OS SEGREDOS DO GÓLGOTA
Robert Ambelain

Robert Ambelain nasceu no dia 2 de setembro de 1907, na cidade de Paris. No mundo profano, foi historiador, membro da Academia Nacional de História e da Associação dos Escritores de Língua Francesa.´ Foi iniciado nos Augustos Mistérios da Maçonaria em 26 de março (o Dictionnaire des Franc-Maçons Français, de Michel Gaudart de Soulages e de Hubert Lamant, não diz o ano da iniciação, apenas o dia e o mês), na Loja La Jérusalem des Vallés Égyptiennes, do Rito de Memphis-Misraïm. Em 24 de junho de 1941, Robert Ambelain foi elevado ao Grau de Companheiro e, em seguida, exaltado ao de Mestre. Logo depois, com outros maçons pertencentes à Resistência, funda a Loja Alexandria do Egito e o Capítulo respectivo. Para que pudesse manter a Maçonaria trabalhando durante a Ocupação, Robert Ambelain recebeu todos os graus do Rito Escocês Antigo e Aceito, até o 33º, todos os graus do Rito Escocês Retificado, incluindo o de Cavaleiro Benfeitor da Cidade Santa e o de Professo, todos os graus do Rito de Memphis-Misraïm e todos os graus do Rito Sueco, incluindo o de Cavaleiro do Templo. Robert Ambelain foi, também, Grão-Mestre ad vitam para a França e Grão-Mestre substituto mundial do Rito de Memphis-Misraïm, entre os anos de 1942 e 1944. Em 1962, foi alçado ao Grão-Mestrado mundial do Rito de Memphis-Misraïm. Em 1985, foi promovido a Grão-Mestre Mundial de Honra do Rito de Memphis-Misraïm. Foi agraciado, ainda, com os títulos de Grão-Mestre de Honra do Grande Oriente Misto do Brasil, Grão-Mestre de Honra do antigo Grande Oriente do Chile, Presidente do Supremo Conselho dos Ritos Confederados para a França, Grão-Mestre da França - do Rito Escocês Primitivo e Companheiro ymagier do Tour de France - da Union Compagnonnique dês Devoirs Unis, onde recebeu o nome de Parisien-la-Liberté.

SEGUNDA PARTE

 


21 - O verdadeiro Herodes Filipo II
É bem sabido que a verdade não sempre é verossímil ...
François, marquês De SADE, Histoire secrète d'Ysabelle de Bavière, reine de France
Como se acaba de ver pelo estudo que foi objeto do precedente capítulo, o personagem de Herodes Filipo II foi criado integralmente para justificar a existência de uma pseudo-Cleópatra de Jerusalém, e velar deste modo que não era outra que a Maria de Cleofás dos textos apostólicos, meio-irmã de Maria mãe de Jesus, aliás Mariamna II, esposa de Herodes, o Grande, e mãe de Herodes Filipo II, este perfeitamente real, já que foi o primeiro marido de Herodias, mãe de Salomé II.
E então se expõe um novo problema, o de determinar a identidade do primeiro marido desta última, antes de que se convertesse na egeria de Jesus, (128) e logo na esposa de Aristóbulo III, rei de Armênia.
Este importante problema, que uma vez resolvido podia projetar uma nuvem de descrédito sobre a família davídica, primeiro por causa dessa aliança matrimonial, e logo pelas libertinagens nas quais participou a citada Mariamna II, os historiadores eclesiásticos dos primeiros séculos resolveram a sua maneira, invariável. Desta vez não criaram um personagem imaginário, mas sim o suprimiram. E assim, é inútil procurar algum rastro de Salomé II nas obras de João Cristóstomo, de Atanasio de Alexandria, etc. Para eles, a dançarina que pediu a cabeça de Batista foi Herodias, ignoram Salomé, sua filha... E o mesmo acontece com Eusebio da Cesaréia, quem em sua História eclesiástica (I, VIII, 13) menciona Salomé I, irmã de Herodes, o Grande, mas ignora por completo que Herodias que ele cita em tal obra (op. cit., I, XI, 1; I, XI, IV, 1) teve uma filha chamada Salomé, e que esta foi a dançarina responsável pela decapitação de João, o Batista, segundo os evangelhos canônicos (cf. Mateus, 14, 6, e Marcos, 6, 22). Pareceria como se o bispo da Cesaréia, historiador da igreja primitiva, panegirista de Constantino, copista e difusor dos evangelhos oficiais, não os lesse jamais. (129)
De fato, tais reticências, omissões, encobrimentos e mentiras são, para o historiador, sempre mais gratificantes.
Encontramo-nos no ano 29 de nossa era, já que Tibério foi imperador no ano 14. Da morte de Herodes, o Grande, e a interpretação de seu terceiro testamento por César Augusto em Roma, em presença de toda a família herodiana, seu reino foi dividido em três partes, ou seja:
- uma metade para Arquelao, que compreendia Judéia e Samaria;
- uma quarta parte para Herodes Antipas (daí seu nome de tetrarca), que compreendia Galiléia e Perea;
- uma quarta parte (a última) para Herodes Filipo I, que compreendia Batanea, Traconítide, Gaulanítide e Auranítide. Este era então o marido de sua sobrinha Herodias, que se converteria na concubina oficial de Herodes Antipas quando este repudiou à filha de Aretas, rei do Nabatene. portanto Herodes Filipo era do mesmo modo, devido a este fato, o pai de Salomé II. Considerando que Herodes Filipo II, filho de Cleópatra de Jerusalém, ambos os personagens imaginários, não pôde ser marido desta, quem foi, então, o primeiro cônjuge de Salomé II? Não fica mais que um, Lysanias, a quem também lhe chama Herodes Lysanias.
Tomemos pois em mão o problema dos documentos históricos, e releiamos atentamente a passagem de Lucas: "No décimo quinto ano do império de Tibério César, sendo governador da Judéia Poncio Pilatos, tetrarca da Galiléia Herodes, e Filipo, seu irmão, tetrarca da Iturea e da Traconítide, e Lysanias tetrarca do Abilene, sob o pontificado de Anás e Caifás, foi dirigida a palavra de Deus ao João, filho de Zacarias, no deserto". (Cf. Lucas, 3, 1-2).
Há que reconhecer que quem redigiu esta passagem parece querer provocar controvérsias, porque não deixou de levantá-las durante séculos. E inclusive nas origens! Começando por Luciano de Samosata, o terrível ironista grego, quem nas seitas em leilão se mofa assim: "O 7 do mês em curso, sendo Zeus pritano, Poseidon proedro, Apolo epistato, e Momo, filho da Noite, cartulario, o Sonho propôs o que segue...". Durante muito tempo os exegetas da crítica liberal sustentaram que Lucas, ou quem falasse em seu nome, tinha dado uns nomes ao azar, e que isso não se tinha em pé frente a verificações. Mas não há nada disso, e o Dictionnaire d'archéologie chrétienne de Dom Cabrol e Dom Leclercq nos contribui a prova.
O nome do Abilene procede do da cidade de Abila, hoje Souq-wadi-Barada, situada no lado oriental do Anti-Líbano, no caminho de Beirut à Damasco. Esta cidade gozava de uma certa notoriedade em princípio de nossa era, e foi a capital de uma pequena dinastia local que desempenhou um papel na história do Oriente Médio.
Segundo Flavio Josefo (cf. Antigüidades judaicas, XIII, XV, XVI; XIV, III, VII, XIII; XV, IV; Guerra dos judeus, I, IX, XIII), Ptolomeo, filho de Meneo, emir dos beduínos nômades dos arredores de Damasco, foi o fundador desta família. Viveu por volta do ano 85 antes de nossa era, e se fez muito temível ante os damascenos. Flavio Josefo o considera capaz de todas as maldades, e mais ainda devido ao fato de ser parente de Dionisio, tirano de Trípoli, por isso tinha a quem parecer-se. Não obstante, quando Pompeyo penetrou em Síria, no ano 63 antes de nossa era, assolou totalmente o pequeno reino de Ptolomeo, fez-lhe pagar um enorme resgate, devastou Calcis (hoje Andjor), Heliópolis (hoje Baalbeck), e fez decapitar a seu terrível parente Dionisio de Trípoli.
Ptolomeo conseguiu pagar o exorbitante tributo, e assim conservou seu feudo. Depois da morte trágica de Aristóbulo II (no ano 49 antes de nossa era), Ptolomeo recolheu em seus estados à família deste útlimo, e casou a seu filho Filipion com Alejandra, filha de Aristóbulo II. Logo, ao encontrar a de seu gosto, e lamentando não havê-la conservado para si mesmo, fez assassinar a seu filho Filipion e tomou por esposa. Morreu no ano 40 antes de nossa era, e seu filho Lysanias sucedeu-lhe.
O novo "dinasta" (título que lhe dá Flavio Josefo) sustentou os direitos do Antígono, filho de Aristóbulo II, e para isso se aliou com os partos. Cleópatra do Egito fez que Antonio lhe desse morte no ano 34 antes de nossa era, o que lhe permitiu apoderar-se de uma parte de seus Estados, entre os quais provavelmente se encontravam Calcis e Abila, e possivelmente inclusive também Paneas e a região do lago Ulatha.
Ao defunto Lysanias sucedeu-lhe Zenodoro, chamado às vezes também Zenón, quem, com o título de "eparca", possuiu a Traconítide, a Batanea, o Hauran, e extensos domínios ao redor da Jamnia. De todo modo, e como seu caráter belicoso e saqueador era incorrigível, César Augusto, para castigá-lo por suas invasões, confiscou-lhe a Traconítide, a Batanea e o Hauran, e confiou esses territórios ao Herodes, o Grande. Zenodoro encontrou-se com que era simplesmente proprietário de um território reduzido, sito no país do lago Ulatha, aliás Houleh, com o Paneas e seus arredores imediatos.
A sua morte, este território, assim reduzido pelo rigor romano, voltou para o Herodes, o Grande, cujo favor aumentava sem cessar. Mas a lembrança de seus direitos subsistiu durante muito tempo ainda, já que Flavio Josefo, no ano 4 antes de nossa era, à morte do Herodes, o Grande, menciona que Herodes Filipo recebeu, para a constituição de seu tetrarquia, "uma parte dos domínios de Zenodoro", e mais tarde ainda, no ano 36 de nossa era, menciona no lote de Herodes Agripa I, "a tetrarquia de Lysanias"; logo, no ano 52, Claudio César retira Calcis ao Herodes Agripa I, e lhe dá, em compensação "a Abilene de Lysanias". Mas, como penetrar na Abilene de Lysanias se, no mesmo dia, retira-se ao Calcis?
Outros autores antigos nos falam de Ptolomeo e de Zenodoro, por exemplo Estrabón e Dion Cassius. Mas nada disto justifica como Lucas pôde citar a um Lysanias, tetrarca do Abilene, sob o reinado de Tibério César, se o Lysanias mais próximo tinha morrido no ano 34 antes de nossa era, como já vimos.
Felizmente chegaram até nós, duas inscrições antigas que nos provaram que houve outro Lysanias, mais próximo a nós. A primeira foi descoberta em Nebi-Abil, aliás Abila, por Pococke. A segunda em Souq-wadi-Barada, por R.P. Savignac, em abril de 1912. Estava gravada sobre a parede da montanha, no bordo de um antigo atalho que, procedente da localidade, conduzia a um templo cujas ruínas se vêem ainda na rocha que domina o vale. Vejamo-la na tradução do grego antigo: "À saúde dos senhores Augustos e de toda sua Casa, Nymphaios, filho do Abimmeos, liberto do Tetrarca Lysanias, criou este caminho, construiu o templo e plantou todas as plantações com seus próprios meios. Ao deus Cronos e à Pátria, em testemunho de piedade".
Como vemos, o templo estava dedicado ao Cronos (Saturno), e devia estar rodeado de um bosque sagrado, já que os carvalhos verdes que ainda subsistiam em 1912 continuam considerados pelos indígenas como sagradas (cf. Revue biblique, 1912, nova série, tomo IX, pp. 534-536).
Pelos trabalhos de Dittenberger (cf. Orientis graeci inscriptiones, 606, nota I) se sabe agora que a expressão "senhores Augustus" designava ao imperador e a toda sua família. Não pode tomar-se em conta ao Nero e a sua mãe Agripina, porque no ano 37 a tetrarquia desaparecera, e sob o Claudio não se considerou jamais como Augusta a Messalina; portanto, não ficam mais que Tibério César e a imperatriz Livia, que foi declarada com justiça Augusta depois da morte de Augusto, e que morreu no ano 29. A dedicatória de Nymphaios, "liberto do Tetrarca Lysanias", é por conseguinte anterior ao ano 29 de nossa era e posterior ao ano 14, ano da morte de Augusto. Esta nos prova que um tetrarca reinava então em Abilene e chamava-se Lysanias, evidentemente o segundo deste nome. E simplesmente foi ele o primeiro marido de Salomé II, filha de Herodes Filipo I e de Herodias.
Mas como terei que afiançar a existência de um Herodes Filipo II com o fim de creditar a uma Cleópatra de Jerusalém, diferente à escandalosa Mariamna II, e cortar assim toda prova de uma aliança matrimonial entre os filhos de David e os herodianos, fez-se desaparecer a este Lysanias por ser muito revelador, e deu-se à Salomé II em matrimônio ao imaginário Herodes Filipo II.
Nós, pacientemente, procuramos ao Lysanias dentro do extenso panorama dos membros da dinastia herodiana, e acreditam que o encontramos.
Convém admitir, com efeito, que a existência de um fragmento de território no seio de uma tetrarquia governada por um Herodes, e que entretanto continua propriedade de um dos "dinastas" descendentes de Ptolomeo, filho de Meneo, é mais que improvável. Este enclave tornaria rapidamente, sob um pretexto qualquer, ao tetrarca herodiano proprietário do conjunto. Portanto temos que admitir razoavelmente que o dono desse pequeno feudo interior era, também ele, da família dos Herodes. Uma vez admitido isto, podemos buscá-lo. E provavelmente aqui o temos: "O imperador, depois de havê-los ouvido, levantou a sessão do conselho (...) A Batanea, com a Traconítide, a Auranítide, e uma parte do que se chamou o domínio de Zenodoro, reportavam ao Filipo cem talentos". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XII, XI, 4).
"Esses foram os filhos dos filhos de Herodes. Quanto à Herodias, sua irmã, esta se casou com Herodes (Herodes Filipo I), que Herodes, o Grande, tivera Mariamna (II), a filha do supremo pontífice Simão, e tiveram por filha Salomé (II), depois de cujo nascimento Herodias, desprezando as leis nacionais, e detrás separar-se de seu marido, ainda vivo, casou-se com Herodes (Herodes Antipas), irmão consangüíneo de seu primeiro marido, e que possuía a tetrarquia da Galiléia. Sua filha Salomé (II) casou-se com Filipo, filho de Herodes, tetrarca de Traconítide. E como morreu sem deixar filhos, voltou a casar-se, desta vez com Aristóbulo, filho de Herodes irmão de Agripa. dele teve três filhos: Herodes, Agripa e Aristóbulo". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, V, 4).
Recapitulemos sobre tudo isto: "Sua filha Salomé se casou com Filipo, filho de Herodes, tetrarca de Traconítide...". Isto explica tudo! O tetrarca de Traconítide é Herodes Filipo I, primeiro marido de Herodias, e ambos tiveram uma filha, Salomé II, antes de que tal Herodias o abandonasse para viver com seu meio-irmão Herodes Antipas. Mas como se viu anteriormente, a má construção da frase faz acreditar que Salomé II se casou com o tetrarca, quer dizer, com seu próprio pai!
Agora bem, além de Salomé II, esse mesmo tetrarca de Traconítide teve outro filho, chamado também Filipo, e como também era um Herodes, trata-se do verdadeiro Herodes Filipo II, e este não foi imaginário, nem filho da imaginária Cleópatra de Jerusalém. Como tinha por pai ao mesmo que engendrasse à Salomé II, ainda admitindo que fossem de mães diferentes (coisa muito possível, e inclusive muito comum naquela época), Salomé II era meio-irmã dela, e ele era seu marido... Coisa que era deste modo muito corrente naquela época, e não só entre os soberanos egípcios. E ele é Herodes Lysanias tetrarca de Abilene. Quando morre, deixando Salomé II viúva e sem filhos, ela será durante um tempo a amiga de Jesus, segundo precisa o terrível Evangelho segundo Tomás, (130) e mais tarde contrairá segundas núpcias, como se há dito antes, com Aristóbulo III, a quem Nero converterá em rei de Armênia. (131)
Mas como pôde Lucas saber da existência desse filho de Herodes Filipo I, cujo minúsculo feudo inseria-se na tetrarquia de seu pai, e que foi um personagem tão apagado que Flavio Josefo, que se informava tão abundantemente nas Histórias do Ptolomeo do Ascalón e do Nicolas de Damasco, biógrafos da dinastia herodiana, nem sequer o menciona? Pois simplesmente por Saulo-Paulo, de quem ele era o secretário e o companheiro de confiança. E isto constitui uma prova mais de que este último não era absolutamente um judeu obscuro, deportado ou nascido em Tarso, a não ser a mesma pessoa que o príncipe herodiano Saúl, irmão de Costobaro, e neto, por parte de sua mãe Cypros II, do rei Herodes, o Grande, e cuja verdadeira existência já analisamos em um precedente volume. (132) Porque o judeu obscuro não conheceria todos os membros desta família, tão numerosa, e de filiações extremamente complicadas, enquanto que o príncipe herodiano não poderia ignorar a nenhum de seus primos. E essa frase terrivelmente reveladora de Lucas (III, 1-2), precisa-nos além disso a data exata em que começou a revolução anti-romana que Jesus devia comandar pessoalmente, fazendo pregar previamente a guerra Santa por seu primo João, o Batista, ou seja, "o décimo quinto ano do reinado de Tibério César", ou seja no ano 28 de nossa era. Esta revolução, provavelmente esporádica, caminho pela retirada à Fenícia, por desigualdades, pela retirada aos maquis da Alta Galiléia ou à solidão desértica da selvagem Judéia, para terminar na fuga à Samaria, durou de fato uns seis anos aproximadamente. (133)
Permanece um testemunho sobre a virulência da citada armas lançadas por Batista, de Flavio Josefo: "As pessoas reuniram-se em torno dele, porque estavam muito exaltadas lhe ouvindo falar. Herodes (Antipas) temia que semelhante faculdade de persuasão não suscitasse uma revolta, já que a multidão parecia disposta a seguir em tudo os conselhos deste homem ..." (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, V, 118).
Como se vê, nos discursos reais de Batista não se tratava de prédicas morais ou devocionais. Tratava-se clara e sinceramente de varrer aos ocupantes romanos e a seus homens viciados, os reyezuelos herodianos. Porque as predicações religiosas não podiam suscitar a desconfiança, e menos a ira de Herodes Antipas, antes ao contrário. Não podia ser o mesmo no caso de discursos incendiários de caráter político.


Os segredos do Gólgota

Tranqüilize-os, Oh Mistos!
Seu deus ressuscitou
Suas penas e seus sofrimentos
Assegurarão sua salvação ...

JULIUS FORMICUS MATERNUS De Errore: XVIII, ritual do deus Mitra

22 - Jesus-bar-Juda

Em todas partes se viu a povos arrastados por um só milagre falso; e Jesus Cristo não pôde fazer nada do povo judeu, com uma infinidade de milagres verdadeiros?... Esse milagre, o da incredulidade dos judeus, é o que convém explicar !
DIDEROT, Pensées philosophiques, addition


Jesus-bar-Juda, aliás Jesus da Galiléia, mais tarde Jesus de Nazaré, é um nome que vemos aparecer no cânone neotestamentário. No Antigo Testamento o voltamos a encontrar, evidentemente, numerosas vezes, mas sob a forma de Josué, já que Jesus é Josué, quão mesmo Josué é também Jesus. Em hebreu esse nome se pronuncia Ieoshuah, e se escreve exatamente assim: iod-he-waw-shin-ain, e não iod-he-shin-waw-he, como alguns místicos cristãos do século XVII quereriam nos fazer acreditar, seguidos mais adiante pelos martinistas contemporâneos e os seguidores do "professor" Philippe de Lyon. Jamais, e insistimos neste termo, jamais um rabino, cabalista ou não, permitir-se-ia semelhante sacrilégio: romper o NOME SAGRADO introduzindo nele uma quinta letra! E o que é mais, modificar assim seu valor numeral, quer dizer, 26, fazendo-o passar a 326. De fato, foi por ignorância no campo teúrgico pelo que nossos modificadores do Tetragrama divino introduziram-no em seu centro. Em cabala prática, a letra shin significava no esquema operativo, e no centro do tetragrama circular, muito diferente, mas isso o mundo não sabe.
Em uma obra precedente consagramos um capítulo a esses famosos "Anos obscuros de Jesus".
Contribuímos a prova de que, a princípio de nossa era, quando não contava ainda mais que vinte e três anos aproximadamente, houve uma insurreição dirigida por ele que implicou a tomada de Jericó, e, ao abandonar essa cidade, execuções de prisioneiros ou de reféns.
Por outra parte, o procedimento chamado do carbono 14 não nos proporcionou a não ser uma data média sobre o momento da ocultação clandestinamente dos manuscritos de Qumran, o ano 34 de nossa era, mas o período se estende antes e depois, em uma "franja" de uns cinqüenta anos. E isto confirma o que recordávamos antes.
Por outro lado, quando Jesus chama Simão-Pedro barjonna (em acadio: anarquista, fora da lei), este pequeno detalhe sublinha que o chamado Simão-Pedro está envolto faz tempo que (como precisam seus outros apelidos: canaíta, zelote) em uma luta a mão armada contra os ocupantes romanos e contra os saduceus, seus "colaboradores".
Este período dos "anos obscuros de Jesus" seria o mais violento. Primeiro porque ele era jovem, quão mesmo seus irmãos e discípulos, logo porque seu pai Judas da Gamala e seu tio Zacarías já não estavam ali para moderar a toda essa juventude ardente.
Diversas provas disso subsistem ao contrário. Nem Suetonio em sua Vida dos Doze Césares, nem Tácito em suas Histórias ou em seus Annales nos contam nada referente à Judéia nesse período. Os relatos se interrompem bruscamente, ou aparecem anormalmente cortados em comparação com os capítulos precedentes ou seguintes. À olhos vistos os ciumentos monges copistas passaram por ali.
