requeridas pela acusação) para levantá-la: "Dois 
      deles levantam-na no ar, mas um só a lança, de maneira que 
      golpeie mais forte". (Sanedrim, -45, B.) Se o golpe resultava mortal, 
      fazia-se justiça. Senão, a lapidação incumbia 
      coletivamente a todos os israelitas. Porque está escrito: "A 
      primeira mão que se levantará contra ele para matá-lo 
      será a mão das testemunhas; a seguir será a mão 
      de todo o povo". (Deuteronômio, 17, 7.)
      O que damos aqui é um resumo das regras judiciais da lapidação 
      tal como estão prescritas pelo Talmud, e muito antes pelo Pentateuco 
      em seu Deuteronômio.
      Pois bem, se um "jovem chamado Saulo" se limita a montar guarda 
      diante das vestimentas das testemunhas, é que não participa 
      da lapidação. Para esta anomalia só há duas 
      possíveis explicações.
      A primeira é que o jovem é um menino de menos de doze anos, 
      e por conseguinte ainda carece da maioridade legal para estar sujeito a 
      todas as obrigações da Lei judia. Sobre este particular remetemos 
      o leitor ao capítulo 12 de nosso anterior volume, capítulo 
      intitulado "Jesus entre os doutores". Mas nesse caso, como podia 
      ter voz no capítulo, e aprovar a condenação de Estêvão? 
      E como pode, pouco depois, "devastar a Igreja, e entrando nas casas", 
      com uma inevitável escolta de gente armada (necessariamente levita 
      do Templo, postos ao seu dispor pelo estrategista deste), arrastar às 
      pessoas e fazer encarcerá-las? E como se atreve este menino a apresentar-se 
      frente ao pontífice de Israel e lhe pedir cartas de recomendação 
      para operar em Damasco, cidade que pertence a outro reino?
      Para todas estas inverossimilhanças (e esta palavra é ainda 
      muito fraca para qualificar semelhantes estupidez), fica outra explicação. 
      Encontraremo-la em Flavio Josefo. Mas antes recordemos que a Confissão 
      de São Cipriano dava por certo que as cartas de recomendação 
      de que dispunha Saulo-Paulo para atuar em Damasco foram entregues pelo governador, 
      termo sinônimo ao de procurador nos textos neo-testamentários, 
      e não pelo supremo sacerdote. De modo que Saulo estava às 
      ordens das autoridades romanas de ocupação, e não das 
      autoridades religiosas judias. E agora vejamos o que diz Flavio Josefo, 
      ou ao menos o que os monges copistas tiveram por bem nos deixar: "Uma 
      vez morto Festo, Nero deu o governo da Judéia a Albino e ao rei Agripa 
      [...] Costobaro e Saulo tinham também consigo grande número 
      de guerreiros, e o fato de que fossem de sangue real e parentes do rei os 
      fazia gozar de uma grande consideração. Mas eram violentos 
      e sempre estavam dispostos a oprimir aos mais débeis. Foi principalmente 
      então quando começou a ruína de nossa nação, 
      pois as coisas foram de mal a pior". (Flavio Josefo, Antigüidades 
      judaicas, XX, 8.)
      Não recorda isto nada ao leitor? Teremos que voltar a consultar as 
      passagens, antes citadas, dos Atos (8, 3, e 9, 8), onde vemos Saulo e seus 
      homens armados penetrando nas casas, tanto em Jerusalém como em Damasco, 
      e arrancando delas às pessoas para colocar na prisão? Esse 
      Saulo dos Atos não será o mesmo que o das Antigüidades 
      judaicas?
      Pois bem, agora nos encontramos no ano 63 de nossa era, nono ano do reinado 
      de Nero, dado preciso, indiscutivelmente, pela morte do procurador Pórcio 
      Festo e a chegada de seu substituto: Albino Lucayo, mais tarde posto por 
      Nero à frente da Marítima Cesaréia, e, ao suspeitar 
      que pretendia proclamar-se rei sob o nome de Juba, foi degolado quando desembarcou, 
      por ordem de Vitelo. (Cf. Tácito, Histórias, II, 78-79.)
      Assim, no ano 63 Saulo ainda não se teria convertido, enquanto que 
      os exegetas da Igreja asseguram que sua conversão dataria de aproximadamente 
      o momento da lapidação de Estêvão, ou seja no 
      ano 36! Mas continuemos escrutinando ao Flavio Josefo: "Os grandes, 
      vendo que a rebelião chegara a tais extremos; que sua autoridade 
      já não era capaz de reprimi-la, e que quão males cabia 
      temer da parte dos romanos recairiam principalmente sobre eles, decidiram, 
      a fim de não esquecer nada para tentar dissuadi-los, enviar deputados 
      a Floro, dos quais Simão, filho de Ananías, era o chefe, e 
      outros ao rei Agripa, os principais dos quais eram Saulo, Antipas e Costobaro, 
      parentes deste príncipe, para rogar a um e ao outro que fossem com 
      tropas a Jerusalém, a fim de apagar as rebeliões antes de 
      que cobrassem ainda mais força". (Cf. Flavio Josefo, Guerra 
      dos judeus, II, 31.)
      Segundo essa passagem nos encontramos no ano 66, "antes de 15 de agosto", 
      e Gessio Floro é procurador desde o ano 63. Menahem, neto de Judas 
      da Gamala, que foi criado "com o Herodes o Tetrarca e Saulo" (Atos, 
      13, 1), aparecerá na cena política e unificará aos 
      sediciosos ao apoderar-se da praça forte da Massada, e os judeus 
      a conservarão até o ano 73, data da tomada desta praça 
      e do célebre suicídio coletivo de seus defensores.
      Mas prossigamos: "Depois de um fato tão desafortunado acontecido 
      ao Cestio, vários dos principais judeus saíram de Jerusalém, 
      como teriam saído de uma nave a ponto de naufragar* Costobaro e Saulo, 
      que eram irmãos, e Felipe, filho de Joaquim, que tinha sido general 
      do exército do rei Agripa, retiraram-se com o Cestio. E em outro 
      lugar direi como Antipas, que tinha sido assediado com eles no palácio 
      real, ao não querer fugir, morreu em mãos desses sediciosos. 
      Cestio enviou então Saulo e aos outros [Costobaro e Felipe, filho 
      do Joaquim] junto ao Nero, que então se achava em Acaia, para lhe 
      informar de sua derrota e fazer recair as culpas sobre Floro, a fim de acalmar 
      sua cólera contra ele, fazendo-a recair sobre outro". (Cf. Flavio 
      Josefo, Guerra dos judeus, II, 41.)
      *[Segundo Eusebio de Cesárea, os membros da Igreja de Jerusalém 
      abandonaram a cidade antes da guerra que estouraria, e retiraram-se à 
      uma cidade de Perea chamada Pella. (Cf. Eusebio de Cesárea, História 
      eclesiástica, III, v, 3.) Trata-se, evidentemente, do mesmo episódio, 
      porém abaixo de Eusebio os "principais judeus" convertem-se 
      em "cristãos". De fato, confessa que a notícia transmitida 
      "por profecia, aos notáveis do lugar", portanto, aos judeus, 
      e não aos cristãos.]
      Esse Cestio Galo é então governador de Síria, enquanto 
      que Gessio Floro é tão somente procurador da Judéia, 
      submetido à autoridade do primeiro, desde o ano 63. Achamo-nos "depois 
      do 8.° dia de novembro, ano 12 do reinado de Nero César", 
      quer dizer no ano 66, já que Josefo é ainda governador da 
      Galiléia, e João, da Giscala, logo entrará em cena.
      Agora nos encontramos frente ao duplo beco sem saída no que se extraviaram 
      imprudentemente os escribas anônimos dos séculos IV e V, ao 
      censurar, interpolar e extrapolar a mão direita e sinistra, com o 
      único fim de assentar uma impostura que naquela época podia 
      esperar durar (dado o analfabetismo das massas), mas que não resiste 
      à crítica racional de nossa época. Recapitulemos, pois:
      1) É indiscutível que o Saulo dos Atos e das Epístolas, 
      que foi criado com Menahem e Herodes o Tetrarca, que oprime e captura aos 
      cristãos, que é parente de Herodião, filho primogênito 
      de Aristóbulo III, rei da Armênia, e de Salomé II, sua 
      esposa, e que portanto é primo destes últimos, que tem relações 
      entre "os da casa de César" e "os da casa de Narciso", 
      que é protegido pelo Gallón, "amigo de César" 
      e pró-cônsul da Acaia, irmão da Séneca, o Saulo 
      a quem o tribuno Lisias dá uma escolta de 470 soldados, e que a seguir 
      é protegido pelo procurador Félix, que discute amigavelmente 
      com o rei Agripa e as princesas Drusila e Berenice, que é acolhido 
      pelo prefeito do pretorio. Burro, em pessoa, conselheiro de Nero junto à 
      Séneca, que conversa e mantém correspondência com este 
      último, é indiscutível, dizíamos, que esse Saulo 
      é o mesmo que o Saulo irmão de Costobaro, ambos os "príncipes 
      de sangue real", porque são netos de Salomé I, irmã 
      de Herodes, o Grande (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, passim), 
      e que oprimem a determinados elementos da população.
      E obteve facilmente a qualidade de cidadão romano, se relermos com 
      atenção à Flavio Josefo: "Salomé, irmã 
      de Herodes, o Grande, legou por testamento à imperatriz Livia, esposa 
      de César Augusto, seu toparquía, com a Jamnia e os palmeiras 
      que fizera plantar em Faraélida". (Flavio Josefo, Guerra dos 
      judeus, II, XIII.)
      Salomé I, avó de Saulo e de Costobaro, morreu no ano 14 de 
      nossa era. Seus laços de amizade com a domina augusta eram normais, 
      e eram fruto que os imperadores romanos manifestaram sempre para com seu 
      irmão Herodes, o Grande. Assim pôde obter provavelmente a cidadania 
      romana para seu marido Costobaro I.
      O Saulo dos Atos e o Saulo de Flavio Josefo não são pois, 
      inicialmente, uma mesma e única pessoa. E se as datas não 
      coincidem com exatidão, é porque se censurou, interpolado 
      e extrapolado à torto e a direito, como veremos logo ao analisar 
      os Atos dos Apóstolos.
      2) O Saulo do Novo Testamento, efetivamente, não é um judeu 
      de raça, pelas razões seguintes:
      a) ignoramos totalmente seu nome de circuncisão, "Saulo-bar-X...", 
      igual ao de seu pai. Agora bem, as famílias judias conservavam cuidadosamente 
      sua genealogia. É óbvio que nos oculta alguma coisa;
      b) todo judeu tinha que possuir um ofício manual, e os rabinos igual 
      a outros. Este costume era lei, e um velho provérbio judeu dizia 
      que um homem sem ofício era considerado como um bandido em potência. 
      Pois bem, nos diz que Saulo, para viver, tecia lonas para tendas: "...e 
      como era do mesmo ofício que eles, ficou em sua casa e trabalharam 
      juntos, pois eram ambos fabricantes de lonas". (Atos, 18, 3.) O homem 
      que tem o mesmo ofício que Paulo é Aquilas, originário 
      do Ponto, reino da Ásia Menor do Nordeste. De modo que não 
      é mais que um judeu da Diáspora, procedente de uma região 
      onde se vive em tendas. Seu próprio nome não é hebreu. 
      Agora bem. Paulo, segundo nos diz, vem de Jerusalém, onde realizou 
      todos seus estudos rabínicos aos pés do grande doutor Gamaliel 
      (Atos, 22, 3), o que representa toda sua adolescência e sua idade 
      madura até sua conversão. E faz mais de um milênio que 
      os judeus se tornaram sedentários na Palestina. Ao ter deixado de 
      ser um povo nômade, já não vivem sob tendas, a não 
      ser em aldeias e cidades. Numerosos rabinos são carpinteiros e trabalhadores 
      de pedreira. Mas tecer tendas com pelo de cabra, destinadas à nômades 
      pagãos, seria indigno de um judeu legalista. Trata-se de um ofício 
      e uma necessidade próprios daqueles que saíram de povos em 
      grande parte dedicados ao pastoreio, quer dizer de árabes, idumeus 
      e nabateus.
