OS ELEMENTOS DA CABALA EM DEZ LIÇÕES
Eliphas Levi
parte 2
Sexta Lição
A Cabala III
Senhor e Irmão:
A Bíblia deu ao homem dois nomes. O primeiro é Adão,
que significa saído da terra ou homem de terra; o segundo é
Enos ou Enoque, que significa homem divino ou elevado até Deus. Segundo
a Gênese, é este Enos quem primeiro fez homenagens públicas
ao princípio dos seres, e este Enos, o mesmo que Enoque, foi, segundo
dizem, elevado vivo ao céu após ter gravado sobre duas pedras,
que se chamam as colunas de Enoque, os elementos primitivos da religião
e da ciência universal.
Este Enoque não é um personagem, mas uma personificação
da humanidade, elevada ao sentimento da imortalidade, pela religião
e pela ciência. Na época designado pelo nome de Enos ou de
Enoque, o culto de Deus apareceu sobre a terra e o sacerdócio começou.
Na mesma época começa a civilização com a escritura
e os monumentos hieráticos.
O gênio civilizador que os hebreus personificam em Enoque os egípcios
chamaram Trismegisto e os gregos Kadmos ou Cadmus, aquele que, sob os acordes
da lira de Anfion, viu as pedras vivas de Tebas erguerem-se e alinharem-se
por si mesmas.
O livro sagrado primitivo, o livro que Postel chamou a Gênese de Enoque,
é a fonte primeira da Cabala ou tradição ao mesmo tempo
divina, humana e religiosa. Aí nos aparece, em toda sua simplicidade,
a revelação da inteligência suprema à razão
e ao amor do homem, a lei eterna regulando a expansão infinita, os
números na imensidade e a imensidade nos números, a poesia
na matemática e a matemática na poesia.
Quem acreditaria que o livro inspirador de todas as teorias e de todos os
símbolos religiosos seria conservado até nossos dias sob a
forma de um jogo composto por cartas bizarras? Nada é mais evidente
entretanto; e Court de Gebelin, seguido depois por todos aqueles que estudaram
seriamente o simbolismo dessas cartas, foi no século passado o primeiro
a descobri-lo.
O alfabeto e os dez signos dos números, eis certamente, o que há
de mais elementar nas ciências. Reuni a isso os sinais dos quatro
pontos cardeais do céu ou das quatro estações, e terá
o livro de Enoque inteiro. Porém, cada signo representa uma idéia
absoluta ou, se o senhor preferir, essencial.
A forma de cada algarismo e de cada letra tem sua razão matemática
e sua significação hieroglífica.
As idéias, inseparáveis dos números, seguem, adicionando-se,
dividindo-se ou multiplicando-se, etc., o movimento dos números e
adquirem sua exatidão. O livro de Enoque é, enfim, a aritmética
do pensamento.
Vosso na santa ciência.
Sétima Lição
A Cabala IV
Senhor e Irmão:
Court de Gebelin vislumbrou, nas vinte e duas chaves do Tarô, a representação
dos mistérios egípcios e atribuiu sua invenção
a Hermes ou Mercúrio Trismegistos, que era também conhecido
por Thaut ou Toth. É certo que os hieróglifos do Tarô
se encontram nos antigos monumentos do Egito; é certo que os signos
deste livro, traçados em conjuntos sinóticos sobre monolitos
ou sobre tábuas metálicas semelhantes à tábua
isíaca de Bembo (N. dos T. - Estas inscrições eram
feitas em lâminas de cobre e representavam os mistérios de
Ísis e da maior parte das divindades egípcias), eram reproduzidos
separadamente sobre pedras gravadas ou em medalhas, que originaram mais
tarde os amuletos e os talismãs. Separavam-se, assim, as páginas
do livro, infinito em suas diversas combinações para se reunir,
transpor e dispor de uma maneira sempre nova, para se obterem os oráculos
inesgotáveis da verdade.
Possuo um destes antigos talismãs, trazido do Egito por um viajante
amigo. Representa o binário dos Ciclos ou, vulgarmente, o "dois
de ouros". É a expressão figurada da grande lei da polarização
e do equilíbrio, produzindo a harmonia pela analogia dos contrários;
eis como esse símbolo é figurado no Tarô que possuímos,
e que ainda encontramos à venda:
S
A medalha que tenho está um pouco desgastada pelo tempo; é
do tamanho de uma moeda de cinco francos, mas um pouco mais grossa. Os dois
ciclos polares estão representados exatamente como no nosso Tarô
italiano, com uma flor de lótus e uma auréola ou nimbo.