Mas apesar de tudo, subsiste uma prova de sua intervenção, uma última prova; encontra-se nas Antigüidades judaicas de Flavio Josefo: "Para o mesmo tempo, sobreveio na Judéia uma grande comoção, e um grande escândalo em Roma". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, IV, manuscrito grego).
Seria inútil procurar outros detalhes no que fica de capítulo; a censura dos monges copistas se exerceu de forma total. Mas a apertada comparação com os textos correspondentes de Tácito em seus Annales (libero I, cap. LXXXV) demonstra que se trata do período coberto por dito livro II, quer dizer, do ano 16 de nossa era (769 de Roma) ao ano 19 da mesma (772 de Roma). E mais concretamente essa grande comoção que sobreveio a Judéia teve lugar no ano 19 de nossa era, sendo cônsules em Roma Julio Silano e Norbano Flacco, e procurador na Judéia Valerio Grato. Jesus estava em sua melhor idade, e naquele lugar. Mas não saberemos jamais o que aconteceu ali. Seria muito grave nos dizer isso já que permitiria que a verdade subsistisse. Em todo caso, foi bastante violento para justificar o decreto de Tibério César expulsando aquele ano a todos os judeu da Itália... E se tivéssemos alguma dúvida, bastar-nos-ia relendo o próprio texto dos evangelhos canônicos e compará-los desde esta perspectiva que se desenha agora pouco a pouco.
Tomemos, pois, ao João. Depois do célebre prólogo no que o texto que falsamente lhe é atribuído identifica ao Jesus e o Verbo divino, tomando essas afirmações de textos pagãos mais antigos, vemos aparecer ao Jesus, na história do cristianismo, no instante mesmo de seu batismo pelo João Batista, quando fazia já longo tempo que tinha chegado à idade adulta. De seu nascimento milagroso, de sua juventude, João não sabe nada ou não nos conta nada (op. cit., I, 29).
Tomemos agora ao Lucas. Este faz nascer ao Jesus no ano 6 de nossa era, quando teve lugar o censo de Quirino, quer dizer, doze anos depois da morte de Herodes, o Grande. Não há nada dos reis magos, da matança dos inocentes, etc. Quanto à fuga ao Egito, não nos diz nenhuma palavra disso. Simplesmente que "o menino (Jesus) crescia e se robustecia no espírito e vivia nos desertos até o dia de sua manifestação ao Israel" (op. cit., 1, 80). Logo voltamos imediatamente para episódio do censo, o que é de todo incoerente, assistimos a seu exame catequístico pelos doutores da Lei, passa-se rapidamente sobre sua infância e nos encontramos, também aqui, frente ao batismo de Jesus, sem que nos tenha contado nada de sua adolescência ou de sua juventude.
Passemos ao Marcos. Aqui, quão mesmo em João, encontramo-nos bruscamente em presença de um Jesus que vai da Galiléia à Judéia para fazer-se batizar pelo João, o Batista. Como se trata de um "batismo de penitência em remissão dos pecados" (Lucas, 3,3), terá que supor que Jesus não tinha a consciência tranqüila e que tinha pecados a perdoar. Mas de nascimento milagroso, dos reis magos, da matança dos inocentes, da fuga ao Egito, Marcos não sabe nada, ou ao menos não nos informa nada.
Fica Mateus. Ele é quem nos conta tudo concernente à maravilhosa fecundação de Maria, o milagroso natal, o episódio dos reis magos, a matança dos inocentes, a fuga ao Egito, etc. Mas, não obstante, faz nascer ao Jesus no ano 6 antes de nossa era, em vida ainda de Herodes O Jesus do Mateus conta, pois, doze anos quando o do Lucas nasce! Isto não tem importância, o problema não é de uma só incoerência. Mas depois da fuga ao Egito, também Mateus nos põe em presença de um Jesus adulto, que acode ao João para que lhe batize.
Assim, nenhum evangelista canônico nos diz o que fez Jesus desde sua primeira infância até sua maturidade (trinta anos, segundo uns, e cinqüenta segundo São Irineu). Ignoramos a sorte da santa família durante os pesados e perigosos anos nos que aconteceram as indomáveis revoluções judias e as implacáveis repressões romanas. Agora sabemos o porquê desse silêncio, tendo em conta o que Flavio Josefo nos dá a entender, comparado cuidadosamente com Tácito. Da juventude guerreira de Jesus vale mais não dizer uma palavra.
23-Jesus-Barrabás
A verdade é sempre estranha, mais estranha que a ficção ...
LORDE BYRON, Dom João, XIV
Os evangelhos canônicos nos contam o episódio da substituição de Jesus por um amotinador que fora encarcerado por um assassinato que cometera no curso de uma rebelião, e que por tal motivo também ele fora condenado à crucificação.
"Era costume que o procurador, com ocasião da festa, desse à multidão a liberdade de um detento, que pedissem. Havia então um prisioneiro famoso chamado Barrabás. Estando, pois, reunidos, disse-lhes Pilatos: 'A quem querem que lhes solte? A Barrabás ou ao Jesus, o chamado Messias? Pois sabia que por inveja o entregaram. (...) Eles responderam: 'Ao Barrabás!'..." (Mateus, 27, 15-18, 21).
Alguns detalhes complementares, inclusive com algumas diferenças muito ligeiras, podemos encontrá-los no Marcos (15, 6 a 15), no Lucas (23, 17-19), e no João (18, 39-40). Mas nenhum versículo contribui com contradição alguma a breve narração feita pelo Mateus.
Os manuscritos iniciais que possuímos (e que, recordemo-lo, remontam-se todos ao século IV, como mínimo) transcrevem esse nome de quatro maneiras diferentes: Varaba, Barabas, Barrabás e Bar-Rabban.
Desde onde estas diversas significações:
1 - Bar-rabba ................. Filho do doutor
2 - Bar-rabban ............... Filho de nosso doutor
3 - Bar-Abba .................. Filho do Pai
4 - Bar-Abban ................ Filho de nosso Pai
5 - Bar-Abba .................. Filho de Abba
Observaremos, antes que nada, que não se sabe nenhuma outra coisa deste nome, salvo que, segundo Mateus, era um prisioneiro famoso, segundo Marcos um sedicioso que cometera um assassinato durante um motim, Lucas precisa que esse assassinato fora cometido "na cidade", quer dizer, em Jesus, e João se limita a qualificar de bandido, termo que, com o de "galileu", designava então aos insurretos zelotes em geral.
O nome próprio de Jesus, que Orígenes afirma que era o de Barrabás, vem testemunhado por alguns dos manuscritos mais antigos, como:
a) o Codex Korideth (séculos VII-IX);
b) o Groupe do Minuscules, publicado pelo K. Lake em 1902;
c) o palimpsesto do monastério de Santa Catalina no Monte Sinaí, encontrado pelo Lewis e Gibson, e que se remontaria ao século IV.
Como observa muito acertadamente R.P. Lucien Deiss em sua obra Synopse des Evangiles, é impossível imaginar que ninguém se atreveu a inventar, ulteriormente, semelhante identidade de nomes próprios. Quanto mais que o grande Orígenes, que morreu no ano 254, assegurou, como já dissemos antes, que tal nome figurava em certos manuscritos que obravam em seu poder, com o que deste modo nos contribui a prova de que, já no século III, existiam documentos mais antigos que os três que aqui citamos, e que aplicavam o nome de Jesus a esse misterioso Barrabás.
Daniel-Rops, examinando essa possibilidade de proceder à substituição legal de um condenado por outro por ocasião da Páscoa judia, diz o seguinte no Jesus em seu tempo: "discutiu-se muito sobre esse direito de graça que o povo podia reclamar, e que o procurador, segundo o evangelho, teria possuído. A graça era, em Israel, muito estranha; os reis não dispunham dela, e em troca tinham o poder de aumentar uma pena que eles julgassem insuficiente. E, com efeito, a remissão das penas não é conciliável com o princípio mesmo da lei mosaica, que vê na falta uma ofensa a Deus. Em Roma só podia apelar-se aos Comícios em caso de sentença capital, mas não se vê que o povo tomase a iniciativa de pedir a graça sem petição prévia do condenado. Agora bem, um papiro que data do ano 86 ou 88 de nossa era confirmou o episódio evangélico ao mostrar a um prefeito do Egito perdoando a um culpado "por causa da multidão". O fundamento jurídico do ato de graça importa pouco, tanto se se trata de uma forma da abolitio, anistia que os imperadores promulgavam por ocasião de suas vitórias ou de certas festas, como de uma indulgentia, direito de graça que estava na mão da pessoa do imperador, e que este fizesse extensivo a seu representante. Neste caso parece que se tratou de uma medida excepcional, resultante de uns hábitos locais dos quais nós não estamos informados..." (Cf. Daniel-Rops, Jésus et su temps, X, "O processo de Jesus").
Toda esta longa exposição, verbosa e vaga, em realidade está destinada exclusivamente a nos fazer admitir uma inverossimilhança histórica, e vamos demonstrar o porque, em suas obras, Flavio Josefo não faz alusão nenhuma só vez a semelhante costume, ele que era tão prolixo no que concernia às tradições judias.
E, em primeiro lugar por que Daniel-Rops não nos dá as referências exatas desse papiro? Pois simplesmente porque não lhe poderia alegar como argumento em apoio da substituição de Jesus por Barrabás, e nosso autor não quer que o leitor possa lhe contradizer seu falacioso argumento.
É que tal documento não é outro que o papiro de Florência nº 50, que data do ano 85 de nossa era, e que nos proporciona um exemplo de graça concedida a um acusado por um magistrado romano a pedido da multidão. Contém, com efeito, o processo verbal de um julgamento ditado pelo G. Septimius Vegetus, governador do Egito, em favor de um tal Fibion, quem, por sua própria autoridade, e estimando-se acima da lei, tinha encarcerado a um homem honorável e a sua esposa, que eram seus devedores. E o governador declarou então: "Mereceria ser flagelado! Mas te entregarei ao povo" (Cf. A. Deissmann; Licht vom Osten, de Neue Testament und die neu entdeckten Texte der hellenistisch-römischen Welt, Tubinga, 1908, pp. 193-194).
É óbvio que o chamado Fibion merecia a flagelação legal por tal crime de seqüestro arbitrário, mas se era civis romanus era impossível, já que a lex Valeria do ano 509 antes de nossa era proibia golpear a um cidadão romano sem uma decisão popular prévia e decisiva, e a lex Porcia, do ano 248, também de antes de nossa era, proibia fazer uso em nenhum caso dos açoites lictoriais.
A sentença do governador Septimius Vegetus, que declarava ter em conta a decisão popular, aplicava aqui, portanto, a lex Valeria do ano 509 a.C., e isso demonstra irrefutavelmente que o tal Fibion era um civis romanus, coisa que a audácia de seu ato já fazia presumir.
Neste caso o episódio em questão não pode, pois, levar-se em conta para justificar a chamada de Pilatos solicitando a opinião do povo judeu, pois é evidente que Jesus não é cidadão romano, e muito mais tarde, o imperador Juliano, em sua carta ao Cirilo, bispo de Alexandria e antigo seu condiscípulo nas escolas de Atenas, declararia que: "O homem que foi crucificado pelo Pôncio Pilatos era servo de César, e vamos demonstrar..." (Cf. Cirilo da Alexandria, Contra Julianum).
De fato, o termo exato era escravo de César (servur caesaris), alusão ao provável nascimento de Jesus em Séforis e à deportação da população de tal cidade pelo Varus. Mas voltemos para problema da autenticidade de tal substituição.
O Dictionnaire da Bible, do F. Vigouroux, sacerdote de Saint-Sulpice (tomo I, 2ª. Parte, 1926, Letouzey & Ané, Imprimatur inicial de 26 de outubro de 1891), diz-nos o seguinte: "Esse costume de dar a liberdade a um prisioneiro por ocasião das festas da Páscoa não aparece mencionada em nenhuma outra parte, nem nas Sagradas Escrituras nem no Talmud (...) Costumes similares existiam entre os romanos durante os dias das Lectisternes, e entre os gregos durante as solenidades do Bacchus Eleuthereus".
Entre os gregos, Baco era o mesmo deus que Dionisos, quem levava o apelido de liberador (liber), dado que a embriaguez possui, com efeito, o dom de liberar das preocupações e de exagerar as paixões habitualmente refreadas.
Quanto às Lectisternes, tratava-se de uma cerimônia propiciatória decidida em um período de grandes calamidades públicas, e celebrada em Roma e nas grandes cidades do Império para obter o afastamento de tais provas. Aquele dia se oferecia um banquete ritual aos principais deuses de Roma, suas efígies apareciam reclinadas sobre leitos para comer na mesma sala em que se desenvolvia esse autêntico "jantar dos Invisíveis". Daí o furor de Saulo-Paulo ante a participação de seus discípulos nesses ágapes tipicamente pagãos: "Porque se algum vir , que tem ciência, sentado à mesa em um santuário de ídolos, na fraqueza de sua consciência, não se acreditará induzido a comer as carnes sacrificadas aos ídolos?...". (Cf. I Epístola aos Corintios, 8, 10).
Tendo em conta o que precede, fica excluída a possibilidade de que semelhante festa pudesse jamais haver-se celebrado na cidade Santa de Jerusalém, e menos ainda no Templo aonde residia a Shekinah, "a Presença divina". Isso suscitaria tais sublevações por parte dos judeus, que a nenhum procurador romano lhe passasse nem sequer pela cabeça tal idéia. Recorde-se que Pilatos, depois de penetrar de noite na cidadela Antonia, em Jerusalém, as insígnias das legiões (que não terá que confundir com suas águias) que foram a acampar ali, teve que as fazer sair do lugar ante a iminente rebelião, já que os sucessivos imperadores deram ordem de respeitar na Judéia os princípios religiosos da população.
Pois bem, as insígnias legionárias ostentavam, ou o busto dos imperadores, ou símbolos animais: andorinha, javali, águia, etc. além disso, nos acampamentos lhes rendia um culto público. Coisas, todas elas, que a lei de Moisés reprovava.
Por outra parte, se em Roma podia exercer o direito da graça, isto tinha que acontecer antes de ser pronunciada a sentença. Depois, não era costume desmenti-la, pois isso comprometeria a falibilidade da Justiça. Não ficava, pois, ao condenado mais que a sorte de encontrar-se pelo caminho para sua execução a uma vestal (estas possuíam o privilégio de conceder a graça ipso facto a todo condenado com o que se cruzassem pelo caminho), ou recorrer a indulgentia imperial. Por isso Suetonio nos conta que Nero, a quem horrorizava o derramamento de sangue, um dia, ao princípio de seu reinado, no momento de referendar a condenação a morte de um criminoso notório, deixou o "estilo" com o que se dispunha a assinar e murmurou abatido: "Ai! por que me ensinariam a escrever?..." (Cf. Suetonio, Vida dos Doze Césares, Nero, 10). E Tácito observaria, além disso, que: "Quando não pode evitar uma condenação, adiava tanto, que o acusado tem tempo de morrer de velho..." (Cf. Tácito, Annales, XVIII, 33).
Tudo isso demonstra claramente que, uma vez pronunciada a sentença, não se acostumava a modificá-la.
Fica o conceito de graça judicial no Israel antigo. Este não existia ali absolutamente, e unicamente umas revelações novas podiam justificar a suspensão provisória de uma sentença capital, e eventualmente uma revisão. Esse caráter definitivo da condenação fora precisado pelo profeta Isaías:
Se se fizer graça ao ímpio, ele não aprende a justiça;
na terra corrompe a retidão,
não repara na majestade de Yavé ...
(Isaías, 26, 10)
Desde onde a hostilidade geral dos Mestres da Torah ante a pena de morte, porque é um castigo irreversível. Estava acostumado a afirmar-se que um Sanedrín que pronunciasse onze condenações de morte em sete anos era uma assembléia de assassinos. E Rabbi Eleazar-Ben-Azaria chegava ainda mais longe: para sua escola, onze condenações à pena capital em setenta anos justificavam já esse apelativo de "tribunal assassino". Outros, como Rabbi Tarphon e Rabbi Akiba eram contrários totalmente à pena de morte (cf. Talmud, IV, Nezikim, 5 Makkoth).
Quer dizer, que toda essa história de uma substituição legal de um culpado por outro, de um condenado a morte por assassinato no curso de uma revolta, perdoado contrariamente à todos os costumes, tanto judias como romanas, por um procurador tão rude e desumano como parece que estava acostumado a ser Pôncio Pilatos, toda essa história não constitui a não ser uma mentira mais dos escribas anônimos dos séculos IV e V, anti-semitas patentes e aduladores interessados dos novos imperadores cristãos. Não obstante, ainda fica por ver outra misteriosa substituição, problema que logo vamos abordar.
Porque, que prisioneiro famoso podia ter sido encarcerado por aqueles dias, além de Jesus? Ninguém conhece Barrabás, fora dos textos evangélicos do século IV. Flavio Josefo, o Talmud de Babilônia, o Talmud de Jerusalém, todos ignoram dito personagem. Eusebio da Cesaréia (falecido no ano 340), ao redigir sua História eclesiástica, uma obra enorme, não conhece Barrabás. Sim que cita a um tal Agapios, quem figurava entre os mártires da Palestina no curso da perseguição dos anos 306-307, e a quem a graça imperial preferiu frente a um escravo obscuro que tinha assassinado a seu amo. E o texto nos diz que foi "julgado digno de piedade e benevolência, quase da mesma maneira que o famoso Barrabás em tempos do Salvador..." (Cf. op. cit., Des martyribus Palestinae, VI, 5). Mas existem duas resenhas diferentes desse texto, uma curta e uma longa, a primeira em grego, a segunda em siríaco. "As relações entre as duas resenhas são difíceis de determinar...", diz-nos o P. Mondésert, S.J., e é evidente. Não estamos absolutamente convencidos de que todo o conjunto proceda do Eusebio da Cesaréia. Porque só nesse texto indeciso aparece uma alusão à Barrabás, e isso é algo muito surpreendente, tendo em conta a importância do resto de sua obra, onde não faltaram as ocasiões para podê-lo citar.
Para nós, Jesus e Jesus-Barrabás não são a não ser a mesma pessoa, e essa substituição não se imaginou até muito mais tarde, para fazer desaparecer o papel de outro misterioso bloco. Nós citamos ao Simão de Cirene, quem substituiu em realidade ao Jesus e foi crucificado em seu lugar, seis semanas antes da Páscoa, e a morte, desta vez bem real, deste último.
Quando o leitor chegar ao próximo capítulo, intitulado O crime do Templo, poderá constatar que o "bandoleiro famoso, autor de um assassinato no curso de uma rebelião na cidade" não pôde ser outro que Jesus, pois não havia nenhum mais.
24- O crime do Templo
Há homens nos que a vergonha se ceva além da tumba é o primeiro autor da superstição judaica ...
FABIUS QUINTILIANUS, De institutione oratoria
Nos textos evangélicos aparece citado um documento que expõe todo o problema referente à autenticidade do relato tradicional sobre a crucificação de Jesus. Trata-se do texto da sentença abreviada que figurava sobre a cruz, e que se atribui ao próprio Pilatos. Coisa em si já bastante duvidosa, pois dificilmente imaginamos ao procurador de Roma na Judéia fazendo o trabalho dos auxiliarii e aplicando-se, inclusive de ser necessário com a língua fora, em riscar sobre uma prancha de madeira o motivo da condenação de um rebelde judeu, no que concorria além disso o agravante de ser também um bandoleiro. Para este fim tinha a seus escribas, e seria um deles o que se ocuparia do titulus legal.
A inautenticidade de tal texto vem sublinhada pelo fato de que os evangelhos sinóticos e o do João não estão totalmente de acordo sobre ele. Vejamos as variantes:
- Mateus: "Eis aqui ao rei dos judeus" (27, 37),
- Marcos: "O rei dos judeus" (15, 27),
- Lucas: "Este é o rei dos judeus" (23, 38,
- João: "Jesus de Nazaré, rei dos judeus" (19, 19).
Os evangelhos iniciais que chegaram até nós estão redigidos em grego. Não é preciso ser um grande letrado para compreender que, traduzidas ao latim, é impossível que essas quatro inscrições diferentes dêem invariavelmente "I.N.R.I.".
Mas foi esse o texto que figurou na cabeça da cruz de Jesus? Isso é algo perfeitamente duvidoso, porque:
- não é possível que Pilatos dissesse que Jesus era originário de Nazaré, já que tal localidade não existia naquela época, pois a criaram (trocando de nome a um lugar dado, para satisfazer aos peregrinos iluminados) para o século VIII. O texto latino da Vulgata de São Jerônimo, texto oficial da igreja católica, tampouco o diz. Qualifica ao Jesus de nazareus, quer dizer, de nazareno, ou, o que é o mesmo, "consagrado ao Senhor", em hebreu nazir. As leis do nazareato estão precisadas no Livro dos Números (6, 2);
- Por outra parte, Pilatos não pôde dar este qualificativo ao Jesus, já que:
a) evidentemente, este não era um motivo de condenação aos olhos da lei romana, era algo que não lhe podia reprovar ao Jesus;
b) Jesus jamais foi nazareno, ou não o era desde fazia já bastante tempo, porque tal consagração lhe proibia beber vinho, comer carne, aproximar-se das pessoas ritualmente impuras aos olhos da lei judia, e, sobretudo, aproximar-se de um cadáver ou tocá-lo. Coisas todas elas das que ele nunca se privou. Pelos citados motivos, e com perdão dos místicos mais heterodoxos, Jesus não foi jamais nazareno no curso de sua vida pública.
Por conseguinte, se não podia ter sido originário de Nazaré, se não era nazareno, o texto da condenação atribuído ao Pilatos é, pois, um texto mendaz. Os escribas anônimos dos séculos IV e V, ao redigir, por ordem, uns evangelhos oportunistas, colocaram este texto em substituição de um titulus real, mas infamante, que justificava o que Jesus tivesse sido crucificado cabeça acima, como os malfeitores e os escravos, e não cabeça abaixo, como acontecia com os rebeldes, o que tivesse sido seu caso se só lhe tivesse acusado de qualificar-se de "rei dos judeus".