      Pois bem, o Saulo irmão do Costobaro é idumeu por parte de 
      pai e pela filiação Iduméia paterna deste, mas por 
      parte de sua mãe e sua bisavó Cypros, é de filiação 
      nabatea. Esta última, conforme nos diz Flavio Josefo, pertencia a 
      uma das mais ilustres famílias da Arábia (cf. Flavio Josefo, 
      Guerra dos judeus. I, VI), famílias às quais ainda hoje se 
      conhece como as dos "senhores das grandes tendas".
      De todo modo, é difícil admitir que Saulo, príncipe 
      herodiano de sangue real, achou-se jamais na necessidade de aprender outro 
      ofício que não fora o das armas, e não são os 
      aristocratas nem os homens em geral quem tecem as tendas de pelo de cabra 
      entre os árabes, pois esta tarefa está reservada às 
      mulheres do povo ou aos escravos.
      Por outra parte, quando Saulo-Paulo conhece Aquilas e Priscila, estes acabam 
      de chegar a Corinto, expulsos de Roma pelo decreto do Claudio César 
      (cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Claudio, XXV). Nosso homem 
      se associa a eles na fabricação e comercialização 
      de tendas, segundo nos diz (Atos, 18, 3).
      Vejamos agora duas perguntas embaraçosas:
      I. Que plausibilidade tem o fato de que Aquilas e Priscila vivessem jamais 
      em Roma, fabricando e vendendo tendas, quando a Itália não 
      tinha já nenhuma população nômade? Os camponeses 
      viviam em palhoças ou em granjas importantes, e os cidadãos 
      habitavam em casas de vários andares, feitas de madeira ou de pedra. 
      O povo vivia nas catacumbas.
      II. Que plausibilidade há no fato de que Aquilas, Priscila e Paulo 
      vivessem em Corinto, cidade grega, capital da província romana da 
      Acaia, célebre por seu urbanismo, e que se mantivessem a base de 
      uma fabricação e um comércio semelhantes? Na Grécia 
      antiga acontece quão mesmo na Roma imperial: não existe o 
      nomadismo. E imaginar que essas tendas eram exportadas supõe ignorar 
      que os povos itinerantes da Ásia Menor, de um tipo particular, vivem 
      sempre em uma autarquia latente. Além disso, os importantes rebanhos 
      de cabras que acompanham a suas regulares migrações cíclicas 
      auxiliam às necessidades de seus artesãos. Cada clã 
      familiar no seio de cada tribo possui seu "ofício" rudimentar, 
      efetuado pelas mulheres. E por outro lado, com que moeda, com que dinheiro 
      saldassem semelhantes aquisições essas arcaicas etnias? É 
      indubitável que os embutidos se vendiam em Roma, e que os vinhos 
      da Grécia se exportavam, mas os únicos capazes de aproveitá-lo 
      eram a rica aristocracia romana e alguns plebeus enriquecidos.
      Vemo-nos, pois, forçados a deduzir que, uma vez mais, o escriba anônimo 
      que redigiu esta passagem dos Atos dos Apóstolos deu rédea 
      solta a sua imaginação também aqui, e que Saulo-Paulo 
      jamais fabricou tendas. Dispunha de outros recursos, e aqui temos a prova: 
      "Não cobicei prata, ouro ou vestidos de ninguém. Sabem 
      que minhas necessidades e às dos que me acompanham têm provido 
      estas mãos". (Atos dos Apóstolos, 20, 33-34.)
      Resulta difícil imaginar Saulo-Paulo trabalhando intermináveis 
      horas em um ofício como o de tecer para assegurar a cama e a mesa 
      à uns colaboradores que se refestelam olhando. Além disso, 
      não era cohén (sacerdote) nem doutor da Lei, a não 
      ser judeu. Portanto não podia subsistir do dízimo sacerdotal 
      nas comunidades que visitava. Concluamos porque era rico, ou que possuía 
      uns recursos misteriosos. Coisa que vem justificada pelo fato de que vivesse 
      em Roma durante dois anos sem fazer nenhuma outra coisa que o que dizem 
      os Atos: "Paulo permaneceu dois anos inteiros na casa que tinha alugado, 
      onde recebia a todos os que iam a ele, pregando o reino de Deus e ensinando 
      com toda liberdade e sem obstáculos o referente ao Senhor Jesus Cristo". 
      (Atos dos Apóstolos, 28, 30.)
      3) Ao proceder de uma família de incircuncisos (é a recriminação 
      essencial que os judeus fazem à dinastia Iduméia dos Herodes), 
      o Saulo-Paulo do Novo Testamento é de entrada adversário da 
      circuncisão e dos tabus judaicos, coisa que um judeu de raça, 
      presa tanto de um subconsciente hereditário como da educação 
      recebida em sua primeira infância, jamais se atreveria a infringir, 
      e menos ainda a combater.
      Voltemos a ler as Escrituras:
      Atos (15, 1-35) - (21, 21);
      Romanos (4, 9) - Gálatas (5, 2; 6, 12);
      Filêmon (3, 3) - Colossenses (3, 11);
      Gálatas (6, 15) - I Coríntios (7, 19)
      Poderá constatar-se que esses textos são categóricos: 
      Paulo é inimigo dos ritos judaicos essenciais. E em seu livro Saint 
      Paúl, apotre (imprimatur de 12 de maio de 1952), Giuseppe Ricciotti 
      tira a conclusão: "O evangelho particular de Paulo não 
      impunha esses ritos; e mais, inclusive os excluía". Por conseguinte, 
      se "seu evangelho" tinha sido aprovado, os ritos em questão 
      se achavam excluídos, ao menos para aqueles que provinham do paganismo 
      ao que Paulo dirigia sua mensagem.
      E agora abordaremos um novo problema: Que homem era esse Saulo idumeu, irmão 
      do Costobaro, neto da irmã de Herodes, o Grande (amiga da imperatriz 
      Livia), "príncipe de sangue real", chefe da polícia 
      política judeu-Iduméia, e como e por que acabou fundando esse 
      messianismo místico, depois de ser o artífice da morte do 
      messianismo político dos zelotes? Também aqui, segundo o velho 
      provérbio judicial, bastar-nos-á "buscar à mulher". 
      Logo o veremos. De todos os modos, voltando para a qualidade de civis romanos 
      que os falsificadores anônimos dos Atos dos Apóstolos lhe atribuem 
      com vaidosa ostentação, em uma época em que o cristianismo 
      se converteu na religião do Estado, veremos possivelmente aparecer 
      ainda algumas fibras de verdade. E com isso, algumas novas surpresas para 
      o leitor...
      5 - Um estranho cidadão romano
      ... E me faço judeu com os judeus para ganhar aos judeus [...] Com 
      os que estão fora da Lei me faço como se estivesse fora da 
      Lei...
      Paulo, I Epístola aos Coríntios, 9, 20-21
      Anteriormente admitimos a afirmação dos Atos segundo a qual 
      Saulo-Paulo tema a qualidade de civis romanos, cidadão romano. Vamos 
      examinar agora o valor de tal afirmação.
      Em primeiro lugar, é evidente que se nosso homem era judeu de raça, 
      não podia ter esta cidadania naqueles tempos. Nenhum judeu do Oriente 
      era cidadão romano, pela excelente razão de que, ao aceitar 
      essa dignidade, era expulso ipso facto da nação judia, e submetia 
      a terrível cerimônia do herem, ou expulsão definitiva, 
      que afetava tanto à vida presente como à futura.
      Todo cidadão romano devia participar do culto aos deuses do Império, 
      em especial ao das divindades tutelar da cidade de Roma, e lhe estava proibido 
      participar do dedicado à divindades estranhas não reconhecidas 
      pelo Senado romano, e menos ainda no de uma divindade ilícita. Quer 
      dizer, que se o culto ao Yavé, deus único, assimilado por 
      Roma ao Zeus, permitia aos mais altos dignatários do Império 
      fazer oferendas no Templo de Jerusalém, a um judeu de raça 
      não lhe era possível fazer o mesmo com respeito aos Dea Roma, 
      como Vesta, Apolo, Vênus, antepassados da gens Julia, os Dea Genitri 
      e, especialmente, os Dea Victoria.
      Mas o que dizer de um judeu de raça que durante anos se dedicou a 
      fazer triunfar o culto a um certo rebelde chamado Jesus, crucificado por 
      um procurador romano por ter pretendido ser "rei dos judeus"? 
      E esse mesmo judeu de raça acrescentaria, além disso, injúrias 
      blasfêmias para com os deuses do Império: "Servem à 
      deuses que não o são!" (Gálatas, 4, 8), ou "O 
      que sacrificam os gentis, aos demônios e não a Deus o sacrificam" 
      (I Coríntios, 10, 20).
      É simplesmente incrível!
      Em conclusão, voltamos para nossas afirmações precedentes, 
      ou seja, que Saulo-Paulo não era judeu de raça. Disso resulta 
      que nada se opõe a que fora cidadão romano. Mas então, 
      como?
      Sugerimos a hipótese de que Salomé I, sua avó, amiga 
      da imperatriz Livia, esposa do imperador Augusto, tivesse obtido a cidadania 
      romana para sua família. Não é impossível. O 
      imperador podia impor facilmente sua vontade no Senado romano. Vespasiano 
      fez de Flavio Josefo um civis romanos, o que explica ainda melhor o ódio 
      de seus compatriotas, já que isso implicava um verdadeiro adultério 
      espiritual com respeito à religião judia.
      Mas há também outros argumentos em favor da romanização 
      de Saulo-Paulo. Renán, quem obviamente não ignorava a tese 
      que proclamava ao Jesus filho de Judas da Gamala, mas que se guardou bem 
      de emiti-la tendo em conta o clericalismo da época, confessa-nos 
      isso explicitamente: "Pode supor-se que seu avô a tinha obtido 
      por ter ajudado ao Pompeyo durante a conquista romana...". (Cf. Ernest 
      Renán, Les Apotres, P. 164.)
      Exclui-se a possibilidade de que o avô de Saulo-Paulo, era judeu, 
      fora o suficientemente influente para ajudar ao Cneius Pompeius Magnus em 
      sua conquista de todo o Oriente Médio: Fenícia, Líbano, 
      Palestina, que acabou com a tomada de Jerusalém no ano 63 de nossa 
      era. Além disso, naquela época não poderia tratar do 
      avô de Saulo-Paulo, mas sim como mínimo de um bisavô: 
      Antípater.
      Antípater, idumeu, marido de Cypros I, princesa nabatea, e primeiro-ministro 
      do Hircano II (rei sacerdote por quem Pompeyo substituiu ao Aristóbulo), 
      empurrou este pelo caminho da colaboração com Roma. Manobrou 
      habilmente entre os dois partidos durante a guerra civil romana que enfrentou 
      ao César e Pompeyo, e ao final se aliou ao primeiro e enviou ao Egito 
      um exército judeu de reforço no ano 48 antes de nossa era, 
      liberando assim ao César de uma situação dramática 
      num local de Alexandria, e lhe salvando inclusive a vida. Foi, além 
      disso, o primeiro a penetrar em Pelusa. Como recompensa foi renomado administrador 
      do Templo e procurador (no ano 47 antes de nossa era). César nomeou 
      ao primogênito de Antípater, Fasael, governador de Jerusalém, 
      e Herodes, o benjamim, converteu-se em governador da Galiléia. Vejamos 
      o que nos conta Flavio Josefo: "O grande número de feridas que 
      recebeu foram gloriosas marcas de seu valor. Depois que César terminara 
      os assuntos do Egito e retornara à Síria, honrou ao Antípater 
      com a cidadania romana, com todos os privilégios que dela derivavam, 
      ao que acrescentou tantas outras provas de sua estima e de seu afeto que 
      o fez digno de inveja". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus. I, VII.)
      Aqui temos, pois, esse antepassado de Saulo-Paulo que Renán assegura 
      que foi civis romanus! O que implica que nosso autor sabia perfeitamente 
      a que se ater sobre as origens familiares do tal Saulo, e que se viu obrigado 
      a calar parte de suas descobertas.
      De todo modo, os espíritos mais desconfiados não deixarão 
      de dizer que os filhos de Antípater, Fasael e Herodes, já 
      tinham nascido quando se fez entrega de tal dignidade à seu pai. 
      Se fazia extensiva também a eles? Porque neste particular o filho 
      seguia a condição de seu pai no momento da concepção, 
      no caso de matrimônios legítimos, e Antípater não 
      era cidadão romano quando eles nasceram.
