Pedro e João
ELIPHAS LÉVI


Jesus tinha um discípulo pouco inteligente, pelo qual se sentia amado e que acreditava fervorosamente nele. Tinha o caráter simples e ardente do trabalhador; tinha todas as virtudes e todos os defeitos do povo, igualmente pronto ao desânimo e ao empenho, mas, em suma, sempre amigo de seu mestre e disposto a dar a vida por ele. Esse discípulo era um homem do porto chamado Simão. Jesus considerou-o como o modelo vivo do trabalho corajoso e lhe disse: Tu és a pedra sobre a qual fundarei minha associação (ecclesiam), e as portas do inferno, isto é, os poderes desse mundo não prevalecerão jamais contra ela. A pedra bruta que foi rejeitada pelos arquitetos da sociedade presente tornar-se-á a pedra angular de uma sociedade nova. Dar-te-ei as chaves do reino da inteligência e do amor, que é o reino dos céus, e és tu que realizarás as vontades de Deus na terra. Somente aqueles serão acorrentados e tu os acorrentarás, e outros serão livres, visto que os libertarás, porque tu és o homem do trabalho e te faço meu representante diante do futuro.

A Igreja, antes da chegada do espírito de inteligência, acreditou ver nessas palavras a consagração do poder absoluto e infalível dos papas, e um certo Alexandre VI pretendeu ser o herdeiro legítimo das promessas feitas a Pedro, o homem de fé, o trabalhador e o mártir. Todavia, os primeiros papas eram apenas os representantes do povo perante Deus e, por isso mesmo, de Deus perante o povo, visto que era o povo quem os escolhia; e é por esse motivo que os grandes pontífices dos bons tempos do catolicismo foram tribunos que resistiam aos imperadores, puniam os crimes dos grandes e defendiam os povos contra os vícios de seus mestres. Enquanto o papado reinou ele foi santo; a corrupção para ele devia ser a decadência.


Quando fores velho, disse Jesus a Pedro, um outro te cercará e te fará ir onde tu não queres. Triste quadro da servidão temporal a que se reduziu o papado decaído! Entretanto, o papado é um princípio, é a primeira monarquia cristã, e o cristianismo não se regenerará sem ele. O apóstolo Pedro foi até o fim a imagem do gênio laborioso e desconhecido; crucificaram-no como a seu mestre e o puseram de cabeça para baixo, tanto os carrascos tinham medo de vê-lo em pé. Jesus havia milagrosamente profetizado o que narra a lenda, porque quando Pedro saíra de Roma para fugir da perseguição de Nero, o Salvador lhe apareceu carregando sua cruz, e lhe disse: Vou a Roma onde devo ser crucificado uma segunda vez. Pedro compreendeu que o
cristianismo devia conquistar sua liberdade pelo martírio; retornou pois sobre seus passos e voltou para morrer. Jesus tinha um outro discípulo que foi chamado de discípulo do amor e que sempre é representado jovem porque, segundo a lenda, ele não deveria morrer. João é o evangelista da síntese e liga ao cristianismo todo o gênio de Platão na filosofia do Verbo. Jesus havia resumido toda a lei em duas palavras: Amai Deus, amai-vos uns aos outros. São João faz cumprir o amor a Deus no amor ao próximo e afirma que ninguém jamais viu Deus, mas que vemos os homens e que neles devemos amar a divindade que os anima.


Amar Deus na humanidade, tal é pois toda a religião; nosso século, adotando essa fórmula, só fez resumir a doutrina de São João. São Paulo diz que a fé e a esperança passarão, mas que a caridade não acabará jamais. Essa palavra é a promessa do reino da fraternidade, e é porque o futuro pertence ao amor que o personagem místico de São João é considerado imortal pelos legendários. Dizia-se que ele dormia em seu ataúde e que sua respiração agitava docemente a poeira da sepultura. Ele esperava a volta de seu mestre, como as virgens sábias que tiveram o cuidado de se apoderar do óleo da caridade para avivar sua lâmpada, para quando Deus desejasse manifestar-se novamente. Dizia-se, com efeito, que um óleo maravilhoso vertia do sepulcro de São João e devolvia a saúde aos doentes. É assim que a lenda segue-se ao Evangelho e adota suas imagens, como o Evangelho reproduz, explicando-as, as grandes figuras da Bíblia. Mas em todo o conjunto dos livros sagrados e da tradição mística, um apóstolo tem o cuidado de nos prevenir disso, a letra mata e o espírito vivifica. É por isso que, quando os cultos têm que morrer, eles se materializam ligando-se à letra da palavra, e o espírito lhes escapa ampliando sua expansão, como o homem faz quando abandona as roupas de sua infância.


O signo característico de São João, o último dos evangelistas, é uma águia, símbolo de liberdade, de inteligência e de soberania, porque o reino do amor, facilitando o progresso, deve tornar todos os homens livres por seu trabalho e sua virtude, cada um por sua vez, os primogênitos da família humana, sacerdotes, reis e proprietários do mundo. Fecisti non reges et sacerdotes et regnabimus super terram. (São João) Vós nos fizestes sacerdotes e reis, e
reinaremos sobre a Terra.


É por isso que, nesses últimos tempos, a águia reapareceu no mundo. É por isso que a guerra será apenas a preparação do império universal. O verdadeiro império é a paz: a águia vitoriosa repousará sobre o trovão e fixará o sol. Não será mais a águia do conquistador, será a águia do evangelista
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