Também é provável que a pancarta que acompanhava a toda execução na cruz tivesse ido primeiro pendurada do pescoço do condenado, quem a levaria assim do lugar de sua detenção ao de sua execução. Seus braços estariam então estendidos lateralmente e atados à madeira transversal, que repousava sobre sua nuca à maneira de um jugo. Isso era tudo o que levava o condenado, já que o poste vertical de tal cruz permanecia fincado no chão, na convocação habitual das crucificações.
Esta formalidade legal justificava o que se dissesse que o desgraçado "levou sua cruz", como precisam os autores antigos (Séneca, Cicerón, Plutarco, etc.), mas é que se tinha em conta que era impossível que o condenado carregasse com a totalidade, que representava um peso de uns setenta quilogramas, às vezes depois inclusive de uma terrível flagelação que minava suas últimas forças (a maioria das vezes, e com o fim de evitar tal risco, esta flagelação lhe infligia no lugar mesmo da crucificação).
Essa travessa ao que estavam atados os braços do futuro crucificado impedia, além disso, qualquer intento de evasão, já que não permitia uma fuga rápida pelas estreitas ruelas transversais, embora lhe facilitasse tal fuga, e lhe dificultava deste modo o procurar refúgio em alguma moradia amiga, dado que a abertura da porta não permitia uma penetração fácil. Além disso, expor ao condenado às injúrias, bofetadas, escarros, pedradas e projeção de imundícies por parte de seus adversários da véspera; e o mundo antigo não sabia o que era a piedade.
Voltando para os verdadeiros motivos da condenação de Jesus, é evidente que estes foram muito numerosos. Está, sem dúvida, o fato de que se dissesse "rei dos judeus", coisa que se acrescenta às atividades zelotes e a seus habituais atos de violência, aos pagamentos de um dízimo muito parecido a nosso moderno racket, e inclusive ao banditismo puro e simples. Não condenemos aos zelotes sem compreendê-los. Um guerrilheiro come também ao menos uma vez ao dia, e o dinheiro foi sempre o nervo da guerra. E aqui vamos por fim a abordar o estudo desse famoso crime, cometido no curso de uma rebelião pelo misterioso Jesus-Barrabás, "bandoleiro famoso", encarcerado com outros sediciosos (cf. Marcos, 15, 7).
Agora sabemos (veja o capítulo anterior) que Jesus e Barrabás são um mesmo personagem. Não percamos, pois, nosso tempo epilogando de novo este problema.
Quando nosso chefe zelote faz sua entrada triunfal em Jerusalém, o famoso dia chamado "de Ramos", montado sobre um asno que caminhava ao lado de sua mãe asna, o fato nos parece já suspeito. Com efeito, a fim de não manchar a cidade Santa, cavalos, asnos, cães, cordeiros, cabras, etc., não podiam circular por dentro dela. Não esqueçamos que o verdadeiro nome da cidade se mantinha em segredo, e não se podia pronunciar: Kedesha, "a Santa". Se dizia simplesmente Ierushalaim (Jerusalém), do mesmo modo que se dizia Adonai (Senhor), em lugar do nome impronunciável do Iaweh, que era o tetragrama divino.
Portanto, os animais destinados ao sacrifício penetravam na cidade pela porta do Norte, passavam por diante da cidadela Antonia e chegavam assim rapidamente ao recinto de espera do interior do Templo. Mas passemos por cima esses enganos de nossos copistas, e vejamos como os jovens judeus aclamavam ao Jesus como o esperado libertador:
"Hosanna ao filho do David! Bendito o que vem em nome do Senhor! Hosanna nas alturas! ..." (Cf. Mateus, 21, 9). O escriba se confunde com aleluia ...
Porque hosanna não significa, nem muito menos, "louvado seja", a não ser "nos libere", o que implica que nossos jovens pertenciam, ao menos ideologicamente, à corrente dos zelotes. E isso demonstra que o chamado episódio foi manipulado.
Então dispuseram diante de Jesus, pelo caminho, e à medida que ele avançava, inumeráveis vestimentas, e as multidões cortavam ramos de Palmas e de árvores diversos e as dispunham a seu passo. Não é difícil imaginar que todo esse grupo que acompanhava ao Jesus e que, desde Jericó, recebia a parte de aclamações entusiastas que lhe correspondia, estava composto por partidários da resistência judia contra Roma. Eram militantes zelotes...
Transcorreram alguns dias. Jesus fora detido, e outra multidão (mas, que não era a mesma...) reclamou apaixonadamente ao procurador romano que lhe dessem morte, por blasfemo e sacrílego.
O que era, então, o que tinha acontecido? A que veio semelhante mudança de atitude?
Daniel-Rops, em Jesus em seu tempo, atribui-o à variabilidade popular. Isto poderia ser certo no caso de uma multidão corrente, mas não no de uma massa de seguidores com os olhos fixos -e com que violência!- em uma ideologia muito precisa, elaborada dotrinalmente. Voltemos, pois, aos evangelistas...
"(Jesus) Estando sentado em frente do gazolifácio, observava como a multidão ia jogando moedas no tesouro, e muitos ricos jogavam muitas... (Cf. Marcos, 12, 41).
E não ignora a existência do famoso "tesouro do Templo", o Korban, alimentado tanto pelas doações como pelos depósitos provisórios, já que numerosos judeus ricos preferiam confiar sua fortuna a essa cidadela religiosa, antes que perdê-la em sua moradia em mãos de malfeitores.
Além disso, o Templo abrigava o arsenal dos levitas encarregados de sua defesa e da polícia de seus recintos: arcos, flechas, lanças, escudos, espadas, fundas, etc., tudo estava ali. E terá que reconhecer que o dinheiro e as armas constituem a riqueza essencial de todo movimento revolucionário.
Indubitavelmente, nos dizem com freqüência que do que se tratava era de expulsar o mercantilismo dos "mercados do Templo". Mas por que atacou Jesus igualmente aos desafortunados peregrinos que, ao chegar a Jerusalém e ver-se objeto de tal violência, não entenderam absolutamente nada? Porque isso é o que aconteceu, se dermos crédito aos evangelhos:
"Entrou Jesus no Templo e arrojou dali a quantos vendiam e compravam nele, e derrubou as mesas dos cambistas e os assentos dos vendedores de pombas..." (Mateus, 21, 12; Marcos, 11, 15; Lucas, 19, 45; João, 2, 13-17).
De fato, tudo estava já preparado, minuciosamente, com antecedência. Jesus não atirou ele sozinho todas as bancas dos cambistas e derrubou a todos os mercados que esperavam, na sala de espera, a venda de seus animais. Porque não era dentro do Templo onde estavam expostos os animais, pois semelhante coisa era impensável. Além disso, não podiam prescindir desses fornecedores, porque sem eles, sem suas vendas, faziam-se impossíveis as oferendas de sacrifícios. E se não se tratava mais que de reprimir esses sacrifícios, não era necessário agredir a esses desgraçados peregrinos que não deveram compreender nada de tal escândalo. Fazia séculos e séculos que a Lei judia era assim, e se terei que modificá-la, o certo é que não tinha que sê-lo entregando-se a semelhantes atos de violência.
Assim, esta briga fora organizada de antemão. E se desencadeou depois de umas palavras de Jesus. A gente pode perguntar-se, tendo em conta tudo o que antecede, se todo o dinheiro assim dispersado pelo chão, essas peças de ouro e prata rodando a centenas daqui para lá, foram recuperadas a seguir por seus proprietários legítimos. Porque sabemos que o "tesoureiro" era um tal Judas Iscariotes (João, 13, 29), que roubava na bolsa quanto se metia nela (João, 12, 6), porque "era ladrão" (id.), e mais tendo em conta que seu nome significa "homem criminal". E apesar de todos esses inconvenientes, Jesus o conserva como tesoureiro. Assombroso! Nesse ataque ao Templo, nesse escândalo, o leitor reconhecerá facilmente a técnica habitual dos trapaceiros modernos, extorquindo aos proprietários dos salões noturnos, ou saqueando seus estabelecimentos se se mostrarem recalcitrantes. Não há nada novo sob o sol.
Entretanto, é provável que o estrategista do Templo que estava ao mando da tropa levítica, avisado dessa revolta a mão armada, enviasse imediatamente um destacamento armado para restabelecer a ordem. E que, paralelamente, da próxima cidadela Antonia, que dominava o Templo, a centúria legionária "de dia", alertada por suas vigias, fosse a cortar a retirada ao Jesus e a seus homens. E seria assim como nosso Barrabás e alguns de seus cúmplices cairiam em mãos dos romanos, e se veriam encarcerados por homicídio cometido no curso de uma revolta, na cidade (cf. Marcos, 15, 7). Assim, chegamos já à medula do problema que evoca o título deste capítulo.
O grupo de exaltados e de homens dispostos a tudo que invadiu o Templo seguindo ao Jesus ia armado com clavas, as armas elementares e clássicas de todo o mundo árabe sempre. O próprio termo vem dessa língua: matrak, com o mesmo significado.
Com toda probabilidade foram armados deste modo com a sicca, essa adaga grande e curva que lhes deu nome (sicarii).
Vejamos os textos dos evangelhos:
Mateus: "... outros, cortando ramos de árvores, estendiam-nas no meio-fio..." (op. cit., 21, 8).
Marcos: "... outros cortavam folhagem dos campos..." (op. cit., 11, 8).
Lucas: este autor não fala de ramos, a não ser só das vestimentas estendidas sobre o caminho.
João: este nos apresenta outra versão, indubitavelmente muito mais verídica: "Ao dia seguinte, a numerosa multidão que tinha vindo à festa, tendo ouvido que Jesus chegava a Jerusalém, tomaram Ramos de palmeira e saíram a seu encontro gritando: Hosanna!" (Op. cit., 12, 12-13).
Não era questão de cobrir o caminho do Jericó a Jerusalém, já de por si bastante rudimentar, com ramos de árvores, que não teriam feito a não ser entorpecer a marcha do jovem asno sobre o que avançava Jesus. Mas na mão de seus seguidores constituíam perfeitamente umas armas improvisadas, porque do sul de Marrocos, em país bereber, até o sul da Tunicia, e em todo o Oriente Médio, a arma mais estendida é um ramo de palmeira, despojada de suas folhas, e que se apresenta sob o aspecto de uma clava cujo extremo grosso pode medir de cinco a seis dedos de largura, e a extremidade menor, a que se conserva na mão, uns dois dedos. A flexibilidade de semelhante pau, que recorda um pouco a forma do pen-baz bretão, ou inclusive do makila basco, faz dele uma temível arma contundente.
Agora bem, o texto inicial do João (2, 15) emprega o termo skoinion, que significa sogas, para designar o molho de cordas com que Jesus teria golpeado àqueles "que compravam e que vendiam".
Se observarmos que em grego se utiliza skoidion para traduzir um ramo de árvore, é evidente que alguém pode perguntar-se se sob o raspador perito e prudente dos ardilosos escribas anônimos do século IV, a delta de skoidion não se converteria na inocente NY de skoinion. Porque basta fazendo a parte superior da delta para obter uma NY muito apresentável. Em uma palavra, Jesus teria ido armado também ele, igual a seus seguidores, não de um simples molho de cordas recolhido sobre o terreno, mas sim de um ramo de árvore, de uma clava, atalho e preparado com vistas a esta manifestação no seio do Templo. Recordemos algumas de suas palavras: "E quanto àqueles inimigos meus que não quiseram que eu reinasse sobre eles, tragam-me isso para cá e degolem em minha presença! E dito isto, seguiu adiante, subindo para Jerusalém..." (Lucas, 19, 27-28).
"Eu vim jogar fogo na terra, e o que tenho que querer mas sim se acenda?..." (Lucas, 12, 49).
"Porque vim a separa ao homem contra seu pai, e à filha contra sua mãe, e à nora contra sua sogra, e os inimigos do homem serão os de sua casa..." (Mateus, 10, 35-36).
"Não pensem que vim a pôr paz sobre a terra; não vim pôr paz, a não ser espada..." (Mateus, 10, 34).
"E quem não tenha espada, venda seu manto e compre uma..." (Lucas, 22, 36).
E isto é algo que desagradará a certos admiradores do famoso Sermão da montanha que se limitam prudentemente aos versículos 20 a 23 do capítulo 6 do Lucas, omitindo, por prudência e astúcia, as maldições que compõem, imediatamente depois, os versículos 24 a 26. Porque terá que fazer desaparecer todo rastro de Jesus zelote, que amaldiçoava violentamente a seus inimigos.
Voltemos agora para episódio do Templo. Jesus propinou golpes de clava a inimigos e a mercados com os que se aprovisionavam. Teve mortos e feridos, em proporção ao número de agressores e de vítimas. E esse seria o "crime" que lhe faria perder Jesus grande número de partidários, que inclusive às vezes chegaram a somar-se ao número de seus adversários. Porque, voltemo-lo para dizer, o grito de hosanna que clamam os jovens judeus a sua chegada à Porta Dourada, procedente de Jericó, significa "nos libere..." em hebreu. O que todos esperam, por conseguinte, é que Jesus os leve a assalto da cidadela Antonia, onde se acha entrincheirada a guarnição romana de Jerusalém, e que, mediante os prodígios anunciados, expulse aos odiados ocupantes fora da Cidade Santa. Em lugar disso o que faz é levá-los a atacar a seus próprios correligionários, tanto aos comerciantes habituais como aos piedosos peregrinos! E no próprio recinto do Templo, o lugar mais sagrado de todos, o que constitui um sacrilégio mais!
Por pouco que nossos zelotes roubassem aos cambistas, ou inclusive fraturassem aquelas escovas que tanto interessavam ao Jesus, essa juventude apaixonada, mas idealista, descobriu que, em lugar de achar-se frente a um liberador, o que tinham era a um simples guerrilheiro que atuava além como bandoleiro.
Porque esse assassinato atribuído ao hipotético Barrabás, mas que sem lugar a dúvida foi obra de Jesus, encontra-se na filigrana de nossos manuscritos gregos. E aqui temos a demonstração. Em Marcos (15, 7) nos diz que Barrabás está encarcerado por assassinato, e no manuscrito grego inicial esse termo vem dado pelo nome de phonon, com o mesmo significado (crime, assassinato). Três versículos mais longe nos inteiramos de que os chefes dos sacerdotes tinham entregue Jesus ao Pilatos por inveja, quer dizer, por phtonon no grego do manuscrito inicial. Entre phonon, que significa assassinato, e phtonon, que significa inveja, há no grego cursivo uma similitude bastante incômoda. Basta inserindo, depois da phi de phonon, uma simples theta, e então se obtém phtonon, que significa inveja. E assim ficará apagado todo rastro do crime sacrílego cometido por Jesus.
Começamos a compreender por que nossos documentos mais antigos do cristianismo nos chegaram sempre, não em aramaico, a não ser em grego. Porque é uma língua cuja grafia se dispõe à muitos acertos, como pode constatar-se pelo que segue: É evidente que esta comparação é particularmente demonstrativa, já que o escândalo causado por essas pilhagens e esses assassinatos foi tal, como verdadeiro sacrilégio que violava a Casa do Eterno, que Jesus teve que fugir e ocultar-se na cidade durante perto de seis meses. Aqui temos a prova.
No tomo II de seu Synopse des quatre Evangiles, R.P. Boismard, recolhendo uma tese sustentada tempo atrás pelo cardeal Jean Daniélou, estima que nós situamos a festa de Ramos em uma data muito diferente da realidade histórica, ao colocá-la oito dias antes de Páscoa. De fato, a entrada de Jesus sob as aclamações da juventude judia desenvolveu-se seis meses antes, durante a festa dos Tabernáculos, quer dizer, no outono precedente. Vejamos o que tem tudo isso.
Inicialmente, duas grandes festas marcavam o ano judeu: a da Primavera e a do Outono, que se converteram uma na Páscoa judia (aniversário da saída do Egito), e a outra na festa das Cabanas, ou festa das Colheitas de uvas, convertida em festa dos Tabernáculos. A primeira se desenvolvia invariavelmente durante a lua cheia do mês de Nisan, a segunda durante os primeiros dias do mês de Tischri.
A Socoth, aliás festa dos Tabernáculos, que se observava desde tempos muito remotos como uma festa da Natureza, implicava que os israelitas viveram durante sete dias em tendas ou em cabanas, chamadas mais tarde tabernáculos.
Passaremos por cima o ritual das cerimônias próprias de Socoth, para sublinhar seu significado messiânico. E aqui citaremos ao cardeal Jean Daniélou em seu livro Os symboles chrétiens primitifs: "A festa parece ter, efetivamente, uma relação muito especial com as esperanças messiânicas. As origens dessa relação são obscuras. Mas parece que a festa dos Tabernáculos estaria ligada, ou com a festa anual da instauração real, ou, como pensa Kraus, com a renovação da aliança com o rei davídico. Os restos desintegrados desta festa seriam os que subsistiriam nas três grandes festas judias do Tischri: Rosh-há-Shana, Kippur, e Sukkoth. Esta festa teria adquirido no judaísmo um caráter messiânico, quer dizer, que se relacionava com a espera do vindouro rei. Aqui não se trata das primeiras origens da festa, que parecem ser uns ritos sazonais, mas sim de uma transformação que sofrera na época real e que teria introduzido nela elementos novos" (Op. cit., P. 11).
"Assim, para os judeus, a festividade dos Tabernáculos, onde cada um comia e bebia com sua família em sua choça adornada com ramos variados, apareciam como uma prefiguração dos gozos materiais no reino messiânico. As esperanças messiânicas alimentadas pela festa podem nos explicar que esta desse ocasião a uma certa agitação política, e que os Padres da Igreja punham aos cristãos especialmente em guarda contra ela" (Op. cit., P. 13).
Sublinhamos algumas frases que no livro de João Daniélou não aparecem sublinhadas, ao menos voluntariamente. Nós já demonstramos que Jesus reconhecera ante Pilatos que reivindicara a realeza de Israel, sem discussão possível, e que fora necessária sua captura para que ele considerasse então que se equivocou e se visse na obrigação de situar essa dignidade real no outro mundo. Agora provamos que participara de uma agitação política comemorativa da instauração da realeza em Israel, e que nessa circunstância se deixou aclamar como rei liberador e como soberano, já que aparece sublinhada sua qualidade de "filho de David". Pois bem, ele não desautorizou essas manifestações de entusiasmo, essas aclamações tão precisas, essa qualidade de "liberador", antes ao contrário, prestou-se a elas complacente, ao subir de Jericó à Jerusalém encabeçando seus partidários, depois de mencionar que teria que degolar a todos aqueles que não o queriam reconhecer como rei. (Cf. Lucas, 19, 11 a 27).
E então, como admitir nem por um momento que o procurador representante de Roma na Judéia não se sentisse na obrigação de castigar severamente, fosse qual fosse a simpatia que ele pudesse sentir para o Jesus? Isto, evidentemente, não demorou para chegar, já que o abade Laurentin, resumindo o texto de P. Boismard, diz-nos no periódico O Figaro de 25 de maio de 1972:
"Quanto a sua entrada em Jerusalém (os Ramos) parece que teve lugar muito antes do que dizem os evangelistas, durante a festa dos Tabernáculos (par. 273., P. 333), de modo que Jesus teria passado seus últimos dias em Jerusalém, não como um homem que ensinasse ainda com êxito, mas sim como um proscrito que se oculta e que finalmente será traído e entregue por um dos seus".
Aqui devemos particularizar. A festa dos Tabernáculos desenvolve-se em setembro, e Jesus morreu na Páscoa, quer dizer, em abril; portanto, encontrou-se proscrito durante seis meses, e se viu obrigado a ocultar-se em Jerusalém, literalmente pego na armadilha, sem poder sair dela durante todo este período. Se a gente recordar que Jesus se viu já na obrigação de fugir quando estava em Fenícia, e que logo, reconhecido pela mulher cananéia (Mateus, 15, 21-24), e não podendo "seguir oculto ali" (sic) (Marcos, 7, 24-25), teve que fugir de novo, e tentar despistar à polícia romana lançada atrás dele, convirá que esta atitude resulta mais surpreendente em um "Filho de Deus" vindo a oferecer-se em sacrifício para aplacar a cólera de seu Pai. O leitor mais indulgente considerará então que o "Filho de Deus" não tinha muita pressa por assegurar a salvação da humanidade, já que, durante todo esse tempo perdido, e segundo a dogmática cristã, esta continuava condenando-se, dado que: "Os meninos que nascem e que morrem sem receber o sacramento do batismo não podem salvar-se, já que para eles, e segundo a ordem estabelecida por Deus na sociedade dos homens, não existe outro meio que este para incorporar-se à Jesus Cristo e receber sua graça, sem a qual não existe salvação entre os filhos do Adão". (Cf. Tomás de Aquino, Suma teológica, LXVIII, 3).
Esse caráter temeroso do pseudo-sacrifício voluntário também está reconhecido em Daniel-Rops, já que nos diz no Jesus em seu tempo:
"Ela explica também o deslocamento repentino de Jesus, desejoso de passar à soberania mais benevolente do tetrarca Filipo, passando ao outro lado do rio (o Jordão) para não permanecer mais tempo em poder de Antipas, o assassino de São João Batista" (Op. cit., P. 257, La mort du Précurseur). Veja-se o compreendemos! E também como tudo resulta mais claro ao voltar-se mais humano...
Quanto ao lugar onde se oculta Jesus em Jerusalém durante seis longos meses depois do ataque ao Templo (segundo opinião de Daniel-Rops e de numerosos exegetas, houve dois ataques deste gênero), ignoramo-lo. É pouco provável que se refugiasse em uma moradia amiga, porque havia sempre a possibilidade de uma denúncia por parte de um vizinho hostil, ou a quem lhe atraíra a recompensa oferecida. E uma fuga assim implicava um percurso bastante longo pela cidade inflamada de rumores. É mais provável que Jesus fugisse para a porta Norte (veja o capítulo 27), e saísse da cidade em direção ao que Flavio Josefo chama as "cavernas reais". A poucos passos da atual porta de Damasco, sob a escarpada rocha coroada pela muralha da cidade, observa-se uma pequena porta fechada; ali haveria antigamente as pedreiras de Bezatha, de onde se extraíram em diversas épocas os formosos blocos de pedra empregados nas construções do Templo ou dos palácios asmoneos e herodianos. Essas pedreiras foram inauguradas pelo rei Salomão. O arqueólogo Clément Ganneau descobriu, do mesmo modo, um graffiti fenício naquele lugar. No exterior, o orifício de entrada desemboca no fosso antigo da cidade.