      A isto responderemos que é impensável que César não 
      fizesse implicitamente extensiva esta qualidade aos dois filhos. Em primeiro 
      lugar, sempre foi muito liberal neste aspecto. Por exemplo, a legio Alauda, 
      a famosa legião de L'Alouette, toda ela recrutada entre francêses, 
      recebeu dele a categoria de cidadã romana, extensiva a todos seus 
      membros, independentemente de sua graduação. (Cf. Suetonio, 
      Vida dos doze Césares: César, XXIV.)
      Por outra parte, a França anterior à Revolução 
      de 1789 estava regida por leis e costumes que procediam diretamente do direito 
      romano. Pois bem, o enobrecimento de um plebeu implicava o de toda sua descendência, 
      até no caso de que o nascimento de seus filhos fosse anterior a tal 
      enobrecimento. Estes eram enobrecidos implicitamente de uma vez com ele. 
      Este costume não tinha nenhuma exceção.
      Mas, seguirá objetando-se, Saulo-Paulo era neto de Herodes, o Grande, 
      por linha feminina; neste caso, era transmissível por via materna 
      tal qualidade, verdadeira nobreza secundária no seio do Império 
      romano? A isto seguiremos dizendo que sim. Em todas as "terras e províncias 
      do Sacro Império Romano Germânico" (na França: 
      Flandes, Champanha, Lorena, Borgonha, Delfinado, Provença) existia 
      a nobreza uterina, transmissível através das filhas, em virtude 
      do direito romano que decretava que "o filho segue a sorte do ventre 
      que lhe levou".
      Sem dúvida se voltará a argüir que Herodes levava simplesmente 
      os títulos de amigo e aliado do povo romano, e que isso não 
      implica a cidadania romana. Não devemos esquecer que, nesta época, 
      Herodes, o Grande, é rei da Judéia, de Samaria e da Galiléia. 
      É um soberano vassalo de Roma, mas um soberano independente, dono 
      de seu reino. Esta função a exerce, pois, livremente, nos 
      termos citados: amigo e aliado do povo romano não implicam portanto 
      (por pura cortesia) a sujeição que implicaria necessariamente 
      a corriqueira definição de cidadão romano. Estes termos 
      o elevam a um nível muito superior, substituindo-o.
      Por outra parte, manifestou-se sempre como cidadão romano. Reconstruiu 
      o Templo de Jerusalém, se fez reconhecer aos judeus seus direitos 
      mais sagrados contra os gregos, já anti-semitas, em matéria 
      religiosa, comportou-se deste modo como fiel observador dos deveres de um 
      civis romanus, restaurando ou construindo numerosos santuários pagãos, 
      correndo com todos os gastos, especialmente o santuário de Apolo 
      Pitio em Rodas (cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVI, V). 
      Pois bem, a isto não estava obrigado em caso de não ter sido 
      cidadão romano, já que tais manifestações propagadas 
      não faziam mais que aumentar o ódio dos judeus integristas 
      para ele.
      Acreditam, pois, que é a esta filiação herodiana a 
      que Paulo poderá referir-se quando afirma ante o tribuno Lisias: 
      "Pois eu a tenho por nascimento". (Atos dos Apóstolos, 
      22, 28.)
      6 - A dinastia Iduméia
      A verdade dos deuses está em proporção com a sólida 
      beleza dos templos que lhes levantou.
      Ernest Renán, Origine du Christianisme
      Não nos parece inútil dar uma breve visão histórica 
      das origens de toda a grande família herodiana, já que, para 
      compreender o comportamento de Saulo-Paulo, é importante conhecer 
      bem sua herança, seu psiquismo racial e suas crenças iniciais.
      Julio, o Africano, escritor cristão do século III, em sua 
      Carta ao Aristides, reproduzida parcialmente nas Quaestiones ad Stephanum 
      de Eusébio da Cesaréia, recolheu diversas tradições 
      a este respeito em obras anteriores, em especial as de Nicolau o Damasceno, 
      Ptolomeo de Ascalón e as Memórias de Hegesipo.
      Julio, o Africano, precisa que foram "parentes carnais do Salvador", 
      quer dizer familiares muito próximos, irmãos, sobrinhos, ou 
      inclusive a própria Maria, sua mãe, quem contribuiu com certas 
      tradições sobre a origem da família dos Herodes. E 
      este fato não faz mais que reforçar a hipótese avançada 
      por Daniel Massé, como conclusão a suas próprias investigações 
      (e ele fora juiz de instrução), de que existiram laços 
      "por aliança" entre a família herodiana e a dos 
      "filhos de David". A última esposa de Herodes, o Grande, 
      Cleópatra de Jerusalém, viúva de um "filho de 
      David", teria se casado em segundas núpcias com o chamado Herodes, 
      segundo Massé. (Supra: P. 37.)
      Por muito surpreendente que resulte esta hipótese, acha-se seriamente 
      sustentada por um fato que a tradição cristã reservada 
      ao povo simples oculta cuidadosamente, e esse fato é a riqueza indiscutível 
      da família davídica, quer dizer a importância dos bens 
      possuídos por Maria, mãe de Jesus, e as diversas rendas recebidas 
      por este último.
      Sobre estas, remetemos ao leitor a nossa obra precedente, ao capítulo 
      intitulado "O dízimo messianista". Entre os bens imóveis 
      da família podemos mencionar já com certeza a casa familiar 
      de Gamala, esse ninho de águias, berço da família; 
      a casa de Cafarnaúm, citada em Mateus (4, 13), e no Marcos (1, 29), 
      que pertencia ao Simão e André, irmãos de Jesusa a 
      de Séforis, destruída nos anos 6 aos 4 antes de nossa era 
      pelas legiões de Varo, legado de Síria, quando teve lugar 
      a primeira revolução de Judas da Gamala, marido de Maria e 
      pai de Jesus; podemos acrescentar a de Betsaida, "a cidade de André 
      e de Pedro" (João, 1, 44), já que, repitamo-lo, são 
      irmãos de Jesus.
      Também o abade Emile Amann, ao traduzir e comentar o Protoevangelio 
      de Santiago, consagrado à Maria, suas origens e sua infância, 
      observa que, segundo o texto: "Joaquim [o pai de Maria] é enormemente 
      rico, e isto constitui uma resposta direta às acusações 
      judias sobre a pobreza da Maria". (Cf. E. Amann, O Protévangile 
      de Jacques, imprimatur do 1-2-1910, Letouzey éditeur. Paris, 1910, 
      p.181.)
      Coloca-nos, pois, muito longe da família mísera que nos apresentam 
      perpetuamente para nos enternecer.
      Vejamos o que diz sobre isso o Africano, reproduzido por Eusébio 
      da Cesaréia: "Isto não se disse nem sem provas nem ligeiramente. 
      Porque os familiares carnais do Salvador, bem seja para vangloriar-se ou 
      simplesmente por contá-lo -mas, em todo caso, dizendo a verdade-, 
      transmitiram também o seguinte:
      "Uns bandidos idumeus assaltaram a cidade de Ascalón, na Palestina, 
      e da capela de Apolo, que estava levantada perto das muralhas, levaram-se 
      junto com o resto do roubo ao pequeno Antípater, filho de um servidor 
      do templo, Herodes, e o fizeram prisioneiro. Ao não poder pagar o 
      sacerdote o resgate por seu filho, Antípater foi educado segundo 
      os costumes dos idumeus, e mais tarde gozou do afeto de Hircano, supremo 
      sacerdote da Judéia. Logo foi enviado por Hircano em embaixada junto 
      ao Pompeyo, e obteve em favor daquele a liberdade do reino que tinha sido 
      arrebatado ao Aristóbulo, seu irmão. Ele mesmo teve a boa 
      fortuna de ser renomado epimeleta da Palestina.
      "Logo, depois de ser assassinado Antípater a traição, 
      por causa do ciúmes provocados por sua sorte, seu filho Herodes o 
      sucedeu, e mais tarde este foi chamado por Antonio e Augusto, em virtude 
      de um decreto do Senado romano, para que reinasse sobre os judeus. Seus 
      filhos foram Herodes e os outros tetrarcas idumeus. E assim se encontra 
      também na história dos gregos.
      "Até então, nos arquivos se encontravam copiadas as genealogias 
      dos verdadeiros hebreus, e as dos partidários de origem, como Aquior 
      o Amanita, Rut a Moabita, e as das pessoas saídas do Egito e que 
      se mesclaram com os hebreus. Herodes, a quem a raça dos israelitas 
      não interessava em nada, fez queimar os registros dessas genealogias, 
      imaginando-se que assim poderia parecer nobre, pelo fato de que ninguém 
      poderia remontar-se nos registros públicos até suas origens, 
      até os patriarcas ou partidários ou estrangeiros mesclados, 
      chamados geores." (Eusébio da Cesaréia: História 
      eclesiástica. I, VII, 11-44.)
      O que Flavio Josefo nos transmite em suas obras não por não 
      ser rigorosamente idêntico deixa de ser menos sensivelmente análogo. 
      Vejamos o que diz este autor: "Um idumeu chamado Antípater, 
      muito rico, muito empreendedor e muito hábil, era grande amigo do 
      Hircano e inimigo do Aristóbulo. Nicolau o Damasceno o faz descender 
      de uma das principais casas de quão judeus retornaram a Judéia 
      desde Babilônia, mas o diz pelo Herodes, seu filho, a quem a fortuna 
      logo elevou ao trono de nossos reis, como veremos em seu lugar.
      "Antes o chamavam, não Antípater, mas Antipas, como seu 
      pai, quem ao ser renomado pelo rei Alexandre e a rainha sua esposa, governador 
      de toda a Iduméia, cercou amizade com os árabes, os gazaenos 
      e os ascalonitas, e ganhou seu afeto mediante grandes presentes". (Cf. 
      Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XIV, iI.)
      "A esposa desse Antípater, chamada Cypros, pertencia a uma das 
      mais ilustres casas da Arábia. Teve dela quatro filhos varões: 
      Fasael, Herodes, que depois foi rei, José e Perora, e uma filha chamada 
      Salomé. Sua sábia conduta e sua liberalidade lhe granjearam 
      a amizade de vários príncipes, e especialmente do rei dos 
      árabes, a quem confiou seus filhos quando esteve em guerra com o 
      Aristóbulo." (Cf. Flavio Josefo, Guerras dos judeus. I, vi.)
      Não obstante, existe uma divergência genealógica entre 
      as tradições recolhidas por Julio o Africano e as recebidas 
      por Flavio Josefo. Vejamos:
      Julio, o Africano:
      1. Herodes, sacerdote do Apolo no Ascalón, de onde:
      2. Antípater, amigo do Hircano, de onde o futuro rei:
      3. Herodes o Grande.
      Flavio Josefo:
      1. N..., governador da Iduméia, de onde:
      2. Antípater, aliás Antipas, marido de Cypros, de onde:
      3. Herodes o Grande.
      De qualquer maneira, e como pode constatar-se, Saulo e Costobaro, príncipes 
      herodianos, netos de Salomé I, irmã de Herodes, o Grande, 
      são árabes idumeus por seu bisavô, e árabes nabateus 
      por sua bisavó.
      O berço da família foi, sem lugar a dúvidas, Ascalón. 
      Esta cidade, recuperada por Israel, formava parte da herança da tribo 
      de Judá. Os árabes chamavam-na Khirbet Askalon, quer dizer 
      "as ruínas do Ascalón". Benjamim da Tudela fala 
      dela como de uma cidade construída à beira do mediterrâneo 
      por Ezra "o Sacerdote", e que então denominavam Benibra. 
      Esta cidade cananea foi conquistada pelos faraós do Egito no ano 
      1500 antes de nossa era. Rebelou-se contra seus ocupantes em 1280 A. C., 
      mas esta rebelião foi sufocada por Ramsés II. Logo se converteu 
      em uma das cinco cidades ocupadas pelos filisteus, um dos centros de sua 
      cultura, e por último em uma praça forte de Israel.
      O comércio foi ali particularmente próspero nos tempos dos 
      grandes períodos bíblicos, na época dos Juízes 
      e das dinastias reais. Segundo a tradição. Sansão, 
      traído por Dalila, foi capturado ali pelos filisteus e sucumbiu durante 
      o célebre episódio. Quando o rei Saúl morreu ali à 
      mãos dos guerreiros filisteus, David se lamentou poeticamente no 
      célebre "Cântico do Arco", que ordenou fora ensinado 
      aos meninos de Judá, e que foi transcrito a seguir no Livro do Justo, 
      o qual se perdeu: "O esplendor de Israel sucumbiu em suas colinas! 