A corrente astral, que separa e atrai ao mesmo tempo os dois focos polares,
está representada, em nosso talismã egípcio, pelo bode
de Mendes, colocado entre duas víboras análogas às
serpentes do caduceu. No reverso da medalha, vê-se um adepto ou um
sacerdote egípcio que, substituindo o bode de Mendes entre os dois
ciclos do equilíbrio universal, conduz por uma estrada margeada de
árvores o bode tornado manso como um simples animal, sob a bengala
do homem que imita Deus.
Os dez signos dos números, as vinte e duas letras do alfabeto hebraico
e os quatro signos astronômicos das estações constituem
o sumário e o resumo de toda a Cabala.
Vinte e duas letras e dez números dão as trinta e duas vias
do Sepher Yetzirah, quatro origina a Mercavah e o Shemamphorash.
É simples como um brinquedo de crianças e complicado como
os mais árduos problemas de matemática pura.
É ingênuo e profundo como a verdade e como a natureza.
Esses quatro signos elementares e astronômicos são as quatro
formas da esfinge e os quatro animais de Ezequiel e de São João.
Vosso na sagrada ciência.
Oitava Lição
A Cabala V
Senhor e Irmão:
A ciência da Cabala torna impossível a dúvida em matéria
de religião, por ser ela a única que concilia a razão
com a fé, mostrando que o dogma universal formulado de maneiras diversas,
porém no fundo sempre o mesmo, é a expressão mais pura
das aspirações do espírito humano esclarecido por uma
fé necessária. Ela faz compreender a utilidade das práticas
religiosas que, fixando a atenção, e fortificam a vontade,
lançando igualmente uma luz superior sobre todos os cultos. Prova
que o mais eficaz de todos os cultos é aquele que por sinais adequados
aproxima, por assim dizer, a divindade do homem, fazendo com que ele a veja,
toque e, de certa forma, incorpore. Basta dizer que se trata da religião
católica.
Esta religião, tal como se apresenta ao vulgo, é a mais absurda
de todas, porque é a mais revelada. Emprego esta palavra no seu verdadeiro
sentido: revelare; re-velar, velar de novo. O senhor sabe que no Evangelho
é dito que por ocasião da morte de Cristo o véu do
Templo se rasgou por completo e todo trabalho dogmático da Igreja
através dos tempos tem sido o de tecer e bordar um novo véu.
É verdade que os próprios guardiões do santuário,
por haverem desejado ser príncipes, perderam há muito tempo
as chaves da alta iniciação. Isto não impede que a
letra do dogma seja sagrada e os sacramentos eficazes. Disse em meus livros
que o culto cristão católico é a alta magia regulada
e organizada pelo simbolismo e a hierarquia. É uma combinação
de auxílios oferecidos à debilidade humana para afirmar sua
vontade no bem.
Nada foi esquecido, nem o templo misterioso e sombrio nem o incenso que
tranqüiliza e exalta ao mesmo tempo, nem os cantos prolongados e monótonos
que colocam o cérebro em um semi-sonambulismo. O dogma, cujas formas
obscuras parecem o desespero da razão, serve de barreira às
petulâncias de um crítico inexperiente e indiscreto. Parecem
insondáveis, a fim de melhor representarem o infinito. Os próprios
ofícios, celebrados numa língua que a massa popular não
entende, preenchem o pensamento daquele que ora e o deixam encontrar na
oração tudo o que está em relação com
as necessidades do espírito e do coração. Eis aí
por que a religião católica se assemelha à ave fênix
da fábula, que se sucede de século em século e renasce
continuamente de suas cinzas. Este grande mistério da fé é
simplesmente um mistério da natureza.
Pareceria um enorme paradoxo dizermos que a religião católica
é a única que pode ser justamente chamada de natural; e, contudo,
isso é verdade; pois só ela satisfaz plenamente essa necessidade
natural do homem, que é o sentimento religioso.
Vosso na santa ciência.
Nona Lição
A Cabala VI
Senhor e Irmão:
Se o dogma cristão-católico é completamente cabalístico,
deve-se dizer o mesmo dos grandes santuários do mundo antigo. A lenda
de Krishna, tal como a relata o Bhagavadam, é um verdadeiro Evangelho,
similar ao nosso, porém mais ingênuo e brilhante. As encarnações
de Vishnu são dez, como os Sefiroths da Cabala e formam uma revelação,
de certo modo mais completa que a nossa. Osíris, morto por Tífon,
depois ressuscitado por Ísis, é o Cristo renegado pelos judeus,
depois glorificado na pessoa de sua mãe. A Tebaida é a grande
epopéia religiosa que deve ser colocada ao lado do grande símbolo
de Prometeu. Antígona é o tipo de mulher divina, tão
pura quanto Maria. Em todas as partes o bem triunfa pelo sacrifício
voluntário, após ter sofrido por algum tempo os assaltos desiguais
da força fatal. Os próprios ritos são simbólicos
e se transmitem de religião para religião.