Foi indubitavelmente nestes amplos subterrâneos onde tiveram lugar aquelas assembléias secretas às quais fazem alusão os Salmos de Salomão, no curso das quais tinham lugar orgias sexuais de formas rituais que implicavam uma sobrevivência dos cultos à Astarté e à Baal, tomados provavelmente das longínquas tradicionais do tantrismo hindu. Remetemos ao leitor ao capítulo 20.
É pouco provável que os zelotes não conhecessem a existência de tais pedreiras, quanto mais se se tem em conta que a tia de Jesus, Maria II (aliás Mariamna II, aliás Cleopatra de Jerusalém), não ignorava, como já vimos, essas mesmas tradições orgiásticas, posto que as praticara no palácio de Herodes, o Grande.
E, quando chegou o momento, foi ali de onde Jesus foi aos domínios de Ierahmeel, nas Oliveiras, retiro que seu sobrinho Judas Iscariotes revelou ao tribuno das coortes, governador da Antonio e chefe de armas de Jerusalém (cf. Jesus ou o segredo mortal dos templários, página 274 e seguintes). Porque a lenda do jantar pascal em Jerusalém e logo, imediatamente depois, a saída em direção às Oliveiras, é inverossímil. As portas da cidade estavam fechadas e vigiadas, patrulha romanas percorriam as ruas, porque a Páscoa era um período de agitação messiânica; e, por último, o Êxodo (12, 22) especifica-o de forma cortante: depois da comida pascal estava proibido sair da moradia até a alvorada seguinte. Todo judeu encontrado de noite pela cidade, seria suspeito e detido pelas patrulhas.
25- A verdade sobre a Paixão
Que o juiz não empreste ouvidos aos vãos clamores da multidão. Com muita freqüência deseja perdoar ao culpado e condenar ao inocente... DIOCLECIANO, Axiomas jurídicos
Quando se lê nos evangelhos sinóticos o relato da Paixão de Jesus, em especial tudo o que tem relação com a montagem de escárnio que aconteceu à flagelação legal, quando se for aos legionários romanos revestindo ao Jesus com uma clámide escarlate, provavelmente tirada dentre as roupas velhas de seu quartel, logo lhe pondo na mão um cano, a modo de cetro irrisório, e por último coroando-o com uma coroa de espinhos; surpreende constatar que, no evangelho de Lucas, esta frase, que entretanto é impressionante, é totalmente ignorada por seu redator. Mas Lucas, de quem a Igreja afirma que foi o autor de tal relato, ateve-se ao de seu Mestre, que foi o apóstolo Paulo. Se este se achava em Jerusalém no ano 36 de nossa era, quando teve lugar a lapidação de Estêvão, estudando a Thora aos pés de seu Mestre o rabban Gamaliel, devia encontrar-se também nesta cidade no ano precedente, o 35, quando se produziu a morte de Jesus. E, entretanto, não sabe nada dessa exibição de escárnio. Que estranho!
Para a maioria dos historiadores conformistas, a historicidade deste episódio não oferece nenhuma dúvida. E Daniel-Rops, em Jesus em seu tempo, diz-nos o seguinte:
"Esse outro suplício, Pilatos não o tinha ordenado. Mas a multidão humana é feroz com os vencidos, e o que pode esperar-se de uma soldadesca desenfreada? Esses soldados eram sírios, beduínos, mandados possivelmente por alguns oficiais romanos. Entregava-lhes um judeu que não devia valer muito, já que o governador o tinha mandado flagelar.
"Aqui é onde pode defender a hipótese de uma imitação de costumes mais ou menos carnavalescos. Algum daqueles soldados poderia achar-se em alguma guarnição de Alexandria ou da Mesopotâmia, e ser ali testemunha de uma festa de origem estrita que se conhecia com o nome de Sacaea: escolhia-se um rei de pantomina que, durante dois ou três dias podia permitir-lhe tudo, incluído o utilizar às concubinas reais, mas, ao final da festa, era despojado de suas vestimentas reais, açoitado e enforcado.
"Em algumas legiões romanas, durante a festa das Saturnais, escolhia-se ao acaso um soldado como "rei Saturno", e, depois de inumeráveis episódios de desenfreados bacanais, lhe dava morte". (Cf. Daniel-Rops, Jesus em seu tempo, X).
Observemos que para o próprio Daniel-Rops os elementos deste relato parecem incertos, emprega o termo de hipótese, que pode defender-se, embora Pilatos não tivesse ordenado esse inesperado suplemento da flagelação legal. Na opinião do abade Loisy, que foi professor de hebreu no Institut Catholique de Paris, professor de Sagradas Escrituras, e logo professor de história das religiões no Collège de France (1857-1940), tudo isto não se tem em pé:
"Não há nem necessidade de assinalar que semelhante procedimento se ajustava muito pouco aos hábitos da justiça romana, ao caráter de Pilatos e à verossimilhança do caso! Para o evangelista isso não era a não ser um meio de alargar o drama e de acentuar o crime dos judeus". (Cf. A. Loisy, O quatrième évangile, Jean, XIX, 2-5, comentário).
E é exato até não poder mais. O direito romano, que subsiste ainda em bom número de nossos textos legislativos europeus, era absoluto. Não havia fantasia alguma na aplicação das penas, tudo estava previsto, catalogado, considerado. Unicamente, coisa que Daniel-Rops ignora ou finge ignorar, é que o costume pedia que todo acusado, fosse qual fosse sua classe social, no momento de comparecer ante seus juízes, despojasse-se de suas vestimentas habituais e se revestisse de outras ignominiosas, proporcionadas pela prisão. Isto se fazia com o fim de incitar aos juízes à piedade, assim para refrear a altivez de certos detidos cuja origem ou riqueza podiam voltar insolentes. Esse foi o caso de Jesus, e lhe fez despir, como a todo mundo. Porque, à volta de casa de Herodes Antipas, vestem-lhe com as roupas "deslumbrantes" que este lhe fez ficar, em lugar de suas vestimentas feitas de farrapos no curso do combate das Oliveiras. Pois bem, estas roupagens, segundo os exegetas, consistiam em uma túnica branca, idêntica a que revestiam os tribunos das coortes antes do combate, ou os candidatos que aspiravam em Roma a um elevado cargo público. Em função de dito uso legal, despojou-se Jesus de suas aduladoras roupas e lhe fazer vestir roupas infamantes. Coisa que se fez, mas muito antes do comparecimento ante o procurador, e muito antes da flagelação que lhe seguiu. E essas roupagens a seguir lhe foram restituídas legalmente, já que são estes mesmos, tecidos sem costura (João, 19, 23), e portanto de máximo luxo, os que os soldados romanos que atuaram de verdugos jogaram às tais quando teve lugar a crucificação. (op. Cit.) Tudo isto desmente o episódio da exibição de brincadeira. Não era absolutamente legal, já que o direito romano não deixava nada à fantasia dos verdugos. O juiz era o único que decidia sobre tal ou qual pena, o instante de sua aplicação, e o de sua suspensão. Fica essas aparentes referências históricas às quais se remete Daniel-Rops para justificar a identificação de Jesus com um "rei de Carnaval".
É real o fato de que, entre os escitas, houvesse soberanos efêmeros sacrificados tal como se disse. Mas Roma não dominava aquelas regiões, já que rapidamente fizesse desaparecer semelhantes sacrifícios humanos, ela que os tinha extirpado sem piedade nas Galias druídicas, e em todos os lugares onde plantava as insígnias de suas legiões. Recordemos que ao pai de Tertuliano, que era centurião legionário, um dia lhe encarregou como exactor mortis que fizesse crucificar a todos os sacerdotes de Cartago culpados de ter prosseguido clandestinamente com os sacrifícios humanos habituais dedicados ao deus Moloch.
O fato de que as legiões romanas designasse, durante a festa das Saturnais, um deus efêmero para o tempo que durasse a festa, não implicava que seus camaradas tivessem o direito de sacrificá-lo a seguir. É preciso não conhecer absolutamente nada da implacável disciplina existente naquelas regiões, para admitir, embora só seja um instante, a hipótese de tal crime ritual, assim tolerado pelos tribunos das coortes e seus centuriões. Durante as Saturnais, em Roma (primeiro durante um dia, logo durante três, mais tarde quatro, logo cinco e por último sete dias), ficava perturbado o ritmo habitual da sociedade, os escravos recebiam o mesmo trato que os amos, e alguns inclusive chegavam a abusar disso, sem que a seguir lhes pudesse castigar. Por conseguinte, como imaginar semelhantes assassinatos no seio das legiões romanas? É indubitável que em Roma havia também um Saturnalicius princeps, análogo ao "rei Saturno" dos soldados, que encabeçava todas essas licenciosidades um pouco à maneira do rei Carnaval da cidade de Niza. Mas nem ali nem em Roma se dava morte a ser humano algum. E é preciso remontar-se às épocas mais longínquas para encontrar nos velhos cultos mediterrâneos o sacrifício desse efêmero soberano, suposta encarnação do deus, cujo sangue derramado asseguraria a fertilidade da Terra.
Por certo que Tácito nos conta que Nero, quando era ainda um adolescente, foi designado pela sorte como "rei Saturno" no curso dessas mesmas festas Saturnais, e é evidente que a ninguém lhe ocorreu a idéia de sacrificá-lo. (cf. Tácito, Annales, XIII, XV).
Nada disso existia, pois, na época de Jesus, e não temos nenhuma referência sobre essas misteriosas legiões romanas nas quais um soldado se enfrentasse com o fato de ter que ser executado com ocasião da celebração das Saturnais. E possuímos a lista completa de tais unidades, assim como suas localizações históricas em tal ou qual época. Como imaginar, então, que algumas delas houvessem possuído o privilégio de levar a cabo assassinatos rituais, se todos estes estavam proibidos em todo o Império, sob pena de morte? Por último, as Saturnais tinham lugar a partir de 17 de dezembro; na época de Jesus duravam três dias, por isso finalizaram na noite de 19. Simbolizavam o retorno ao caos primitivo, já que a partir do 20 ou de 21 de dezembro, data média do solstício de inverno, o sol ao remontar-se sobre a eclíptica anunciava uma nova era anual. Mas Jesus foi crucificado no mês de Nisán, que cobre a lunação da Páscoa judia, e se situa entre 21 de março e 21 de abril. Estamos, pois, muito longe das Saturnais. De modo que a hipótese de Daniel-Rops de que Jesus foi assimilado a um "rei de Carnaval" e sofresse, a dito título, os vexames dos legionários, carece de fundamento.
Então, em que época se imaginou toda essa sádica montagem teatral? Indubitavelmente em época bastante tardia, já que as Ata Pilati, célebre apócrifo copto, não o conhecem, mas o Evangelho de Pedro, em troca, apresenta-nos isso sob outra forma, fora do pretório e fora de Antonia, e desta vez é a multidão que submete Jesus à maus entendimentos e lhe impõe a coroa de espinhos. Como se vê, todos esses relatos estão longe de concordar e abundam as contradições. Vejamos esta passagem:
"E ele (Pilatos) entregou-o ao povo a véspera dos Ázimos, sua festa. E estes, depois de ter tomado ao Senhor, empurravam-no correndo, e diziam: 'Arrastamos ao filho de Deus, já que está em nosso poder'..." (Cf. Evangelho do Pedro, 7).
Em realidade, provavelmente o fato de impor ao Jesus as vestimentas infamantes de comparação ante os juízes, costume habitual e legal, e que, por pura casualidade, resultou ser uma velha clámide militar usada, seria o que desencadeou o processo de elaboração da lenda, e cada qual contribuiu algo à ela. Por outra parte, em seu livro Théologie du judéo-christianisme, o cardeal Jean Daniélou nos diz o seguinte:
"A Epístola ao Bernabé contém uma série de entrevistas que parecem vir de um midrash cristão sobre o Levítico e os Números. Os ritos judeus estão descritos neles de forma que ponham em relevo os pontos de contato com o cristianismo..." (Cf. Jean Daniélou, Epístola ao Bernabé, III, midrash chrétiens, P. 112).
Os midrashim (plural de midrash) são paráfrase de textos do Antigo Testamento, ligeiramente diferentes a estes últimos e redigidos pelos doutores da Lei de forma mais clara que os textos iniciais, de modo que se pudessem suprimir os inevitáveis comentários. Incluem bom número de ensinos preciosos sobre as tradições rituais judaicas, tradições que sem eles nós ignoraríamos. E o exame desses midrashim, no que concerne a todo o ritual da vítima propiciatória descrito em Levítico (capítulos 4, 9, 10 e 16), demonstra-nos que o episódio da velha túnica escarlate imposta ao Jesus quando teve que comparecer, e em função do uso legal romano, foi o que desencadeou o processo de criação da lenda da paixão. Julgue-se:
"O que diz o Senhor em casa do Profeta? Que comam do macho caibro devotado no Dia do Jejum por todos os pecados. E tenham isto em conta: que todos os sacerdotes, e só eles, comam as vísceras não lavadas com vinagre". (Epístola do Bernabé, VII, 4).
Eis aí a origem da esponja e do vinagre ...
Desde aí procede deste modo o tema (ignorado por Jesus) da ingestão de sua própria carne sob as formas eucarísticas, ao ser ele a vítima propiciatória por excelência, sacrificada por todos os pecados do mundo. Continuemos:
"Prestem atenção ao que está prescrito: Tomem os machos caibros, formosos e semelhantes, e ofereçam. Que o sacerdote tome um para o holocausto pelos pecados. Quanto ao outro, o que farão dele? O outro, conforme está escrito, está maldito. Cuspam todos sobre ele, ferroem, coroem sua cabeça com lã escarlate, e que seja assim expulso ao deserto". (Epístola de Bernabé, VII, 6-8).
"Quando todo isso se executou, que quem se leve a macho caibro o conduza para o deserto, tire-lhe a lã, que porá sobre uma sarça".(Epístola do Bernabé, VII, 8).
É evidente que todo isso sugeriu aos escribas cristãos um bom número de imagens análogas. Como Jesus já estava prefigurado pelo carneiro pelo que Abraham substitui a seu filho Isaac quando o sacrifício deste, e este carneiro tinha os chifres enganchados em umas sarças, podia continuá-la composição dessa cena imaginária que é a Paixão. A clámide escarlate (o escarlate, no simbolismo judaico, era a imagem do pecado) permitiu identificar ao Jesus com a vítima propiciatória, a que se coroava com uma lã escarlate que representava os pecados do povo de Israel. O arbusto de sarças sobre a que o encarregado enganchava a citada lã escarlate sugeriu a idéia de uma coroa de espinhos, ao que seguiu a esponja embebida de vinagre.
Muito mais tarde, Melitón, bispo de Sardes, em Lídia (morto por volta do ano 195), redigiria uma Homilia sobre a Paixão, em que declarou audazmente: "Você (Deus) puseste o escarlate sobre seu corpo, e o espinho sobre sua cabeça..." (Cf. Melitón de Sardes, Homilia sobre a Paixão, XIII, 3-4).
Tanto mais que em Roma, além dos farrapos legais, os detidos compareciam com a cabeça rodeada por duas cintas, uma branca e o outra escarlate, a primeira (velamenta) como presunção de inocência, a segunda (infulae) de culpabilidade (cf. Tácito, Histórias, III, XXXI). É muito possível que este costume legal fora observado durante o processo de Jesus ante um procurador romano. E isto não o ignoravam os escribas anônimos dos séculos IV e V. E tiraram bom partido disso.
A psicanálise moderna permitirá captar facilmente o processo pelo qual se criou a lenda da Paixão de Jesus a partir de um fato corriqueiro, e o humilde legionário que lhe fez revestir uma velha túnica regulamentar em desuso não podia imaginar que ia assegurar, durante séculos, um imenso e frutífero comércio, o das efígies, quadros, gravados, etc., representando uma série de feitos totalmente imaginários.
Sem dúvida nos apresentará como objeção as "visões" da irmã Anne-Catherine Emmerich. Mas além de que visse o Pilatos a cavalo, em cortejo (devia confundi-lo com o centurião da semana!) e que ignora ao Simão de Cirene, pois Jesus levava ele mesmo a cruz, também esteve na Lua. Muito antes que os astronautas, evidentemente. E ali encontrou aos habitantes desta, que são temerosos, tímidos, vivem em cavernas e não rendem nenhum culto a Deus, o que a seus olhos não está bem, claro. (cf. Sex de Catherine Emmerich, III, 15 a 18). Não riamos, leitor! Quando os primeiros foguetes soviéticos chegaram a nosso satélite, um douto cônego, diretor do Osservatore Romano dominical, declarou gravemente no curso de uma conferência de imprensa e a um grupo de jornalistas italianos assombrados, que quando chegássemos à Lua exporíamos o problema de saber se seus habitantes "teriam conservado a graça quando Adão a perdeu, ou se, pelo contrário, perderiam-na ao mesmo tempo que ele" (sic). Semelhante candura não precisa de comentários, evidentemente.
Como é natural, possuímos todas as relíquias da Paixão, fragmentos da túnica escarlate, cano, coroa de espinhos, não faltam mais que os cuspes da soldadesca. Acrescentemos à Santa Face, os pregos, a cruz, a pancarta, a lança, a esponja, os tecidos, e inclusive a escada do pretório, que agora se acha em São João de Letrán. O leitor que se interesse pelo estudo da ingenuidade humana encontrará tudo isso em Des reliques et cde leur bon usage, de Patrice Boussel, conservador na Bibliothèque historique da Ville de Paris (Paris, 1971, Balland éd.).
Vejamos agora a verdade, leitor, e não se parece em nada à lenda.
E, em primeiro lugar, o que é essa coroa de espinhos que pusseram em Jesus os legionários romanos, lhe acrescentando assim sofrimentos, e em sinal de brincadeira frente a suas pretensões reais?
Ao princípio houve a seu respeito um silêncio de quatro séculos, ninguém falava dela, e os historiadores não encontraram seu rastro até as afirmações de São Paulino, bispo de Nole, na Companhia, em documentos do século V. Cem anos mais tarde, Gregorio de Tours nos afirma que os espinhos têm fama de permanecer sempre verdes, e Saint Germain, à volta de uma peregrinação à Jerusalém, diz-se que recebeu do imperador Justiniano um desses espinhos, que ele depositou piedosamente nas arcas da igreja Saint-Vincent-et-Sainte-Croix, que logo se converteria em Saint-Germain-des-Prés.
Se se der crédito à tradição, Carlos Magno seria recompensado com um certo número delas pela imperatriz Irene, ou pelo então patriarca de Jerusalém. Não se puseram de acordo. Onde o problema se converte em mistério é em 1239, quando chega a coroa a Paris, quase totalmente intacta. O mistério se acrescentará quando constatarmos que, na mesma época, Ruhault do Fleury nos afirma que os habitantes da cidade de Pisa, na Itália, fizeram construir a igreja de Santa-maria-della-spina para abrigar nela duas partes dessa coroa. Porque 1239 é precisamente o ano em que Luis IX, aliás são Luis, mandará construir a Sainte-Chapelle, para albergar dito objeto, que uns ardilosos venezianos venderam a bom preço. Esse rei era um ingênuo e um fanático. Foi ele quem decidiu que a partir de então se atravessasse a língua dos blasfemos com um ferro ao vermelho vivo (incluindo entre eles aos hereges e aos judeus, claro está), e que se queimasse vivo, com a Thora enrolada ao redor do peito nu, aos rabinos que se negassem a admitir a divindade de Jesus. Luis IX, filho de uma mãe particularmente fanática, dona Branca da Castilla, levava em suas veias sangue espanhol, o que explica muitas coisas. É óbvio que jamais se analisaram tais espinhos, não se sabe sequer se estiveram alguma vez ensangüentadas; jamais se procurou com o carbono 14 a época de sua aparição no mundo vegetal. Esse tipo de experimentos quase nunca os autorizam.
Hoje que os espinhos estão dispostos prudentemente por toda a Europa cristã, a relíquia já não se apresenta mais que sob o aspecto de seu suporte de círculos de junco, o Juncus balticus dos botânicos, trancados e atados uns aos outros por uma quinzena de ligamentos. Esse suporte permitiria aos legionários romanos enrolar nele os ramos espinhosos propriamente ditos, feitos com o Rhamus spina christi dos arqueólogos cristãos. Essa planta é muito comum na Judéia. Daniel-Rops se pergunta se Jesus a levava ainda na cruz. Antes de resolver esta questão, expõe outras, mais molestas.
Basta relendo o que todos os autores antigos sublinharam no referente à disciplina no seio das legiões, a perfeita harmonia e a total limpeza dos acampamentos, embora estivessem montados rapidamente de noite, depois de uma etapa fatigante, para imaginar o que devia ser a cidadela Antonia, onde residiam seis centúrias de veteranos, um tribuno das coortes com classe de cônsul e que exercia as funções de chefe de armas de Jerusalém, para negar-se a admitir que se tolerou nem por um só instante a presença de matagais espinhosos e matas de juncos no pátio de dita cidadela. Então, onde se teriam procurado os legionários ditos juncos e espinheiros? Os fossos, por prudência, estavam cuidadosamente desprovidos de toda vegetação que pudesse mascarar ao inimigo, e Herodes, o Grande tinha mandado revestir as muralhas exteriores com placas de mármore branco, com o fim de impedir qualquer escalada, conforme nos diz Flavio Josefo.
Por outra parte, essas pontas agudas vegetais têm uns oito centímetros de longitude; enrolá-los ao redor da coroa de junco representaria indevidamente que o encarregado sofresse feridas nas mãos, já que os legionários romanos não dispunham absolutamente de luvas de ferro que lhes protegessem. E, uma vez mais, por que prodígio todos esses acessórios de uma "paixão" absolutamente ilegal puderam ser recolhidos pelos discípulos, todos eles zelotes, procurados por Roma? Ainda mais quando umas leis muito severas castigavam, inclusive com a pena de morte, a quem quer que se procurasse elementos materiais que tivessem formado parte de uma execução capital ou uma inumação: sangue do justiçado, restos corporais, ossos, pregos de cruz, etc., em vista a posteriores operações mágicas.
Pois bem, uma vez mais, nós possuímos milagrosamente todos esses objetos.