      Como é que caíram os valentes? Não o façam saber 
      no Gat, e não o anunciem nos caminhos do Ascalón, a fim de 
      que não se gozem por isso as filhas dos filisteus, a fim de que não 
      triunfem os filhos dos incircuncisos! OH Montes do Gélboe! Que nem 
      o rocio nem a chuva descendam sobre vós, nem haja campos que dêem 
      as primicias para as oferendas! Porque é ali onde se manchou o escudo 
      dos heróis". (II Samuel, 1, 19-21.)
      Os profetas Jeremias, Amos e Sofonio amaldiçoaram a seguir à 
      cidade, e chamaram sobre ela à desolação. Foi submetida 
      e presa por Sargón e Senaquerib. A partir da conquista de Alexandre 
      converteu-se em uma opulenta cidade helenística, entregue especialmente 
      ao culto Derceto ou Atergatis, deusa com rosto de mulher e corpo de peixe.
      Foi nesta cidade totalmente pagã por suas origens, seu passado e 
      sua etnia onde nasceu o futuro Herodes, o Grande. Sua orientação 
      religiosa forçosamente ressentiu-se por isso, e ao não ser 
      judeu, não deve surpreendermos que construíra em diversos 
      lugares templos pagãos, embora tivesse restaurado magnificamente 
      o de Jerusalém, por pura concessão política.
      Iduméia e Nabatea eram, com efeito, profundamente pagãs, sobretudo 
      a segunda. Rene Dussaud, membro do Instituto, diz-nos o seguinte em seu 
      estudo sobre os povos dessas regiões: "Ao lado do culto organizado 
      e dos oráculos pronunciados nos santuários, os árabes 
      do Yemen praticavam a magia e a bruxaria. Como acontece entre todos os semitas, 
      a distinção entre o profano e o sagrado, o puro e o impuro 
      é muito nítida e categórica [...] Os antigos cultos 
      da Arábia meridional se integram no conjunto dos cultos semíticos. 
      Os cultos árabes do sul (mineanos, sabeus, himyaries) são-nos 
      conhecidos mediante textos que vão do século VIII A. C. até 
      o VII de nossa era. Manifestam, em primeiro lugar, uma organização 
      teocrática sob a autoridade do moukarrib, ou príncipe-sacerdote. 
      A seguir aparecem reinos laicos dominados por alguma família importante 
      [...] Os sacrifícios cruentos, assim como queima de incenso, estavam 
      ali muito estendidos". (Cf. Rene Dussaud, Les religions des Hittites 
      et des Hourrites, des Phéniciens et des Syriens, cap. III: "Nabathéens 
      et Safantes", Paris, 1945.)
      Por certo que esses príncipes sacerdotes os encontramos também 
      em Israel nessa época (século I A. C.), dentro da dinastia 
      asmonea (como é o caso de Alexandre Janeo, o primeiro deles). De 
      maneira que não nos surpreendamos muito se logo nos encontrarmos 
      com um Saulo, príncipe idumeu, iniciado nos ocultos da magia e sabendo 
      dirigir tanto as forças de cima como as mais sinistras de baixo. 
      Para nos persuadir nos bastará relendo I Coríntios, 5, 5, 
      e I Timóteo, 1, 20. A atração para o ocultismo se encontra 
      em todas as classes sociais, em todas as épocas, desde Salomão 
      até Nicolau II, do imperador Rodolfo até Catarina de Medicis, 
      sem esquecer Gilies de Rais e Erzsebet Bathory...
      O culto ao Derceto, ou Atergatis, próprio de Ascalón (junto 
      com o de Apolo, já que o avô de Herodes, o Grande, era sacerdote 
      deste), não deve nos fazer esquecer aqueles outros, mais sutis, que 
      gozavam do favor de toda a Arábia nabatea.
      Temos, por exemplo, Bel-Samin, o deus supremo, o "Senhor dos Céus", 
      que estava flanqueado pelo Dusares, o Dionisos arabizado, e Allat, uma espécie 
      de Ateneu, embora mais venusiaca. Naquela época existia na Nabatea 
      ainda o que Roma fazia desaparecer de todas aquelas partes aonde ocupava 
      a classe de potência ocupante, quer dizer os sacrifícios humanos 
      associados às oferendas de incenso. Pelos textos de Ras Shamra sabemos 
      que nesse país de Edom desempenhava um papel ritual o vinho. Ao suco 
      da uva associava-lhe, desgraçadamente, o sangue humano, cuja púrpura 
      criminalmente oferecida fazia-se correr sobre as pedras cúbicas que 
      serviam de altar, em determinadas festas. Havia também ágapes 
      rituais, no curso dos quais uma parte das oferendas era consumida pelo fogo, 
      e assim oferecida à deidade, e o resto era consumido pelos sacerdotes 
      ou os fiéis? É provável. Uma passagem de Aelio Arístido, 
      escritor do século II, diz-nos que as comidas rituais celebradas 
      no templo de Serapis tinham por objetivo estabelecer uma estreita comunicação 
      psicopneumática entre o deus e os participantes. E Flavio Josefo 
      nos diz o mesmo do culto ao Anubis: "Quando acertaram tal acordo, disse 
      que vinha da parte de Anubis, porque o deus, vencido pelo amor que sentia 
      por ela, convidava-a a ir a ele. Ela acolheu essas palavras com gozo, presumiu 
      ante seus amigos da eleição de Anubis e disse a seu marido 
      que lhe tinham anunciado o ágape e o leito de Anubis. Seu marido 
      consentiu isso, porque provara a virtude de sua esposa. Ela foi, pois, para 
      o templo, e depois de ter comido, quando chegou o momento de dormir, uma 
      vez estiveram as portas fechadas pelo sacerdote do interior do templo, e 
      as luzes apagadas, o cavaleiro Mundus Decius, que se tinha oculto ali antes, 
      não deixou de unir-se a ela, e ela se entregou a ele durante toda 
      a noite, imaginando-se que era o deus". (Flavio Josefo, Antigüidades 
      judaicas, XVIII, III, 4
 
      
      Filiação Iduméia De Saulo-Paulo, citados dos Herodes
      
 
      
      Filiação Iduméia de Saulo-Paulo, citados dos Macabeus
      Esse escândalo, que sacudiu Roma no ano 19, teve como epílogo, 
      uma vez conhecido, uma investigação por ordem de Tibério 
      César, a destruição do templo de Anubis, que foi arrasado, 
      o exílio do Mundus Decius, amante de Paulina, sem ela sabê-lo, 
      naturalmente, e a crucificação dos sacerdotes e da liberta 
      Ide, sua cúmplice. Mas nos conta a importância do ágape 
      ritual. Nesta circunstância, precedia à comunhão carnal 
      entre o deus e a bela Paulina, como um costume tão habitual como 
      indispensável.
      No mundo antigo, a noção de comunhão com os deuses 
      ingerindo parcialmente aquilo que lhes era devotado em holocausto ígneo 
      era coisa comum. No culto ao Dionisos Tracio, os participantes rasgavam 
      com suas mãos e seus dentes o touro que simbolizava ao deus, e devoravam 
      sua carne, a fim de converter-se em bacchi e participar a seguir, depois 
      da morte, na imortalidade divina. Em outros lugares podia tratar-se de um 
      cabrito, um cordeiro...; a vítima simbólica variava segundo 
      o deus.
      Todavia, esta noção particular, mesmo que as formas antigas 
      desse tipo de ritual caíssem em desuso em princípios de nossa 
      era, e embora se oferecessem espécies de substituição 
      em lugar das antigas vítimas viventes (antigamente humanas, logo 
      animais), esta noção, dizemos, tinha impregnado todo o paganismo 
      árabe, e Saulo não podia escapar a isso.
      O mesmo desenvolveria mais adiante, e é uma prova mais de que não 
      era um judeu de raça, já que tal noção era totalmente 
      estranha ao sacerdócio de Israel. Os sacerdotes tomavam para si e 
      para sua família certas partes das vítimas oferecidas, porque 
      deviam viver do altar, simplesmente, tanto dos donativos diretos como dessas 
      partes extraídos. Mas jamais se subentendeu que, ao consumir o cordeiro 
      sacrificado durante a grande Páscoa anual, as famílias judias 
      devorassem ao Yavé, o Deus de Israel, o Eterno! Enunciar semelhante 
      hipótese seria castigado como o pior dos sacrilégios.
      Pois bem, Saulo sustenta tal idéia. E não só a sustenta, 
      mas também ensina-a, afirma-a, justifica-a e põe em prática: 
      "Falo-lhes como a homens inteligentes. Julguem vocês mesmos o 
      que lhes digo. O cálice de bênção que benzemos 
      não é acaso a comunhão com o sangue de Cristo? O pão 
      que fracionamos não é acaso a comunhão com o corpo 
      de Cristo? [...] Olhem aos israelitas segundo a carne: por ventura os que 
      comem das vítimas não entram em comunhão com o altar?". 
      (Paulo, I Coríntios, 10, 15-19.)
      Nesta passagem Saulo nos demonstra que:
      a) acredita em um uso de origem absolutamente pagã: a comunhão 
      com os deuses mediante a ingestão parcial das oferendas;
      b) não se considera como um israelita segundo a carne, situa-se à 
      parte, com os gentis aos que se dirige;
      c) o que enuncia é uma enormidade: a comunhão com o altar, 
      quer dizer com o Deus de Israel, compartilhando as vítimas entre 
      Deus e os sacerdotes. E semelhante ignorância, semelhante heresia 
      são impensáveis por parte de um homem que se vangloria de 
      ter passado o tempo de seus estudos aos pés de Gamaliel, neto do 
      grande Hillel, e célebre doutor (Atos dos Apóstolos, 22, 9).
      Mais ainda, desenvolve sua teoria eucarística justificando-a mediante 
      esses mesmos costumes pagãos que recordávamos antes: "O 
      que digo, pois? Que a carne sacrificada aos ídolos é algo, 
      ou que um ídolo é algo? Em modo algum. Eu digo que o que sacrificam 
      os gentis, aos demônios e não a Deus o sacrificam. Pois bem, 
      eu não quero que vós entrem em comunhão com os demônios. 
      Não podem beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios. 
      Não podem participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. 
      Ou queremos provocar o ciúmes do Senhor? Somos acaso mais fortes 
      que ele?". (Paulo, I Coríntios, 10, 19-22.)
      Agora, em apoio de nossas conclusões, citaremos duas autoridades 
      da exegese liberal: "Pretendida as palavras da instituição 
      eucarística só têm sentido na teologia de Paulo, que 
      Jesus não tinha ensinado, e na economia do "mistério" 
      cristão, que Jesus não tinha instituído". (Cf. 
      Abade Alfred Loisy, L'initiation chrétienne, P. 208.)
      *[O abade Alfred Loisy (1857-1940) foi catedrático de Hebreu no Institut 
      Catholique de Paris, e logo catedrático das Sagradas Escrituras, 
      até 1889. Viu-se obrigado a abandonar sua cátedra em 1893, 
      e foi nomeado professor na École Pratique des Hautes Etudes em 1900, 
      e logo professor de História das Religiões no Collége 
      de France de 1909 a 1930. Foi excomungado no ano de 1908, porém, 
      isso não alterou nada seus trabalhos.]
      "Mas então, de onde procede esse rito? De onde procedem essas 
      palavras? Não de Israel. Os judeus não ignoravam a comunhão 
      da mesa, e muitos esperavam com firme esperança o "festim messiânico"; 
      fala-se disso nos Sinóticos*. Suas seitas, por exemplo os essênios 
      e os terapeutas, praticavam ágapes sagrados que se pareciam muito 
      aos ágapes de sacrifício. Mas em qualquer parte tratava-se 
      tão somente de um sinal de fraternidade; em nenhuma parte se percebe 
      rastro algum de teofagia**." (Cf. Charles Guignebert, O Cristo, III.)
      *[Sobre esse festim veja-se, em especial: Mateus, 22, 1-14; Marcos, 14, 
      25; Lucas, 22, 30. Trata-se de um banquete de festa, entre irmãos, 
      somente. Ali não se devora a carne nem o sangue de nennhum deus.]
      **[Teofagia: manutenção do simulacro de um deus ou de uma 
      vítima substituta.]