As tiaras, as mitras, as sobrepelizes figuram em todas as grandes religiões.
Depois se deduziu que todas eram falsas, quando, em verdade, falsa é
a conclusão. A verdade é que a religião é una
como a própria humanidade, progressiva como ela e permanecendo sempre
a mesma, transformando-se continuamente. Se, para os egípcios, Jesus
Cristo se denomina Osíris, para os escandinavos Osíris é
Balder, morto pelo lobo Jeuris, mas Voda ou Odin lhe devolve a vida e as
Valkírias servem-lhe hidromel no Valhala. Menestréis, druidas,
bardos, cantavam a morte e a ressurreição de Tarenis ou Tetenus,
distribuíam a seus fiéis o agárico sagrado, como nós
fazemos com o buxo bendito nas festas do solstício de estio, e rendiam
culto à virgindade, inspirado nas sacerdotisas da ilha do Sena.
Podemos, portanto, em plena consciência e com inteira razão,
cumprir os deveres que nos impõe nossa religião materna. As
práticas são atos coletivos e repetidos com intenção
direta e perseverante. Semelhantes atos são sempre benéficos
e fortificam a vontade, espécie de ginástica que nos conduz
ao fim espiritual que queiramos alcançar. As práticas mágicas
e os passes magnéticos não têm outro objetivo e dão
resultados análogos aos das práticas religiosas, ainda que
sejam mais imperfeitos.
Quantos homens não têm a energia para fazer o que desejam ou
devem fazer? Há mulheres que se consagram sem desânimo a trabalhos
tão repugnantes e penosos como os das enfermeiras e educadoras. De
onde tiram a força? Das pequenas práticas repetidas. Rezam
todos os dias o seu ofício e seu terço e fazem de joelhos
a oração e o exame particular.
Vosso na santa ciência.
Décima Lição
A Cabala VII
Senhor e Irmão:
A religião não é uma servidão imposta ao homem,
é um auxílio que se lhe oferece. As castas sacerdotais trataram,
o tempo todo, de explorar, vender e transformar este auxílio em jugo
insuportável; a obra evangélica de Jesus tinha por objeto
separar a religião do sacerdote ou pelo menos colocar o sacerdote
na posição de ministro ou servidor da religião, dando
à consciência do homem toda a liberdade e razão. Vede
a parábola do bom samaritano e estes preciosos textos: "A lei
se fez para o homem e não o homem para a lei. Desgraçados
aqueles que prendem e impõem, sobre as espáduas dos outros,
fardos que gostariam de tocar apenas com as pontas dos dedos, etc., etc."
A Igreja oficial declara-se infalível no Apocalipse, a chave cabalística
dos evangelhos, e há no cristianismo, sempre, uma igreja oculta ou
Joanita que, respeitando totalmente a necessidade da Igreja oficial, conserva
do dogma uma interpretação diferente da que lhe dá
o vulgo.
Os templários, os rosacruzes, os Franco-Maçons de alto grau
pertenceram todos, antes da revolução francesa, à Igreja,
da qual Martinez Pasqually, Saint-Martin e até Mme, de Krudemer foram
os apóstolos no século XVIII.
O caráter distintivo desta escola é evitar a publicidade e
não se constituir, nunca, em seita dissidente. O conde José
de Maistre, esse católico tão radical, era, ainda que não
se acredite, simpático à sociedade dos Martinistas e anunciava
uma regeneração próxima do dogma por luzes que emanavam
dos santuários do ocultismo. Existem todavia sacerdotes fervorosos
que estão iniciados nas doutrinas antigas, e um bispo, entre outros,
falecido recentemente, pediu-me que lhe ensinasse cabala. Os discípulos
de Saint-Martin tomaram o pseudônimo de filósofos desconhecidos,
e os discípulos de um mestre moderno muito conhecido não tiveram
necessidade de tomar nome algum, pois o mundo não suspeitava da existência
deles. Jesus disse que a levedura deve ocultar-se no fundo da vasilha que
contém a massa para trabalhar dia e noite em silêncio até
que a fermentação invada lentamente toda a massa que deve
formar o pão.
Um iniciado pode, com simplicidade e sinceridade, praticar a religião
em que haja nascido, porque todos os ritos representam diversamente um único
e mesmo dogma; porém não deve abrir o fundo de sua consciência
mais que a Deus e ninguém deve saber suas crenças mais íntimas.
O sacerdote não pode julgar o que o próprio Papa não
compreende. Os signos exteriores do iniciado são a ciência
modesta, a filantropia sem ostentação, a uniformidade de caráter
e a mais inalterável bondade.
Vosso na santa ciência.