No mundo antigo era costume crucificar ou empalar ao condenado com a prova material do delito que lhe reprovava, quando isso era possível, ou com as insígnias de sua função ou de sua classe social. Assim por exemplo, quando Nabucodonosor, rei de Babilônia, saca os olhos ao Sedecías, rei da Judéia (quem já tem a mandíbula perfurada com um anel soldado a uma cadeia que sustenta Nabucodonosor), com um ferro de lança ao vermelho vivo, Sedecías leva ainda a tiara real.
Este costume conheciam os romanos. No ano 69 de nossa era, a cidade de Terracina, na Itália, que se rebelara contra Vitelio César, foi entregue por um escravo que pertencia a um tal Vergilio Capito. Como recompensa, Vitelio lhe concedeu ao escravo o anel de ouro que fazia dele um cavaleiro romano. Quando este imperador foi tombado, e logo assassinado pelos partidários do Romaciano, o escravo que tinha traído a seu amo e que tinha entregue a cidade de Terracina, foi crucificado, mas levando no dedo o anel de ouro da ordem eqüestre com o que Vitelio o tinha honrado tão escandalosamente (cf. Tácito, Histórias, III, LXXII e IV, III). Esta forma legal não tinha por objeto honrar ao condenado, a não ser sublinhar a força do poder que lhe podia dar a morte, e a importância da cerimônia capital.
Esse foi, sem lugar a dúvida, o caso de Jesus. Estava condenado a morte por Roma por haver-se proclamado rei de Israel e havê-lo reconhecido ante Pilatos. Não há nada de surpreendente, portanto, no fato de que Jesus levasse a coroa real durante todo o cerimonial de sua execução.
Mas, perguntarão, de onde saía essa coroa desconhecida? Observaremos que esse símbolo da realeza antiga não se apresentava sob o aspecto das pesadas coroas européias que conhecemos da Idade Média. Em todo o Oriente Médio se trata, simplesmente, da coroa chamada "radiada", composta por uma estreita banda que rodeava a cabeça e de onde brotavam, como raios (de onde seu nome), umas pontas que se abriam para fora. Encontra-se nas moedas de Antíoco Epífano, rei de Síria, e ainda era utilizada nos primeiros séculos de nossa era pelos reyezuelos dessas regiões. Essa foi, como é natural, a coroa dos reis de Judá e de Israel.
O ouro da coroa principal, a das consagrações e as cerimônias grandiosas, fazia dela, tendo em conta sua densidade, um ornamento muito pesado. Aliviava-se, portanto, a banda de suporte e o número de pontas. E para as cerimônias cotidianas se utilizava uma coroa de cobre, que era uma réplica exata da coroa de ouro oficial. Uma coroa de cobre, de forma um pouco diferente, foi descoberta no deserto de Judá, procedente sem dúvida do tesouro de Engaddi. Esse tipo de coroa tinha a vantagem de que era muito mais leve, já que como a densidade do cobre é de 8,92, e a do ouro de 19, 3, o peso era de menos da metade. Além disso, como esse metal era muito comum, apenas se corria o risco de tentar aos ladrões, e sua cor, uma vez batido as asas com o estanho, dava-lhe uma aparência muito próxima ao ouro, e o aliviava um pouco mais. Possuiu Jesus uma coroa desse tipo e dessa natureza? Provavelmente. Faz alusão a ela em seu Apocalipse, que redigiu em vida como já demonstramos. Assim lemos isto: "Vi, no meio do trono e dos outros seres viventes, e em meio dos anciões, um cordeiro que estava ali como imolado. Tinha sete chifres e sete olhos... (Cf. Apocalipse, 5, 6).
A versão de Lemaistre de Sacy precisa que o cordeiro estava de pé e como degolado. E isto é uma prova mais de que o Apocalipse foi redigido em vida de Jesus. Esse texto não inclui nenhuma alusão à crucificação, a maior parte dos manuscritos falam de uma degolação, e o cordeiro está de pé. Agora bem, Jesus sabia perfeitamente que pereceria em mão dos romanos. Mas não supôs nem por um instante que seria na cruz da infâmia, reservada aos criminosos comuns e aos escravos rebeldes. Acreditava que figuraria no desfile triunfal de seu vencedor em Roma, onde ele apareceria coroado, para logo, segundo o costume, ser degolado como aconteceu com seus trágicos predecessores. A alusão aos sete chifres (o corno era símbolo de poder) e aos sete olhos era simplesmente uma alusão às sete pontas da coroa "radiada" e às pérolas ou às gemas que a terminavam. Que Jesus possuísse uma coroa de cobre entre seus efeitos pessoais não é, em si, nada estranho.
Sua avó Ana, mãe de sua mãe Maria, possuía seu próprio diadema real, se dermos crédito ao Protoevangelio de Santiago: "Ana se lamentava duplamente, dizendo: 'Chorarei minha viuvez e minha esterilidade'. Mas eis aqui o que aconteceu o dia do Senhor; Judith, sua faxineira, disse-lhe: Até quando afligirá sua alma? chegou o dia do Senhor (o sabbat), e não se permite lamentar. Vamos, toma esse diadema que me deu a ama de serviço e que não me permite rodear, porque eu sou uma faxineira, e é uma banda real" (Abade. E. Amann, Protoevangelio de Santiago, II, 2).
Esse tradutor observa com toda justiça que o termo grego utilizado no manuscrito é kephalodesmion, que designa muito exatamente diadema no sentido etimológico da palavra, quer dizer, "a banda mais ou menos adornada que serve para prender os cabelos e que, fixada na parte baixa da tiara persa, converte-se em um ornamento real. Não sem intenção, o autor faz que se proponha este adorno à mulher de Joaquim. Quer fazer pensar muito discretamente na dignidade de Ana; só ela pode levar tal cinta, pois só a filha dos reis é digna dela". (Op. cit., Comentário do abade E. Amann, tradutor do Protoevangelio).
E a coroa de cobre dos reis de Judá podia muito bem encontrar-se já na Antonia, com as vestimentas sagradas, a tiara e a roupa do pontífice de Israel, como nos conta Flavio Josefo: (Antigüidades judaicas, XX, I, 1 a 6).
Além disso, os filhos de David reivindicavam também o poder pontifício. Em Eusebio da Cesaréia lemos o seguinte: "Também João, aquele que repousou sobre o peito do Senhor e que foi sacerdote (em hebreu cohen), e que levou o petalon, que foi didáscalo e mártir..." (cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, VII, XIX).
O petalon era uma insígnia pontifícia, própria do supremo sacerdote de Israel. Está descrito no Êxodo (28, 36-38) como uma lâmina de ouro que levava a inscrição "Consagrado ao Yavé" e que estava fixado sobre a tiara do pontífice.
Por outra parte, e sempre em Eusebio, descobrimos um detalhe bastante importante: "Também o trono de Santiago, daquele que foi o primeiro em receber do Salvador e dos apóstolos, o episcopado da Igreja de Jerusalém, e ao que as divinas Escrituras designam em geral como o irmão de Cristo, conservou-se até a atualidade". (Cf. Eusebio da Cesaréia, História eclesiástica, VII, XIX).
Agora bem, os tronos episcopais não aparecerão, sob o aspecto de cadeiras de pedra ou de mármore, até que os cristãos possuam basílicas, quer dizer, no século IV. Esse trono, que na opinião dos exegetas e dos arqueólogos devia ser de madeira, e quase com toda segurança de cedro, era um sinal de autoridade de Santiago, irmão de Jesus, e essa autoridade era temporária, já que João possuía a autoridade espiritual (o petalon). Era, portanto, um trono real, e não uma cadeira episcopal, desconhecida naquela época. E então, por que os filhos de David não foram possuir uma coroa, se existia entre eles um trono, e sua avó Ana levava às vezes, nos dias de grande solenidade, um diadema real?
Assim, é mais que provável que Jesus fora crucificado meio doido com essa coroa de cobre. A coroa de ouro terá que exclui-la, já que seria confiscada, tendo em conta seu valor, e logo enviada ao Tibério, e seu peso teria dissuadido aos zelotes de conservá-la permanentemente no curso de seus movimentos e campanhas.
Jesus devia levá-la habitualmente, e este ornamento era o que fazia que as pessoas o reconhecessem como o "Filho de David".
Ocultou-se este detalhe pelo que se imaginou, muito mais tarde, a coroa de espinhos, cuja morfologia se adaptava perfeitamente a de coroa "radiada" e aos sete chifres do cordeiro vencedor descrito no Apocalipse.
É conveniente observar, por certo, que unicamente Mateus (27, 29), Marcos (15, 17), e João (19, 2 e 5) conhecem o episódio da coroa de espinhos, em troca Lucas o ignora por completo. Segundo os três primeiros, impuseram-na à Jesus no pretório, no seio da cidadela Antonia, enquanto que segundo o Evangelho de Pedro (6 e 7), foi a multidão hostil a que lhe coroou com ela, no caminho para o Gólgota, fora da fortaleza. Pelo contrário, nas Ata Pilati foi no instante da crucificação quando Jesus recebeu essa dolorosa diadema: "Depois destas coisas, Jesus saiu do pretório com os dois ladrões. Quando chegou ao lugar designado, lhe despojou de suas vestimentas, lhe rodeou um linteum, e se colocou sobre sua cabeça uma coroa de espinhos. De maneira similar foram crucificados os dois ladrões, Dimas a sua direita e Cestas a sua esquerda". (Op. cit., X).
Este velho apócrifo copto é o que mais se aproxima da verdade histórica; quando se acabava de cravar o titulus que indicava que se tratava de Jesus rei dos judeus" (cf. Mateus, 27, 37), pôs ao condenado a coroa de cobre, da que provavelmente se deram procuração durante o local dos domínios de Ierahmeel, depois do combate das Oliveiras. Tal costume se perpetuou durante muito tempo ainda, já que mais de treze séculos mais tarde, em 10 de junho de 1358, quando se teve vencido a Jacquerie, Carlos, o Mau, fez coroar a seu chefe, Guillermo Calot, com um aro de ferro, previamente avermelhado ao vermelho vivo, antes de fazê-lo decapitar. E é que Guillermo Calot fora proclamado "rei dos Jacques" ao princípio da insurreição.
Esta coroa de sete pontas adornadas com gemas é, por outra parte, um símbolo clássico do reino de Deus sobre o universo criado, como sublinham as orações judias cotidianas com sua permanente alusão a tal realeza: "Seja louvado, Yavé nosso Deus, rei do Universo, Você que... etcétera". Aparece com freqüência representada na ornamentação litúrgica do judaísmo tradicional. Possuímos um pequeno relicário de ferro forjado descoberto por um de nossos amigos em Valência (Espanha), e nele domina a abertura de dois portinhas que descobrem um pergaminho aonde está transcrito ritualmente o nome divino Shadai, quer dizer, "Todo-poderoso". De fato, as sete pontas ou corno da coroa radiada se referem esotericamente aos sete Sephiroth inferiores: Geburah (o Rigor), Hoesed (a Misericórdia), Tipheret (a Beleza), Netzah (a Glória), Hod (a Vitória), Iesod (o Fundamento), Malkuth (o Reino). Constituem o Microprosopio ou "Pequeno Rosto", o "Casal Inferior" da Cabala judia tradicional.
Esse nome de "coroa" é deste modo o da Sephirah suprema, chamada em hebreu Kether, ou "Soleira da Eternidade". As sete gemas ou pérolas que coroam as pontas figuram os sete Espíritos ante o Trono (cf. Apocalipse, 4, 5), e os sete arcanjos clássicos: Miguel (o Sol), Gabriel (a Lua), Anael (Vênus), Rafael (Mercúrio), Zaquiel (Júpiter), Orifiel (Saturno), Samael (Marte). No ritmo quaternário, relativo aos arcanjos dos outros elementos, estão Miguel, Gabriel, Rafael, Uriel.
Ao reivindicar esta coroa, Jesus pretendia substituir ao Metatron-saar-ha-Panim (o "Príncipe dos Rostos" de Deus), aliás Saar-ha-Olam (o "Príncipe do Mundo"), ou Saar-ha-Gadol (o "Grande Príncipe"), a quem também lhe dá o nome de Miguel ("Semelhante a Deus"), chamado na profecia do Daniel: "Naqueles tempos se levantará Miguel, o Grande Príncipe, protetor dos filhos de nosso povo...". (Cf. Daniel, 12, 1).
Neste caso, como podia permitir-se Jesus, sem cair em uma heresia blasfematória indiscutível, rechaçar a esse Grande Príncipe, protetor de Israel segundo a vontade divina, e reduzi-lo à classe de poder demoníaco, no evangelho do João?:
"Agora o Príncipe deste Mundo será arrojado fora..." (Cf. João, 12, 31).
"Porque vem o Príncipe do Mundo, que em mim não tem nada..." (Cf. João, 14, 30).
"O Príncipe deste Mundo já está julgado ..." (Cf. João, 16, 11).
Depois disto, à Igreja ainda lhe ocorrerá constituir uma Archicofradia de San Miguel, cuja sede se acha precisamente no famoso monte de dito nome (Mont Saint-Michel), a "maravilhosa do Ocidente", e difundir um exorcismo especial colocado sob o patrocínio do arcanjo.
NOTAS COMPLEMENTARES
Observar-se-á que os termos mais freqüentes utilizados nos Evangelhos canônicos para designar os espinhos da coroa são (nos originais gregos) akanthon (Mateus, 27, 29, e João, 19, 2) e akanthinon (Marcos, 15, 17). Lucas ignora a existência da citada coroa.
Pois bem, esse termo está muito próximo ao também grego de akanthos, que designa o acanto ornamental, e não ao temível e doloroso rhamus spina christi, de espinhos de oito centímetros de longitude. Porque o acanto possui uma espécie espinhosa e outra não espinhosa. Por outro lado, o grego akane e akanès designa uma cesta, termos ambos que se aproximam de akanea: espinheiro (arvorezinha). A coroa de espinhos da suposta Paixão seria uma corriqueira e insignificante cesta de barriga para baixo, a que teriam arrancado o fundo? Neste caso, no lugar da crucificação seria onde teria lugar este ilegal ultraje, mais tarde e por parte dos adversários judeus de Jesus. Porque uma vez crucificado ficava abandonado às rapinas e urubus de todas as espécies, a lei romana já não protegia o cadáver...
O famoso sudário do Turín (existem trinta e nove exemplares...) não prova nada, já que desde sua aparição, na Idade Média, a Igreja proíbe que se faça ostentação dele, e o bispo de Troyes declarou que recolhera a confissão do falsificador que o realizou.
26 - O segredo de Simão de Cirene
E logo Deus, às vezes, faz um milagre! Pionius adormeceu à mão de seus verdugos... O sangue de Policarpio apagava as chamas de sua fogueira!
GUSTAVE FLAUBERT, La tentation de Saint Antoine, IV
Qualquer que tenha lido o relato da Paixão de Jesus sabe que, debilitado pela flagelação prévia, não pôde levar sua cruz até o lugar de sua execução, e que os legionários romanos requereram para isso os serviços de um tal Simão, originário de Cirenaica. Tomemos o texto mesmo dos evangelhos e anotemos cuidadosamente seus mínimos detalhes: "depois de haver-se divertido com ele, tiraram-lhe o manto, puseram-lhe seus vestidos e lhe levaram a crucificar. Ao sair encontraram a um homem de Cirene, de nome Simão, ao qual requereram para que levasse a cruz". (Mateus, 27, 31-32). "Depois de haver-se burlado dele, tiraram-lhe a púrpura e lhe vestiram seus próprios vestidos. Tiraram-lhe para lhe crucificar e requereram a um transeunte, um certo Simão de Cirene, que vinha do campo, o pai de Alexandre e de Rufo, para que tomasse a cruz" (Marcos 15, 20-21).
"Quando lhe levavam, jogaram mão de um certo Simão de Cirene, que vinha do campo, e lhe carregaram com a cruz para que a levasse atrás de Jesus". (Lucas, 23, 26-27).
João, em seu evangelho, ignora totalmente a existência desse Simão de Cirene, e o que é mais ainda, viu o Jesus levar ele mesmo sua cruz: "Tomaram, pois, ao Jesus, que, levando sua cruz, saiu no local chamado Calvário, que em hebreu se diz gólgota". (João, 19, 16-17).
Assim, o "apóstolo bem-amado", a mais possível testemunha ocular dos fatos, não viu a não ser a um só portador da cruz patibular, e era o próprio Jesus. O mesmo acontece nos Atos dos Apóstolos e nas Epístolas, tanto nas do Paulo, Simão-Pedro, ou João como nas do Santiago, todos os quais ignoram a esse Simão de Cirene. E muito mais tarde, no século IV, Eusebio da Cesaréia, em sua História eclesiástica, não o menciona tampouco.
O que explica que o Grand Dictionnaire de théologie catholique de Vacant não contém nenhuma rubrica com dito nome, e que o Dictionnaire de Bible de Vigouroux se limita a resumir em umas poucas linhas muito breves o que dizem Mateus, Marcos e Lucas.
Desse silêncio um pouco inquietante, e que permitirá sonhar ao exegeta liberal, habituado às argúcias dos antigos tabeliães, Daniel-Rops consola-se rapidamente declarando: "Pode admitir-se que o homem que levou pessoalmente a cruz recebeu dela a graça de sua conversão". (Cf. Daniel-Rops, Jesus em seu tempo, XI). Mas se seus filhos Alexandre e Rufo foram, como se viu, ulteriores discípulos de Saulo-Paulo, que logo se retiraram dentre seus fiéis (I Timóteo, 1, 20; II Timóteo, 4, 14), isso significa que o cristianismo de Paulo não correspondia ao que eles esperavam dele, o que nos induz a tirar a conclusão de que Simão, seu pai, era um zelote, de onde sua formação inicial, que os levou a abandonar a nova religião conservadora, pro-romana, e contrária à lei de Moisés, do tal Saulo-Paulo.
E aqui se expõe já uma primeira pergunta. Os ensinos e os ritos da Igreja católica nos falam de uma "Via Crucis" com o passar do qual Jesus, afligido pelo peso da cruz, caiu ao chão no transcurso das quatorze "estações" do chamado "Caminho". E se recomenda encarecidamente que se faça partícipe de seus benefícios aos meninos em idade precoce: "Assim, também um bebê de três ou quatro anos de idade pode efetuar, com inteligência e emoção, uma rápido via crucis" (Cf. Liturgie, Paris, 1947, Bloud & Gay, P. 989). Evidentemente, algo do mais apropriado para sua idade!
No curso desta reconstituição de uma via dolorosa puramente imaginária, durante a qual Jesus caiu supostamente um certo número de vezes, há inclusive uma mulher que, ao secar o rosto do Mestre, encontrou-se com que este se fixou milagrosamente desenhado sobre o tecido que ela utilizara. A essa santa mulher lhe dá o nome de Verônica, já que em latim verax significa verdadeiro, e em grego ikon quer dizer imagem. Por outra parte, seria por causa dessas repetidas quedas pelo que o centurião exactor mortis, a quem correspondia ordenar todo o aparelho judicial para a execução, pediria ao Simão, o Cireneu, que aliviasse de sua carga ao Jesus, para lhe permitir assim alcançar ainda com vida o lugar da crucificação.
Na leitura dos evangelhos canônicos e dos versículos que citaremos a seguir, constatar-se-á que não há nada de tudo isso, e que nenhum texto apostólico nos contribui tais detalhes. Interessados fabricantes da lenda cristã foram quem, ao longo dos séculos, imaginaram semelhantes coisas. E como não deixaram de adjudicar suculentas indulgências, o "Via Crucis" se converteu em uma cerimônia bastante lucrativa, sem omitir o aspecto comercial de seus acessórios materiais. Porque também os evangelhos apócrifos mais antigos ignoram, igualmente a seus irmãos os canônicos, esses detalhes destinados a sensibilizar às multidões crentes, assim como a própria existência de Simão, o Cireneu. E, indevidamente, isso incitará ao historiador curioso a aprofundar nesse estranho enigma.
É evidente que se os legionários romanos requeriam a ajuda de Simão à saída do pretório (Mateus, 27, 31), toda a lenda da via dolorosa se vem abaixo, já que nada nos evangelhos evoca a menor queda, nem tão somente a mínima dificuldade de marcha por parte de Jesus. E, portanto, todo o ritual da "Via Crucis", sua solene festa da primeira sexta-feira de março, suas reconstituições em Jerusalém durante a Semana Santa, e em tantas cidades do mundo, só repousam sobre uma tradição mendaz e um simples interesse comercial e turístico.
E nossa primeira pergunta será a seguinte: por que se inventou esse suplemento de sadismo e se acrescentou a um conjunto já de por si bastante cruel?
Tudo o que agora vai seguir, permitirá lhe dar uma resposta.
Quando a gente relê atentamente, pesando bem todos os termos, certos textos cristãos dos primeiros séculos, fica surpreso por uma série de afirmações tendenciosas a consolidar a tradição comum, quer dizer, que foi Jesus, e em modo algum nenhum outro personagem, quem foi crucificado.
Coisa que seria bastante supérflua se a tradição clássica não tivesse discutido antigamente. Pois bem, vejamos alguns desses textos: "Oh, insensatos gálatas! Quem lhes fascinou a vós, ante cujos olhos foi apresentado Jesus como morto na cruz?..." (Cf. Paulo, Epístola aos Gálatas, 3, 1).
"Foi realmente atravessado por pregos, em sua própria carne, sob o Pôncio Pilatos e Herodes o Tetrarca..." (Cf. Ignacio da Antioquia, Epístola aos esmirnos, 1).
"Sabemos que foi ele quem foi crucificado, nos dias de Pôncio Pilatos e do príncipe Arquelao, e que foi crucificado entre dois ladrões, e que junto com eles desceram-no da árvore da cruz e foi sepultado no lugar chamado Qaranjo..." (Cf. Le Testament en Galilée, III, 20; apócrifo etíope, Imprimatur em Paris, 1912).
É evidente que se a crucificação real de Jesus não fosse posta jamais em dúvida, essas peremptórias afirmações resultariam das mais supérfluas. Por outro lado, a negação do fato surgiu muito em breve, já que Ignacio da Antioquia, um dos quatro "Padres apostólicos", era discípulo direto de Simão-Pedro, e segundo a tradição eclesiástica viveu dos anos 35 a 107 de nossa era. Também aqui seguimos encontrando nas fontes mesmas do movimento.