      Todas estas anomalias, todas estas heresias, tão dogmáticas 
      como rituais, são impensáveis em um pretendido judeu de raça, 
      "hebreu e filho de hebreu, educado aos pés de Gamaliel".
      Entretanto, compreendem-se perfeitamente em um príncipe herodiano, 
      de origem iduméia por via masculina e nabateo por via feminina, e 
      que não é, psíquica e hereditariamente falando, a não 
      ser um beduíno ainda imbuído de paganismo, inconscientemente 
      ou não.
      Esse "Cristo" que nos apresenta pela primeira vez, de quem ninguém 
      ouviu falar antes nas diversas correntes do messianismo político 
      (falava-se do messiah, do "messias", o qual é muito diferente), 
      é desconhecido por aqueles que conheceram Jesus, que viveram com 
      ele o desmoronamento das esperanças na vinda do "Reino". 
      E em pleno século V, as Homilias Clementinas reconheceram a doutrina 
      "adopcionista" sustentada pelo grande Orígenes no começo 
      do século nem, que Jesus foi alguém mais que um subordinado 
      ao Pai, em virtude de sua adoção: "Nosso Senhor, respondeu 
      Pedro, não disse jamais que existissem deuses além do Criador 
      de todas as coisas, nem se proclamou, jamais a si mesmo, como Deus, mas 
      sim, com razão, declarou bem-aventurado aquele que lhe chamou filho 
      do Deus Ordenador do Universo". (Cf. Homilias Clementinas, XVI, XV.)
      Agora bem, esse título de "filhos de Deus" é próprio 
      a todas as criaturas, tão angélicos como humanas. Citaremos 
      simplesmente as passagens nas quais não há equívoco, 
      a fim de não alongar inutilmente este capítulo:
      "Os filhos de Deus [os anjos] viram que as filhas dos homens eram formosas..." 
      (Gênesis, 6, 2.)
      "Os filhos de Deus [os anjos] foram um dia apresentar-se ante o Eterno..." 
      (Jó, 1, 6.)
      "Os filhos de Deus lançavam gritos de alegria..." (Jó, 
      38, 7.) 
      "Aqueles que são conduzidos pelo Espírito de Deus são 
      filhos de Deus..." (Paulo, Romanos, 8, 14.)
      "São todos filhos de Deus pela fé..." (Paulo, Gálatas, 
      3, 26.) É mais, a Doutrina dos doze apóstolos -denominada 
      também Didakhé-, citada por Eusébio de Cesaréia 
      como um texto a classificar entre os apócrifos (cf. História 
      eclesiástica, III, XXV, 4-5), o que demonstra que já era conhecida 
      no século IV, faz de Jesus um simples "servidor" de Deus, 
      ebed laweh.
      "Quanto à eucaristia, dêem graças assim: Primeiro 
      referente ao cálice: Damo-lhe obrigado, Oh nosso Pai, pelo santo 
      vinho de David, seu servidor, que você nos tem feito conhecer pelo 
      Jesus seu servidor; glorifica a Ti nos séculos!
      "Logo, referente ao pão partido: Damo-lhe graças, Oh 
      nosso Pai, pela vida e a ciência que Você nos tem feito conhecer 
      pelo Jesus seu servidor. Glorifica a Ti nos séculos!". (Cf. 
      Doutrina dos doze apóstolos 1-3.)
      Assim, neste texto à Jesus qualifica-lhe de servidor de Deus, o mesmo 
      título que ao David; não é outra coisa que o ebed laweh.
      Por outra parte, Saulo-Paulo (ou o escriba que efetua as composições 
      sob seu nome) não ignora que a Lei recebida por Moisés foi 
      comunicada no Sinai, não pelo próprio Deus, mas sim por um 
      mediador, o Mátatrón-saar-ha-panim, ou "príncipe 
      das Faces", a quem também se denomina Saar-ha-Gadol, o "grande 
      príncipe", ou Saar-ha-Olam, o "príncipe do Mundo": 
      "A Lei foi promulgada pelos anjos, por mão de um Mediador". 
      (Paulo, Gálatas, 3, 19.)
      E então coloca, em sua teologia pessoal, um novo mediador entre Deus 
      e os homens, esse "Cristo" que ele inseria pela primeira vez na 
      nova teodicea: "Há um só mediador entre Deus e os homens". 
      (Paulo, I Timóteo, 2, 5.)
      "Jesus é o mediador de uma aliança mais excelente". 
      (Paulo, Hebreus, 8, 6.)
      E o que é mais grave ainda, Saulo ignora que o Mediador é 
      todo o Israel, o povo inteiro, não como modelo, mas sim como "depositário 
      da palavra e dos oráculos de Deus" (Paulo, Romanos, 3, 2), o 
      que induz a acreditar que está em contradição consigo 
      mesmo. Porque esqueceu a mensagem de Isaías, coisa bem estranha para 
      um "judeu de raça" que fez seus estudos aos pés 
      de Gamaliel: "Assim diz o Senhor: No tempo favorável lhes escutei, 
      no dia da salvação lhes ajudei, conservei-lhes e estabeleceu 
      para ser os mediadores do povo, renovar a terra e recuperar as verdades 
      devastadas". (Isaías, 49, 8.)
      E o que dizer do fato de que o Pai, tanto se se trata do texto de Mateus 
      (6, 9) como de Lucas (11, 1-4), não mencione ao Filho, menos ainda 
      ao Espírito Santo, e não diga nenhuma palavra da Virgem! O 
      que sim é certo é que Saulo-Paulo, como bom árabe nabateo, 
      não concederá jamais às mulheres o mínimo direito 
      na religião que está fundando; voltaremos para isso mais adiante.
 7 - De Saulo, 
      príncipe herodiano, ao Simão, o Mago
      Mas já à chamada de Astarté desperta, orvalhado pelo 
      cinamomo, o misterioso Marido. ressuscitou o antigo adolescente! E o céu 
      em flor parece uma imensa rosa, que tingiu com seu sangue um Adonis gigante...
      J.-M. DE HÉRÉDIA "Les Trophées", le réveil 
      d'un dieu
      Simão o mago ocupa na história das origens do cristianismo 
      um lugar importante, com ou sem razão. Dos Atos dos Apóstolos 
      até as obras especializadas, redigidas pela grande corrente patrística 
      contra as heresias em geral, a literatura cristã menciona a existência 
      desse misterioso personagem.
      Fez-se dele o pai de todas as heresias, e se tentou justificar esta paternidade 
      nas doutrinas que acertada ou equivocadamente surgiram da sua própria. 
      Quer dizer, que não é necessário defender o interesse 
      que reveste o estudo da personalidade, real ou imaginária, de Simão 
      o Mago.
      Agora bem, ao redor de 1850, vários exegetas austríacos e 
      alemães suspeitaram que detrás de Simão, o Mago, se 
      ocultava em realidade o apóstolo Paulo. Citemos simplesmente: Baur 
      (Tüb. Zeitschr. F. Theol., IV, 136, e K.-Gesch. dersserst. Jahrh., 
      P. 186, sq.), Zeller (Apg., 158, sq.), Volkmar (Theol. Jahrh., 1856), Hilgenfeid 
      (Die Clem., Recogn. U Homil., P. 319), Lipsius (Die Quellen der rómischen 
      Petrussage), Schenkel (Bibel-Lexikon, art. "Simão der Magier").
      Esta escola, como se vê, estava dotada de didatas de valor, e a nova 
      opinião, defendida a seguir por grande número de críticos, 
      negou imediatamente a existência histórica de Simão, 
      o Mago. De fato se apoiava sobre uma constatação de importância, 
      ou seja, que em bom número de documentos da tradição, 
      o nome de Mago não era outra coisa que um pseudônimo do apóstolo 
      dos gentis, e que os ataque dirigidos contra Simão nos Atos e nas 
      obras patrísticas o eram em realidade contra Saulo-Paulo.
      Se toda a lenda não tiver outra base que esta confusão dos 
      dois personagens, confusão que inicialmente foi intencionada, e que 
      logo foi mantendo-se por causa da ignorância geral, resultará 
      impossível admitir a existência histórica de Simão, 
      o Mago, e então terá que qualificar de puramente mítico 
      tudo que se disse dele, e por conseguinte terá que descartá-lo. 
      A maior parte dos escritores eclesiásticos antigos contam que Simão 
      foi em princípio discípulo de João, o Batista, e de 
      Dositeo. (Outros, pelo contrário, fazem de Dositeo um discípulo 
      de Simão.) Tenhamos em conta este parentesco ideológico, porque 
      logo voltaremos para ele.
      Observaremos, em primeiro lugar, que tinha "seu evangelho". No 
      manuscrito antigo de um tratado siríaco sobre O Santo Concílio 
      da Nicéia, redigido pelo bispo Maruta de Maiferkat, amigo de João 
      Crisóstomo e embaixador do imperador Arcadio -filho de Teodosio-, 
      ante o rei da Pérsia Jezdegerd, em finais do ano 399, destaca-se 
      a existência de um Evangelho de Simão, o Mago, utilizado pela 
      seita que leva seu nome (os simonianos). Está dividido em quatro 
      partes, daí seu nome: Livro dos Quatro rincões do Mundo. Por 
      conseguinte se dirige ao mundo inteiro, incluídos os gentis, o que, 
      tendo em conta a época, resulta muito paulino.
      São Ireneu, por sua parte, justifica a existência dos quatro 
      evangelhos canônicos com o mesmo argumento: "Como há quatro 
      regiões no mundo onde estamos, e quatro ventos principais, assim...", 
      etc. (Cf. Ireneu, Contra as heresias, III, XI, 8.) Conviremos em que a analogia 
      é mais que singular, já que Paulo também tem "seu 
      evangelho" (utilizando a mesma expressão).
      Citaremos simplesmente:
      "Deus julgará [aos homens] segundo meu evangelho..." (Paulo, 
      Romanos, 2, 16.)
      "Ao que pode lhes confirmar segundo meu evangelho..." (Paulo, 
      Romanos, 16, 25.)
      "Se nosso evangelho ficar ainda velado, é para os que vão 
      à perdição..." (Paulo, II Coríntios, 4, 
      3.)
      "Porque se viesse algum [...] pregando outro evangelho que o que abraçastes, 
      suportariam-no de bom grado. Entretanto, eu acredito que em nada sou inferior 
      a esses preclaros apóstolos." (Paulo, II Coríntios, 11, 
      4.)
      "Maravilho-me de que tão logo lhes passem do que lhes chamou 
      pela graça de Cristo a outro evangelho diferente...." (Paulo, 
      Gálatas, 1, 6.)
      "Mas embora nós ou um anjo do céu lhes anunciasse outro 
      evangelho distinto do que lhes anunciamos, seja anátema..." 
      (Paulo, Gálatas, 1, 8.)
      "Para a qual lhes chamou Deus por meio de nosso evangelho..." 
      (Paulo, II Tessalonicenses, 2.14.)
      "Lembre-se de que Jesus Cristo, da linhagem de David, ressuscitou dentre 
      os mortos, segundo meu evangelho..." (Paulo, II Timóteo, 2, 
      8.)
      Como se vê, o Paulo do Novo Testamento não cita nenhum outro 
      evangelho canônico mais que o seu, só apresenta este, e anatematiza 
      a quem quer que pregue outro. Conviremos em que um recém-chegado 
      à coorte apostólica isso supõe uma grande audácia! 
      A menos que o seu fora, realmente, o primeiro evangelho conhecido por este 
      nome...
      Voltando para Simão, o Mago, observaremos que segundo Justino, toda 
      a cidade da Naplusa, a antiga Siquem, era simoneana (cf. Justino, Apologia, 
      I, XXVI, 3). Os seguidores de Simão, portanto, não constituíram 
      uma pequena capela fechada ou secreta, mas sim, sem lugar a dúvidas, 
      Simão foi o chefe de uma grande Igreja. Igual a Paulo.
      Simão, o Mago ia acompanhado de uma mulher de grande beleza. Segundo 
      a mordaz afirmação dos heresiólogos. Simão a 
      comprara no lupanar onde se encontrava, em Tiro.
      Do mesmo modo, parece que Paulo brigou com a grande Igreja por causa de 
      uma companheira: "Acaso não temos direito a levar conosco uma 
      irmã que seja nossa mulher?". (Cf. Paulo, I Coríntios, 
      9, 5.)