E outro apócrifo célebre abre uma primeira greta na trama da lenda clássica. Julgue-se, na leitura dos Atos de João: "Essa cruz, pois, reúne nela todas as coisas com uma palavra, ela as separa das coisas inferiores, e, ao ser única, conduz todas as coisas à Unidade. Mas não é a cruz de madeira que verá ir daqui! E quem está sobre a cruz tampouco sou eu, a quem agora não vê, e de quem só ouve a voz. Teve-me por quem não sou, ao não ser o que parecia ser a muitos outros, já que me tinham por outra coisa, vil e indigna de mim..." (Cf. Atos de João, XCIX).
Por conseguinte, nesse estranho texto Jesus revelaria a seu bem-amado João que não foi ele quem viu crucificado na cruz de madeira, a cruz material, a não ser outro personagem, vil e indigno de ser sequer renomado. E se o leitor duvida ainda de nossa interpretação desta passagem, vejamos o que segue, que contribui ainda mais prova: "Entretanto, eu não padeci nenhum dos sofrimentos que me viram sofrer... Em uma palavra, o que se diz de mim, não me aconteceu, e o que não se diz, em troca, sofri-o ..." (Cf. Atos de João, CI).
Aqui vemos apontar uma interpretação oficial a que se deixou um tempo desenvolver-se livremente, a fim de sufocar melhor a verdade histórica, muito embaraçosa. Trata-se da tradição gnóstica chamada dos Docetas, segundo a qual o corpo de Cristo não foi a não ser uma pura aparência, que o fez assim insensível ao sofrimento e à impureza próprios da natureza humana. Permanece um eco disso em Corán, o que testemunha que Mahoma também consultou abundantemente velhos documentos gnósticos no que concerne a sua concepção do personagem de Jesus: "Não lhe deram morte, não lhe crucificaram! Um corpo fantástico enganou a sua barbárie... Os que discutem sobre este respeito não têm mais que incertezas, e a verdadeira ciência não lhes ilumina. O que eles seguem é uma opinião, mas não fizeram morrer ao Jesus..." (Cf. Corán, IV, 156).
Esta tradição irracional, mas que enfebrecia o entusiasmo dos exaltados da mística, foi professada por muito grandes doutores cristãos, gnósticos ou ortodoxos, até os séculos IV e V. De um tratado perdido de Hipólito de Roma, reconstruído a partir dos textos do pseudo-Tertuliano (capítulo I), de Philaster (Diversarum haereseon liber, XXXII), e de Epifanio (Adversus Haereses, XXIV, 1-4 e passim), Eugène de Faye extrai a seguinte conclusão em seu livro Gnostiques et Gnosticisme: "Conforme diz (Hipólito de Roma -N. do A.-), Basílides teria professado um docetismo extremo em matéria de cristologia. Esse docetismo não tinha em si nada que pudesse sentir saudades à Clemente de Alexandria. Não era muito menos doceta que Basílides! Quem não o era mais ou menos no século II? Mas o que não deixou de indignar e de excitar seu espírito crítico seria a fábula da substituição de Jesus Cristo por Simão o de Cirene. Não é mais estranho que não o mencionasse em nenhuma parte? Se verdadeiramente seu autor era o próprio Basílides, como perdera Clemente uma ocasião tão boa de confundi-lo? Como um Agrippa Castor não faria, pelo menos parece, menção alguma? Carreguemos esta absurda invenção na conta dos adeptos posteriores da seita, e estaremos provavelmente mais perto da verdade histórica ..." (Cf. Eugène de Faye, Gnostiques et Gnosticisme, P. 53).
Nesta conclusão do pastor de Faye há possivelmente uma contradição. Clemente de Alexandria provavelmente falou dela, quão mesmo Agrippa Castor, mas os monges copistas os censurariam espontaneamente, enquanto que os encarregados de copiar ao Epifano não acreditaram útil. Por isso é pelo que podemos encontrar esta estranha tradição na Homilia XX de Epifano e em Teodoredo (Hoer. fob., I), quem nos resume a opinião de Basílides: "Jesus na realidade não se encarnou, simplesmente adotara a aparência de um homem, e, durante a Paixão, burlava-se dos judeus e do crucificado, sem que eles o vissem. Logo ascendeu de novo aos Céus, sem ser conhecido nem pelos anjos nem pelos homens..." (Cf. Epifano, Homilia, XXIV). O que demonstra, sem discussão possível, que esta afirmação se transmitiu já aos meios gnósticos de sua época, e que o célebre doutor a utilizava. Agora bem, Basílides ensinou em Alexandria por volta dos anos 120-140 de nossa era. Assim, também aqui, encontramo-nos nas fontes mesmas do cristianismo. Agora só fica, pois, examinar mais de perto estes ensinos realmente curiosos.
Mas, acima de tudo, o que terá que acreditar de tudo isto?
Segundo Basílides, no momento da crucificação no Gólgota, Jesus "se burlava dos judeus e do crucificado, sem que eles o vissem".
Consultemos agora ao Paulo, em sua Epístola aos Colossences: "...Cancelou a ata escrita contra nós com suas prescrições, que nos era contrária, e a tirou do meio, cravando-a na cruz; e tendo despojado aos principados e às potestades, exibiu-os publicamente, triunfando deles pela cruz..." (Cf. Epístola aos Colossences, 2, 13).
Como se vê, para o Basílides, Jesus se burla do crucificado; e, para o Paulo, Jesus faz brincadeira dos Arkontes, cravados à cruz. Há aí mais que um paralelismo, se a gente quer tomar por moléstia de remeter-se ao que nos dizem os já citados Atos de João, e voltá-los para ler atentamente: "quem está sobre a cruz tampouco sou eu... O que se diz de mim, não me aconteceu... ". E o que estava na cruz era um ser vil, indigno dele...
Além disso, ficam ainda as estranhas afirmações contrárias (que não se imporiam sem uma razão de peso) do Testament no Galilée e da Epístola aos esmirnos, que nos asseguram que foi Jesus o crucificado, e que foi realmente sua própria carne a que sofreu esse suplício, e não outra pessoa.
Outra tradição, que procede diretamente da gnosis caínica, pretende que foi Judas Iscariotes o crucificado em lugar de Jesus, esse Judas em quem tinha entrado Satanás quando foi devotado o pão molhado de vinho.
E, como novo eco dessa enigmática tradição, os maniqueos ensinavam que o Príncipe das Trevas fora crucificado em lugar de Jesus...
Citaremos a este respeito a Epître du Fondement, de Manès, que nos proporcionam Alexandre de Lycopolis e Evode d'Uzale. Pois bem, nós sabemos por fontes fidedignas que o fundador do maniqueísmo fizera reunir por seus primeiros discípulos textos cristãos extremamente antigos, textos que desapareceram com a destruição dos seus. Vejamos esta passagem: "O inimigo esperava ter crucificado ao Salvador, Pai dos Justos. Mas foi ele quem se encontrou crucificado. Nesta circunstância a realidade foi muito diferente às aparências. O Príncipe das Trevas se viu, pois, sujeito à cruz; levou com seus companheiros a coroa de espinhos, e foi revestido com as vestimentas de púrpura. Bebeu o fel e o vinagre que, segundo alguns, lhe deu a beber ao Salvador. Todos os sofrimentos que este pareceu padecer, foram reservados aos tenebrosos Arcontes. Eles sozinhos foram atravessados pelos pregos e a lança..." (Cf. Evode d'Uzale, Des croyances manichéenes, 38).
É possível que os Templários recolhessem em Oriente ecos desta estranha tradição, o que justificaria à seus olhos o cuspir sobre o crucifixo. Mas o que é seguro é que a cruz segura por forquilhas, chamada também "cruz dos loucos" ou "cruz cornuda", e que, por isso parece, foi o talismã de Wallenstein, aonde fora necessariamente levada como paradigma iniciático pelos cátaros, bogomilos e neomaniqueos.
Dito isto, e tendo em conta que os legionários romanos com toda segurança não crucificaram a Lúcifer em lugar de Jesus, e com razão, terá que admitir que foi Simão, chamado de Cirene, quem tomou seu lugar na cruz. E fez desaparecer essa realidade histórica, tão pouco brilhante, por isso se deu nascimento à lenda do diabo crucificado! Tanto em um caso como no outro era, pois, o "veículo" carnal do demônio o que tinha sofrido o suplício da cruz. Terá que reconhecer que tudo isso, uma vez afastado o véu das fantasmagorias, é bastante estranho. E à mente acode uma pergunta: Que fato oculto cuidadosamente, pôde justificar essa enigmática questão entre exegeta, questão da qual quer apartar a todo custo ao simples crente, de onde o voluntário aspecto nebuloso de suas afirmações recíprocas?
E uma vez mais será Celso, em seu terrível Discurso verdadeiro, quem nos porá sobre a pista. Como amigo de juventude do imperador Juliano, sabia, igual ao imperador, há que atener no que este último chamava com desprezo os "galileus", e sobre as origens do cristianismo. É evidente que, ao estar os dois associados a uma reação filosófico-pagã, os arquivos da chancelaria imperial, que normalmente estavam fechados às pessoas comuns, estavam-lhes totalmente abertos. Pois bem, o que nos diz ele? Isto, que está muito claro: "Mas como receber como Deus àquele que, entre outras coisas é motivo de queixa, não realizou nada do que prometera? Àquele que, convencido, julgado, e condenado a suplício, escapou vergonhosamente, e foi capturado de novo nas condições mais humilhantes, graças à traição daqueles mesmos aos quais ele chamava seus discípulos?... (Cf. Celso, Discurso verdadeiro, II, 16, J.J. Pauvert, édit., Paris, 1965).
Como se observará, aqui não se trata já de Judas Iscariotes. Aquele não desempenhou nenhum papel mais, além do da primeira detenção de Jesus, porque em realidade houve dois, com seis semanas de intervalo, como logo veremos. Em sua segunda captura, foram alguns de seus "discípulos" que o entregaram aos romanos, e também a estes tentaremos lhes dar um nome. Houve, portanto, duas detenções de Jesus, separadas por uma evasão e uma fuga, o que implica dois processos. E a brevidade de que narram os evangelhos, que é o segundo, brevidade que sempre surpreendeu aos historiadores e que fez correr muita tinta, desprende-se do fato de que não consistiu a não ser em uma simples e rápida identificação, cujas formalidades legais eram muito singelas. Pilatos fez apresentar ao Jesus ante o Caifás e os principais sanedritas, que representavam o poder religioso, e saduceu, e logo ante Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia, de quem dependia Jesus por seu nascimento (Lucas, 23, 7), o que implica que não nascera em Presépio da Judéia, a não ser em Presépio da Galiléia, próxima ao Séforis, pátria de sua mãe Maria. Continuando, quando tudo estava como devia ser, Pilatos o mandou crucificar sem mais preâmbulos, e desta vez de maneira definitiva.
Daniel Massé conta que, em certas versões do Talmud de Babilônia, leu que Jesus foi capturado pela primeira vez seis semanas antes da Páscoa. Assim se explicariam as contradições entre os evangelhos sinóticos de Mateus, Marcos e Lucas, e o de João, já que se trataria do relato de duas fases diferentes do final de Jesus. Isso justificaria que João não fale de Simão de Cirene, quão mesmo os outros evangelhos apócrifos, e o fato de que o Evangelho de Pedro e outros apócrifos não citem jamais ao Judas Iscariotes. A razão é que uns e outros não relatam a mesma fração das últimas semanas da vida de Jesus-bar-Juda.
Mas, qual foi, então, em realidade, o papel exato de Simão, o Cireneu?
Observaremos, em primeiro lugar, que a idéia da substituição se acha já em germe em nossos evangelhos e na trama geral de todos os relatos para-evangélicos, com essa substituição de Jesus-bar-Juda e Jesus-Bar-abbas. Porque, como admitir que este último, "culpado de assassinato no curso de uma rebelião" (Marcos, 15, 6-15), na espera de ser executado na cruz, encarcerado com seus cúmplices, possa ser indultado pelo procurador Pôncio Pilatos, verdadeiro "governador à russa", no sentido que podia dar-se a esse termo na época do zarismo? Pilatos era um procurador de mão dura, justo mas implacável, que não dependia mas sim do legado imperial de Síria, e por conseguinte era dono absoluto de toda a Palestina, dado que, ao ser superior hierárquico dos tetrarcas colaboradores de Roma, estes estavam virtualmente à suas ordens. Por que pretender que este homem sentisse escrúpulos frente a um rebelde, que era além guerrilheiro com freqüentes tendências ao banditismo puro e simples, e que tocava diferentes meios, entre eles o da prostituição? E como podia distinguir e oferecer, no lugar de Jesus, a um criminoso qualificado como famoso, e que era igual de indesculpável ante as leis de Roma?
Que o leitor se remeta ao capítulo 23, "Jesus-Barrabás", e que releia tudo o que contribuímos sobre a tese negativa da existência concreta desse tal Barrabás. Repetimos, Jesus-Barrabás não é outro que Jesus-bar-Juda. Daí o fato de que seja ignorado em tantos textos ulteriores.
Voltemos agora para o Simão o de Cirene, e para isso tomemos o texto grego e suas diversas variantes nos mais antigos manuscritos evangélicos conhecidos:
1º. Cireneu aparece neles como Kurenaion, traduzido por Kureneo no texto grego dos Atos dos Apóstolos (2, 10).
2º. diz-se nos evangelhos sinóticos que Simão, o Cireneu, "voltava do campo", mas algum de seus manuscritos gregos iniciais nos dizem que "vinha a seu encontro", por exemplo, o Codez Bezae, ou Codez Cantagrigiensis, que é do século V.
Pois bem, em grego kureo significa encontrar, e esse prefixo figura nos verbos que significam lutar:
- kurebasia: combate, pendência, enfrentamento, duelo, violências;
- kurebazo: brigar, combater, lutar, enfrentar-se.
Não procuremos mais! Esse termo de kurenaion, ao que quer fazer significar cireneo, não resulta ser aqui a não ser uma expressão imprópria, que designa simplesmente o fato de que Simão não voltava absolutamente dos campos, mas sim ia realmente "ao encontro" do manípulo legionário que conduzia ao Jesus ao lugar de sua execução. E, além disso, com o sentido habitual de oposição, combate, violências, etc., tal e como o relata o Codez Bezae.
E aí foi onde Jesus conseguiu fugir, no transcurso dessa nova revolta a mão armada, enquanto que Simão, chefe do comando zelote liberador, foi capturado pelos romanos, quem imediatamente depois lhe crucificou em lugar de Jesus.
Esses dois fatos, aparentemente distintos, mas perfeitamente relacionado pela lógica mais absoluta, estão justificados historicamente por:
- Celso, quem em seu Discurso verdadeiro nos diz que Jesus conseguiu fugir, e fugir de maneira vergonhosa, já que seu liberador Simão de Cirene foi crucificado em seu lugar, tal como contam:
- Basílides de Alexandria, em seu Evaggelion, citado por Hipólito de Roma, São Epifano e Teodoredo, e que assim, segundo o
- ao Flavio Josefo, em suas Antigüidades judaicas e sua Guerra dos Judeus, com o combate do monte Garitzim, na Samaria.
Mas observemos já o fato de que não deixa de ser do mais surpreendente que o "Filho de Deus", vindo livremente aqui embaixo para oferecer-se em sacrifício e aplacar a cólera de seu Pai, aproveitasse a primeira ocasião para fugir, e permitir que crucificassem em seu lugar a seu humilde liberador.
Sobre o período da vida de Jesus que se estende desde essa evasão até sua captura definitiva, obtemos o seguinte de Flavio Josefo; mas, em primeiro lugar, precisemos a data exata. Em Jesus ou o segredo mortal dos templários, nos aderimos à tese do ano 35 de nossa era (789 de Roma, segundo Varron) para a morte de Jesus. Vejamos, pois, o que diz Flavio Josefo: "Os samaritanos não careceram tampouco de distúrbios, pois estavam incitados por um homem que não considerava grave o mentir, e que o combinava tudo com finalidade de agradar ao povo. Ordenou-lhes que subissem com ele ao monte Garitzim, ao que têm como a mais Santa das montanhas, lhes assegurando com veemência que, uma vez chegassem ali, mostraria uns copos sagrados enterrados por Moisés, quem os tinha colocado ali em depósito. Eles, acreditando que suas palavras eram verídicas, tomaram as armas, e, depois de instalar-se em um povo chamado Tirathana, aderiram à quantas pessoas puderam recolher, de forma que iniciaram a ascensão da montanha em massa. Mas Pilatos se apressou a ocupar com antecipação o caminho pelo que deviam efetuar a ascensão, e enviou ali cavaleiros e soldados à pé, e estes, carregando contra as pessoas que se reuniram ao povo, mataram uns na refrega, puseram outros em fuga, e a muitos os levaram prisioneiros, os principais dos quais foram executados por ordem de Pilatos, assim como os mais influentes dentre os fugitivos". (Cf. Flavio Josefo, Antigüidades judaicas, XVIII, IV, 1, manuscrito grego).
Sobre o lugar da detenção de Jesus depois desta aventura do monte Garitzim, sobre as próprias condições nas quais foi capturado, encontramos o seguinte no Talmud de Jerusalém: "Para melhor espiar ao sedutor (das multidões), ocultou-se à duas testemunhas na câmara do fundo, e colocou ao acusado na câmara exterior, deixando arder uma luz a seu lado, a fim de poder vê-lo enquanto se escutava sua voz... Assim se fez com o Ben Sotada na Lydda! Ocultou-se, para espiá-lo, a dois sábios doutores, logo lhe conduziu (em seguida) ante o tribunal, e foi lapidado" (Cf. Talmud de Jerusalém, Sanedrín, 25, cf. Yebamoth 15 d.).
Sabemos que o apelido do Ben Sotada, em hebreu "filho da separação", é um epíteto injurioso que os talmudistas aplicaram ao Jesus daí em diante, durante suas polêmicas cristãs que formavam os discípulos de Saulo-Paulo. O motivo era que Jesus descendia, através de Salomão, de David, e de Betsabé, quer dizer, de um casal adúltero e assassino, o primeiro por ter mandado matar Urias, marido da segunda, que consentiu isso; portanto, trata-se efetivamente de nosso personagem, e não de um homônimo. Por outra parte, esta passagem nos dá o lugar de sua captura final: Lydda, cidade situada a trinta quilômetros do monte Garitzim, no caminho de Jerusalém ao Joppe. Por último, primeiro foi capturado e interrogado por seus adversários saduceus nessa mesma cidade, e logo entregue por eles aos romanos. O que coincide com o relato de Celso em seu Discurso verdadeiro, só que confunde a traição de Judas e a dos saduceus, a quem toma por discípulos de Jesus. Pelo contrário, o Talmud de Jerusalém pretende que foi lapidado, com o fim de ocultar a crucificação por parte dos romanos de um "filho de David" que lhes fora entregue pelos saduceus. Isto não lhes parecia muito honorável, e além disso era ilegal. É provável que os saduceus cedessem ante o medo à represálias romanas em caso de negarem-se.

Mas, como se vê, as diversas migalhas de informação que nos chegaram de fontes diversas: judias gerais com o Talmud, particulares com o Flavio Josefo, romanas com o Celso, concordam todas perfeitamente, incluída essa suposta em liberdade por parte de Pilatos, imaginada pelos monges bizantinos, e depois continuada pelos copistas da versão eslava, para dissimular melhor a fuga de Jesus à Samaria.
Logo Pilatos caiu em desgraça ante o Vitelio, cônsul e governador de Síria, por motivos que logo analisaremos: conforme parece, foi devido às queixas desses samaritanos. Já veremos o que devemos acreditar de tudo isso.
Recorreu Pilatos ao Cesare apello, a apelação ao César, privilégio de todo cidadão romano, e seu em especial, por ser amicus Caesaris? É muito possível. Mas, do mesmo modo, também Vitelio pôde não querer lhe aplicar uma sanção por si mesmo, e remeter-se ao imperador, neste caso Tibério, que já estaria devidamente informado. Seja o que for, Pilatos embarcou em direção à Roma, aonde, entretanto, não chegou até depois da morte do imperador, que não devemos esquecer que se converteu em seu sogro por aliança, ao haver-se casado (segundo certas tradições) em terceiras núpcias com Julia, avó de sua esposa Claudia Procula. Este óbito foi, evidentemente, muito contrário para Pilatos, como veremos a seguir.
De todo modo, aqui abriremos um parêntese. Além de Flavio Josefo, de Filón de Alexandria e dos textos neo-testamentários (evangelhos, atos apostólicos, tão canônicos como apócrifos), Pôncio Pilatos, procurador da Judéia, só aparece citado em Tácito, em seus Anais, libero XV, XLIV. O que induz a certos historiadores racionalistas a negar sua existência real. É muito fácil lhe dar uma resposta a isto: Tácito não nos dá os nomes de todos os procuradores que governaram Judéia, e isso não significa que Roma deixasse às vezes a essa província, tão difícil de governar, sem seu representante. Pois bem, nós conhecemos os nomes de todos os procuradores, mas só através de Flavio Josefo, e Pilatos figura efetivamente entre eles, em várias fases de ditos relatos.
Além disso, possui-se a placa dedicatória de um edifício construído em Cesaréia Marítima em honra do imperador Tibério. Em tal inscrição permanecem ainda legíveis os nomes de Tibério e de Pôncio Pilatos. Essa placa se conserva na atualidade no Museu de Israel, em Jerusalém, e responde às dúvidas sobre a existência do procurador.
Pois bem, como dissemos antes, Tibério faleceu em 16 de março do ano 37 de nossa era, em Misena. Se os fatos de Samaria relatados antes por Flavio Josefo se desenvolveram nos primeiros meses do ano 35, pode admitir-se que a queixa dos samaritanos (se foi esse o verdadeiro motivo da queda em desgraça de Pilatos, o que é muito duvidoso, como logo veremos) não foi levada ao governador de Síria nem admitida até vários meses depois de tais acontecimentos. Porque Vitelio jamais admitiria que se exigisse dele uma resposta imediata. Então se ordenou uma investigação sobre os fatos alegados. A prudência romana não podia deixar descuidada à Samaria, província em geral pacífica. Quanto tempo se demorou, depois da admissão dessa queixa, em decidir tal investigação? Quanto tempo durou? Quanto tempo transcorreu entre seus inícios e a decisão do governador Vitelio de enviar Pilatos ante Tibério César? Quantas semanas, ou inclusive meses, passaram desde que se decidiu enviá-lo à Roma, até que se embarcou? E quantas semanas no mar, desde sua partida até a morte de Tibério?