      Por outra parte, logo veremos que, segundo as Homilias Clementinas (atribuídas 
      à Clemente de Roma), Simão, o Mago, fora criado em Tiro, com 
      outros dois meninos, por uma mulher de raça cananéia, Justa, 
      quão mesma foi ao encontro de Jesus quando este se retirou à 
      Fenícia. (Cf. Mateus, 15, 21-24, e Marcos, 7, 24-25.)
      E como já vimos, Saulo fora criado com Herodes, o Tetrarca e Menahem 
      (Atos, 13, 1). Igual a Simão, o Mago, criara-se com outros dois meninos.
      Segundo as mesmas Homilias Clementinas (II Homilia, XXI-XXII). Simão, 
      o Mago, tem um discípulo chamado Aquilas. Segundo os Atos dos Apóstolos, 
      Paulo tinha um discípulo chamado Aquilas (Atos, 18, 2; Romanos, 16, 
      3; II Timóteo, 4, 19; I Coríntios, 16, 19).
      Não nos propomos realizar um estudo completo da vida de Simão, 
      o Mago, outros se encarregaram disso antes de nós; não obstante, 
      seus estudos não estavam motivados pelo mesmo. Nos propomos unicamente 
      investigar nos documentos procedentes da tradição judeu-cristã, 
      para ver se é possível estabelecer a existência histórica 
      de nosso personagem. Em outros termos, a questão que se expôs 
      nesta obra, antes das conclusões afirmativas que se desprendem, era 
      a seguinte: Existiu na história um mago chamado Simão, ou 
      o nome do Simão o Mago não era a não ser um pseudônimo 
      que seus adversários aplicavam ao apóstolo Paulo? 
      Os documentos aos quais fazemos alusão antes são de natureza 
      e valor diversos. Pertencem, ao menos em sua forma atual, à diferentes 
      períodos da Gênesis do cristianismo. Alguns deles sofreram 
      transformações e perderam sua fisionomia primitiva. Esse é 
      o caso das Homilias Clementinas, os Atos de Pedro e de Paulo e os próprios 
      Atos dos Apóstolos como vimos na Confissão de São Cipriano.
      Os atos de Pedro e de Paulo
      Achamo-nos aqui em presença de um documento histórico mais 
      importante do que pudesse parecer a primeira vista. Porque se em sua forma 
      atual os Atos de Pedro e de Paulo não se remontam mais à frente 
      do século V, não obstante é seguro que os elementos 
      de que se compõem, e que se foram confundindo paulatinamente, remontam-se 
      à épocas muito diversas, e o exame do conteúdo demonstra 
      que, em algumas de suas partes, a obra não é afinal de contas, 
      mais do que produtos literários do grande partido judeu-cristão 
      dos dois primeiros séculos. No referente à crítica, 
      remetemos ao Lipsius (Die Quellen der rómischen Petrussage, P. 47, 
      sq.), e ao Hilgenfeid (Novum Testamentum extra canonem receptum).
      Os Atos de Pedro e de Paulo, tal como nos chegaram, estão destinados 
      a nos contar a luta, cheia de prodígios e de acontecimentos sobrenaturais, 
      como sempre, que em Roma enfrentam os dois apóstolos contra Simão, 
      o Mago, assim como a morte ignominiosa deste e o martírio glorioso 
      dos dois primeiros.
      A primeira vista a leitura deste escrito pode parecer inútil do ponto 
      de vista histórico, e parece como se tão somente a fantasia 
      tomasse parte na redação desses relatos, onde se dá 
      rédea solta ao amor pelo maravilhoso. Nenhum exegeta católico 
      ou protestante moderno lhe concedeu jamais o mínimo crédito 
      por essa mesma razão.
      Vemo-nos transportados imediatamente em que Paulo chega a Roma, depois de 
      seu naufrágio nas águas de Malte. Pedro lhe tinha precedido 
      a "grande Babilônia" para combater ali Simão, o Mago, 
      que é ali muito honrado e parece ter obtido um grande êxito. 
      Não demora para cercar a luta entre Simão e Pedro, que rivalizam 
      em prodígios e cujos inesgotáveis milagres lhes concedem o 
      favor das multidões, naturalmente. Produzem-se conversões 
      inclusive na própria família do imperador Nero, e a discussão 
      termina por ter lugar em presença deste.
      Nero sente uma grande admiração ao ver os prodígios 
      realizados por Simão; é certo que o mago não regula 
      nada para aumentar o ascendente que exerce sobre o imperador. Durante a 
      luta mágica entre Simão e Pedro, Paulo não intervém 
      em nada; esforça-se por desaparecer quase sempre atrás deles, 
      o qual resulta muito curioso. Em realidade, tem-se a impressão de 
      que não está ali. Ao menos sob o nome de Paulo...
      Apressado por Nero a que demonstrasse ser "filho de Deus" mediante 
      algum prodígio, Simão prometeu voar do alto de uma torre, 
      coisa que, efetivamente, teve lugar no Campo de Marte. Mas no momento em 
      que Nero, cheio de admiração ante o prodígio levado 
      a cabo pelo mago, reprovava aos apóstolos seu ódio contra 
      ele, ante as orações de Pedro, os demônios que sustentavam 
      Simão, o Mago no ar lhe deixaram cair e fugiram, e Simão, 
      ao precipitar-se contra o chão, pereceu estatelado. Recolheram-no, 
      enterraram-no, e em vão esperou Nero a prometida ressurreição.
      A morte do mago, que era o favorito do Nero, teve como conseqüência 
      o martírio dos dois apóstolos. Paulo foi decapitado no caminho 
      de Ostia, e Pedro foi crucificado, a pedido próprio, cabeça 
      abaixo. No momento do suplício, as multidões amotinadas queriam 
      matar ao imperador, mas Pedro o impediu, narrando com este fim a aparição 
      com que Jesus o tinha honrado. Quando Pedro fugia dos legionários 
      que se lançaram em sua busca. Jesus lhe apareceu no caminho. Pedro 
      lhe perguntou: "Aonde vai, Senhor?". "À Roma, para 
      ser crucificado de novo", respondeu Jesus. Pedro compreendeu então 
      seu dever, e se apressou a voltar sobre seus passos para entregar-se àqueles 
      que lhe buscavam.
      Observe-se que se diversos exegetas puderam reprovar, com razão, 
      aos Atos dos Apóstolos que tivessem falseado a verdade histórica 
      ao dar um marco imaginário às relações de tais 
      apóstolos entre si, destinado a velar as diferenças com vistas 
      a uma conciliação, essa recriminação está 
      justificada afortiori quando se trata dos Atos de Pedro e de Paulo, cuja 
      tendência, por certo nada dissimulada, consiste em representar Pedro 
      e Paulo trabalhando de comum acordo em perfeita união, e tentando 
      imitar-se mutuamente em palavras e atos.
      Pedro é aqui um perfeito paulino, e Paulo um perfeito judeu-cristão: 
      "acreditamos e acreditam, dizem os cristãos de Roma, que o mesmo 
      que Deus está longe de separar os dois grandes astros que criou [o 
      Sol e a Lua], igualmente impossível é nos separar um do outro, 
      quer dizer, ao Paulo de Pedro, e ao Pedro de Paulo". (Cf. Atos de Pedro 
      e de Paulo, V.)
      E em presença de Nero, Pedro diz: "Tudo o que Paulo disse é 
      verdade" (op. cit., LX), e Paulo replicará a seguir: "O 
      que ouviu de Pedro acredita-o como se tivesse saído de minha boca, 
      já que temos uma mesma opinião, temos um só Senhor: 
      Jesus Cristo" (op. cit., LXII).
      A verdade é menos idília, e mais validaria não falar 
      de seu cordial entendimento! Porque, torpemente, as passagens aonde está 
      mais acentuada a união dos dois apóstolos são precisamente 
      aqueles onde foi menos em realidade. Em concreto, nas prerrogativas que 
      Paulo reivindica continuamente em suas Epístolas para sua missão 
      pessoal, direito que lhe discutiam, aberta ou silenciosamente, seus adversários, 
      os cristãos judaizantes.
      É muito fácil distinguir, através do véu jogado 
      sobre a tradição primitiva pelo autor anônimo dos Atos 
      de Pedro e de Paulo, os principais elementos da luta que dividia à 
      Igreja primitiva em geral.
      Em primeiro lugar, o autor anônimo não parece ter em conta 
      os Atos dos Apóstolos. Põe de relevo o ódio dos judeus 
      contra Paulo. Estes, ao inteirar-se de sua chegada à capital do Império 
      romano, obtêm de Nero, de cujo favor parecem gozar, a decapitação 
      de Paulo. Em troca, como vimos nos textos (Atos, 28, 11-22), não 
      acontece nada disso à chegada de Paulo à Roma.
      Mas há uma passagem dos Atos de Pedro e de Paulo que não deixa 
      nenhuma dúvida sobre o que no fundo pensava o autor anônimo, 
      quem, sem querer, traiu-se a si mesmo.
      Em um momento dado, às diatribes contra os circuncisos responde Pedro: 
      "Se a circuncisão for falsa, por que Simão está 
      circunciso?"
      Esta simples pergunta demonstra que não se trata de que Simão 
      estivesse circunciso por decisão de seus pais na hora de seu nascimento, 
      já que então ele não seria responsável por tal 
      circuncisão. A frase atribuída ao Pedro demonstra que Simão, 
      pelo contrário, é responsável por sua própria 
      circuncisão. Portanto se fez circuncidar livremente, em uma época 
      de sua vida. E logo veremos, ao estudar o verdadeiro motivo da conversão 
      de Saulo-Paulo, que não estava circunciso de nascimento, por decisão 
      de seus progenitores, mas sim se fez circuncidar por vontade própria, 
      quando era adulto; que esta circuncisão não lhe serve para 
      o que ele esperava, e que daí provinha seu rancor contra o rito que 
      havia transtornado sua vida.
      Entretanto, a insidiosa pergunta de Pedro incomodou enormemente Simão, 
      o Mago, quem terminou por replicar que, nos tempos em que circuncidaram 
      ele, a circuncisão era uma ordem de Deus. E Pedro lhe replicou imediatamente: 
      "assim, se a circuncisão for boa, por que Simão, entregou 
      você a circuncisos, e os tem feito condenar e matar?".
      Mas nos textos canônicos ou nos apócrifos jamais se falou de 
      um Simão, o Mago, que fora à caça dos cristãos 
      procedentes do judaísmo, e que os detivera, mandasse-os a prisão 
      e os fizesse julgar e condenar. Essa recriminação só 
      podia aplicar-se a um apóstolo dos gentis, Saulo-Paulo, antes de 
      sua conversão. E com isto temos uma prova mais de que o Simão, 
      o Mago, do autor anônimo dos Atos de Pedro e de Paulo não é 
      outro, em seu espírito, que o Paulo dos Atos dos Apóstolos, 
      declarado adversário de Pedro e de seu judeu-cristianismo. Recordem 
      as discussões entre eles, tanto em Jerusalém como na Antioquia.
      Por outra parte, o favor de que goza Simão, o Mago, ante o imperador 
      não é outra coisa que uma malevolente alusão ao tratamento 
      de favor de que foi objeto Paulo em Roma durante sua primeira permanência 
      ali, depois de sua apelação ao César.
      E o relato, tão curioso, sobre a pretendida morte de Simão, 
      o Mago, voando pelos ares e logo estatelando-se contra o chão não 
      é mais que outra ficção destinada a ridicularizar ao 
      odiado apóstolo. Lipsius (cf. Die Quellen der rómischen Petrussage) 
      e Schenkel (cf. Bibel-Lexicon, art. "Simão der Magier") 
      relacionam muito inteligentemente a pretensão de Simão de 
      elevar-se pelos ares com as revelações de Paulo ao glorificar-se, 
      em seu II Coríntios (12, 1-6), de ter sido elevado até o terceiro 
      céu e ter sido introduzido no Paraíso (sic), e de ter ouvido 
      "palavras inefáveis que não lhe está permitido 
      a um homem expressar". Esta relação pôde estabelecer-se 
      com grande facilidade dado que, nos tempos de Nero, um homem chamado Ícaro 
      se fez célebre por tentar voar: "Ícaro, já em 
      seu primeiro intento, caiu perto do assento do imperador, a quem salpicou 
      de sangue". (Cf. Suetonio, Vida dos doze Césares: Nero, VI, 
      XII.)
      Tratava-se, como é óbvio, de um prestidigitador, um ilusionista 
      que tentou renovar, evidentemente com outras técnicas, a tentativa 
      do personagem mitológico de dito nome, filho de Dédalo, ao 
      evadir do labirinto de Creta. Nos jogos circenses os atores levavam os nomes 
      de personagens mitológicos aos que momentaneamente encarnavam. Dion 
      Crisóstomo (Orat., XXI, 9) e Juvenal (Sat., III, 79) relatam-nos 
      o mesmo fato que Suetonio.
      As homilias clementinas
      As Homilias Clementinas, atribuídas a Clemente de Roma, estão 
      constituídas unicamente pela modificação de um escrito 
      mais antigo, que os exegetas convieram em denominar o Escrito Primitivo. 
      Esta obra, que data dos anos 220-230, segundo uns foi redigida no Oriente 
      (Síria ou Transjordânia), e segundo outros em Roma. O autor 
      desconhecido do Escrito Primitivo já tinha recolhido outros manuscritos 
      anteriores, como os Cerigmas, predicações atribuídas 
      ao Simão-Pedro, uns Atos de Pedro diferentes e mais antigos que os 
      que se conhecem como de Verceil, uma obra judia apologética e, por 
      último, uma espécie de novela de aventuras em que entra em 
      jogo uma família pagã da época dos Antoninos.
      O mais importante deles era os Cerigmas, texto judeu-cristão extremamente 
      hostil a Saulo-Paulo, a seus princípios doutrinais, a sua cristologia 
      revolucionária, verdadeira heresia para o messianismo inicial. Os 
      Cerigmas desapareceram, só ficam as Homilias Clementinas, e o interesse 
      desta obra radica precisamente em colocarmo-nos em presença das confrontações, 
      freqüentemente com extrema violência, que opuseram ao Simão-Pedro 
      e Saulo-Paulo.
      Para fazer desaparecer essa hostilidade e unificar as duas correntes que 
      pouco a pouco foram convertendo-se no cristianismo, os escribas anônimos 
      que expurgaram, censuraram e interpolaram os escritos antigos a partir do 
      reinado de Constantino imaginaram Simão, o Mago, e substituíram-no 
      por Paulo.
      Observar-se-á, em primeiro lugar, que não deixa de ser assombroso 
      que uma obra como as Homilias Clementinas ignore totalmente o apóstolo 
      Paulo na época em que foi composta e além disso em troca, 
      cite em abundância, ao Simão, o Mago.
      Por outra parte, nas recriminações que faz Pedro àquele 
      ao que chama "o homem inimigo"*, é impossível não 
      reconhecer ao Paulo. Julgue-se, se não, pelos seguintes fragmentos:
      *[O cardeal Jean Daniélou recorda em sua obra Théologie du 
      Judéo-Christianisme que nos Kerygmas de Pedro, "o homem inimigo" 
      designa à Paulo, "considerado como responsável do rechaço 
      das observações. Recordamo-lhes que Ireneu e Epífano 
      consideravam esse rechaço de Paulo como uma das características 
      do ebionismo". (Cf. R. P. Jean Daniélou, op. cit., p. 72.) Estamos, 
      pois, autorizados a concluir que durante um tempo estreitos contatos uniram 
      Paulo e a seita dos ebionitas. Seus membros estavam, portanto, em condições 
      de saber perfeitamente as origens deste. E Epífano, recordemo-lo, 
      conta que eles afirmavam que Paulo tinha como progenitores uns gentis, quer 
      dizer pagãos, e não judeus. Está perfeitamente claro 
      (supra, p. 33).]
      Carta de Pedro ao Santiago: Conheço, meu amigo, seu ardente zelo 
      pelos interesses que nos são comuns a todos. Acredito, pois, que 
      devo rogar-lhe que não comunique os livros de meus ensinos que lhe 
      envio a nenhum homem originário da Gentilidade, nem a nenhum homem 
      de nossa raça antes de havê-lo provado [...] Porque alguns 
      dos que vêm da Gentilidade rechaçaram meus ensinos, conforme 
      à Lei, para adotar o ensino, contrário à Lei, do homem 
      inimigo e seus frívolos bate-papos. E inclusive em minha vida alguns 
      tentaram, mediante interpretações artificiosas, desnaturalizar 
      o sentido de minhas palavras a fim de conseguir a abolição 
      da Lei. De lhes emprestar ouvidos, acreditaria-se que se trata de uma doutrina 
      pessoal minha que eu não ouso pregar abertamente! Longe de mim semelhante 
      conduta! Porque seria atuar contra a Lei de Deus, promulgada pelo ministério 
      de Moisés, e cuja duração eterna pregou Nosso Senhor 
      quando disse:
      "O céu e a terra passarão, mas nenhum jota nenhuma til 
      da Lei passarão". (Marcos, 13, 31, e Mateus, 5, 18.)
      Segundo as Homilias Clementinas (II, XVI-XVII), há sempre dois mensageiros; 
      quem chega primeiro é o homem das trevas, o segundo é o homem 
      da luz, já que as trevas precederam à luz, segundo a Gênesis 
      (1, 1-3), e para respeitar esse simbolismo, na antiga Israel começava 
      o dia quando se punha o sol, ao iniciar a noite. E para as Homilias esta 
      regra aparece autentificada pelo fato de que Caim chegou antes que Abel, 
      Ismael antes que Isaac, Esaú antes que Jacob. Desde aí procede 
      o primitivo sacrifício dos primogênitos. E então se 
      compreenderá melhor o que segue. Fala Pedro: "Guiando-se por 
      esta ordem de sucessão, poderia compreender-se de quem procede Simão, 
      o Mago, que chegou antes que eu às nações, e a quem 
      eu relevo, que cheguei depois que ele e que lhe aconteceu como a luz às 
      trevas, a ciência à ignorância, a cura à enfermidade. 
      Assim, tal como disse o profeta verídico, tem que aparecer sempre 
      primeiro um falso evangelho, pregado por um impostor...". (Homilias 
      Clementinas, II, xVII.)
      Pois bem, como vimos, Saulo-Paulo insinua que seu evangelho é o primeiro 
      e condena os outros. Isso está muito claro.
      Há ainda uma espécie de controvérsia em que o leitor 
      reconhecerá facilmente Paulo e suas teorias gnósticas, de 
      cara ao Pedro, estrito reflexo da ortodoxia testamentária. Vejamos: 
      "por exemplo, Simão, o Mago, deve manter amanhã conosco 
      uma discussão pública em que ousará atacar a soberania 
      do Deus Único. Tem a ousadia de contribuir um grande número 
      de entrevistas extraídas das próprias Escrituras e afirmar 
      que há vários deuses, um dos quais é diferente do Criador 
      do Universo e superior a ele". (Homilias Clementinas, III, X.)
      Paulo, por sua parte, sustenta os mesmos princípios: "Posto 
      que, embora há quem são chamados deuses, seja no céu, 
      seja na terra, do mesmo modo que existem muitos deuses e muitos senhores..." 
      (Paulo, I Coríntios, 8, 5.)
      Em outro momento Pedro e Paulo polemizaram violentamente sobre o valor revelador 
      de uma visão. É evidente que se tratava da maneira em que 
      Paulo pretendia ter recebido seu evangelho -quer dizer, do próprio 
      Jesus-, durante sua ascensão ao terceiro céu, e de sua recepção 
      no paraíso: "Se for mister glorificar-se, embora não 
      é bom, virei às visões e revelações [que 
      eu obtive] do Senhor. Sei de um homem em Cristo que, faz quatorze anos -se 
      no corpo, não sei; se fosse do corpo, tampouco sei, só Deus 
      sabe- foi arrebatado até o terceiro céu, E sei que este homem 
      foi arrebatado até o paraíso e ouviu palavras inefáveis 
      que um homem não deve repetir". (Paulo, II Coríntios, 
      12, 1-6.)
      *[As pretensões de Paulo de escalar o mundo invisível até 
      o terceiro "céu" (muito mais tarde Mahomé sustentará 
      a mesma afirmação) caem violentamente contradições 
      pelo evangelho de João: "E nada subiu jamais ao céu", 
      senão é o que há sob o céu, o Filho do homem, 
      que está no céu" (João, 3, 13). E mais, o próprio 
      Paulo se contradiz a si mismo em sua Epístola aos Romanos, ao declarar: 
      "Não digas em teu coração: Quem subirá 
      ao céu? Isto é, para rebaixar a Cristo", (cf. Epístola 
      aos Romanos, 10, 6). Dito de outro modo, segundo esse texto Paulo reconhece 
      que unicamente seu "Cristo" metafísico é capaz de 
      subir ao céu, porque já desceu dele.]
      Vejamos agora o texto das Homilias Clementinas a este respeito:
      "Para ouvir estas palavras, Simão, interrompendo Pedro, disse-lhe: 
      "Sei a quem vai dirigido isso que você diz. Mas não quero 
      repetir as mesmas coisas para o refutar e perder o tempo em discursos que 
      não estão em minhas intenções. Vangloria-se 
      que ter compreendido muito bem os ensinos de seu Mestre, por havê-lo 
      visto claramente com seus próprios olhos e ouvido com seus próprios 
      ouvidos, e declara que lhe era impossível a nenhum outro chegar a 
      um resultado semelhante mediante visões ou aparições". 
      (Op. cit., XVII, XIII.)
      Segue uma longa discussão sobre o valor das visões e dos sonhos, 
      e sobre a qualidade do que os recebe, a qual economizaremos ao leitor. Mas 
      logo vêm umas passagens que devemos citar, porque não permitem 
      já duvidar de que se trata da presença de Paulo, sob o nome 
      de Simão, o Mago. Julgue-se. Segue falando Pedro: "assim, se 
      nosso Jesus se deu a conhecer também a si, e se tiver conversado 
      consigo em uma visão, é por cólera contra si, que é 
      seu adversário! Por isso é pelo que falou mediante visões, 
      sonhos ou inclusive revelações exteriores. Por outra parte, 
      pode um voltar-se capaz de ensinar, só por uma aparição? 
      Você dirá, possivelmente:
      "É possível". Mas então, por que o Mestre 
      permaneceu um ano inteiro conversando com pessoas despertas? E como daremos 
      crédito ao que você diz, isso de que apareceu? E como é 
      que lhe apareceu, se seus sentimentos estiverem contra seus ensinos? E se 
      por ter gozado durante uma hora de sua presença e de suas lições 
      se tornasse apóstolo, então publica bem alto suas palavras, 
      explica sua doutrina, ama a seus apóstolos, e deixa de combater a 
      mim, que vivi com ele! Porque é contra mim, a rocha firme, o fundamento 
      da Igreja, contra quem você erige como adversário. Se não 
      fosse meu inimigo, não procuraria com suas calúnias desprezar 
      meus ensinos para impedir que se acredite em minha palavra, quando eu o 
      que faço é repetir o que ouvi da própria boca do Senhor, 
      e não me representaria como um homem condenado e desconsiderado". 
      (Homilias Clementinas, XVII, XIX.)
      Esta última frase faz alusão, evidentemente, a seu passado 
      de bandoleiro, fora da lei, que constituiu durante muito tempo a existência 
      cotidiana do Simão-Pedro. Que o leitor se tome a moléstia 
      de ler ou reler, em nosso anterior volume, o capítulo intitulado 
      "O dízimo messianista", e então compreenderá 
      que Paulo não ignora tal passado, e que dele tira argumentos contra 
      Pedro entre os gentis.
      Mas como aplicar esta controvérsia ao Simão o Mago? Porque 
      em nenhuma parte nos diz que Jesus lhe tivesse aparecido! E desta discussão 
      se desprende, inconfundivelmente, que é ao Paulo a quem vão 
      dirigidas as diatribes do Pedro.
      Entre as Homilias Clementinas e os Atos dos Apóstolos há, 
      além disso, uma séria contradição na hostilidade 
      que nos pinta, ao opor Simão, o Mago, e Pedro, e a resignação 
      que o primeiro nos mostra nos citados Atos: "Quando Simão viu 
      que pela imposição das mãos dos apóstolos se 
      comunicava o Espírito Santo, ofereceu-lhes dinheiro dizendo: dêem-me 
      também esse poder de impor as mãos, de modo que receba o Espírito 
      Santo. Mas Pedro lhe disse:
      Que seu dinheiro pereça consigo, pois acredita que com dinheiro poderia 
      comprar o dom de Deus. Não tem nisto parte nem verdade, porque seu 
      coração não é reto diante de Deus. Arrependa-se, 
      pois, desta sua maldade e roga ao Senhor que o perdoe se for possível 
      este mau pensamento de seu coração, porque vejo que incorre 
      em fel de amargura e em laço de iniqüidade. Simão respondeu: 
      Roguem vós por mim ao Senhor, para que não me sobrevenha nada 
      do que disseram". (Atos, 8, 18-24.)