Entre o final de Jesus, em abril do ano 35, e o de Tibério, em março do 37, transcorreram dois anos. Se recordarmos que entre a apelação ao César formulada por Saulo-Paulo em Cesaréia Marítima e a sentença final em Roma passaram-se no mínimo trinta e dois meses, na opinião dos exegetas católicos mais qualificados, o lapso de tempo comprometido pelos fatos antes citados não pode ser mais plausível, e inclusive resulta muito breve.
E agora voltamos para episódio narrado por Flavio Josefo. Quem era esse impostor (termo usado por Arnauld d'Andilly em sua tradução do grego) que amotinou aos samaritanos? Por que, se se tratava era simplesmente de encontrar uns copos sagrados ocultos antigamente pelo Moisés, mandou-lhes tomar as armas? E esse impostor, de onde vinha? A resposta é fácil. Chamava-se Jesus... E vinha, naturalmente, da Judéia, mais exatamente de Jerusalém, de onde fugira depois de sua liberação pelos zelotes, deixando que crucificassem em seu lugar a seu chefe, Simão, mais tarde chamado "de Cirene".
A tradução de Arnauld d'Andilly nos diz que Pilatos "capturou alguns, e mandou cortar a cabeça dos principais ...".
Esse tipo de execução se reservava geralmente aos prisioneiros executados no próprio campo de batalha, já que suas cabeças levavam a autoridade interessada, como prova. Não foi isso, evidentemente, o que se aplicou ao Jesus, já que segundo nos diz foi "entregue pelos seus" (Cf. Celso, op. cit.). A fim de mostrar ao povo judeu que Roma tinha sempre a última palavra, tiveram-no encadeado a Jerusalém, e depois de havê-lo apresentado rapidamente às três autoridades legais para sua identificação, crucificaram-no, desta vez definitivamente, tal como o descrevemos já em uma de nossas obras precedentes. E isso justifica, além disso, que se citem dois lugares como convocação de sua crucificação. Nos evangelhos canônicos trata-se do Gólgota, ao noroeste da cidade, imediatamente depois da guerra do Efraim. Nas Ata Pilati trata-se do Monte das Oliveiras, ao leste de Jerusalém, depois de ter franqueado a Porta Dourada. A evasão teve lugar, forçosamente, enquanto conduziam Jesus para o Gólgota, e a verdadeira crucificação teve lugar, portanto, nas Oliveiras. Agora veremos por que: Daniel-Rops, em Jesus em seu tempo, capítulo X, descreve-nos o lugar onde se desenvolveu o pseudo-episódio da mofa, no curso do qual os veteranos da coorte se burlaram de Jesus, "rei dos judeus". Nesse lugar há uma espécie de mosaico chamado lithostrotos. Pois bem, este se encontra situado "em um ângulo do pátio de Antonia, perto de uma escada que conduzia ao corpo de guarda", conforme segue nos precisando Daniel-Rops. Assim, para ir à Gólgota, Jesus passou com sua escolta legionária por diante da Porta do Norte, de onde saía precisamente o caminho que conduzia à Samaria. E saiu da cidadela Antonia, e não do palácio de Herodes, que se convertera em residência do procurador. Pelo contrário, na segunda e definitiva saída para seu destino, foi desta última convocação de onde se encaminhou para o monte das Oliveiras, ou, mais provavelmente ainda, para o cemitério ritual de tal nome.
Dessas duas fases distintas das últimas semanas de Jesus, desses dois processos, tentou-se realçar um só relato, com o fim de escamotear certa evasão, bastante irritante em um "filho de Deus". E isso explica as incoerências, as contradições e as divergências existentes entre os textos neo-testamentários.
Além disso, nos meios gnósticos, que logo escapariam à disciplina escriturária da grande Igreja, nasceria dessas mesmas mesclas tão torpes uma tradição bastarda que, ao perpetuar-se, contaria que Jesus não apareceu na cruz, a não ser um tal Simão, chamado "de Cirene", quem também teria levado "a cruz de Jesus". A levou, isso é certo, mas não no sentido que se daria a esta expressão nos futuros acertos dos evangelhos.
Porque quando Basílides de Alexandria, que era discípulo de Glaucia, que por sua vez era discípulo de Simão-Pedro, afirma-nos que "tudo aconteceu como dizem os evangelhos", se tivermos em conta que para ele não foi Jesus o crucificado, a não ser Simão "de Cirene", este fato nos demonstra ipso facto que tais evangelhos não são os que chegaram até nós, e que estes últimos não são outra coisa que textos manipulados, elaborados no século IV sob a vigilância de Eusebio da Cesaréia. Em sua época, por volta dos anos 120-140 de nossa era, havia outros evangelhos, que desapareceram no século IV, e é a eles aos quais faz alusão Basílides.
Agora fica por estudar as condições daquela liberação momentânea de Jesus, liberação que é óbvio que só pôde produzir-se com a ajuda de numerosas cumplicidades, e, sobretudo, com o acordo tácito de autoridades romanas, acordo secreto sem o qual a evasão não podia sair bem. E também aqui, como dizia Byron, a verdade é sempre estranha, mais estranha que a ficção...

27- A evasão de Jesus
Com uma mentira como estímulo, pesca-se uma carpa de verdade...
Shakespeare, Hamlet
Se alguém consulta numerosos Indique bíblicos, constatará que um dos versículos mais assombrosos do Novo Testamento não aparece mencionado neles. Com efeito, se um busca a palavra "liberar", a palavra "Pilatos", ou o termo "liberar", vê-se forçado a constatar que o versículo 12 do capítulo 19 do Evangelho de João não têm nenhuma referência. E isso conduz ao historiador, curioso por natureza, e mais ainda se for imparcial, a procurar o porquê dessa estranha omissão. Vejamos, pois, essa passagem: "Após, Pilatos procurará liberar ao Jesus..." (Cf. João, 19, 12).
Mateus (27, 11-31), e Marcos (15, 1-20) dão a entender a mesma intenção de parte do procurador. Mas em troca Lucas é igualmente categórico como João: "De novo Pilatos se dirigiu a eles, querendo liberar ao Jesus..." (Cf. Lucas, 23, 20).
Tomemos agora o manuscrito eslavo da Guerra dos judeus de Flavio Josefo, que nesta versão se intitula A tomada de Jerusalém. Trata-se de uma transcrição efetuada pelos monges ortodoxos na Idade Média; os manuscritos datam dos séculos XV e XVI, sobre cópias perdidas dos séculos XI-XII. A célebre interpolação relativa ao Jesus, que figurava habitualmente nas versões gregas e árabes das Antigüidades judaicas, foi transferida aqui pelos escribas bizantinos nos séculos IV e V, o que constitui com toda segurança a melhor prova dessa manipulação intencional. Pois bem, na passagem que trata da insurreição samaritana do monte Garitzim, já relatada, lemos o que segue, e são os monges copistas ortodoxos os responsáveis: "Este (Pilatos) enviou homens, matou a muitos entre o povo, e se apoderou daquele fazedor de milagres. Investigou sobre ele e soube que fazia o bem e não o mal, que não era nem rebelde nem ávido do poder real, e lhe soltou, porque tinha curado a sua mulher, que morria. E quando retornou ao lugar de costume, continuou fazendo ali as obras acostumadas. E de novo, como grande número de gente se reuniam em torno dele, foi renomado por suas obras por cima de todos". (Cf. Flavio Josefo, Guerra dos judeus, manuscrito eslavo, II, 4).
Esta passagem é uma interpretação livre do Mateus, 27, 19.
Tínhamos ou não tínhamos razão, leitor, ao afirmar que o homem que revoltou aos samaritanos fez tomar as armas sob um falacioso pretexto, entrincheirou-se em Tirathana e foi finalmente capturado, não era outro que Jesus? E nos diz que Pilatos o soltou.
Cometeríamos um grande equívoco se supuséramos que o que acabamos de revelar aqui ao público em geral o ignoravam os exegetas católicos e protestantes. O fato de não mencionar nos Indique bíblicos essa intenção de Pilatos de liberar o Jesus constitui a prova disso. E mais quando Daniel-Rops, historiador oficial da Igreja católica, confessa-nos em Jesus em seu tempo: "Ele (Pilatos) não desejava outra coisa que a liberação de Jesus...", e "Mais que nunca quisesse soltar àquele profeta que invocava o poder divino..." (op. cit., Le procès de Jésus X, Ecce Homo). Quisesse? Mas se já o tinha feito uma vez!
Por outra parte, Epifano, em seu De Fide, aludindo ao culto que se celebra (em sua época) "em certos lugares" durante a semana da Paixão, na quinta-feira santa, à nona hora, sabe de uma tradição transmitida por alguns que afirmam que "essa quinta-feira, para a nona hora, os apóstolos puderam reunir-se com Jesus em segredo, e este efetuou com eles em sua prisão a fração do pão". (Cf. Epifano, De Fide, fragmentos publicados por Holl, P. 206, 17-20), e citados por Annie Jaubert, em La Date da Cène, P. 88).
Este surpreendente episódio nos confirma isso Victoris, bispo de Poetovio, em Pannonia, falecido no ano 304, em seu tratado De fabrica mundi.
É perfeitamente evidente que para penetrar, e além várias pessoas, no calabouço de um prisioneiro do Estado, terá que gozar de poderosos amparos, ou de cumplicidades tácitas. Pois bem, além da benevolência secreta do procurador, Jesus tinha poderosos protetores no partido fariseu, vale citar Nicodemos, "um dos principais entre os judeus" (cf. João, 3, 1), o que dá a entender que era membro do Sanedrín, ou a esses fariseus anônimos que vão advertir Jesus de que Antipas tem a intenção de fazê-lo assassinar (cf. Lucas, 13, 31). De fato, não tinha outros adversários que os saduceus, seita que agrupava à classe materialista, rica, colaboradora de Roma e inimizade dos zelotes.
Se a esses partidários lhes acrescenta as influências femininas, nada desprezíveis, para citar só Salomé II, princesa herodiana, viúva de Herodes Filipo, enteada e ao mesmo tempo sobrinha de Herodes Antipas, e Iochanah (Juana), mulher de Chuza, intendente do mesmo tetrarca, e Claudia Procula, esposa de Pilatos, constatar-se-á que não está abandonado no mundo das esferas oficiais influentes (cf. Jesus ou o segredo mortal dos templários, págs. 289 a 303; O homem que criou Jesus Cristo, págs. 183 a 202). E mais, entre Salomé II e Jesus existiram umas relações muito estreitas; estão testemunhadas por um evangelho muito antigo, que se acreditava que tinha desaparecido para sempre, e que providencialmente foi encontrado de novo no Alto Egito, em Nag-Hamadi, no ano 1947. O manuscrito é do século IV, está redigido em copto, sobre um texto inicial de princípios do século III. E nele lemos este desanimador versículo: "Jesus disse: 'Dois repousarão lá, sobre um leito... Um morrerá, o outro viverá! E Salomé disse: 'E você quem é, homem? De quem saistes para te haver metido em minha cama e ter comido em minha mesa?...'." (Cf. Evangelho de Tomás, fólio 43, versículo 65).
Isto nos parece muito claro. Porque a hipótese de um leito para comer, dos utilizados nos banquetes antigos, não é rentável. As mulheres estavam sentadas, os homens deitados, elas não tinham leito próprio, e se se recostavam depois do festim, era por convite do homem (cf. Petronio, O Satiricón, 67).
Por outro lado, pode admitir-se que no Talmud, e para evitar ser condenados à fogueira por crime de lesa majestade divina, os talmudistas dispersassem tudo que concernia ao Jesus e situassem todas as passagens que se referem a ele em épocas diferentes. Assim podiam argüir que o Jesus que eles desprezavam não era o mesmo ao qual os cristãos deificaram.
Uma singela ordem oral, integrada na tradição secreta rabínica, permitia então aos iniciados estabelecer a verdade histórica. E ante os juízes reais ou ante a Inquisição, sempre podiam jogar com as palavras e sair bem liberados do atoleiro. No Talmud de Jerusalém, por exemplo, lemos o seguinte: "Rabbi Abun disse: 'Em presença de um partidário e de um renegado que deseje voltar a ser judeu, este último terá a prioridade, a causa do fato sobrevindo'." (Cf. Talmud de Jerusalém, volume 6, tratado Horaioth, III).
É indubitável que o Jesus evocado aqui é o mesmo do Novo Testamento, embora o fato de associá-lo ao Josué-Ben-Parabia tenda a dissociar o dele. Com efeito, Josué-Ben-Parabia viveu no ano 60 antes de nossa era. Mas, admitindo que outro Jesus fosse herege naquela época, não se vê bem como, no século IV, o fato de ser rechaçado em sua petição de reintegração ao judaísmo pôde ser "grave por suas conseqüências" para os judeus de então. O único que corresponde a essa definição é o nosso. Foi de sua história de onde saíram todas as perseguições e as matanças que Israel teve que sofrer durante séculos.
Além disso, todos os Jesus citados como hereges no Talmud foram executados numa véspera de Páscoa. E essa é a chave que permite aos rabinos talmudistas orientar-se nesse esoterismo histórico. Basta saber, porque só os romanos se permitiam violar assim a santidade da semana pascal. Agora bem, no ano 60 a Judéia não era ainda província romana, e não o seria até o ano 69, com a entrada de Pompeyo em Jerusalém.
Voltemos para a liberação de Jesus, afirmada pelos monges copistas ortodoxos.
Imaginar que este homem, cuja captura nas Oliveiras exigiu a mobilização de uma coorte de veteranos, quer dizer, de seiscentos soldados de elite, acompanhados de um importante destacamento de milicianos do Templo, e dirigidos por um tribuno militar, magistrado com classe de cônsul, repito, imaginar que este homem pôde ter sido posto em liberdade pelo procurador de Roma à vista e em presença de toda a cidade de Jerusalém, guarnição incluída, é um perfeito disparate. Quão único pôde fazer Pilatos é facilitar uma evasão, adotando todas as medidas oportunas para que esta fosse um êxito: debilidade numérica da escolta de execução, eleição de um lugar e um itinerário especialmente propícios para uma fuga, acordo secreto com os partidários, e acordo também com o interessado no que diz respeito a seu desaparecimento e a sua neutralidade atrás dessa discreta "liberação". E isso foi o que aconteceu em parte.
Os arquivos do Império romano compreendiam diversos tipos de documentos. Estavam as Atas do Senado, o Jornal de Roma, e os Arquivos imperiais. Estes últimos estavam compostos por notas redigidas pelo imperador ou por seus secretários, e os relatórios confidenciais enviados a Roma pelos legados imperiais, governadores de províncias, etc. O próprio Tácito, apesar do favor de que gozava por parte dos imperadores Nerva e logo Trajano, jamais pôde inteirar do conteúdo de tais Arquivos imperiais (comentários principais), (cf. H. Goelzer, Tacite, Annales, Introduction, XII-XIII), e foi o Papa Gregório I quem os mandou destruir, como dissemos antes.
Agora bem, houve um homem que, indubitavelmente, foi autorizado a informar-se nesses documentos confidenciais, e foi Celsus, aliás Celso, o "terceiro Celso", geralmente ignorado pelos historiadores oficiais, e com razão. Celso, amigo do imperador Juliano, seu companheiro de estudos nas escolas de Atenas, aluno, amigo e companheiro de Libanio, e a quem Julio César fez governador das províncias da Capadocia e Cilícia, pretor de Bitinia, colaborou com o imperador na reação pagã que se desenvolveu do ano 361 a 363. Aparece citado por Amiano Marcelino e por Libanio, contemporâneos deles, assim como por Paul Allard, historiador católico, em seu livro Julien. Enquanto o jovem imperador (a quem os cristãos denominariam o Apóstata depois de fazê-lo assassinar) redigia seu livro Contra os Galileus, Celso compunha seu famoso discurso intitulado Aletès logos ou Discurso verdadeiro, logo mais conhecido com o nome de Contra os cristãos; e pode admitir-se perfeitamente que seu poderoso amigo Juliano, para esta colaboração, abrir-lhe-ia os Arquivos imperiais sem nenhuma dificuldade, ao menos no que correspondia ao período sobre o que versava o trabalho que preparava Celso, quer dizer, os onze anos do procurador Pôncio Pilatos. E no Discurso de verdade ou Discurso verdadeiro descobrimos esta surpreendente passagem já citada: "Mas como receber como Deus àquele que, entre outras coisas motivo de queixa, não realizou nada do que prometera? Àquele que, convencido, julgado e condenado ao suplício, escapou vergonhosamente, e foi capturado de novo nas condições mais humilhantes, graças à traição daqueles mesmos aos quais ele chamava seus discípulos..." (Cf. Celso, Discurso verdadeiro, II, 16).
Que se tranqüilize o leitor, logo conheceremos o nome do segundo traidor que entregou Jesus.
Esta evasão se conseguiu graças à cumplicidade tácita de Pôncio Pilatos, e provavelmente também de Herodes Antipas, tetrarca bonachão, indeciso e ardiloso, que possivelmente cedeu às instâncias de sua sobrinha e enteada Salomé II, assim como de Pilatos e Claudia Procula. Sobre a cumplicidade de Pilatos existe ainda um documento, um velho apócrifo do século VI, apoiado em um texto inicial muito mais antigo, e que recebe o nome de pseudo-Marcellus. Imprimatur de 8-9-1921, Paris, Letouzey & Ané édit., Paris, 1922).
Nos Atos de Pedro se fala de uma carta que Pôncio Pilatos teria dirigido ao imperador Claudio, e que figura no pseudo-Marcellus. "Foi sugerida pelo Tertuliano, ou corria já em certos círculos cristãos?...", pergunta-se o abade Vouaux. Não pode dizer-se nada a respeito. Mas uma alusão surpreendente já a primeira vista, e é o fato de que Pôncio Pilatos dirigisse uma carta ao imperador Claudio. Porque Pilatos morreu em Vienne no ano 39, e Claudio não foi imperador até o ano 41. Pensamos que se trata de um aplique de um copista muito ciumento. Não é impossível que Pilatos redigisse um relatório (e não uma carta) dirigido à atenção de Claudio, mas este último ainda não era imperador. Não esqueçamos que este passou por Vienne ao ir combater aos bretães, quando Pilatos estava ainda deportado nesta cidade (ou muito perto dela), no ano 39. Este relatório, provavelmente uma queixa ou justificação, Pilatos o teria redigido com a esperança de obter seu progresso, perdoado, quando Claudio passasse por Vienne, sendo então legado imperial e cônsul.
No texto do pseudo-Marcellus que chegou até nós (e que provavelmente foi hábil e embelezado pelos escribas anônimos em suas posteriores resenhas), Pilatos recorda os milagres de Jesus, o ódio dos príncipes, dos sacerdotes, sua crucificação e sua ressurreição, que os judeus teriam tentado fazer passar por uma mentira de parte dos guarianes.
Deixemos essa verborréia e tenhamos em conta que com toda probabilidade Pilatos dirigiu um relatório justificativo ao Claudio, então simples cônsul. A benevolência do procurador para com o Jesus seria justificada pelo fato de que Tibério, em um momento de seu reinado, teve a idéia de dar a tetrarquia de Herodes Filipo, que acabava de ser destituído (no ano 34 de nossa era), ao Jesus, com o fim de aplacar a resistência judia latente, ao lhes dar um "filho de David" como soberano de Batanea, Traconítide, Gaulanítide e Auranítide. Dois evangelhos nos contam este fato, o de João (6, 15), e o conhecido como Evangelho dos Doze Apóstolos fragmento II. Este último estava considerado pelo grande Orígenes como muito anterior ao de Lucas.
Por outra parte, o que confirma esta decisão de Tibério (que fracassou a conseqüência de intrigas locais na Palestina), é que uma Histoire da ville de Vienne, de Mermet, Sen., (Paris, 1828, Didot édit.), contém uma História inédita da cidade de Vienne sob os Doze Césares de um tal Trebonius Rufinus, senador romano, dirigida ao C. Plino Coecilio Secundo. Trebonius Rufinus diz ser antigo administrador da cidade de Vienne. Este texto dataria do ano 109 ou 110 de nossa era. Nele pode ler-se, no capítulo VII do livro VI, que Tibério tinha proposto ao Senado de Roma que admitissem ao Jesus na classe dos deuses do Império. Depois de um exame atento da informação que possuíam, o Senado rechaçou essa proposta, porque lhes parecia inconveniente deificar, quão mesmo a um César romano, a um indivíduo que fora submetido ao suplício reservado aos rebeldes e aos escravos, e além por sentença de um procurador de Roma. Vêm a seguir algumas linhas sobre as perseguições que tiveram lugar sob o Nero.
De todo modo, e para ser objetivo, convém assinalar que o que pretendia Tibério não era proclamar ao Jesus como deus no sentido que lhe dão ao termo os cristãos atuais. Não se tratava mas sim da apoteose, quer dizer, da apoteose ou glorificação póstuma que elevava a um morto à categoria dos heróis divinizados; Zeus conservava o primeiro lugar na teogonia secular. Para Tibério, este fato carecia de importância; Suetonio nos diz dele que tinha estudado astrologia em Rodas, com o astrólogo Trasilo como professor, e que era "indiferente aos deuses e à religião, já que se entregava à astrologia e acreditava firmemente que tudo obedecia à Fatalidade...". (Cf. Suetonio, Vida dos Doze Césares, Tibério, XIV e LXIX).
É evidente que, se este fato for verídico, os padres recrutas, responsáveis pela glória do Império, não podiam pôr no mesmo pedestal a um rebelde judeu e a Augusto, o maior de seus imperadores. Isto deveria lhes parecer impensável, ou inclusive ofensivo.
Mas um se perguntará através de quem tinha ouvido Tibério falar de Jesus? Pois simplesmente através de um relatório de Pilatos. Quando teve lugar a destituição de Herodes Filipo, por ocasião da denúncia de um pseudo-complô feita por seu primo irmão Herodes Antipas, o procurador teve que prestar contas dos acontecimentos que a motivaram. Provavelmente foi consultado sobre a eleição do possível sucessor. Impulsionado por sua esposa Claudia Procula, possivelmente amiga de Salomé II (os membros da alta sociedade, como é natural, freqüentavam-se, fosse qual fosse sua origem), pôde sugerir ao Jesus. Isso explicaria que fora primeiro inimigo de Herodes Antipas, quem esperava ser o herdeiro dos bens de seu primo irmão. Porque essa hostilidade aparece testemunhada nos evangelhos canônicos: "Naquele dia se fizeram amigos um do outro, Herodes e Pilatos, pois antes eram inimigos". (Cf. Lucas, 23, 12).
Entretanto, possivelmente há algo mais que essas relações entre Pilatos e Tibério, ou sua esposa Claudia Procula, ou Salomé II. Com efeito, consultemos de novo o Evangelho dos Doze Apóstolos, e voltemos para esse episódio da investigação de Tibério sobre o Jesus, relatada em nossa primeira obra. Carios, enviado do imperador, tinha como missão estabelecer essa relação, com o fim de nomear ao Jesus tetrarca, substituindo ao Herodes Filipo, destituído dessa dignidade. E vejamos o que diz já sobre isso esse misterioso evangelho: "Quanto ao Carios, enviou junto ao imperador ao apóstolo João, quem lhe relatou muitas coisas a respeito de Jesus. O imperador Tibério concedeu grandes honras ao João e escreveu, sobre Jesus, que tomassem para fazê-lo rei, segundo o que está escrito nos evangelhos, ou seja: 'E Jesus, conhecendo que viriam para lhe arrebatar e lhe fazer rei, retirou-se outra vez ao monte, ele sozinho...'." (Cf. João, 6, 15).
Temos, pois, que o Evangelho dos Doze Apóstolos confirma o que já nos dizia outro apócrifo copto, os Atos de Pilatos. E em um fragmento conservado na Biblioteca Nacional de Paris (manuscrito nro. 129/17, fólio 10), o mesmo Evangelho dos Doze Apóstolos contribui ainda outra precisão: "depois deste tempo, quando Tibério César passou (pela Palestina), Herodes o Tetrarca foi encontrar-se com ele, sendo Pilatos o prefeito da Judéia...".
Sem dúvida não se encontra nenhuma estadia concreta de Tibério na Judéia. Mas antes de ser imperador viajou muito. Nasceu em Roma em 16 de novembro do ano 42 antes de nossa era, converteu-se em imperador no ano 14 de nossa era, morreu em Misene em 16 de março de 37. Foi cônsul no -20, e aquele mesmo ano foi à Armênia para restaurar ali o reino de Tigrano. Logo foi governador de Galia Transalpina, e no ano -15 foi respaldar ao Druso com as legiões de Rin e de Danubio. Do -15 aos -9 obteve numerosas vitórias sobre os ilirios e os panonios. No -12 se casou com Julia I, filha de Augusto, foi adotado por este imperador no ano 4 de nossa era, e viveu então, do -16 até o 4 de nossa era, na ilha de Rodas, pois se afastou rapidamente de sua esposa, por causa de seus adultérios. Quando retornou à Roma, no ano 4, partiu para a conquista da Germania setentrional e chegou até o curso inferior de Elba. No ano 6 de nossa era efetuou campanhas nas Bálcãs e em Iliria. Em 14 foi imperador, e se retirou em 27 à ilha de Capri.
Pois bem, Rodas está a pouco mais de 700 km. da Cesaréia Marítima, e isso só representava uns dez dias de navegação, naquela época. Por que Tibério não teria que estar jamais na Palestina, se esteve em Armênia, e logo em Rodas, mais perto? Deste homem não sabemos tudo; os Anais de Tácito não começam, em seu primeiro livro, até o ano 14 de nossa era, sob os consulados de Sexto Pompeyo e Sexto Apuleyo. E Suetonio, em sua Vida dos Doze Césares, despacha em só quatro linhas as atividades anteriores de Tibério no Oriente Médio: "Tomou suas primeiras armas na expedição contra os cántabros em qualidade de tribuno militar, logo, depois de conduzir um exército ao Oriente, devolveu ao Tigrano o trono de Armênia e o coroou com o diadema diante de seu tribunal. Recuperou deste modo as insígnias que os partos tinham arrebatado ao M. Crasso". (Cf. Suetonio, Vida dos Doze Césares, Tibério, IX).
Tenhamos em conta que os partos ocupavam Persia e Babilônia até o Éufrates, e que ali se está muito perto de Antioquia de Síria. Por conseguinte, é seguro que Tibério esteve nessas regiões. Em que época? O Evangelho dos Doze Apóstolos lhes contribui uma precisão a que parece que os exegetas não prestaram atenção: "sendo Pilatos prefeito da Judéia...". Prefeito da Judéia ou prefeito na Judéia?
Prefeito da Judéia faria dele um administrador civil, e Pilatos era militar. Prefeito na Judéia o mostraria como simples prefeito legionário, quer dizer, algo assim como general, já que tinha sob suas ordens os seis tribunos das coortes habituais em uma legião romana. Encontramo-nos, pois, antes do ano 26 de nossa era, data na qual, sendo Tibério imperador, Pilatos foi renomado procurador da Judéia. E nesse período Jesus contava já mais de quarenta anos, posto que tinha nascido em 17 de nossa era.
Como se vê, não há nenhuma impossibilidade histórica no fato de que Tibério, no curso de uma estadia mais ou menos longa em Síria ou Palestina, ouvisse falar de Jesus nos meios aristocráticos onde necessariamente o receberam: dinastia herodiana (Herodes Antipas, tetrarca, Salomé II, Herodias, etc.), hierarquia religiosa judia (membros do Sanedrín, pontífice, supremos sacerdotes diversos, etc.), hierarquia militar ocupante (quadros da administração romana, civil e militar). E não é impossível que a placa comemorativa descoberta em Cesaréia, que menciona Tibério e Pilatos, não seja o testemunho de uma visita de Tibério à Jerusalém, e além na época em que Jesus era da máxima atualidade, tanto pelo papel que desempenhava, como por suas alianças familiares...
Quanto ao fato de que se enviasse ante o Tibério ao apóstolo João, o irmão mais jovem de Jesus, por ordem de Carios, é evidente que se trata de uma pura invenção dos piedosos copistas. Um simples relatório de tal Carios, enviado do imperador, bastava a este último para dar-se por informado. Mas se Tibério teve a idéia de confiar um dia uma tetrarquia ao Jesus, este projeto pôde muito bem germinar em sua mente no curso dessa estadia em Síria ou Palestina, sem necessidade de interrogar ao tal João. Possuía muitos outros meios de investigação, por ser já cônsul, legado de César, etcétera.
E agora podemos fazer o balanço de nossos descobrimentos:
1. Vimos que Pilatos desejava liberar Jesus, mas que não podia fazê-lo oficialmente.
2. Vimos que em sua mente havia em germe uma idéia de substituição, que os evangelhos ocultaram, com o assunto de Jesus Barrabás.
3. Vimos que numerosos textos combatem, com palavras de duplo sentido, uma tese que pretendia que Jesus não fora crucificado.
4. Vimos que certas tradições afirmavam que Simão de Cirene fora crucificado em lugar de Jesus.
5. Vimos que o texto de Celso afirmava que Jesus se evadiu e fora entregue por seus discípulos.
6. Sabemos que os evangelhos sinóticos de Mateus, Marcos, Lucas, afirmam que Simão de Cirene levava a cruz de Jesus, enquanto que o de João afirma que Jesus chegara ao lugar da execução levando ele mesmo sua cruz.
7. Sabemos que esses evangelhos não estão de acordo no que diz respeito ao dia da semana e a hora da crucificação; esse é um problema que divide os exegetas há séculos.
8. Sabemos que uma tradição afirmava que Jesus tinha recebido em sua prisão a visita de alguns de seus apóstolos.
9. Sabemos que as Ata Pilati afirmam que Jesus foi crucificado nas Oliveiras, fato confirmado pelo relato da peregrina Eteria, enquanto que os evangelhos canônicos (arrumados no século IV) afirmam que foi no Gólgota.
Em seu diário de viagem, intitulado Peregrinatio ad loca Sancta, peregrina Eteria nos mostra, com efeito, que por volta do ano 400, quer dizer, ainda em princípio do século V, em Jerusalém a oblação da quinta-feira santa se realizava de noite, no Gólgota, enquanto que a comemoração da agonia e da morte de Jesus se realizava no Getsêmani e no monte das Oliveiras. Isso prova que, naquela época, sabia-se que a execução tivera lugar nas Oliveiras, mas que, apesar de tudo, algo tinha acontecido no Gólgota. O que? Já não possuíam a chave!
1. O Talmud de Babilônia afirmava que Jesus foi "detido" 40 dias antes de ser executado. Tenhamos simplesmente em conta o fato de que a condenação e a execução estiveram separadas por um período de aproximadamente seis semanas. Por certo que Lucas distingue dois comparecimentos de Jesus ante Pilatos, em 23, 1 a 7, e em 23, 13 a 25.
2. Logo constataremos que os motivos alegados nas diferentes versões das Antigüidades judaicas e da Guerra dos judeus de Flavio Josefo são incoerentes e contraditórias no que se refere à queda em desgraça de Pôncio Pilatos e de Herodes Antipas.
3. Sabemos que Pilatos teve que reprimir uma revolta armada de grande envergadura, dirigida por um líder que se dizia profeta e mago, que revoltou boa parte de Samaria, depois da morte "oficial" de Jesus segundo os evangelhos canônicos, e que esse profeta mago foi conduzido a Jerusalém e executado.
Em vista de tudo isto, podemos concluir que:
Houve, efetivamente, duas detenções de Jesus. A primeira teve lugar umas seis semanas (40 dias) antes da Páscoa e de sua verdadeira crucificação. Foi seguida de um processo romano como deve ser, com todo o aparelho e as minúcias exigidas por esse direito romano do que ainda estão impregnadas todas nossas legislações contemporâneas.
Foi condenado a morte e conduzido a um lugar de execução incomum, o Gólgota, com o fim de fazê-lo passar, ao sair da Antonia, e do pretório, por diante da Porta do Norte, de onde partia, imediatamente depois, o caminho que conduzia à Samaria, território proibido aos judeus legalistas, e onde Jesus tinha amigos.
Para permitir a evasão, o destacamento que o conduzia para o Gólgota era de número reduzido. Além disso, não era Jesus quem levava os pregos os quais deveriam estar atados pelos punhos, a não ser um portador desconhecido. A flagelação ainda não lhe fora aplicada, já que nos casos de condenação a morte freqüentemente tinha lugar na mesma convocação da execução. assim, Jesus estava em posse de todas suas faculdades.
Ao passar diante da Porta do Norte, um comando zelote suscitou um motim entre os partidários de Jesus, que foram em massa. O movimento libertador teve lugar do interior da cidade para a Porta do Norte, e não da porta para a cidade, a fim de facilitar a fuga do condenado. No curso da escaramuça, o chefe do comando cainita, um tal Simão, que não era de Cirene, mas sim ia "ao encontro" dos legionários, ficou em mãos destes últimos, e foi executado no lugar de Jesus, no Gólgota, aquele mesmo dia.
Bem a cavalo, bem em mula (a história do pequeno asno possivelmente investiu a verdade), Jesus e sua gente conseguiram chegar à Samaria. Na prisão puseram-lhe a par dos entendimentos que se realizaram em seu favor. Comprometeram-se em seu nome a renunciar a toda atividade zelote, e a cair no esquecimento. Mas ele logo renunciaria a dobrar-se ante essa cláusula e reempreenderia as hostilidades em Samaria.
Pilatos se veria então na obrigação de enviar a suas tropas a reduzir esta nova insurreição. Entre os prisioneiros figurava Jesus, entregue por alguns de seus discípulos, que identificaremos ao final do presente volume. O prisioneiro foi conduzido à Jerusalém. E efetivamente tinham transcorrido umas seis semanas desde sua fuga ou sua primeira condenação.
Jesus então, e só a fim de que lhe identificassem, foi apresentado às três autoridades oficiais: as religiosas, com o Anás e Caifás e uma delegação do Sanedrín; a administrativa, com o Herodes Antipas, tetrarca da Galiléia e Perea (pois Jesus era galileu); e as ocupantes, com o Pôncio Pilatos. Isso explica a brevidade do prazo transcorrido entre o comparecimento e a execução, brevidade que sempre deixou estupefato ao historiador e fez acreditar na ilegalidade dessas formalidades. De fato, o processo tinha já lugar em sua forma regular, e Jesus era simplesmente um contumaz, condenado a morte, e que escapara de seus guardas fazendo uso da força. Não havia nenhuma necessidade de começar de novo com outro processo.
Jesus foi conduzido a seguir ao lugar habitual das execuções, quer dizer, ao cemitério das Oliveiras, ao pé do monte, e foi crucificado entre dois bandidos salteadores de caminhos, segundo os evangelhos canônicos, mas na realidade entre dois de seu guarda-costas. Seus nomes tenderiam a relacioná-los com dois antigos gladiadores dados à fuga.
Das mesclas que se realizaram entre estes dois casos nasceram as contradições que se encontram nos diferentes evangelhos, e as incoerências que neles descobriram é indubitável que não se devem a outra coisa. Entretanto, é possível que essas mesclas fossem premeditadas, posto que terei que fazer desaparecer a todo custo qualquer rastro de um Jesus prisioneiro e evadido.
Desgraçadamente, havia muitas gretas na elaboração da fábula, e a verdade acaba sempre saindo à luz.
Em Marcos temos precisões sobre seu desejo de permanecer oculto: "Jesus, partindo dali (de Jerusalém), foi para os limites de Tiro e Sidônia. Entrou em uma casa, não querendo ser de ninguém conhecido, mas não foi possível ocultar-se, porque logo, ouvindo falar Dele, uma mulher cuja filhinha tinha um espírito impuro entrou e se prostrou a seus pés..." (Marcos, 7, 24-25).
De modo que desejava que ninguém soubesse quem era, e permanecer oculto. Estranha atitude para um deus encarnado, vindo a proclamar a verdade às multidões, essa de fugir e meter-se "em uma casa", e querer "ocultar-se" nela. Essa casa era, provavelmente, a do misterioso irmão cujo nome ignoramos, e que vivia em Sidônia, com o apelido de Sidonios. Seria este o misterioso filho oculto de que falamos no capítulo 10?
Conhecemos a continuação do assunto; Jesus, ao não poder permanecer mais tempo em Fenícia, dado que lhe reconheceram, foge de novo: "Saindo de novo dos limites de Tiro, foi por Sidônia por volta do mar da Galiléia, atravessando os limites de Decápolis..." (Marcos, 7, 31).

Pois bem, se se examinar o mapa dessas regiões, constatar-se-á que Jesus tentou lhes dar o cambalacho às pessoas de Tiro. Desde essa cidade se remontou, com efeito, para o norte, com o passar do litorâneo mediterrâneo, até Sidônia, cidade situada a uns cinqüenta quilômetros por cima de Tiro. Assim os tirios puderam supor que ia definitivamente da Palestina. E se proporcionaram alguma informação sobre ele à delegacia romana, essa informação foi errônea. De Sidônia voltou então, transversalmente para o este, mas por Decápolis, de novo à Galiléia. Tudo isto é perfeitamente normal por parte de um homem cuja cabeça está posta a preço, e que tem às legiões romanas em perpétua operação policial contra suas próprias tropas, mas é totalmente ilógico por parte de um "predestinado", vindo essencialmente para sacrificar-se. Na realidade, essas retiradas estratégicas em Fenícia e Samaria serão sua segunda e terceira fuga, já que, quando Jesus se refugiou no Egito, depois do fracasso da revolução dirigida por seu pai Judas de Gamala, no ano 6 antes de nossa era, contava já doze anos (pois nascera por volta de -17), e possuía portanto a maioridade civil e religiosa segundo os termos da lei judia. E três fugas sucessivas é muito para um Messias.
Os deslocamentos de Jesus durante os quatro anos de sua vida pública não são, pois, devidos ao azar. Estão necessariamente ligados a uma necessidade de segurança. Ao pretender restaurar um reinado de caráter religioso, herdar o trono de David, e estar rodeado de zelotes, alguns dos quais tinham bastante má reputação, se se tiver em conta seus apodos, não podia a não ser estar vigiado pela polícia romana, a que se acrescentava a dos tetrarcas idumeos. Por isso, quando vemos os historiadores cristãos dando o nome de "retiro" à sua viagem à Fenícia, e no sentido piedoso do termo, não podemos deixar de nos assombrar, e entender essa palavra em seu significado militar, quer dizer, "retirada".
Com efeito, quando um se encontra em Jerusalém, a Cidade Santa, onde, como bom judeu de raça, tem-se direito ao acesso ao penúltimo recinto, o dos homens, cada dia (e Jesus não se priva disso), nesse templo que é o único lugar de culto regular, com exclusão de qualquer outro, como justificar que fora realizar um retiro à Fenícia, Estado cuja população era sempre hostil ao povo hebreu, cujos cultos eram essencialmente pagãos, e onde, indevidamente, a impureza ritual espreitava a cada instante? No pior dos casos, podia meditar "à montanha".
De fato, tratava-se de uma "retirada militar", quer dizer, de uma fuga, e precisamente em uma região em que não se pensaria nem por um instante que Jesus pudesse refugiar-se. De Jerusalém, onde se encontrava então, até Sidônia, através da Judéia, a Samaria hostil e Galiléia, há em total uns cento e noventa quilômetros a vôo de pássaro, aproximadamente.
Sempre ignoraremos o caminho exato que seguiu Jesus, mas podemos supor que, junto com os poucos discípulos que lhe acompanharam (sem dúvida os mesmos de sempre, Simão, Santiago e João), mesclou-se a uma caravana de peregrinos que se dirigiam à Fenícia para as cerimônias comemorativas da morte e ressurreição de Adonis. Porque se dermos crédito aos trabalhos dos exegetas e historiadores católicos, foi precisamente em junho do ano 29 quando Jesus se refugiou em Fenícia. E chegou ali justo para as cerimônias anuais, as quais se desenvolveram, como veremos, no solstício de verão, quando floresce a "rosa de Damasco", essa anêmona consagrada ao Adonis.
Mas permaneceria ali pouco tempo, dez dias ao todo, já que foi reconhecido: "Saindo dali Jesus (de Jerusalém), retirou-se as partes de Tiro e do Sidônia. Uma mulher cananéia daqueles contornos começou a gritar, dizendo: 'Tenha piedade de mim, Senhor, Filho de David: minha filha é imperfeitamente atormentada pelo demônio...' Mas não lhe respondia palavra. Os discípulos lhe aproximaram e lhe rogaram, dizendo: 'Despede-a, pois vem gritando detrás de nós...'. " (Mateus, 15, 21-24).
E, com efeito, assim corriam o risco de ser identificados, o que, como é natural, não lhes convinha absolutamente. Nossos personagens não tinham, pois, a consciência tranqüila do ponto de vista político, dado que, em Tiro e Sidônia, não corriam absolutamente nenhum perigo por parte das autoridades religiosas judias, assim, para ameaçá-los, não ficavam a não ser as autoridades romanas, que não exerciam sobre a população do Oriente Médio nenhum controle religioso, excetuando o que concernia aos sacrifícios humanos.
Fica agora o problema do segundo denunciante que, provavelmente com outros, mais obscuros, decidiu entregar Jesus aos romanos, depois do fracasso da insurreição de Garitzim. Quais são então "aqueles aos que ele chamava seus discípulos"?, segundo a expressão de Celso em seu Discurso verdadeiro (op. cit., II, 16).
Não procuremos. Encontram-se entre aqueles que Clemente de Alexandria diz que abandonaram "a missão que Jesus lhes tinha creditado".
"Escolhidos, não todos confessaram ao Senhor pela palavra, e não todos morreram em seu nome. Entre eles se contam Mateus, Felipe, Tomás, e muitos outros..." (Cf. Clemente de Alexandria, Stromates, IV, 9).
E para justificar esta traição está só o cansaço de sete anos de fracassos sucessivos, de vida errante, de fugas consecutivas aos golpes de mão mais ou menos gratificantes, e estava também o interesse. No que consistia? Primeiro, indubitavelmente, na certeza de que se beneficiariam de impunidade pela participação naquela rebelião de Samaria, logo, provavelmente, em uma importante recompensa, já que sem dúvida a cabeça de Jesus fora posta a preço. Do mesmo modo, era preciso que o traidor possuísse uma certa autoridade hierárquica e moral sobre a massa dos partidários, para poder pôr em marcha seu projeto.
Não podia ser Tomás, o gêmeo, aliás Judas, já que, como sabemos agora, logo desempenharia o papel de Jesus ressuscitado. (Cf. Jesus ou o segredo mortal dos templários, pp. 263 a 267).
Não podia ser Felipe, já que a "tradição", apesar de tudo, o faz morrer mais tarde pela causa, e existe uma Epístola de Pedro ao Felipe, seu irmão maior e seu companheiro, manuscrito do século V, redigido em copto tebano, e que tende a assentar a possibilidade de ulteriores contatos entre esses dois irmãos de Jesus.
Não fica, pois, ninguém mais que Mateus, aliás Levi, tio de Jesus, funcionário de Roma, já que era tributo e mantinha uma relação bastante curiosa com o "meio" dessas regiões, como nos contam os próprios evangelhos canônicos: "E aconteceu que, estando Jesus sentado à mesa em casa daquele (do Mateus), vieram muitos publicanos e pecadores sentar-se com Jesus e seus discípulos". (Cf. Mateus, 9, 10).
Marcos (2, 15) precisa-nos que se tratava da moradia de Levi-Mateus, e Lucas (5, 29), que esse festim (sic) devotado pelo mesmo causou escândalo entre os judeus ordinários.
Se a gente recordar que o Talmud colocava aos tributos ao mesmo nível que os vadios e os alcoviteiros, que para ser tributo era preciso ter comprado esse "pedágio" aos ocupantes romanos, e que esse cargo, muito remunerador, implicava o fato de ter que espremer a seus próprios compatriotas, convirá em que o personagem de Levi-Mateus não era do mais recomendável, pois tinha apostado sobre os dois bandos e tinha jogado um duplo jogo, como tantos "colaboradores" de todas as épocas.
E o que fica então é que o tio Mateus, personagem pouco limpo a nível moral, pôde muito bem ter sido o segundo traidor que entregou Jesus, seu sobrinho e seu rei legítimo. O que justificaria então o silêncio total dos historiadores da Igreja a seu respeito, e sua negativa a afirmar nada sobre seu fim. Possivelmente foi tão trágico como o de seu outro sobrinho, Judas Iscariotes!