      Este fragmento dos Atos é, sem sombra de dúvidas, um dos mais 
      importantes dentre todos os que se relacionam, de perto ou de longe, com 
      nosso estudo, já que incorpora uma explicação a esse 
      antagonismo de Paulo e de Pedro, que nenhum exegeta de boa fé saberia 
      negar. Porque só aos ingênuos e aos ignorantes terá 
      que lhes deixar a lenda dos "bem-aventurados apóstolos Pedro 
      e Paulo", unidos em Roma por um martírio, senão semelhante, 
      ao menos cronologicamente associado. Terá que ignorar a frase dúbia 
      de Eugenio de Cesaréia sobre a suposta morte de Simão-Pedro 
      em Roma: "conta-se que sob seu reinado [Nero César], ao Paulo 
      cortaram a cabeça em Roma mesmo, e que parece que ao Pedro crucificaram 
      ali. E isto o confirma o fato de que até agora [ano 340] levam o 
      nome de Pedro e de Paulo os dois cemitérios desta cidade". (Cf. 
      Eusébio de Cesaréia, História eclesiástica, 
      II, XXV, 5.)
      As provas da morte em Jerusalém, no ano 47, do Simão-Pedro 
      e de seu irmão Jacobo (aliás Santiago) demo-las no primeiro 
      volume, de maneira que não voltaremos para isso.
      Entretanto, continuam umas analogias muito curiosas entre as atividades 
      de Paulo e o oferecimento "simoniaco" de Simão, o Mago. 
      Esse produto das coletas efetuadas pelo Paulo em Síria, na Macedônia, 
      na Acaia, em proveito unicamente da comunidade de Jerusalém, que 
      está dirigida pelo Pedro (cf. Atos, 4, 32-35; 6, 1; 5, 1-11), coletas 
      inegáveis, porque aparecem enumeradas nas Epístolas de Paulo 
      (I Coríntios, 16, 1-2; II Coríntios, 8, 20; Romanos, 15, 26), 
      todos esses movimentos e oferecimentos de dinheiro não evocam curiosamente 
      a oferta de compra do poder iniciático por parte de Simão, 
      o Mago?
      Há, com efeito, uma passagem das Epístolas de Paulo onde este 
      parece defender-se de uma acusação de simonia discreta e larvada. 
      Julgue-se: "Atuamos assim a fim de que ninguém nos vitupere 
      com motivo desta importante soma que passa por nossas mãos". 
      (Cf. Paulo, II. Coríntios, 8, 20.)
      E nosso homem precisava no versículo precedente que fizera chegar 
      esse dinheiro à comunidade de Jerusalém por meio de um irmão 
      que "além disso foi eleito pelas igrejas para nosso companheiro 
      de viagem nesta obra de beneficência, que nós levamos a cabo 
      para glória do Senhor e em prova de nossa boa vontade". (Cf. 
      Paulo, II, Coríntios, 8, 18-19.)
      Assim, as igrejas desconfiam, escolheram elas mesmas quem levara o dinheiro 
      à cidade de David, e não é Paulo. Além disso, 
      o tal Paulo tem que dar ainda a prova de boa vontade. Tudo isto é 
      menos sinônimo de gracioso entendimento do que palavrório adocicado 
      e lenitivo dos Atos quer fazer acreditar.
      Há ainda outro ponto em comum entre Simão, o Mago, e Paulo.
      Simão denomina a si mesmo "veículo" psíquico 
      do "poder de Deus", qualificado também de "Grande". 
      Pois bem, em Samaria, no setor do estádio, exumou-se uma estátua 
      à Koré, aliás Perséfone, deusa-virgem, guardiã 
      dos mortos e protetora das sementes, já que o grão se identificava 
      com o morto, ao qual se introduz na terra a fim de que reviva. Por isso 
      mesmo, Koré, era também a deusa-virgem restituidora dos vivos. 
      Em Samaria encontraram-se numerosas dedicatórias a esta divindade, 
      e sobre uma delas pode-se ler: "Uma só deidade, a poderosa, 
      Koré a Grande, a Indômita". (Cf. A. Parrot. Samaria, capital 
      do reino de Israel.)
      E em Samaria os Atos nos dizem que: "Todos, do menor até o maior, 
      escutavam atentamente ao Simão, e diziam: Este é o poder de 
      Deus, chamado Grande". (Atos, 8, 10.)
      Voltemos a ler as Epístolas de Paulo; a expressão poder de 
      Deus é, na linguagem paulina, sinônimo de Deus mesmo (cf. Romanos, 
      1, 16; I Coríntios, 1, 18-24, e 2, 5; II Coríntios, 6, 7, 
      e 13, 4; Colossenses, 2, 12; II Timóteo, 1, 8).
      E mais, utiliza o esoterismo iniciático do grão de trigo, 
      depositado na terra para morrer, a fim de renascer, que, como acabamos de 
      ver, é um dos elementos da iniciação aos "mistérios" 
      de Koré a Grande: "Mas dirá algum: Como ressuscitam os 
      mortos? Com que corpo vêm? Insensato! O que você semeia não 
      recobra vida se primeiro não morrer. E o que semeia não é 
      o corpo que tem que nascer, a não ser um simples grão, pondo 
      no caso, trigo ou de alguma outra semente. E logo Deus lhe dá o corpo 
      conforme quis, e a cada uma das sementes seu próprio corpo". 
      (Cf. Paulo, I Coríntios, 16, 35-38.)
      Agora bem, nestes versículos não parece que se trate da famosa 
      ressurreição do Julgamento Final, mas sim de um renascimento 
      que acontece à morte, de um princípio de vida que, neste renascimento, 
      não segue necessariamente a mesma ordem ontológica que antes, 
      já que sua nova orientação depende de Deus. Aqui não 
      se trata já de metem-somatosis, mas sim de metempsicosis. Além 
      disso, voltamos a estar em presença dos "mistérios" 
      de Koré a Grande, deusa guardiã dos mortos, restituidora dos 
      vivos, e por isso mesmo protetora das sementes. E aqui, como vemos, Paulo 
      se expressa rigorosamente igual faria Simão, o Mago, que provavelmente 
      devia ser "sacerdote de Koré e dos Dioscuros" (cf. A. Parrot, 
      op. cit.).
      Nas Epístolas de Paulo subsistem diversos fragmentos que revelam 
      esta identidade entre Saulo-Paulo, príncipe herodiano, enfronhado 
      de magia nabatea, e Simão da Samaria, chamado Simão, o Mago, 
      personagem imaginário, inventado para as necessidades da causa dos 
      séculos IV e V, quando "arrumaram" o texto primitivo dos 
      Atos dos Apóstolos. Como prova nos basta o que segue: "Dou graças 
      a Deus de não ter batizado a nenhum de vós, a não ser 
      Crispo e Gayo, para que ninguém possa dizer que fostes batizados 
      em meu nome. Batizei também à família de Estéfanas, 
      mas fora destes não sei de nenhum outro. Que não me enviou 
      Cristo a batizar, a não ser a evangelizar". (Cf. Paulo, I Coríntios, 
      1, 14.)
      "Ou é que ignoram que quantos fomos batizados em Jesus Cristo, 
      em sua morte fomos batizados? Com Ele fomos sepultados pelo batismo para 
      participar de sua morte [...] Pois, se tivermos morrido em Cristo, acreditam 
      que também viveremos nele, pois sabemos que Cristo, ressuscitado 
      dentre os mortos, já não morre." (Cf. Paulo, Romanos, 
      6, 3 e 8.)
      Estes dois fragmentos das Epístolas de Paulo demonstram:
      a) que seu autor não recebeu jamais os poderes apostólicos, 
      o mais essencial dos quais residia na função batismal;
      b) que esses poderes apostólicos lhe foram denegados por seus primitivos 
      possuidores, os "apóstolos", já que é seguro 
      que não esqueceria lhes solicitar a transmissão, e sua ausência 
      implica, por conseguinte, uma negativa;
      c) que essa negativa a lhe transmitir os citados poderes apostólicos 
      o identifica ipso facto, e de maneira irrefutável, com Simão, 
      o Mago, que sofreu a mesma negativa por parte de Simão-Pedro (Atos, 
      8, 18-24);
      d) que antes Paulo só possuía "seu evangelho", igual 
      a Simão, o Mago, como já relatamos.
      Nos objetará que Paulo possuía os poderes do exorcismo, posto 
      que são evocados nos Atos dos Apóstolos (19, 11-17).
      Não é nada surpreendente em um homem iniciado na magia. Recordemos 
      sua herança, o parentesco com os príncipes-sacerdotes analisados 
      antes na religião da Iduméia e Nabatea. Vejamos esse texto: 
      "E Deus fazia milagres extraordinários pelas mãos de 
      Paulo, até o ponto de que se aplicavam sobre os doentes tecidos ou 
      lenços que tinham corpos doloridos, e as enfermidades lhes abandonavam, 
      e os maus espíritos saíam. Alguns exorcistas judeus ambulantes 
      tentaram invocar sobre aqueles que tinham espíritos malignos o nome 
      do Senhor, dizendo: Vos conjuro por Jesus, que prega Paulo! Os que faziam 
      isto eram sete filhos da Sceva, um dos supremos sacerdotes judeus. O espírito 
      maligno lhes respondeu: Conheço Jesus e sei quem é Paulo, 
      mas vós quem sois? E o homem em cujo interior estava o espírito 
      maligno se equilibrou sobre eles, enfureceu-se em dois e os maltratou de 
      tal maneira que fugiram desta casa nus e feridos". (Atos, 19, 11-17.)
      Mas a resposta a esta objeção é óbvia, posto 
      que nos precisa que se tratava de exorcistas judeus, filhos de um exorcista 
      judeu célebre por suas curas. Com efeito, quão únicos 
      possuíam esses poderes e os utilizavam eram os discípulos 
      de Jesus. A Palestina daquela época estava infestada, como quase 
      todo o Oriente Médio, de magos itinerantes que pretendiam encontrar 
      em todo doente uma vítima de um ou de vários espíritos 
      malignos. E a cura dependia então, não da medicina daqueles 
      tempos, mas sim da magia. Esta magia, principalmente constituída 
      por conhecimentos botânicos ou psicomagnéticos (hipnotismo, 
      magnetismo curativo), servia às vezes para adoecer previamente a 
      um futuro cliente, a fim de podê-lo curar triunfalmente a seguir, 
      suprimindo os "ataques secretos" contra sua saúde. Rasputin 
      fez o mesmo na Rússia com o Zarevich, para captar a admiração 
      e a confiança do czar e da czarina, seus pais.
      Observemos, de passagem, que ainda em nossos dias o exorcismo é a 
      única medicina admitida pela Igreja. Não admitiu o bem baseado 
      da amputação cirúrgica até que se sentou no 
      trono papal Pio XII, e em 1829 o Papa Leão XII condenou solenemente 
      a vacinação:
      "Quem quer que proceda à vacinação deixa de ser 
      filho de Deus. A varíola é um julgamento de Deus, a vacinação 
      é um desafio ao Céu".
      Equivale a dizer que a medicina foi tão somente tolerada!
      Para concluir este capítulo sobre a provável identidade entre 
      o personagem imaginário de Simão, o Mago, e Saulo-Paulo, o 
      melhor que podemos fazer é recordar que são Cipriano (decapitado 
      em Cartago no ano 240), que também tinha sido mago, e Eusébio 
      da Cesaréia (morto no ano 40) acreditaram útil comparar Saulo-Paulo 
      com São Cipriano, um mago convertido (supra, pp. 33-34).
      Possivelmente seus manuscritos originais diziam mais sobre o tema, mas os 
      monges copistas da Alta Idade Média passaram indubitavelmente por 
      ali. Seja como for, essa dupla alusão terá que acrescentar 
      à tese que identifica Simão, o Mago, e Saulo-Paulo, e no momento 
      se basta a si mesmo...